3. Numa carta que Mário de Carvalho escreveu aos alunos de
uma escola secundária de Vila Nova de Gaia, que o questionaram
precisamente sobre a génese da obra, disse Mário de Carvalho:
“O que me levou a escrever a Inaudita…e por que razão
misturei épocas distintas: foi a consciência de que Portugal é um país
muito antigo, muito miscigenado, percorrido por muitas culturas e
civilizações, de modo que cada um de nós é mais do que ele próprio,
porque tem atrás de si uma grande espessura de História.
Nós somos mais do que nós, nós somos uma nação muito
antiga. E, antes de sermos nação, isto tinha um caldeamento muito
grande de povos e civilizações. Por detrás de nós, há toda uma
estrutura histórica. Quando eu escrevo A Inaudita Guerra da Avenida
Gago Coutinho, quando os mouros aparecem aí num engarrafamento
em Lisboa, é isso que eu quero dizer: atenção, nós somos uns e
somos outros. Ou seja, temos cá uma civilização árabe também.”
Maria José Nogueira 2008/09
4. Constatamos, assim, que a razão apresentada
por Mário de Carvalho é, fundamentalmente,
histórico-cultural, aliados, evidentemente, a uma
incontível ânsia de liberdade.
Maria José Nogueira 2008/09
5. Análise morfológica:
“A inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho”
Determinante nome comum abstracto,
artigo definido, nome comum género feminino,
género feminino, abstracto, contracção número singular,
número singular género feminino, da grau normal
número singular, preposição nome
grau normal “de” com o próprio
determinante concreto,
adjectivo, artigo definido género masculino,
género feminino, “a” número singular,
número singular, “de”+”a”= da grau normal
grau normal
Maria José Nogueira 2008/09
7. Informações fornecidas pelo título:
“A inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho”
Geógrafo, marinheiro,
principal local matemático e inventor.
acontecimento onde Almirante português,
Qualificação do do ocorre o pioneiro da aviação
Substantivo conto (acção) acontecimento (Lisboa 1869-
In- + audita (espaço físico) - 1959). Geó-
grafo de campo, ten-
prefixo Palavra
tou adaptar à aeronavegação
de primitiva
os processos e instrumentos da navega-
negação
ção marítima, tendo criado, em 1919, o
famoso sextante que ostenta o seu nome.
Maria José Nogueira 2008/09
9. Simões Muller chamou-o
“O Grande Almirante das Estrelas do Sul”,
por ter empreendido um feito “inaudito”, a
maior façanha de então: a primeira travessia
aérea do Atlântico Sul (entre Lisboa e o Rio de
Janeiro), em 1922, com Sacadura Cabral,
executada com grande rigor científico.
Maria José Nogueira 2008/09
10. Inaudita = in- + audita
In- =prefixo de negação de origem latina.
Audita = particípio passado, com função adjectival, do
verbo latino audire que significa “ouvir”.
Inaudita = palavra derivada por prefixação.
“não ouvida, nunca ouvida”
incrível
espantosa
insólito
de que não há exemplo ou memória
Maria José Nogueira 2008/09
12. O título fornece informações sobre o
narrador:
- o seu gosto pela História;
- a sua ligação à cidade de Lisboa, escolhida
como cenário desta guerra inaudita;
- o seu conhecimento sobre a cidade;
- o prazer que tem em provocar abertamente o
leitor.
Maria José Nogueira 2008/09
13. O Conto
1. O narrador explica e justifica a génese da história que se
propõe contar.
2. O narrador recorre à Antiguidade Clássica para certificar
a justificação que dá (Homero, Clio).
3. Quandoque bonus dormitat Homerus (o grande Homero
às vezes dormitava), até os grandes sábios cometem
deslizes. Esta fragilidade não é específica apenas do
mundo humano, ela é alargada ao mundo mítico/divino:
os deuses (Clio) também são dados a fraquezas. Note-se
já aqui a evidente tendência temática do cruzamento de
mundos diferentes: o humano e o divino.
Maria José Nogueira 2008/09
14. 4. A palavra dos poetas antigos não gera dúvida nem
contestação “…garante Horácio.”
5. Clio, a musa da História, é a chave para o
desenrolar dos fios da meada narrativa.
6. É no âmbito do fantástico, do insólito, da
duplicidade, da alteridade e da manipulação livre
do tempo e da história, que se insere o conto A
Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho.
Maria José Nogueira 2008/09
15. Clio é uma das nove musas, e, junto com as irmãs, habita
monte Hélicon. Filhas de Zeus e Mnemósine, a memória. As
musas reúnem-se, sob a assistência de Apolo, junto à fonte
Hipocrene, presidindo às artes e às ciências, com o dom de
inspirar os governantes e restabelecer a paz entre os
homens.
Clio é a musa da história e da criatividade, aquela que
divulga e celebra as realizações. Preside a eloquência, sendo
a fiadora das relações políticas entre homens e nações. É
representada como uma jovem coroada de louros, trazendo
na mão direita uma trombeta e, na esquerda, um livro
intitulado quot;Thucydide“ . Outras representações apresentam-
-na segurando um rolo de pergaminho e uma pena. Clio é
considerada a inventora da guitarra. Nalgumas de suas
estátuas traz esse instrumento numa das mãos e, na outra,
Maria José Nogueira 2008/09
um plectro (palheta).
16. Clio
Da união de Zeus e Mnemósine – a deusa da memória –,
nasceram as nove musas, personificando as artes e
ciências. Clio (ou Arauto) é a musa grega da História.
Representada como uma jovem com uma coroa de
louros e um pergaminho nas mãos, é frequentemente
acompanhada por um baú de livros nas representações
iconográficas. Metaforicamente, Clio simboliza que o
conhecimento é fruto da leitura e do estudo e, nas
lendas gregas, a musa é referida como aquela que legou
o alfabeto aos homens. quot; Clio é a musa maior, assim
como os livros são a maior invenção da humanidade, e o
conhecimento, a maior dádiva dos Deusesquot;.
Maria José Nogueira 2008/09
18. Acção do conto
1. Génese da acção – Clio adormeceu e enleou os fios da
trama da História, misturando as datas de 4 de Junho
de 1148 e 29 de Setembro de 1984.
2. Núcleo da narrativa – situa-se num confronto (guerra)
entre duas hostes que pertencem a dois tempos
diferentes.
3. A acção é encadeada, as sequências narrativas
sucedem-se numa relação de causa/efeito.
Maria José Nogueira 2008/09
19. 4. 1º Momento – Confronto de dois tempos no
mesmo espaço:
. Os automobilistas apanham um grande susto e
saem dos carros.
. Os árabes assustam-se, não percebendo o que se
estava a passar.
Maria José Nogueira 2008/09
20. 4. 2º Momento – Intervenção das forças
militarizadas:
. Incidente que provoca o início da guerra –
Manuel da Silva Lopes atirou uma pedra que foi
bater no broquel de Mamude Beshewer.
. Rendição – trapo branco – improviso à
portuguesa.
Maria José Nogueira 2008/09
21. 4. 3º Momento – Resolução do problema:
. Clio desperta e devolve todos ao seu tempo
histórico, borrifando-os, em seguida, com água do
rio Letes, o rio do esquecimento.
Assim, do mesmo modo inexplicável como haviam
surgido os árabes na Avenida Gago Coutinho na
manhã de 29 de Setembro de 1984, assim
desapareceram misteriosamente.
E não podendo Clio apagar totalmente os vestígios
dos acontecimentos decorridos, pôde, pelo
menos, toldar a memória dos homens com
borrifos de água do rio Letes.
Maria José Nogueira 2008/09
22. Consequências:
. Ibn-el-Muftar desistiu de atacar Lixbuna, por
considerar todas aquelas aparições de mau agoiro;
. Os policiais e militares do séc. XX viram-se obrigados
a explicar, em processo marcial o que se encontravam
a fazer naquelas zonas à frente de destacamentos
armados, ensarilhando o trânsito e gerando a
confusão e o pânico.
Maria José Nogueira 2008/09
23. 5. Supremacia da força árabe:
. Os árabes estão assustados, mas dignos,
procurando cumprir a sua função de atacantes, ao
contrário do corpo policial lisboeta, que bate em
retirada e se refugia na cervejaria Munique.
Maria José Nogueira 2008/09
24. Esquema síntese:
1º momento
Clio adormece…
mistura os fios do tempo
enlaça 2 épocas diferentes
4/6/1148 29/9/1984
1 espaço
Lisboa: Av. Gago Coutinho
Maria José Nogueira 2008/09
25. Lisboa: Av. Gago Coutinho
Acção
Encontro de 2 grupos antagónicos
Exército árabe automobilistas
de Ibn-el-Muftar Polícia de Intervenção
Tropa do Ralis e da
Escola Prática de
Administração
CONFRONTO
2 épocas 1148 – Lisboa do séc.XII
2 Maria José Nogueira 2008/09
espaços 1984 – Lisboa do séc.XX
26. 2º momento
Clio acorda…
o engano é desfeito
Consequências
O exército árabe volta à A Polícia de Intervenção
sua época, aproveitando fica sem objectivo de
o regresso “com grande combate; não recorda
vantagem de troféus e uma justificação aceitá-
espólios”. para dar aos seus superi-
ores.
Clio é castigada:
a ambrósia é-lhe interdita
Maria José Nogueira 2008/09
durante 400 anos!
27. Tempo
Mistura (amalgama) de dois tempos diferentes –
4 de Junho de 1148 e 29 de Setembro de 1984.
Tempo cronológico/Tempo histórico
Manipulação livre do tempo da história.
Maria José Nogueira 2008/09
28. Espaço
Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.
