Princípios constitucionais e projeto de lei sobre licitações
1. ARTIGO PUBLICADO PELA EDITORA ZÊNTIE NA REVISTA INFORMATIVO DE
LICITAÇÕES E CONTRATOS N. 158, ABR/2007, P. 341 E SS..
DOUTRINA
OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PROJETO DE
LEI Nº 7.709/07*
por CARLOS PINTO COELHO MOTTA
Advogado pela Faculdade Mineira de Direito da PUC/MG, membro efetivo do Instituto dos
Advogados Brasileiros (IAB), professor do Curso de Especialização em Controle Externo da
Escola de Contas do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.
Prólogo
Inicialmente, cumpre referir-me à honra de participar desse Seminário, onde pontificaram
juristas de consagrado grau intelectual e reconhecida dimensão ética.
É sempre um privilégio retornar a Belém. Permitam-me uma reminiscência datada do
ano de 2000, quando aqui estivemos logo após a sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal,
promovendo evento sob a coordenação do caro amigo Flávio Régis de Moura e Castro,
Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais e então presidente da
Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON). Dedico este trabalho
ao Conselheiro Flávio Régis, rogando à Senhora de Nazaré pela recuperação do amigo.
1988 E A BUSCA DE ORDENAÇÃO E COERÊNCIA NOS PRINCÍPIOS DA
ADMINISTRAÇÃO
Para instalar devidamente o tema, recorro inicialmente ao pensamento do Professor
Agustín Gordillo, um dos grandes mestres do nosso tempo, traduzindo livremente sua
postulação de que:
o Direito Administrativo é, por excelência, o campo do direito que mais agudamente faz sentir o
conflito permanente entre a autoridade e a liberdade. Estado e indivíduo, ordem e liberdade: a
tensão encerrada entre essas idéias sintéticas é insolúvel. Mas, ainda que admitamos a
possibilidade de um equilíbrio entre ambos, é evidente que a obtenção de tal equilíbrio há de ser
uma difícil e delicada tarefa. Muitos se inclinam a construir, não um equilíbrio, mas um sistema a
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serviço do poder. E muitos servem ao poder a partir do campo da própria doutrina.
Na realidade administrativa brasileira, as vertentes democráticas do Direito
Administrativo encontraram, a meu ver, sua melhor acolhida e expansão nos momentos que
antecederam à promulgação da Carta Magna de 1988.
Constatava-se, historicamente, uma fase de grande efervescência político-ideológica, de
construção de conceitos, de dinamismo institucional. Cabe fundamentar essa reminiscência
com o pensamento da Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia Antunes Rocha,
que em 1985 já empreendia uma análise prospectiva referente aos conceitos jurídicos que
então se propunham, acolhendo amplamente a idéia de que estes deveriam ser “dinâmicos,
para serem eficazes, e legítimos, para serem respeitados”.
A eminente mestra explicita que, especificamente quando se trata da “rama pública do
Direito” – na qual se inserem noções vividas diretamente pela sociedade – o jurista deve
inquietar-se, porque
2. o acomodamento do trabalhador do Direito é a esclerose da instituição jurídica. A sociedade é
ativa; a Administração Pública, mutante; o Direito, vivo. Compete àquele ser ágil para atuar no
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sentido de cumprir um papel responsável na sociedade.
Prosseguindo sua abordagem, a Profa. Cármen Lúcia observa que o Direito, por ser
sistêmico, há de ser “ordenado em seus conceitos, e coerente na sua aplicação”. E constata
(no que perfilhamos sua visão), no âmbito da realidade político-administrativa brasileira, uma
nítida defasagem entre o discurso e a prática, que contribui para a generalizada descrença nas
normas e desconfiança na Administração Pública.
Cabe então transcrever sua síntese conceitual:
Princípios são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico normativo fundamental de um
Estado. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o
ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em
princípios. Adotados pelo constituinte, sedimentam-se nas normas, tornando-se, então, pilares que
informam e conformam o Direito que rege as relações jurídicas no Estado. Assim, eles são as
colunas-mestras da grande construção do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema
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constitucional.
Nesta palestra, em que deverei focalizar os princípios básicos estabelecidos pela
Constituição de 1988, inerentes ao exercício da democracia, pretendo exercer o modesto papel
reservado ao aplicador do Direito. Portanto, não devo falar “abstratamente” sobre os princípios
que figuram no art. 37 da Constituição Federal, decorrentes dos direitos e garantias
constitucionais delineados no art. 5º da mesma Carta. Como professor de Direito Administrativo
Aplicado e advogado militante, penso estar designado a perscrutar os desafios que não apenas
ressoam no campo intelectivo, mas se refletem na praxis cotidiana dos profissionais do Direito
neste País.
E, nesse intuito, considero como parte do meu trabalho expor e exemplificar as
inconsistências e incompatibilidades percebidas nos setores político-administrativo e legislativo
do nosso País, com relação aos princípios declarados na Lei Maior.
Seleciono, portanto, um caso concreto a ser analisado nesta oportunidade: um Projeto
de Lei apresentado recentemente ao Congresso Nacional, o qual vejo como ilustração e
exemplo representativo da exclusão de princípios constitucionais, como se verá.
ESTUDO DE CASO: O PROJETO DE LEI Nº 7.709/07, QUE PROPÕE ALTERAR A LEI
DE LICITAÇÕES, EXEMPLIFICA A EXCLUSÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
A título de metodologia expositiva, vamos eleger como marco de nossa reflexão um fato
político-legislativo ocorrido recentemente, que fornece margem a inúmeras e pertinentes
indagações, bem como ilustra perfeitamente as inconsistências de que falamos: o recente
envio ao Congresso Nacional de um Projeto de Lei, de nº 7.709/07, que propõe alterações
pontuais na Lei Nacional de Licitações, 8.666/93. Tal projeto veio inserido no bojo do pacote
conhecido como PAC, proposto pelo Governo Federal e instituído pelo Decreto nº 6.025/07,
prevendo-se tramitação congressual limitada e prioritária.
Comentou o consagrado Jean Rivero, a propósito da edição de leis em seu país, que,
"descartadas as velhas ficções da lei 'expressão da vontade coletiva', parece que, na realidade,
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a lei tende a ser na França obra do Poder Executivo, e não do Parlamento...".
