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INGENUIDADE
Artur Azevedo


O Vaz desejava a Ernestina Friandes, não porque ela não tivesse todas as
aparências de uma senhora honesta; desejava-a, porque o marido, o
Friandes, era um pax vobis, que estava mesmo a pedir que o enganassem.


Quando, após quatro meses de. perseguições incessantes, o sedutor
conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito atrapalhado, por não
saber aonde levar a moça. Em casa dela era impossível um encontro: havia a
tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em casa dele também
não podia ser, porque ele não tinha casa; apesar dos seus trinta anos, vivia
ainda sob o teto e às sopas do pai.

***

O nosso herói lembrou-se, afinal, de um amigalhaço muito dado a cavalarias
altas; foi ter com ele, expôs-lhe a situação e pediu-lhe que lhe arranjasse um
ninho.


- Tu compreendes! Não posso nem devo levá-la a uma dessas casas de
alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria abusar da sua inocência!


- Então a pequena é tão inocente assim?


- Se é! Não fala senão de pálpebras caídas, e qualquer coisa lhe faz subir o
rubor às faces! Sou o seu primeiro amante!


- Deixa-te dessas pretensões! A gente nunca é o primeiro amante!


- Falas assim porque não a conheces.


- Vou indicar-te um lugar aonde podes levá-la com toda a segurança, porque é
uma casa que ainda não está conhecida. Rua tal, número tantos. Vai até lá e
procura de minha parte a D. Efigênia, que te servirá perfeitamente. Olha, leva-
lhe o meu cartão.
O Vaz foi à casa indicada e obteve o que desejava: um bom quarto, espaçoso,
bem mobiliado, arejado, com todos os requisitos, inclusive o de ficar logo no
topo da escada, de modo que ele e a Ernestina poderiam entrar sem ser
vistos.


***


No dia da entrevista, correu tudo às mil maravilhas. O Vaz esperou a sua
presa na esquina; ele entrou primeiro, ela depois, e lá se demoraram perto de
hora e meia.


Por que tanto tempo? Por que uma virtude não cai com a mesma facilidade
que as paredes do Hospital da Penitência!


Arrependida de haver subido aquela escada infame, a Ernestina resistiu
quanto pôde.


- Não! Não! Não!... eu quero conservar-me fiel aos meus deveres!... Que juízo
estará o senhor a fazer de mim?...


O Vaz - justiça se lhe faça - não respondeu como Pedro I, que era um bruto.


- E o Friandes?... e o meu pobre Friandes que tem tanta confiança em mim?...


***


A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda ficou, e D. Efigênia veio perguntar-lhe
com o mais amável dos seus sorrisos:


- Então?, agradou-lhe o quarto?


- Muito e, se a senhora quisesse, eu ficaria com ele só para mim.


- Ah!, isso não pode ser.


- Por quê?
- Porque há um cavalheiro e uma dama que têm este cômodo tomado para
todas as quartas e sábados, às quatro horas. Não sendo nesses dias e a essa
hora, o quarto é seu.


- Bom.


O Vaz pagou generosamente a hospedagem e saiu.

***

No dia seguinte lembrou-se que era sábado, e, sendo um desocupado, sentiu
desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4 horas. Para isso, postou-se,
no momento aprazado, bem defronte da casa hospitaleira, arranjando, por trás
de uma árvore um magnífico posto de observação.


O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era um velho com todas as aparências
de respeitável.


A dama pouco se demorou: era a própria Ernestina Friandes. Imaginem a
surpresa do Vaz, que daquele momento em diante, convencido de que o
ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres.

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  • 1. INGENUIDADE Artur Azevedo O Vaz desejava a Ernestina Friandes, não porque ela não tivesse todas as aparências de uma senhora honesta; desejava-a, porque o marido, o Friandes, era um pax vobis, que estava mesmo a pedir que o enganassem. Quando, após quatro meses de. perseguições incessantes, o sedutor conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito atrapalhado, por não saber aonde levar a moça. Em casa dela era impossível um encontro: havia a tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em casa dele também não podia ser, porque ele não tinha casa; apesar dos seus trinta anos, vivia ainda sob o teto e às sopas do pai. *** O nosso herói lembrou-se, afinal, de um amigalhaço muito dado a cavalarias altas; foi ter com ele, expôs-lhe a situação e pediu-lhe que lhe arranjasse um ninho. - Tu compreendes! Não posso nem devo levá-la a uma dessas casas de alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria abusar da sua inocência! - Então a pequena é tão inocente assim? - Se é! Não fala senão de pálpebras caídas, e qualquer coisa lhe faz subir o rubor às faces! Sou o seu primeiro amante! - Deixa-te dessas pretensões! A gente nunca é o primeiro amante! - Falas assim porque não a conheces. - Vou indicar-te um lugar aonde podes levá-la com toda a segurança, porque é uma casa que ainda não está conhecida. Rua tal, número tantos. Vai até lá e procura de minha parte a D. Efigênia, que te servirá perfeitamente. Olha, leva- lhe o meu cartão.
  • 2. O Vaz foi à casa indicada e obteve o que desejava: um bom quarto, espaçoso, bem mobiliado, arejado, com todos os requisitos, inclusive o de ficar logo no topo da escada, de modo que ele e a Ernestina poderiam entrar sem ser vistos. *** No dia da entrevista, correu tudo às mil maravilhas. O Vaz esperou a sua presa na esquina; ele entrou primeiro, ela depois, e lá se demoraram perto de hora e meia. Por que tanto tempo? Por que uma virtude não cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitência! Arrependida de haver subido aquela escada infame, a Ernestina resistiu quanto pôde. - Não! Não! Não!... eu quero conservar-me fiel aos meus deveres!... Que juízo estará o senhor a fazer de mim?... O Vaz - justiça se lhe faça - não respondeu como Pedro I, que era um bruto. - E o Friandes?... e o meu pobre Friandes que tem tanta confiança em mim?... *** A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda ficou, e D. Efigênia veio perguntar-lhe com o mais amável dos seus sorrisos: - Então?, agradou-lhe o quarto? - Muito e, se a senhora quisesse, eu ficaria com ele só para mim. - Ah!, isso não pode ser. - Por quê?
  • 3. - Porque há um cavalheiro e uma dama que têm este cômodo tomado para todas as quartas e sábados, às quatro horas. Não sendo nesses dias e a essa hora, o quarto é seu. - Bom. O Vaz pagou generosamente a hospedagem e saiu. *** No dia seguinte lembrou-se que era sábado, e, sendo um desocupado, sentiu desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4 horas. Para isso, postou-se, no momento aprazado, bem defronte da casa hospitaleira, arranjando, por trás de uma árvore um magnífico posto de observação. O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era um velho com todas as aparências de respeitável. A dama pouco se demorou: era a própria Ernestina Friandes. Imaginem a surpresa do Vaz, que daquele momento em diante, convencido de que o ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres.