1. A obra de Márcio Kogan possui óbvia inspiração modernista – e aqui é importante
UMA MAQUETE NA MÃO E entender a acepção do termo: inspirar, neste caso, é referir-se descompromissadamente
UMA CÂMERA NA CABEÇA ao modernismo, sem se ater a ele rigidamente.
Usando repetidamente a volumetria retangular de grandes blocos, o arquiteto consegue
Loja Decameron apresentar belas casas e boas soluções espaciais. Essa obsessão pela ortogonalidade
Projeto Márcio Kogan pode ser vista como uma prisão voluntária, e sabemos quanto as nossas servidões
voluntárias podem nos ser cruéis. Kogan, todavia, insiste.
Vista por outro ângulo, esse repertório ortogonal, este jogo perene com as “caixas de
sapatos” consegue, em suas mãos, surpreender e encantar. Talvez o arquiteto cineasta
esteja tentando nos dizer quanta riqueza ainda se esconde naquelas formas
elementares, e zombando dos seus pares contemporâneos, ávidos por curvas e
inclinações excitantes, nos tente dizer: “Ei, vocês da desconstrução e do zahahadismo!
Como se atrevem a brincar com as curvas se ainda há tantos segredos e preciosidades nas
caixas de sapato?!”
Em sua proposta para a Decameron, loja de design e móveis ele mantém o jogo
cartesiano, todavia arrisca-se no uso de um elemento inédito na arquitetura de primeira
Loja Mi Casa – fotos: e-architect.co.uk
linha em São Paulo: o contêiner. A excessiva simplicidade de seu traço, que abusa do jogo
de duas longas caixas superpostas, difere do minimalismo de Mendes da Rocha e outros
pelo baixo uso do concreto e forte ênfase no acabamento, tentando aplicar marcas
pessoais, sinais ou assinaturas pessoais em sua obra. Neste aspecto alguém poderia dizer
ao nosso querido arquiteto e professor da Escola da Cidade que não são os materiais que
assinam a obra e sim a inteligência. Kogan não precisa repetir perenemente a famosa
“massa MK”, aquele reboco banal e rústico de argamassa com pedriscos e excesso de cal.
Essa massa tem seu lugar, todavia é tão somente um revestimento rude, uma textura com
tonalidade bege – nada além disso – transformado pelo escritório em um ícone, um
carimbo repetido ad eternum. Tal artifício pequeno burguês é desnecessário no projeto
de um profissional de seu gabarito. Perguntamo-nos se chegará o momento em que ele
se libertará deste cacuete, desse maneirismo infantil.
Loja Mi Casa
Foto: simplesesofisticado.blogspot.com
2. O projeto da Mi Casa (fotos 1 e 2) selou sua inserção na criação de espaços comerciais de alto luxo e o
convite para construir um espaço original para a Decameron, empresa especializada em mobiliário de
vanguarda e design internacional, repete essa sua presença na construção de prédios para varejo.
A ESCALA
Kogan usou francamente da monumentalidade a fim de embasbacar o visitante. E, devemos
reconhecer, o consegue com elementos ancestrais: o pé direito duplo no salão principal da entrada, com
um porta de mais de 6m de altura, corrediça. Monumentalidade, como a usamos, leva o sentido de
amplitude, de uma espacialidade envolvendo vários pavimentos, como fizeram os renascentistas com
suas colunas frontais nascidas no térreo e atingindo o coroamento do edifício. Os modernistas, com a
leveza adquirida junto ao concreto armado, apresentaram-nos a monumentalidade horizontal. Observar
e-architect.co.uk a obra de Niemeyer já basta para que compreenda o que desejamos colocar. Outrossim, o verbete não
carrega, de per si, elogio ou ojeriza. Monumentalidade não é sinônimo de excepcionalidade ou
magnanimidade construtiva – é tão somente o manejo do olhar, o emolduramento da fachada visando
um impacto. O êxito dessa empreitada deve ser conferido, pelos analistas da arquitetura, caso a caso.
A porta monumental da Decameron é inusual – simplesmente não há outra semelhante. Isto causa um
impacto, uma diversão, uma provocação à qual é-nos impossível prosseguir indiferentes. Os próprios
contêineres, em sua racionalidade industrial, são unidos por 2 ,5, de modo a se obter uma peça de
longitude excepcional. Ou seja: temos duas peças com 12m de comprimento unidas a outra com 3m.
Uma vez dentro deles, o acabamento uniforme, um revestimento de mdf branco, esconde os limites
entre as peças, de maneira que supomos estar em um único contêiner de comprimento exacerbado. É
fácil deduzir o jogo espacial que este arranjo possui, se tratando, de fato, de um longo túnel.