O fenômeno parece repetir-se no Brasil, porquanto grande parte das iniciativas de
revisão da Lei nº 8.666/93, ao longo de seus quase quatorze anos de vigência, partiram,
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efetivamente, do Executivo, sem lograr tramitação congressual. Entretanto, neste momento, o
desígnio que subjaz à aludida proposta é, efetivamente, o de obter a rápida e sucinta
concordância do Legislativo. Busca-se, portanto, o aval congressual a uma proposição que, em
muitos pontos, agride fundamentalmente princípios essenciais estabelecidos na Carta Magna,
com significativo impacto no procedimento licitatório.
3. Examinando o texto do referido PL, constatamos que algumas de suas propostas se
contrapõem aos seguintes princípios, expressos no caput do art. 37 da Constituição Federal:
- o da publicidade, decorrente do direito de todos ao acesso à informação,
estabelecido no art. 5º, incs. XIV e XXXIII, da mesma Carta, implicando importante
conseqüência, a fiscalização do procedimento licitatório pelo cidadão, expressa no art.
74, § 2º;
- o da legalidade, decorrente do art. 5º, inc. II, que estabelece o primado da lei e
abrange direitos como o de petição e representação posto no inc. XXXIV, alínea “a”; ao
da ampla recorribilidade, inserto no inc. XXXV; e ao do contraditório e ampla defesa,
residente no inc. LV;
- o da impessoalidade, decorrente do direito à isonomia expresso no art. 5º, inc.
I.
Veremos a seguir os tópicos do Projeto de Lei onde esses princípios são elididos,
implicando reflexos em outros correlatos, como a razoabilidade, a eficiência e a finalidade, bem
como o estímulo constitucional à livre concorrência (art. 170, inc. IV).
A IMPRENSA OFICIAL E O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
A óbvia realidade é que, no âmbito processual, a disponibilidade de dados, o acesso
extensivo, o compartilhamento, a transparência, representam risco e incômodo para as
estruturas de poder político-administrativo; e talvez resida aí a razão pela qual tantas propostas
de mudança legislativa e anteprojetos governamentais ou para-governamentais tenham-se
encarniçado precisamente contra os canais abertos de diálogo institucional, contra a ampla
difusão da informação, contra as vias recursais de efeito suspensivo. Tais tentativas vêm-se
sucedendo ao longo do tempo, alcançando por vezes certa visibilidade.
Notadamente nos processos licitatórios, é essencial o direito de todos os interessados
às informações que permitam efetiva fiscalização do procedimento, além de pertinentes e
necessárias ao exercício do contraditório. Esse direito, pode-se afirmar convictamente, tem
sido reconhecido ao longo de todo o período de vigência da Lei nº 8.666/93, e tem resistido
bravamente às tentativas de diferimento e desconstituição.
Como elemento orgânico da sociedade democrática, a extensividade da informação –
traduzindo-se, no campo das licitações públicas, pelo princípio da isonomia do conhecimento –
nem sempre é tolerada pelos segmentos detentores das “chaves” da informação (aliás, esse
vocábulo – “chave” – mereceria reflexão semântica especial, nestes tempos da informática).
Isso porque, como todos sabemos, informação é poder.
Alterações e acréscimos propostos pelo PL nº 7.709 aos arts. 16, 20, 21, 26 e 61 da Lei
Nacional de Licitações atentam, efetivamente, contra todos os pressupostos da amplitude da
informação; é iminente a mutilação de regras em vigor, importantes e indispensáveis à
transparência do processo administrativo, hoje residentes na Lei Nacional de Licitações.
Examinando pontualmente tais modificações, veremos inicialmente que o § 2º, que se
propõe acrescentar ao art. 20 da LNL, permite que qualquer modalidade de licitação seja
processada por meio eletrônico que promova a comunicação pela internet, reiterando, como
requisito limítrofe, a certificação no ICP-Brasil. Tal dispositivo teve origem e inspiração no § 1º
do art. 2º da Lei nº 10.520/02 (por sua vez, proveniente de MPs antecedentes), prosseguido
pelo Decreto nº 5.450/05, que regulamenta o formato eletrônico da modalidade pregão.
Aliás, é-de se observar que a variável do pregão por meio eletrônico tem sido
implementada na burocracia pública com sucesso: mas a extensão de tal práxis a “qualquer
modalidade de licitação” significa que até mesmo a concorrência – modalidade reservada a
objetos mais complexos e de maior vulto – poderá doravante ser realizada no formato
4. eletrônico. Vislumbram-se então dificuldades específicas, consideradas não apenas com
relação ao suporte digital em si.
Outros dispositivos alterados pelo PL (arts. 21, 26, 61 da Lei nº 8.666/93) revelam
tendências à elisão de princípios e restrição de direitos. Insere-se no art. 21 a alternativa de se
publicarem os avisos de licitação, os atos de ratificação e os extratos contratuais na imprensa
oficial ...“ou”... em sítios oficiais na rede de computadores. A divulgação feita apenas no sítio
oficial (cuja autoridade certificadora baseia-se no texto de uma medida provisória de 2001) está
sendo considerada, pelos autores do PL, “suficiente” para atingir o universo de licitantes e
garantir a informação.
A essa altura, cabe deixar claro que a veiculação na internet não deixa de ser
providência salutar, porque amplia e incrementa a isonomia do conhecimento, contribuindo
para a difusão dos feitos da Administração e para a almejada universalização do controle.
Ressalve-se, entretanto: tal veiculação não pode ser isolada, dado o presente estágio de
exclusão digital que predomina ainda na sociedade brasileira. A difusão digital pressupõe,
inflexivelmente, a publicação simultânea na Imprensa Oficial em suporte papel, relativa a
etapas definidas da licitação, bem como ao extrato contratual, que só então adquire eficácia.
De fato, o avanço dos meios eletrônicos tem proporcionado maior rapidez e crescente
fidedignidade nas comunicações à distância. O Professor Agustín Gordillo reconhece que os
atos administrativos de suporte digital não se diferenciam em seu regime jurídico, relativamente
aos de suporte papel. Sua presunção de legitimidade deve ser a mesma. E ilustra: “assim
como uma luz vermelha é suficiente para transmitir ao motorista de um veículo a proibição de
avançar, também a tela iluminada ou um holograma pode transmitir outro tipo de mensagem”.
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E ressalva: “desde que seja compreensível pelas pessoas às quais vai dirigida”.
Ousamos acrescentar: desde que atinja, de fato, as pessoas às quais vai dirigida.
Ora, as alterações propostas aos arts. 21, 26, 32 da LNL configuram clara restrição à
publicidade de atos administrativos, pela possibilidade de serem veiculados apenas pela mídia
eletrônica. Todos sabemos que a divulgação restrita ao meio da internet não proporcionará a
necessária universalidade e fidedignidade da informação e, conseqüentemente, dificultará o
controle democrático sobre os atos administrativos.
