O documento é um resumo do livro "Sem Perdão" de Márcia Paiva. Conta a história de Maia, que cresceu em uma comunidade carente dominada pelo tráfico de drogas. Ela testemunhou confrontos entre traficantes e policiais desde criança e temia pela vida de seu irmão Rafael, que decidiu se tornar policial para combater o crime.
5. Agradecimentos
Agradeço a Deus em primeiro lugar. Obrigada, Senhor!
Ao meu marido, por sua paciência e compreensão.
Amor, sem você isso não seria possível!
Aos meus filhos, Gustavo e Eduardo, que me viam
sentada no computador por horas a fio, sem ter muito
tempo para eles: Amo vocês!
Obrigada por tentar ajudar a mamãe, não fazendo
muita bagunça e nem gritando. Esse livro dedico a vocês
três, que são minha vida.
Um agradecimento especial ao meu cunhado e ami-
go Rafael Martins que foi a primeira pessoa a ler meu
livro e a me incentivar a continuar. Não poderia deixar de
agradecer às pessoas que conheci na blogosfera pelo cari-
nho e força Edmundo Spot, Van Bosso, Danilo Barbosa,
Paola Patricio, Márcia Rios, Fernanda Meireles, Nanuka
Andrade, Babih Hilha, Adriana Oliveira e muitos outros.
Obrigada a todos vocês.
9. Prólogo
Zona Leste, SP
O suor cobria minha testa, os cachos de meus ca-
belos grudavam em meu pescoço. Estava deitada sob a
cama com a testa encostada no chão frio. Procurei a mão
do meu irmão que estava ao meu lado. Ele sorriu ten-
tando passar confiança. Entrelacei meus dedos nos dele
e senti que estavam gelados como os meus. Tentei não
demonstrar o pavor que estava sentindo, mas um soluço
involuntário saiu dos meus lábios. O som dos tiros, as
rajadas de metralhadoras eram ouvidos à distância.
— Acha que papai vai demorar, Rafael?
— Deve estar esperando — disse apertando leve-
mente minha mão — Assim que o confronto terminar,
ele vem para casa.
Concordei com a cabeça voltando a deita-la no chão.
Aos poucos, os sons foram diminuindo até que o silêncio
reinou. Suspiramos aliviados, esperamos por mais alguns
minutos antes de deixarmos o esconderijo improvisado.
— Acabou — Disse indo até a porta — Você esta
bem? — Perguntou ajudando-me a ficar em pé.
— Sim. E você?
Ele sorriu.
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10. — Sim, sem um aranhão.
Ele tinha dezoito anos, havia uma diferença de
onze anos entre nós.
— Gostaria de nunca mais ouvir esses sons. Eu te-
nho medo que uma bala nos acerte — reprimi um soluço
— Tenho medo que você morra — continuei sem conse-
guir conter as lágrimas — Só tenho você e o papai.
— Ei, pequena! Não chore! — pediu me abraçan-
do — Não quero fazer promessas, mas confie em mim.
Um dia tudo vai melhorar. E não esqueça que temos,
além do papai, o Antunes.
— Sim, ele é bom com a gente. Eu confio em
vocês, Rafael.
Aquele foi um dos muitos confrontos que presenciei
entre traficantes e a polícia ao longo dos anos. Moráva-
mos em uma comunidade carente, na verdade um morro
que, por ser muito inclinado, era chamado de Torre de
Babel. As escadarias eram vistas da avenida. Ali imperava
a lei do silêncio. Cresci nesta lei, imposta pelo maior tra-
ficante do Estado de SP.
A brincadeira das crianças era roubar carros e matar seus
ocupantes. Os mais velhos que já caminhavam para o tráfico,
ensinavam os mais novos o linguajar, como abordar as vítimas
e principalmente manusear armas. Nunca era permitido se
passar por policial. Essa era a primeira lição que aprendiam.
Cinco meninos brincavam em uma carcaça de car-
ro. Eles entraram e dominaram o motorista que era um
deles. Antes que abrissem a boca, outro menino chegou
pela lateral, em sua mão havia uma arma improvisada
feita com um pequeno cabo de vassoura.
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11. — Parado, polícia! Levantem as mãos! — Gritou ele.
Uma sombra cobriu os cinco. Os meninos olharam
para o homem com os olhos arregalados.
— Niko — disse o homem mansamente — Quan-
do seu pai adoeceu e sua mãe ficou impossibilitada de
trabalhar, quem colocou comida na mesa de vocês? Foi
o policial? Foi o delegado?
— Nenhum... Nenhum dos dois — respondeu o
menino gaguejando de cabeça baixa.
— Quem foi?
— O senhor.
— Quero ouvir o nome.
— Daniel, o rei.
— Isso, muito bem — falou passando a mão na ca-
beça do menino — Qual sua idade, Niko?
— Cinco anos.
— Já tem idade suficiente para começar a entender
a lei do morro. Eu dou proteção, cuido das pessoas. E
você se passa por um filho de uma puta de um policial!
— exclamou ele irritado — Nunca mais, nem por brin-
cadeira, faça isso. Entendeu?
— Sim, senhor.
