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     Marq Melo Monteiro desce do táxi. Caminha rumo à casa.
     − Senhor?
     Marq mantém as mãos nos bolsos.
     − Senhor?... são trinta e dois reais.
     Marq vira-se ao motorista, alcança quatro notas de dez, diz
para guardar o troco, agradece a ajuda. O motorista, enquanto
Marq estava de costas, havia colocado as malas na calçada.
     O táxi se afasta.
     Marq puxa as duas malas para perto de si e olha ao céu. A lua
cheia amarelada ilumina a Cidade dos Anjos. Só a floresta ao redor
do lugarejo está escura, contudo, para ele isso não é problema.
     O problema é outro, muito mais assustador que a floresta
escura.
     Marq por um instante levanta a mão, dá dois passos na direção
da rua e acena para o táxi, que já está longe.
     Floresta.
     Uma floresta, frequentada por humanos torna-se um proble-
ma quando se deseja mudar de vida. Entretanto, Marq tomou a
decisão, voltou ao lar. Primeiro levantou a mala mais leve e depois


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Segredos de um vampiro


a mais pesada. Floresta, escura e assustadora. Ela abriga seres
capazes de matar com um só golpe. Porém Marq é infinitamente
mais forte.
      A porta da sala abre, a luz do luar ilumina, primeiro, revela
o interior. Marq coloca as malas na escada. Na sala de estar,
reconhece os objetos, continuam onde a mãe costumava deixá-los,
alguns ainda cobertos por panos brancos. Depois da morte dos
pais, nunca teve coragem de tirá-los.
      Bate os dedos no interruptor a fim de acender as luzes.
Queimaram.
      Tropeça na prateleira, o vaso que a mãe adorava cai, fica em
pedaços espalhados pelo chão.
      Há muito partiu. Desde o falecimento dos pais foram poucas
às vezes em que voltou àquele lugar. O último parente morreu há
tanto, Marq sequer lembra quando. Depois de décadas na Europa,
decidiu que hora de retornar, enfrentar os medos. Cuidar dos
assuntos de família.
      Marq agora caminha de cômodo em cômodo, tudo continua
do jeito que deixou. Chega a seu quarto. Detém-se por instantes,
empurra a porta. Num rangido ela se abre, revela o lugar através
do mesmo reflexo da lua. Marq reluta em entrar, teme não suportar
o peso das lembranças. Após séculos ainda o que permanece vivo
de verdade é a saudade dos pais. Num ímpeto adentra o cômodo,
observa a larga cama onde dormia quando jovem. A cabeceira
continua encostada na parede oposta à janela. O lençol ainda
mostra o contorno das almofadas que a mãe gostava de deixar
sobre a colcha. Ao lado da janela a estante guarda os livros, junto
deles a velha bola improvisada que o pai lhe deu aos doze anos.
A lembrança é tão viva, parece ter acontecido ontem.
      Agora só lhe resta enfrentar a dor.


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Revelações


      Da janela Marq observa duas garotas, uma alta e outra baixinha,
caminharem pela rua.
      − As férias terminaram, é uma pena – diz a baixinha de
minissaia.
      − Mais um semestre e adeus segundo grau, parece que foi
ontem, mas em seis meses já estaremos na Faculdade – responde
a mais alta, a de cabelo preso em rabo de cavalo.
      − Já sabe para onde vai? – pergunta a primeira.
      − Ai prima, estou tão confusa...
      Uma brisa sopra o cheiro das meninas na direção de Marq. Ele
fecha os olhos, inspira lenta e profundamente. O aroma atinge-o
feito uma bola de fogo, queima-lhe as narinas, em seguida a carne.
O aroma da garota mais alta, em particular, é forte, desperta nele
o desejo há muito escondido nas entranhas. A fome lhe aperta o
estômago, após tantas horas de viagem sem se alimentar necessita
de sangue fresco antes do instinto assassino falar mais alto e se
descontrolar. Ele se segura a fim de não correr à rua e morder a
dona daquele cheiro. Há tempos não deseja de tal maneira sangue
humano como aquele.
      Marq afasta-se da janela, senta-se no chão, o corpo se
contorce.
      − Ah! − o grito de dor ecoa na escuridão.
      Naquele instante não chega aos pés do humano que já foi
na época em que morava naquele lugar. É predador, as garotas as
presas, essa é a verdade. Levanta-se, num golpe joga os livros ao
chão, derruba a estante. A conversa delas vem de longe, mas o
cheiro continua forte.
      Marq corre rumo à floresta, sentido contrário ao das garotas.
Em segundos, depara-se na escuridão. Entre as árvores o odor
dos animais ao redor acaricia-lhe as narinas. Pequenos roedores