Portanto, a nosso ver, a inserção dos parágrafos que instalam tal alternativa é
decididamente afrontosa a, praticamente, todos os princípios da licitação, expressos no art. 3º
da Lei nº 8.666/93. Atropelando o princípio constitucional da isonomia, fundamento básico do
procedimento licitatório, o Projeto de Lei prossegue levando de roldão legalidade,
impessoalidade, moralidade, igualdade, probidade administrativa – e, destacadamente, busca
desconstruir o princípio da publicidade. Vale reiterar que os princípios da licitação que figuram
no art. 3º da LNL são meramente a expressão, no campo específico das licitações e contratos,
dos colocados no caput do art. 37 da Constituição Federal.
Excluindo ou minimizando o veículo essencial de divulgação oficial que é a imprensa
escrita, desconsidera-se o direito subjetivo de “todos”, posto constitucionalmente, de receber
dos órgãos públicos as informações do seu interesse, explícito no art. 5º, incs. XIV e XXXIII, da
mesma Carta.
Conforta-nos observar que não estamos isolados nesse entendimento, extensivamente
confirmado pela abalizada opinião de especialistas em informática, bem como de juristas
estudiosos da matéria. Em acurado artigo sobre tema rigorosamente análogo, o eminente Prof.
Gustavo Binenbojm analisa os aspectos fáticos e constitucionais da questão, ao condenar
taxativamente a eliminação da versão impressa de determinada revista oficial e sua
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substituição pela versão eletrônica. Sob o ângulo dos fatos, oferece subsídios decisivos,
hauridos de fontes oficiais, sobre a exclusão digital no Brasil:
Em um país com ainda elevadíssimo nível de exclusão digital como o Brasil, em que, segundo
dados oficiais da Secretaria para a Inclusão Social do Ministério da Ciência e Tecnologia, 79% dos
5. habitantes nunca manusearam um computador e 89% nunca acessaram a internet (nota 2)8, a
divulgação oficial dos atos do Poder Público – tanto os de interesse individual, como os de
interesse geral – deve dar-se, enquanto permanecerem indicadores sociais que tais, por
publicação em formato papel, servindo a publicação eletrônica para facilitar e ampliar o acesso às
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informações. (Grifos originais)
Sob o ponto de vista teórico-constitucional, não são menores os óbices constatados. O
Prof. Binenbojm, ancorado em sua vasta erudição, discorre sobre o princípio da publicidade
citando Robert Alexy, Luís Roberto Barroso e José Vicente dos Santos Mendonça, expondo a
lição de que princípios jurídicos encerram “mandados de otimização” e implicam,
correlatamente, o princípio da “vedação do retrocesso”. Destarte:
dado que as atividades dos agentes públicos devem sempre ser realizadas no interesse da
coletividade, a publicidade deve ser havida, não apenas como regra geral, mas como verdadeiro
mandado de otimização, que impõe ao Estado o dever jurídico de adotar medidas progressivas de
universalização do acesso das pessoas interessadas e da cidadania em geral às informações
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oficiais e atos do Poder Público.
Perfilhamos inteiramente a argumentação do Prof. Binenbojm, pela qual um direito à
informação ampla e eficaz, já incorporado “ao patrimônio jurídico da cidadania”, não poderia
jamais ser suprimido ou excluído do texto infraconstitucional que o regulamenta. Sua análise
torna mais evidente o desacerto da presente tentativa de substituir a publicação impressa pela
eletrônica – tentativa que significaria, caso efetivamente implementada, a restrição de um
direito não apenas assegurado constitucionalmente, mas intrinsecamente direcionado à
evolução e ao aperfeiçoamento.
Portanto, a informação sobre o processo licitatório deve ser veiculada, cumulativamente,
em ambos os meios – o impresso e o virtual – incrementando as possibilidades de acesso de
todas as pessoas e cumprindo assim o “mandado de otimização” da Lei Maior.
O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE COMO CONDIÇÃO PARA A FISCALIZAÇÃO DO
PROCESSO LICITATÓRIO
Expondo crucial aspecto de nossas preocupações, dissemos que a pretendida agilidade
do meio eletrônico não deveria jamais contrapor-se a direitos e garantias expressos
constitucionalmente e reafirmados pela doutrina clássica. A proposição do PL nº 7.709 para o §
4º do art. 20 da LNL é um perfeito exemplo de restrição de direitos. Segundo sua redação, os
arquivos e registros digitais do procedimento eletrônico estariam à disposição “apenas das
auditorias internas e externas”, o que não é aceitável.
Tais dados devem ser disponibilizados a todos os interessados no procedimento –
tanto os licitantes como o cidadão comum, meramente interessado: é o teor de inúmeros e
taxativos ordenamentos da LNL, iniciando-se pelo art. 3º, § 3º; que afirma que “a licitação não
será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo
quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura”. Daí em diante, inúmeros outros
fortalecem o princípio: os arts. 4º; 7º, § 8º; 15, § 6º; 41, § 1º; 63 e 113, § 1º permitem,
consistentemente, que todos os públicos potencialmente envolvidos no certame tenham acesso
aos informes processuais, viabilizando amplo controle e fiscalização.
O Prof. Diogenes Gasparini, após comentar a noção categorial e a função dos princípios
constantes do art. 3º da Lei nº 8.666/93, focaliza com absoluta propriedade o princípio da
fiscalização, afirmando:
O legislador não mencionou no rol dos princípios do art. 3º da Lei federal das Licitações e
Contratos da Administração Pública, entre outros, o princípio da fiscalização da licitação, mas o
acolheu. De sorte que a omissão é absolutamente irrelevante. Esse diploma legal o hospeda, por
exemplo, ao autorizar qualquer cidadão a acompanhar o desenvolvimento da licitação (art. 4º); ao
legitimar qualquer cidadão a requerer quantitativos das obras e preços unitários à Administração
Pública (art. 7º, § 8º); ao legitimar qualquer cidadão para impugnar preço constante do quadro
geral do Registro de Preços (art. 15, § 6º); ao permitir a qualquer licitante o conhecimento dos
termos do contrato e do respectivo processo licitatório (art. 63, primeira parte); ao permitir a
6. qualquer interessado a obtenção de cópia autenticada dos termos do contrato e do correspondente
processo licitatório (art. 63, segunda parte). Esses dispositivos, entre outros, são os suportes
legais do princípio da fiscalização da licitação, ainda que cada um tenha seu próprio regime
jurídico. São regras, como leciona Jessé Torres Pereira Júnior, que refletem ‘a diretriz
constitucional de conferir ao cidadão, ampliada, a iniciativa de acionar os meios de controle
externo dos atos da Administração Pública, de que é exemplo o permissivo do art. 74, § 2º, da
CF/88. Na Lei 8.666/93, a tendência manifesta-se no art. 3º, § 3º, que garante o acesso do público
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aos atos do procedimento licitatório.