— Ótimo! — ele sorria satisfeito — Isso vale para to-
dos. Polícia aqui não entra, nem na brincadeira de vocês.
Estava sentada nas escadas, quando percebi que meu
irmão sentou-se ao meu lado. Olhava tudo com muita
curiosidade. “Polícia aqui não entra nem na brincadeira
de vocês” repetiu sério. Meu irmão não era um menino e
sempre soube muito bem o que queria da vida.
— Nunca me deixei seduzir pelo dinheiro fácil deles
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12. — disse na mesma noite olhando a movimentação dos
carros que paravam a meio fio das escadarias — Essa vida
nunca me atraiu. Até hoje não sabia muito bem o que
queria. Só sabia o que não queria.
— O que mudou, Rafael? — perguntei
— Hoje tive a certeza do que quero ser — ele se
aproximou — Vou ser policial, Maia. Vou defender a lei
e prender pessoas como o Daniel.
— Não pode. Ele… ele
— Ele não vai saber de nada. Só eu e você saberemos
o que sou realmente. Posso confiar meu segredo a você?
— Claro, Rafa. Não vou abrir minha boca, nem
sob tortura.
Ele sorriu e foi um sorriso que há muito tempo não via.
Observar era meu passatempo preferido. Por ser crian-
ça, eles não se incomodavam com meu olhar curioso. Foi
observando que vi, ano após ano, Daniel ficar cada vez mais
rico. Traficante esperto era aquele que traficava, mas não
usava. Ele não era burro. Abastecia praticamente o Estado
inteiro embaixo do nariz da polícia. Era muito meticuloso,
nem todos os seus homens tinham livre acesso a ele. Os mais
próximos eram seus irmãos e suas mulheres. Uma delas era
minha mãe, que nos abandonou para viver com ele. Ela não
deixou lacuna nenhuma, era uma mulher fria, não demons-
trava carinho por mim e muito menos por meu irmão. Des-
de pequena, não me lembro de nenhum gesto de afeto ou
de uma palavra carinhosa. Eu preferiria ouvi-la gritando ou
esbravejando, mas se limitava a nos olhar com absoluta frie-
za, arrisco dizer até com desprezo. Definitivamente, foi um
alívio quando saiu de casa. Até meu pai suspirou aliviado.
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13. Uma Promessa. (Maia). 10 anos
mais tarde
Ouvi meu irmão me chamar.
— Maia! Vamos! Vou sair mais cedo, tenho que
passar no banco. Faço companhia para você até a es-
cola. Saí rapidamente do quarto, peguei meu violão e
coloquei nas costas. Dei uma última olhada no espe-
lho da sala. Não era bem uma sala. Como o espaço era
mínimo, meu pai separou o cômodo em dois com um
tapume. Um ficou sendo a cozinha, o outro a sala. Era
pequeno, modesto, mas limpo.
— Hoje vou fazer uma surpresa — Rafael levantou
a mão quando viu que eu ia interromper — Sem per-
guntas. Só à noite vou falar. Vamos embora. — Disse
pegando sua mochila que estava sobre o sofá.
— Tudo bem. Vamos — Concordei fechando a porta.
Descemos as vielas estreitas da favela. Onde passáva-
mos éramos cumprimentados. As crianças eram maioria.
Algumas mães desciam com seus filhos para leva-los à
escola, outras lavavam roupas em tanques improvisados
do lado de fora de suas casas. Morávamos quase no alto
do morro. Passamos por um rapaz que exibia uma sub-
metralhadora. Era um olheiro da boca. Não mexia com
os moradores e eles faziam vista grossa. Olhei de rabo de
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14. olho para o meu irmão e vi claramente sua fisionomia de
revolta. Ninguém ali sabia da profissão dele.
— Calma! Sozinho não fará nada.
— Eu sei, eu sei — soltou um longo suspiro —
Queria contar a novidade mais tarde, mas vou falar agora
— parou fazendo suspense. — Maia, consegui um apar-
tamento. Vamos sair daqui.
— Jura?
— Sim. É um condomínio para militares — Falou
baixando o tom de voz — Vivo em constante perigo. Se
algum deles descobrir o que faço para viver…
— Não devia ter voltado, Rafael, devia ter ficado
onde estava.
— Só saí na época da academia. E depois papai fale-
ceu. Não podia deixar você sozinha aqui.
— Eu sei. Mas, tinha Antunes, ele sempre olhou
por mim. E não se preocupe em ser descoberto, ninguém
sabe o que você faz nem vai saber. Lavo sua farda e a dei-
xo secar dentro da cozinha com tudo fechado.
— Por isso quero tirar você daqui. Se corro perigo
você, também corre. Antunes mesmo andando do lado
errado sempre nos socorreu.
— Eu sei, mas você não é o único que se esconde.
Há outros também.
— Sim, há. Queremos mostrar que nos orgulhamos,
sou um tira, amo minha profissão. Mostrar isso aqui é pe-
dir para morrer. Que inferno! Odeio ter de me esconder.