                                                                     9
Segredos de um vampiro


caminham, guincham, correm. Os lábios de Marq tencionam, o
corpo se posiciona semelhante ao de um felino.
     − Você é meu!
     Fácil pegá-los. Há uma fome insaciável dentro dele, sente
os dentes vorazes penetrarem a carne quente, salgada. Minutos
depois dezenas de animais sucumbiram à sua voracidade. Sacia a
fome, não o desejo.
     Marq desprende os dentes do animal. A floresta é cheia de
sons apavorantes, ele não tem certeza do que o incomodou. Isso
o faz soltar a presa e localizar o ruído. Está insatisfeito, o desejo
por sangue humano aumentou.
     Passos em sua direção quebram o silêncio.
     Não quer ser visto, não pode ser visto.
     Corre, tenta entrar rápido em casa, mas a porta está trancada.
     Volta-se à rua. Tarde demais. O homem que passa, acena.
     Marq sobressalta-se ao escutar o som que surge dos próprios
lábios, ele assemelha-se mais a um miado.
     − Boa noite!
     Isso não é bom, humanos caminhando pela rua logo baterão
à porta. Não esperava vizinhos. Esse era seu refúgio a fim de ficar
só quando precisava se controlar. Por que teve que vir para cá e
acabar com o pouco de paz conseguida? Deverá colocar o plano
em prática mais cedo.
     Marq deita-se na cama, mãos apoiadas atrás do pescoço,
procura dormir, não que isso faça diferença, só deseja diminuir a
intensidade com que os sentimentos vêm a ele. Deixar de raciocinar,
cuidar das recordações aos poucos. Desde o retorno muitos golpes
violentos o atingiram. À volta ao antigo lar, o cheiro da garota
que lhe despertou desejos profundos, as lembranças dos amigos,
os vizinhos... sim, os vizinhos serão problema.

10
Revelações


     De repente, o cheiro daquela garota invade o quarto de novo,
obriga-o pular da cama. Em milésimos de segundos, à janela,
procura a fonte daquele cheiro.
     A imaginação lhe pregou uma peça.