A fiscalização da licitação traduz-se, portanto, não apenas pelo direito do licitante ou do
contratado, mas pela ação legítima e permitida de qualquer pessoa que não tenha,
necessariamente, direito imediato – mas interesse na efetividade dos regramentos da Lei
Nacional de Licitações.
Todos os dispositivos dessa Lei citados pelo Prof. Gasparini, muito embora não
tenham sido “diretamente” alterados ou excluídos pelo PL em questão, estarão seriamente
ameaçados em sua aplicação, que ficaria praticamente inviável, caso adotada a veiculação
exclusiva pela internet e a disponibilização de conteúdos processuais somente “às auditorias
internas e externas”.
O notável Prof. Geraldo Ataliba, em clássica obra, referindo-se às instituições plasmadas
pela cidadania, formula uma convicção que se reveste de permanente atualidade:
É evidente que tais instituições políticas só podem produzir seus benéficos efeitos num clima de
irrestrita liberdade de imprensa, amplo debate e livre circulação de informações, onde os negócios
públicos e o modo de curar a coisa pública sejam abertos, franqueados à análise, curiosidade,
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investigação e observação de todos, sem restrições.
Por todo o exposto, em que pesem as presumíveis boas intenções dos autores e suas
justificativas em prol da celeridade e mesmo da economicidade dos processos, o Projeto de
Lei, caso prospere, acabará certamente servindo à concepção segredista que, desde sempre,
procura fincar raízes no solo da Administração Pública, agindo subliminarmente em favor do
autoritarismo.
O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E A INFORMATIZAÇÃO DO PROCESSO
ADMINISTRATIVO
Respeitados expoentes da doutrina vêem com reserva o que designam e identificam
como uma invasão do campo do Direito pelas novas tecnologias da informação. Estas
prometem, sim, uma rapidez operativa que, em muitos casos, parece engolfar e superficializar
alguns dos direitos e garantias expressos pela letra constitucional e pela doutrina clássica.
A margem de segurança do administrado reside, evidentemente, na lei. Só a palavra
legal pode defender seus direitos e garantir a segurança jurídica. E a experiência de aplicação
da Lei nº 8.666/93 significa, mais do que nunca, a confirmação dessa importante premissa: a
Administração só pode agir através da lei. Os tópicos em que pode ser utilizado o meio
informático devem estar especificados nas leis e regulamentos. Os limites são esses: o que a
lei não permite e a norma não regulamenta, é vedado.
Como exemplos de permissão expressa, cabe citar a home-page do TCU autorizada
pela Lei nº 9.755/98; a publicidade dos editais de pregão pela internet, autorizada pelo art. 4º,
inc. I, da Lei nº 10.520/02; a consulta aos dados da execução orçamentária, viabilizada pelo
Governo Federal pela internet segundo sucessivas LDOs; o acompanhamento dos pagamentos
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dos contratos, também conforme os dizeres das últimas LDOs.
Percebe-se nitidamente a ausência, na área administrativa, de uma lei que presida a
informatização dos procedimentos, análoga às que afetaram o processo judicial, campo de
vigência das Leis nºs 11.280/06 (que permite aos Tribunais disciplinar a prática de
comunicação dos atos processuais por meio eletrônico) e da Lei nº 11.419/06 (que dispõe
sobre a informatização do processo judicial).
7. Trata-se de uma visível lacuna, porquanto seria absolutamente necessário que um texto
legislativo – talvez alterando e complementando a Lei nº 9.784/99, paradigma de normas
semelhantes nas esferas federativas, e aplicável supletivamente aos processos licitatórios –
viesse dispor expressamente sobre a informatização do processo administrativo.
Na falta desse indispensável e urgente diploma, avolumam-se fatores limitantes e
inegáveis aspectos restritivos, tanto formais quanto materiais. Um deles seria, precisamente, o
credenciamento por chave de identificação, instituído pela MP nº 2.200/01, e que serve de base
para a maioria das propostas do PL nº 7.709. Sob o ângulo formal, veja-se que até mesmo o
sistema de chaves públicas, o tão falado “ICP-Brasil”, permanece até hoje como medida
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provisória, editada em 24.08.2001 e não convertida em lei. E não deixa de ser bizarro que
decretos e até leis supervenientes – bem como o atual Projeto de Lei – tenham erigido
determinações, autorizações, imposições e exigências sobre o frágil alicerce de um texto
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provisório guardado e empoeirado desde 2001.
No mérito, recomende-se necessária cautela para que o mecanismo do credenciamento
não se transforme em elemento de restrição à participação – mas, consoante almejado, em
procedimento que amplie ao máximo o universo de ofertantes em licitação.
Para se avaliar a defasagem existente entre as propostas do PL nº 7.709 e a Lei
preexistente que rege o processo administrativo, bastaria citar o art. 22 da Lei nº 9.784/99,
cujos parágrafos, em admirável anacronismo, exigem que os atos do processo sejam
“produzidos por escrito, em vernáculo, com a data e o local de sua realização e a assinatura da
autoridade responsável”; que, “salvo imposição legal”, o reconhecimento de firma “somente”
seja exigido “quando houver dúvida de autenticidade”; que a autenticação de documentos
exigidos em cópia seja feita pelo órgão administrativo; em um último arroubo de nostalgia, o
dispositivo determina que o processo “tenha suas páginas numeradas seqüencialmente e
rubricadas”.
A mesma Lei federal reafirma, em seu art. 2º, a observância dos princípios
constitucionais aplicáveis à Administração, dos quais ora salientamos os da legalidade, da
moralidade, da ampla defesa, do contraditório e da segurança jurídica, diretamente pertinentes
ao tema em foco. O parágrafo único estabelece critérios a serem observados nos processos
administrativos. Ali figuram, cristalinamente:
V - divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na
Constituição;
(...)
VIII - observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;
(...)
IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e
respeito aos direitos dos administrados;
X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas
e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de
litígio; (...)
A doutrina reconhece amplamente a importância do citado diploma e oferece extenso
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trabalho analítico sobre o tema ora abordado.