Entendia sua revolta, na comunidade, PM não en-
trava sem ser recebido à bala pelos traficantes. Rafael por
ser um, corria perigo de ser descoberto e as consequências
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15. disso seriam terríveis, para nós dois. Sacudi levemente a
cabeça tentando afastar os pensamentos. Todos viviam
em constante vigilância. Quando ouvíamos os estouros
dos fogos, corríamos para dentro de casa sabendo que
mais um confronto estava para acontecer. Eram horas de
pânico. Olhei para ele e segurei sua mão. Ele tinha 28
anos, alto, musculoso, olhos verdes, seus cabelos eram
castanho-escuros. Era um homem bonito.
— Promete uma coisa, Maia?
— Claro.
— Se qualquer coisa sair errada a primeira coisa que
vai fazer é sair daqui — parou fazendo-me parar também
–— Sair, Maia, sem olhar para trás.
— Por que está dizendo isso? — Perguntei com a
impressão que ele sabia algo e não queria revelar.
— Ouvi coisas. Não quero preocupar você. Só me
prometa.
Estranhei a ênfase com que ele fazia o pedido, mas
concordei.
— Ótimo, e não deixe de estudar, continue nas au-
las de violão. Promete?
— Para com isso! — pedi com irritação — Nada vai
dar errado. E está pedindo três coisas.
— Sim, eu sei. Mas promete?
— E as crianças, Rafael? Vou abandoná-las? A custo
consegui fazer algumas se interessarem pelas aulas de violão.
— Eu sei, mas tem que pensar em você também. Da-
niel está fechando o cerco sobre você. Sei que Marta colo-
cou você a par da situação — ele me parou — Ela falou
aquilo para te proteger. Acho que foi uma maneira de se
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16. redimir. Mas duvido disso — disse com amargura — E
pelo que sei Carlos, também ajuda no centro comunitário.
Mãe era um nome que ele não usava, por isso ao
invés de chama-la de mãe, quando falávamos dela –— o
que era raro — a chamávamos pelo nome: Marta. Tínha-
mos muita mágoa. Eu também não queria pensar no as-
sunto, voltei meus pensamentos para as crianças. Ele es-
tava certo, se eu saísse, elas não ficariam sozinhas. Carlos
era um dos moradores que também ensinavam no centro
comunitário, dava aula de computação e eu de violão.
— Estou esperando. Promete?
— Tá! Venceu! Eu prometo.
— Ótimo. Olha — disse enfiando a mão no bolso
do jeans tirou algumas notas colocando em minha mão
—, isso é para você. Compre algo bem bonito e não que-
ro recusas — terminou fechando minha mão.
Fiquei sem ação, não queria aceitar o dinheiro, ele já
pagava minhas aulas além de manter a casa.
— Rafael...
— É seu, use com você — me cortou — Como
vão as aulas?
— Obrigada — agradeci guardando no bolso — As
aulas estão cada dia melhor. Obrigado por pagar por elas.
— Você nasceu para isso. Nasceu para cantar! Maia,
um dia vai ser famosa, você tem talento.
— Não quero ser famosa, só gosto de cantar e tocar,
isso me basta. Quero ajudar as pessoas, Rafa.
— Ajudar?
— É — suspirei e olhei em volta — Só não sei ainda
em que área. O vestibular está ai, tenho que decidir.
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17. — Pensa com calma, se mais tarde sentir que errou,
é só mudar. E sabe que vou pagar a sua faculdade.
— Eu sei, mas vou procurar um trabalho.
Olhou-me com carinho sorrindo levemente.
— Só se for para trabalhar de madrugada, você não
tem tempo para nada. — Suspirei, ele tinha razão.
— Não se preocupe com isso por enquanto. Tudo
vai se resolver.
— Parece decepcionado, Rafa. — observei vendo a
sua fisionomia triste.
Ficou calado por alguns minutos, continuamos a
descer as escadarias que pareciam intermináveis.
— Quando se é jovem fantasiamos que podemos
fazer a diferença. Hoje vejo que não é bem assim.
— O que aconteceu? Para mim você faz a diferença,
sem você…
— Falo do sonho... — ele me interrompeu — Do so-
nho de melhorar a vida das pessoas. Sou um só, sou correto
e honesto. Amo minha profissão, mas esperava muito mais
— disse lançando um olhar para outro menino armado.
— Rafael, está exigindo muito de você. Segue a
lei faz o que pode. Acho que conseguiu tantas coisas.
Só o fato de estar no caminho correto já é uma vitória.
Lembra-se do Niko?
— Sim.
— Ele é um dos homens do chefe. Homem, não! É
só um menino, tem 15 anos, já responde por latrocínio.
É triste ver a infância perdida. Orgulho-me de você.
— Obrigado, Maia. Eu também me orgulho e
muito de você.
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18. Pegamos o ônibus, antes de chegar ao meu ponto dei
um beijo nele. Ele segurou em minha mão, abraçando-
-me. Senti meus olhos arderem. Não gostei da sensação
que senti, tive vontade de chorar não soube explicar por
quê. Desci quase em frente à escola de música. Ele ficou
em pé, virando-se em minha direção, me olhou com um
sorriso, levantou à mão acenando, fiz o mesmo. Fiquei
olhando até o ônibus sumir de vista.
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