A escolha deste espaço cujo nome recorda e
perpetua um feito igualmente inaudito (a travessia aérea
do atlântico sul com adaptação à aeronavegação dos
processos e instrumentos da navegação marítima) foi
intencional.
Uma guerra inaudita só poderia acontecer num
palco cujo nome perpetua um acontecimento que na
época foi considerado, também, inaudito.
Trata-se, então, de dois tempos históricos
diferentes, mas de um só espaço. Também aqui sobressai
o insólito, deixando-nos na ânsia e na expectativa de
desvendar tão estranho mistério.
Maria José Nogueira 2008/09
29. Personagens
1. colectivas/individuais: século XII /século XX.
Caracterização das personagens – directa (é feita
directamente pelo narrador ou pelas personagens) e
indirecta (as características são deduzidas através de
atitudes e comportamentos).
Descrição das personagens colectivas e individuais –
descrição física e psicológica:
- personagens colectivas: dois grupos pertencentes,
cada um deles, a épocas históricas distintas. E é um
facto que poucas são as personagens que ganham
algum relevo, destacando-se e individualizando-se dos
seus grupos. Maria José Nogueira 2008/09
30. - personagens individuais com algum protagonismo,
pertencentes ao séc. XX: o agente da PSP, Manuel Reis
Tobias; Manuel da Silva Lopes, condutor de camiões
distribuidores de grades de cerveja; comissário Nunes; e o
capitão Aurélio Soares.
- personagens individuais com protagonismo do
séc. XII: Ibn-el-Muftar e Ali-Ben-Yussuf, seu lugar-tenente.
Todas as outras personagens, que formam a “multidão”
que se vai apinhando na Avenida Gago Coutinho, não
passam de figurantes, cuja única função é conferir alguma
verosimilhança a uma história particularmente
inverosímil.
Maria José Nogueira 2008/09
31. 2. As personagens apresentadas apontam, pela
indumentária e pelos adereços de guerra, para dois
grupos de personagens distintas e espaçadas no tempo,
embora presentes no mesmo espaço.
Maria José Nogueira 2008/09
32. Narrador
1. Quanto à presença é heterodiegético, a sua
focalização/ciência é omnisciente e a posição é
subjectiva.
O leitor recebe o conto através do olhar do narrador,
que é uma entidade omnisciente (sabe tudo) e que
controla totalmente a narração. Esta visão omnisciente
confere-lhe uma posição de superioridade, que lhe
acentua o seu distanciamento irónico e a sua veia
humorística.
2. O narrador evidencia conhecimento acerca de um
período da História de Portugal: a conquista de Lisboa
aos Mouros. Evidencia também conhecimentos de
vários campos semânticos e conhecimentos da língua.
Maria José Nogueira 2008/09
33. 3. O narrador identifica-se, claramente, como
contemporâneo de 1984 e essa identificação
permite-lhe um olhar próximo, mas repleto de
humor, de ironia, de espírito crítico sobre a cidade e
os seus costumes (engarrafamentos…).
4. O narrador apresenta, a partir da narração, a sua
perspectiva de História: repetição cinzenta dos
acontecimentos – os homens caem sempre nos
mesmos erros.
5. O narrador transmite que o texto é uma tapeçaria
que vai sendo tecida ao longo do tempo. Cada texto
acrescenta um fio à história. O tempo é o grande
escultor da narrativa.
6. Transmite os pontos de vista e as impressões das
personagens dos dois tempos diferentes.
Maria José Nogueira 2008/09
34. 6. Transmite os pontos de vista e as impressões
das personagens dos dois tempos diferentes.
7. Ridiculariza as forças policiais, apresentando a
sua incapacidade para defender a população.
8. Duas visões:
- negativa – das forças policiais lisboetas;
- positiva – das tropas árabes.
Maria José Nogueira 2008/09
35. A linguagem e o estilo
1. O tecido verbal do conto cruza o registo familiar com
o registo cuidado.
2. Recursos expressivos: sinestesia, ironia, adjectivação,
comparação, metáfora, enumeração, onomatopeias,
hipérbole.
3. Expressividade dos verbos e dos advérbios de modo.
4. Classes de palavras: nomes, adjectivos, advérbios,
determinantes, pronomes, preposições, conjunções,
verbos.
5. Sinonímia, antonímia, hiperonímia, hiponímia.
6. Linguagem expressiva, com recurso a sensações
auditivas e visuais e a José Nogueira 2008/09
todo um conjunto de termos
Maria
36. e expressões lexicais que, para além de nos permitir
imaginar, quase visualizar a situação, contribui para
dar cor épocal aos tempos cronológicos referidos,
bem como aos seus contendores, evidenciando
distintamente as suas diferenças.
“Salam Aleikum” é uma expressão árabe que se pode traduzir por “Que a paz
esteja contigo”. Foi desta expressão árabe que adveio a palavra portuguesa
“salamaleque” que é um cumprimento de cortesia.
Maria José Nogueira 2008/09