Em nosso entender, é legítima e oportuna a idéia de um sítio oficial devidamente
instalado no ambiente virtual – desde que, obviamente, instituído e regulado por lei. Todavia,
os textos em vigor aplicáveis à matéria referem-se à “imprensa oficial” como única fonte de
fidedignidade dos dados da Administração. A própria Lei que ora se pretende alterar, em seu
art. 6º, inc. XII (que não foi alvejado pelo PL em exame), conceitua:
8. XIII - Imprensa Oficial - veículo oficial de divulgação da Administração Pública, sendo
para a União o Diário Oficial da União, e, para os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, o que for definido nas respectivas leis;
Por conseguinte, dado o estágio de relativa desestruturação regulatória relativamente à
tecnologia disponível, consideramos imprudente e açodada a divulgação de dados oficiais com
total substituição da imprensa escrita pela mídia eletrônica.
Um tema correlato, o comércio eletrônico, defronta-se com as mesmas dificuldades de
regulação legal. O Prof. Cleber Demétrio Oliveira, especialista em informática, focalizando as
modalidades negociais que vêm experimentando crescente evolução na internet, acentua “os
reclames de urgência na implementação da regulação desse instituto no ordenamento pátrio”.
Informa sobre a existência de um Projeto de Lei (1.589/99) sobre comércio eletrônico em
tramitação no Congresso, dispondo sobre o comércio eletrônico, a validade jurídica do
documento eletrônico e a assinatura digital, reconhecendo enfim que o Direito “ainda está dois
ou três passos atrás dos fatos sociais”.
Em linha de consideração semelhante, retomando objetivamente a determinação dos §§
2º, 3º, 4º e 5º do art. 20, alterado pelo PL em análise, entendemos que, dado o estágio atual da
legislação pertinente, admitir que concorrências para objetos complexos e vultosos sejam
processadas no ambiente virtual é ainda bastante temerário. A prudência recomenda manter a
opção restrita às compras e serviços comuns, com recorrências ao disposto no art. 40, inc. VIII,
da LNL, c/c o art. 35 da Lei nº 10.522/02, que permite validação das certidões de que trata o
art. 29 da mesma LNL.
Nesse ponto, instalando um parâmetro comparativo, há que citar a cautela e a sabedoria
do texto da Directiva 2004/18 do Parlamento europeu, no qual se inserem “consideranda” de
cunho programático. Destaque-se a afirmativa de que, “para garantir o respeito ao princípio da
transparência, convém que somente sejam objeto de licitação eletrônica os elementos que
possam ser submetidos a avaliação automática por meios eletrônicos, sem intervenção nem
valoração do poder adjudicador. Ou seja: só os elementos que possam ser quantificados e
expressos em cifras ou percentuais. Os aspectos das licitações que impliquem valoração de
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elementos não quantificáveis não devem ser objeto de licitação eletrônica”.
O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E AS RESTRIÇÕES E IMPEDIMENTOS AO
RECURSO
As restrições apresentadas pela nova redação do art. 109, dada pelo PL nº 7.709, são
basicamente as seguintes: (a) exclusão do efeito suspensivo em recursos à habilitação e à
classificação (§ 2º); (b) julgamento dos recursos somente ao final de todo o procedimento
licitatório, antes da homologação e adjudicação (§ 3º); (c) redução do prazo recursal de cinco
para dois dias (inc. I); e (d) impedimentos ao recurso contra o julgamento de habilitação e
propostas, em casos submetidos ao critério da comissão ou do pregoeiro (§ 8º).
As mudanças pretendidas inserem-se, invariavelmente, em uma única tendência calcada
no autoritarismo e no incremento arbitrário dos poderes da Administração, representada pela
Comissão e pelas autoridades administrativas.
A exclusão do efeito suspensivo, bem como o adiamento do julgamento recursal para o
final do processo, ferem direitos inalienáveis do concorrente – o que é agravado pela redução
dos prazo para apresentação do recurso.
Tais proposições, interligadas, representam nítido retrocesso relativamente ao histórico
legislativo: seu teor global chega a ser pior que o art. 75, § 2º, do Decreto-lei nº 2.300/86 (que
concedia efeito suspensivo apenas na etapa habilitatória), e o efeito geral é de uma orientação
tanto autoritária quanto retrógrada. O efeito suspensivo dos recursos não pode ser denegado,
porque efetiva os direitos ao devido processo legal e ao contraditório.
9. O § 8º acrescido ao art. 109 apresenta redação notavelmente obscura. Institui, ao que
parece, hipóteses de discriminação de conteúdos recursais. Navegando sobre dúvidas
interpretativas, indagaríamos: no julgamento da habilitação e das propostas, alguns conteúdos
de recurso seriam “permitidos”, outros não? Em todo caso, por meio da inabilidade redacional,
depreende-se que algumas situações, a critério da comissão ou do pregoeiro, seriam
insuscetíveis de recurso.
Tal propósito é quase inverossímil e contrapõe-se afrontosamente ao princípio da
legalidade, que configura direitos assegurados pelo art. 5º da Constituição da República: ao
direito de petição e representação posto no inc. XXXIV, alínea “a”; e ao do contraditório e
ampla defesa, residente no inc. LV. Obstrui uma das normas mais elementares do processo
administrativo, contida no art. 56 da Lei nº 9.784/99, no sentido de que em toda decisão
administrativa cabe recurso, em face das razões de legalidade e mérito. Também a ampla
defesa, decorrente do ordenamento constitucional, é perfilhada pela mesma Lei do processo
administrativo, nos arts. 2º e 27, parágrafo único, efetivando ainda o princípio da segurança
jurídica.
Postulando a discriminação e vedação de matérias recursais, a Administração estaria
18
criando novas prerrogativas e inaceitáveis privilégios relativos à ação estatal. Corroborando
essa linha, o Supremo Tribunal Federal, ao publicar as primeiras propostas de enunciados para
súmulas vinculantes, assegurou, no enunciado de nº 4, que nos processos do Tribunal de
Contas da União fossem observados os princípios do devido processo legal e do contraditório e
ampla defesa do interessado, em processo administrativo “de cuja decisão possa resultar
19
anulação ou revogação de ato administrativo que o beneficie”.
A processualização é, pois, requisito inalienável da ação administrativa, direito do
cidadão e vertente do princípio da legalidade. Representa, na visão literária do grande escritor
Jorge Luis Borges, o visceral “desejo administrativo de agir impessoal e pausadamente, como
20
os vegetais e as plantas”.
Contrariamente a essa orientação, o aludido § 8º aumenta o nível de discricionariedade e
subjetivismo da comissão responsável. “Sanear” propostas a seu alvedrio, sem dar ensejo à
recorrência, é um exercício abusivo de direito.