                                                                11

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Segredos de um vampiro 1cap

  • 1. 1 Marq Melo Monteiro desce do táxi. Caminha rumo à casa. − Senhor? Marq mantém as mãos nos bolsos. − Senhor?... são trinta e dois reais. Marq vira-se ao motorista, alcança quatro notas de dez, diz para guardar o troco, agradece a ajuda. O motorista, enquanto Marq estava de costas, havia colocado as malas na calçada. O táxi se afasta. Marq puxa as duas malas para perto de si e olha ao céu. A lua cheia amarelada ilumina a Cidade dos Anjos. Só a floresta ao redor do lugarejo está escura, contudo, para ele isso não é problema. O problema é outro, muito mais assustador que a floresta escura. Marq por um instante levanta a mão, dá dois passos na direção da rua e acena para o táxi, que já está longe. Floresta. Uma floresta, frequentada por humanos torna-se um proble- ma quando se deseja mudar de vida. Entretanto, Marq tomou a decisão, voltou ao lar. Primeiro levantou a mala mais leve e depois 7
  • 2. Segredos de um vampiro a mais pesada. Floresta, escura e assustadora. Ela abriga seres capazes de matar com um só golpe. Porém Marq é infinitamente mais forte. A porta da sala abre, a luz do luar ilumina, primeiro, revela o interior. Marq coloca as malas na escada. Na sala de estar, reconhece os objetos, continuam onde a mãe costumava deixá-los, alguns ainda cobertos por panos brancos. Depois da morte dos pais, nunca teve coragem de tirá-los. Bate os dedos no interruptor a fim de acender as luzes. Queimaram. Tropeça na prateleira, o vaso que a mãe adorava cai, fica em pedaços espalhados pelo chão. Há muito partiu. Desde o falecimento dos pais foram poucas às vezes em que voltou àquele lugar. O último parente morreu há tanto, Marq sequer lembra quando. Depois de décadas na Europa, decidiu que hora de retornar, enfrentar os medos. Cuidar dos assuntos de família. Marq agora caminha de cômodo em cômodo, tudo continua do jeito que deixou. Chega a seu quarto. Detém-se por instantes, empurra a porta. Num rangido ela se abre, revela o lugar através do mesmo reflexo da lua. Marq reluta em entrar, teme não suportar o peso das lembranças. Após séculos ainda o que permanece vivo de verdade é a saudade dos pais. Num ímpeto adentra o cômodo, observa a larga cama onde dormia quando jovem. A cabeceira continua encostada na parede oposta à janela. O lençol ainda mostra o contorno das almofadas que a mãe gostava de deixar sobre a colcha. Ao lado da janela a estante guarda os livros, junto deles a velha bola improvisada que o pai lhe deu aos doze anos. A lembrança é tão viva, parece ter acontecido ontem. Agora só lhe resta enfrentar a dor. 8
  • 3. Revelações Da janela Marq observa duas garotas, uma alta e outra baixinha, caminharem pela rua. − As férias terminaram, é uma pena – diz a baixinha de minissaia. − Mais um semestre e adeus segundo grau, parece que foi ontem, mas em seis meses já estaremos na Faculdade – responde a mais alta, a de cabelo preso em rabo de cavalo. − Já sabe para onde vai? – pergunta a primeira. − Ai prima, estou tão confusa... Uma brisa sopra o cheiro das meninas na direção de Marq. Ele fecha os olhos, inspira lenta e profundamente. O aroma atinge-o feito uma bola de fogo, queima-lhe as narinas, em seguida a carne. O aroma da garota mais alta, em particular, é forte, desperta nele o desejo há muito escondido nas entranhas. A fome lhe aperta o estômago, após tantas horas de viagem sem se alimentar necessita de sangue fresco antes do instinto assassino falar mais alto e se descontrolar. Ele se segura a fim de não correr à rua e morder a dona daquele cheiro. Há tempos não deseja de tal maneira sangue humano como aquele. Marq afasta-se da janela, senta-se no chão, o corpo se contorce. − Ah! − o grito de dor ecoa na escuridão. Naquele instante não chega aos pés do humano que já foi na época em que morava naquele lugar. É predador, as garotas as presas, essa é a verdade. Levanta-se, num golpe joga os livros ao chão, derruba a estante. A conversa delas vem de longe, mas o cheiro continua forte. Marq corre rumo à floresta, sentido contrário ao das garotas. Em segundos, depara-se na escuridão. Entre as árvores o odor dos animais ao redor acaricia-lhe as narinas. Pequenos roedores 9
  • 4. Segredos de um vampiro caminham, guincham, correm. Os lábios de Marq tencionam, o corpo se posiciona semelhante ao de um felino. − Você é meu! Fácil pegá-los. Há uma fome insaciável dentro dele, sente os dentes vorazes penetrarem a carne quente, salgada. Minutos depois dezenas de animais sucumbiram à sua voracidade. Sacia a fome, não o desejo. Marq desprende os dentes do animal. A floresta é cheia de sons apavorantes, ele não tem certeza do que o incomodou. Isso o faz soltar a presa e localizar o ruído. Está insatisfeito, o desejo por sangue humano aumentou. Passos em sua direção quebram o silêncio. Não quer ser visto, não pode ser visto. Corre, tenta entrar rápido em casa, mas a porta está trancada. Volta-se à rua. Tarde demais. O homem que passa, acena. Marq sobressalta-se ao escutar o som que surge dos próprios lábios, ele assemelha-se mais a um miado. − Boa noite! Isso não é bom, humanos caminhando pela rua logo baterão à porta. Não esperava vizinhos. Esse era seu refúgio a fim de ficar só quando precisava se controlar. Por que teve que vir para cá e acabar com o pouco de paz conseguida? Deverá colocar o plano em prática mais cedo. Marq deita-se na cama, mãos apoiadas atrás do pescoço, procura dormir, não que isso faça diferença, só deseja diminuir a intensidade com que os sentimentos vêm a ele. Deixar de raciocinar, cuidar das recordações aos poucos. Desde o retorno muitos golpes violentos o atingiram. À volta ao antigo lar, o cheiro da garota que lhe despertou desejos profundos, as lembranças dos amigos, os vizinhos... sim, os vizinhos serão problema. 10
  • 5. Revelações De repente, o cheiro daquela garota invade o quarto de novo, obriga-o pular da cama. Em milésimos de segundos, à janela, procura a fonte daquele cheiro. A imaginação lhe pregou uma peça. 11