Como precedente (ainda que menos restritivo) da autorização para o saneamento de
falhas processuais, temos o art. 12, inc. IV, da Lei nº 11.079/04, que estabelece que :
Art. 12 (...)
(...)
IV - o edital poderá prever a possibilidade de saneamento de falhas, de complementação de
insuficiências ou ainda de correções de caráter formal no curso do procedimento, desde que o
licitante possa satisfazer as exigências dentro do prazo fixado no instrumento convocatório.
Como se pode perceber, trata-se de redação mais amena, que prevê o diálogo com o
proponente e acentua a obediência ao edital; e mesmo assim, respeitáveis autores, como o
Prof. Toshio Mukai, entendem que até mesmo essa regra seria de duvidosa
21
constitucionalidade.
Aponte-se a atualidade da lição do saudoso Ministro Victor Nunes Leal, que assinalou o
seguinte:
O elementar direito de defesa deve ser obrigatório para a administração... Parece que estamos
22
necessitando, nessa matéria, de uma construção doutrinária que não institucionalize o arbítrio.
O PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE E A SANÇÃO DESCONTEXTUALIZADA A
PESSOAS FÍSICAS
10. O PL nº 7.709 promove, no art. 28 da LNL, duas modificações. A primeira acrescenta
mais um requisito ao rol documental necessário à habilitação jurídica do licitante, ou seja,
declaração de que não está incurso nas sanções previstas nos incs. III e IV do art. 87. Tais
sanções consistem em:
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a
Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto
perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante
a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado
ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada
com base no inciso anterior.
A confusa redação que o PL engendrou para o inc. VI do art. 28 induz à interpretação de
que tal declaração deve ser prestada também por diretores, gerentes ou representantes das
pessoas jurídicas, nos termos do § 4º do art. 87.
Leia-se então, conjuntamente, o § 4º, acrescentado pelo próprio PL ao art. 87 da LNL.
Sua concepção é também pouco clara e extremamente discutível sob vários pontos de vista.
Ao que parece, as sanções de suspensão temporária e declaração de inidoneidade estão
sendo estendidas aos diretores, gerentes ou representantes das pessoas jurídicas
contratadas, quando praticarem atos a serem incorridos nas seguintes hipóteses: (a) excesso
de poder; (b) abuso de direito; (c) infração à lei, contrato social ou estatutos; (d) dissolução
irregular da sociedade.
Cremos desnecessário alongar o comentário acerca da redação proposta, cuja
inconsistência é flagrante. Nos termos originais e vigentes da Lei nº 8.666/93, em face da
comprovada inexecução, as aludidas sanções aplicam-se, corretamente, ao contratado,
significando logicamente a pessoa jurídica que tenha descumprido o pactuado com a
Administração. Segundo o PL, tais sanções seriam doravante aplicáveis a pessoas físicas,
dirigentes da sociedade contratada.
Aí coloca-se, talvez, o principal problema: ao sancionar diretamente pessoas físicas,
descontextualiza-se a matéria afeta à contratação em si. O contexto punitivo é desviado para
uma esfera alheia à inexecução contratual propriamente dita (fundamento único de tais
sanções), incidindo sobre outra categoria de atos, praticados pelas pessoas físicas
relativamente às empresas ou sociedades que representam. Dessa forma, a matéria escapa
totalmente ao âmbito de competência normativa da própria Lei nº 8.666/93, dada pelo art. 22,
inc. XXVII, da Carta Magna. Cabe lembrar que, nos casos comprovados de “abuso de
personalidade jurídica”, incide o art. 50 do Código Civil.
As quatro categorias de atos a serem sancionados, constantes do referido § 4º, suscitam
por sua vez um verdadeiro labirinto de impossibilidades jurídicas e operacionais. As duas
primeiras hipóteses (excesso de poder? abuso de direito?) são de natureza abstrata,
inconsútil, de dificílima comprovação, passíveis unicamente de julgamento subjetivo. E,
notadamente, as duas últimas (infração à lei, contrato social ou estatutos, dissolução
irregular da sociedade) constituem nítida invasão das áreas do direito civil e comercial.
Essa invasão, desconfigurando totalmente a área de atuação permitida à Lei de
Licitações e agredindo, de passagem, ao princípio da legalidade, culmina na exclusão da
impessoalidade, pré-requisito essencial da ação administrativa.
Comentando sobre esse princípio, afirma a Profa. Cármen Lúcia Antunes Rocha: “De um
lado, o princípio da impessoalidade traz o sentido da ausência de rosto do administrador; de
23
outro, significa a ausência de nome do administrado”.
PUNIÇÃO AO PROPONENTE POR FALHAS EM SUA DOCUMENTAÇÃO
11. Em estrita conexão com a malfadada idéia relatada no tópico anterior, o parágrafo único
acrescido ao art. 28 veda a contratação com pessoa jurídica cujos dirigentes tenham sido
sancionados nos termos do aludido § 4º,... “inclusive quando provenientes de outra pessoa
jurídica”.
Tentando colocar tais desígnios em termos inteligíveis: imagine-se a situação em que
uma empresa idônea, detentora de proposta consistente, seja impedida de contratar com o
Poder Público porque um de seus gerentes, tendo trabalhado antes em outra empresa, tenha
cometido, com relação àquela empresa anterior, “infração aos estatutos”, ou, digamos,
“excesso de poder”...
As novas exigências são intercomplementares com as mudanças almejadas no art. 43
da LNL, no qual foram introduzidos os §§ 9º e 10. Em linha de consistência com a inversão das
fases da habilitação e julgamento, inseriu-se no aludido art. 43 o § 9º, que exige do
representante legal do proponente, na abertura da sessão pública, a declaração de
conformidade, ou seja: o licitante declara, sob as penas da lei, que reúne as condições de
habilitação exigidas no edital.
Até aí, nada de mais: o verdadeiro disparate reside propriamente no § 10, inserido a
seguir no corpo do mesmo art. 43. Segundo a prática da inversão de fases, os documentos
habilitatórios do proponente serão abertos apenas no caso de sua proposta sagrar-se
vencedora, após superada a fase comercial e de lances. Ocorrerá, então, o seguinte: se
Comissão encontrar algum defeito ou insuficiência na documentação, o licitante será
penalizado com a sanção constante do inc. III do art. 87 da LNL – ou seja, suspensão
temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por
prazo não superior a dois anos.
Mais uma vez, tentemos um exercício de visualização do real. Imaginemos uma
concorrência de maior vulto, cujo edital especificou a inversão de fases. Uma empresa
apresenta-se, reunindo documentação que, segundo seu nível interno de informação e
julgamento, está compatível com o exigido. É bem sucedida na etapa comercial, sendo
proclamada vencedora nessa fase. Até então, julgava ter seus documentos em ordem, mas
acontece-lhe ter um de seus atestados impugnado pela Comissão. Apresenta recurso, mas
este não tem efeito suspensivo e é sumariamente indeferido. É então punida com a suspensão
temporária do direito de licitar e o impedimento de contratar com a Administração por dois
anos...
Resta claro: a empresa licitante será punida sumariamente, apenas por ousar oferecer
seus préstimos ao Poder Público. E isso ocorrerá – é preciso dizer – em um País cuja ordem
econômica pretende ser parcela da ordem social, expressa por uma Constituição que, em seu
24
art. 170, parágrafo único, estimula o trabalho, a livre concorrência e a livre iniciativa.
Todos os profissionais que lidam com a área de licitações, com um mínimo de
experiência, reconhecem que o exame documental é uma fase capciosa e complexa do
certame; até mesmo no pregão, onde estão em jogo objetos simples relativos a bens e serviços
comuns. Os membros da Comissão sempre experimentam dúvidas e perplexidades em face da
multiplicidade de situações possíveis: comprovantes de regularidade jurídica pendentes de
aceitabilidade, atestados de capacitação e desempenho anterior demandando cálculos
específicos, questionamentos quantitativos e qualitativos – enfim múltiplas controvérsias de
natureza documental. O saneamento de falhas formais, atribuível à Comissão, costuma ser
outro ponto sensível de indefinição. Orientações mais formalistas perfilham a literalidade legal,
contra os adeptos da flexibilidade. Em suma, sabemos até que ponto o conflito de interesses
pode suscitar e refletir opiniões, interpretações, linhas doutrinárias, orientações jurisprudenciais
divergentes.
E isso tudo está certo; faz parte integrante da dialética processual. Nesse contexto,
nenhum membro de comissão, nenhum pregoeiro está livre de equivocar-se; todo ser humano
está sujeito ao erro e à subjetividade do julgamento. Da mesma forma os dirigentes de uma
12. empresa podem, sim, de boa fé, enganar-se; ou mesmo apresentar documentos sujeitos ao
crivo interpretativo.
A Lei está aí, exatamente, para tentar reduzir erros e subjetividade a um mínimo
aceitável. O que não se pode tolerar é o arbítrio, que ordena a severa punição de um licitante
apenas por se constatarem erros ou deficiências em sua documentação. É a própria norma
penal “em branco”, transformando uma decisão administrativa e não-vinculativa em sentença
25
judicial irrecorrível.
Terá sido citado neste trabalho o parágrafo único do art. 27 da Lei nº 9.784/99, cujo inc.
VI exige que, nos processos administrativos, seja observada a “adequação entre meios e fins,
vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas
estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. O Prof. Diogenes Gasparini
assinala, nesse ordenamento, “o cerne do princípio da proporcionalidade, que, no entanto, é
apenas um aspecto do princípio da razoabilidade”, condenando a atuação estatal “com
26
excesso ou escassez para prejudicar o administrado”.
EPÍLOGO: OS PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA E DA FINALIDADE
Sabemos que, ao longo do tempo, todas as leis vão perdendo gradativamente o seu
vetor de eficiência. Os fatos correm inexoravelmente à frente do direito positivo, e o processo
licitatório, regido por uma Lei de 1993, necessita realmente de atualização em muitos aspectos.
Entretanto, acabamos de constatar que muitas das proposições do texto que ora nos serve de
ilustração – o Projeto de Lei nº 7.709/07 – afastam-se notadamente do marco constitucional.
Cumpre então encerrar nossas considerações em nível mais conclusivo, verificando que a
elisão de garantias e direitos constitucionais é um preço demasiado alto a pagar em nome de
uma suposta eficiência.
Vale dizer, “suposta”, porque o texto ora em hipótese não focaliza, na verdade, os
núcleos essenciais de mudança legislativa e mesmo comportamental, no sentido da maior
resolutividade do processo licitatório. Trabalha, pois, em sentido contrário ao do princípio da
eficiência administrativa, agregado ao art. 37 da Constituição pela Emenda nº 19/98. Em
recente artigo veiculado por periódico mineiro, esse ponto é denunciado com especial acurácia:
O projeto de lei em discussão tem uma falta mais grave: proposto sob o regime de urgência
constitucional, dificulta a introdução de outras mudanças, que a experiência de 13 anos já mostrou
serem necessárias. Também impede uma ampla discussão com a sociedade, principalmente com
suas parcelas que conhecem a fundo o tema e poderiam, no debate, esclarecer o restante da
opinião pública, ansiosa por dispositivos legais que regulem e estimulem a atividade econômica do
país, mas consigam evitar o vazamento de recursos para as inutilidades, o desperdício, a
27
ineficiência e a corrupção.
Impõe-se, finalmente, uma ordem de pensamento de natureza mais genérica acerca do
próprio exercício do poder administrativo. Prossegue sendo referencial básico nessa reflexão o
interesse juspolítico de toda a sociedade no sentido do cabal atendimento, por parte da
Administração, às demandas de eficiência e celeridade que mais do que nunca se fazem sentir
na sociedade brasileira.
O pensamento do eminente Prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto é particularmente
esclarecedor, ao apontar, na era contemporânea, o elemento preponderante do princípio da
legalidade. Ele observa, hoje, uma luta contra a “imunidade do poder no desempenho
administrativo”. Identifica uma fase atual na atividade administrativa em que, uma vez feita uma
determinada escolha, ela deve produzir os resultados visados; deve exaurir cabalmente a
28
“finalidade do ato, contrato ou processo em que tal escolha foi decidida”.
O judicioso autor reitera seu clássico conceito de boa administração, indissoluvelmente
ligado à existência de um “direito cidadão”, de natureza constitucional. Contrapõe, assim, duas
concepções de legalidade: uma, “legalista”, insuficiente para o controle da ação administrativa;
13. outra, “constitucionalista”, que “encompassa a legitimidade própria dos direitos fundamentais”.
Sua síntese merece literal destaque:
Esta legalidade, assim constitucionalmente referida, ou, simplesmente, a legalidade constitucional,
vincula toda a ação político-administrativa dos agentes públicos – aos quais cabe definir a escolha
e executá-la concretamente – destinada à realização dos fins da ação administrativa, daí se poder
29
denominá-la, indiferentemente, de legalidade finalística ou de legalidade de resultado.
Enfim, citando Lucio Iannotta, o Professor Moreira Neto extrai judiciosa conclusão, com a
qual nos permitimos encerrar este breve estudo:
(...) o princípio da legalidade implica a aplicação indefectível das normas que dão vida aos bons
resultados, mas implica, outrossim, a impossibilidade de aplicar normas que dêem vida a maus
resultados, isto é, que sacrifiquem bens jurídicos delimitados e definidos, em contraste com
aqueles mesmos bens objetivados pelo legislador ou com os protegidos pela Constituição escrita
30
ou, ainda mais profundamente, da instituição republicana.
*
Palestra proferida no Seminário de Controle Externo da Administração Pública Municipal.
Belém, 15 e 16.03.2007.
1
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Tomo I, 7. ed. Belo Horizonte: Del
Rey e Fundación de Derecho Administrativo, 2003. p. III-1.
2
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O conceito de direito administrativo. Mimeo, 1985.
3
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994. p. 25.
4
RIVERO, Jean. Cours de droit public. Jouy-en-Josas: Centre d'Enseignement Supérieur des
Affaires – CESA, 1980. p. 101.
5
Tivemos o ensejo de comentar pontualmente alguns dos referidos projetos;
exemplificativamente, de nossa autoria, vide: Treze anos de aplicação da Lei Nacional de
Licitações. In: CARDOZO, J. E. Martins; QUEIROZ, J. E. Lopes; SANTOS, M. W. Batista dos.
(Org.). Curso de direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 641-704;
Workshop sobre mudanças no regime jurídico das licitações. Jurídica Administração Municipal,
ano VIII, n. 10, out. 2003, p. 3 e RTCMG, v. 49, n. 4, out./dez. 2003, p. 79; Propostas de
reforma da Lei Nacional de Licitações e Contratos. Revista Zênite de Licitações e Contratos -
ILC, Curitiba: Zênite, ano XI, n. 119, jan. 2004, p. 5-9; Mudanças na estrutura da contratação
brasileira. FCGP, ano 4, n. 43, 2005, p. 5713; e Transformações no regime das licitações e
contratações públicas. V Fórum Brasileiro sobre Reforma do Estado, mimeo, 21.08.2006.
6
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Tomo 3, 6. ed. Fundación de
Derecho Administrativo e Del Rey, 2003. p. VII-17-VII-18.
7
BINENBOJM, Gustavo. O princípio da publicidade administrativa e a eficácia da divulgação de
atos do poder público pela internet. Revista de Direito do Estado, ano 1, n. 1, 2006, p. 279-298.
8
Na nota de rodapé nº 2, o autor esclarece: “As informações foram extraídas do sítio na internet
http://www.rnp.br/noticias/imprensa/2005, Andrea Vilhena, Exclusão digital preocupa
parlamentares brasileiros e estrangeiros reunidos em Brasília. Outros dados sobre o mapa da
exclusão digital no Brasil podem ser encontrados em
http://integracao.fgvsp.br/ano6/pesquisas.htm, no qual há a informação, colhida do Boletim
Informativo do Comitê para Democratização da Informática, mai. 2003, ano 2, n. 12, de que
‘apenas 12,46% da população brasileira tem acesso a computadores e somente 8,31% estão
conectados à internet. A maioria destes poucos incluídos digitais, cerca de 97%, se concentra
na área urbana, acentuando ainda mais o desnível e deixando as zonas rurais praticamente na
14. escuridão digital. Estes percentuais expõem o cenário de exclusão digital em que vive grande
parte da população brasileira’”.
9
BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 282.
10
Ibid., p. 283.
11
GASPARINI, Diogenes. Fiscalização da licitação. Revista Zênite de Licitação e Contratos –
ILC, Curitiba: Zênite, n. 119, jan. 2004, p. 11-12.
12
ATALIBA, Geraldo. República e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 41.
13
Conforme ficou demonstrado pela Decisão nº 1.239/02 do TCU, TC-001.819/2002, DOU de
27.09.2002, p. 166.
14
Vide Emenda Constitucional nº 32/01, art. 2º: “As medidas provisórias editadas em data
anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior
as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”.
15
Exemplificativamente: o ICP-Brasil serve de referência ao art. 2º, § 1º, da Lei nº 10.520/02 e
ao Decreto nº 5.450/05; destaque-se o Decreto nº 4.520/02, editado a partir do art. 84, inc. VI,
alínea “a”, da CF, que, basicamente exigindo a publicação, em formato impresso, dos atos do
Poder Público, admite (art. 1º, § 2º) que as edições eletrônicas do DOU e do DJ, desde que
detentoras da devida certificação digital (ICP-Brasil), produzam “os mesmos efeitos que as em
papel”. Evidentemente, tal normativa não implica autorização para substituir ou suprimir as
edições impressas, o que, aliás, fugiria de todo à competência de um simples decreto.
16
Vide: FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2001. p. 83; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal –
Comentários à Lei 9.784/99. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 65 e ss.
17
Diretiva 2004/18 do Conselho da União Européia, Considerando nº 14 (L 134/117).
18
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais do processo administrativo no
Direito brasileiro. RDA n. 209, 1997, p. 216.
19
Precedentes: MS nº 24.268, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 17.09.2004; MS nº 24.927, Rel.
Min. Cezar Peluso, DJ de 25.08.2006; RE nº 158.543, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de
06.10.1995; RE nº 329.001 (AgR), Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 23.09.2005; AI nº 524.143
(AgR), Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 18.03.2005. Vide ainda o comentário do Min.
Marco Aurélio, sobre súmula vinculante. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>, "Últimas
Notícias", Acesso em: 08 fev. 2007.
20
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Porto Alegre: Globo, 1982. p. 128.
21
MUKAI, Toshio et all. Parcerias público-privadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
p. 26.
22
MS nº 12.028, STF, RDP n. 7, p. 281.
23
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Lê,
1991. p. 85. Vide ainda MUKAI, Toshio. Conceitos e princípios da licitação. BLC n. 6, 2003, p.
394.
24
Vide GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 – interpretação e
crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 63 e ss.
15. 25
Vide entrevista deste subscritor à jornalista Bertha Maakaroun: Projeto muda lei de licitações.
Estado de Minas, 20.02.2007, p. 4.
26
GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 25.
27
SANT’ANNA, Marcos Villela de. Não à ineficiência. Estado de Minas, 05.03.2007, p. 7.
28
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novo referencial no direito administrativo: do controle
da vontade ao do resultado – A juridicização dos resultados na Administração Pública. Fórum
Administrativo, ano 6, n. 67, 2006, p. 7801-7810.
29
Ibid., p. 7805.
30
Ibid., p. 7805.