O recorte da porta lateral do primeiro contêiner é tão generoso que praticamente anula sua exígua
e-architect.co.uk largura. Temos em mente que um contêiner possui, amiúde, 2,4m x 12 com 2,9 de altura. Não o
contêiner da Decameron: nos dois pavimentos ele atinge cerca de 27m comprimento, mas com a mesma
largura. Ora, só estar ali, já constitui uma experiência espacial ímpar.
Ao se chegar no pavimento superior encontramos uma abertura de largura igual a da porta inferior do
primeiro contêiner: quase 10 metros de abertura. Essa janela olha, não para a rua, nem para o agradável
jardim na parte intermediária do lote, mas para o saguão da entrada, onde repousam os belos e
confortáveis sofás Decameron. Assim, o arquiteto nos conduz a um passeio que resulta em vermos
aquilo já visto, porém, agora, do alto. Assim ele vende com uma elegância divertida, o produto de seu
cliente: a loja, e seus artefatos.
3. O USO DE CONTÊINERES
O uso de uma peça industrial marítima é óbvia provocação visual, aproveitando o pouco uso dele na
arquitetura brasileira. Assim, Kogan torna especial um elemento que, fosse na Europa ou nos USA, seria
insípido. Adiantando-se, ao usar a peça, ele obtém o inusitado, o pitoresco, que certamente, perderá
doravante: MK foi o pioneiro no uso deste material com este nível construtivo.
Há apenas uma loja que usa contêineres em São Paulo como opção arquitetônica: um bar na av. São
Gabriel. Assim, Kogan foi, indiscutivelmente, original no que fez. E arriscou-se: há pequenos segredos
no uso desta peça que só a obra traz à tona.
A ESPACIALIDADE
Kogan maneja com maestria o espaço da loja: o saguão e sua entrada é absolutamente inesquecível e
impressiva. O circuito pelos contêineres até o alto é um caminho divertido, curioso. Voltando ao
e-architect.co.uk térreo, não se chega à sala de vendas sem antes passar-se pelo jardim. E como é agradável o conjunto
do jardim com a muralha de contêineres que o margea! Entrar na edícula para fechar negócios leva o
cliente de volta ao mundo real: pé-direito baixo, espaços reduzidos, parecem dizer que, finalmente, o
passeio não é gratuito: estamos no mundo corporativo, onde os tablets aguardam fechar a venda ou dar
mais detalhes de alguma peça. Sair do fundo do terreno e volta à rua é passear de novo neste cenário
encantador, colorido e algo fantástico, de modo que dificilmente um cliente olvidará a experiência: sua
visita à Decameron está definitivamente, registrada na memória!
O RIGOR NO DETALHE
Kogan exige a perfeição na textura de suas paredes, acetinadas de modo especial, diferente. Exige
arestas limpas e absolutamente retas nas suas paredes, mesmo a que simplesmente divide o terreno
com o vizinho. É dele a famosa, massa MK. Trata-se de uma textura granulosa, com cor peculiar de
concreto quase branco, mas um tanto bege, e esburacado. Essa massa MK está presente em todas as
suas casas e deve ser feita sob rigorosa receita que seu escritório detém.
simplesesofisticado.blogspot.com O JOGO DE COR E AMBIENTES
O conjunto da loja Decameron é um divertido e fino jogo espacial onde
cor, monumentalidade, percursos, se reúnem a favor de um ambiente singular.
Se a Alameda Gabriel Monteiro da Silva é centro nacional do design de primeira linha e se o cliente
busca o novo, com sofisticação, então Márcio Kogan acertou em cheio – e o fez a custo relativamente
baixo: nada em sua obra é de preço exorbitante. A porta de vidro, feito pela Victrosa, com camada
dupla de vidro, veio de Portugal graciosamente: a Victrosa entendeu que essa doação seria um ótimo
cartão de visita e nada cobrou pela peça. Nesse jogo de trocas, de grifes e inserção no alto mundo da
construção rigorosamente bem executada, Márcio Kogan repetiu com êxito, a inovação já apresentada
na Mi Casa. Resta uma questão: constitui essa atitude nítidamente comercial, pouco natural e pouco
simples, de projetar, uma boa arquitetura?
4. AVALIAÇÃO DA ARQUITETURA
Ainda que entremos em campo fortemente subjetivo, pensamos que dois fatores podem responder com
boa margem de segurança à questão de se a Decameron constitui exemplo de boa arquitetura.
1) Sua relação com a cidade e o entorno. Nesse quesito, a resposta é favorável, pois o projeto
consegue ser inovador e atraente numa rua de forte competição volumétrica e criativa. O prédio é uma
referência agradável, de gabarito não-agressivo e luminoso.
2) A resposta do usuário. Tanto clientes como funcionários atestam o prazer de visitar e ocupar o
espaço. Além do arrebatamento pelo salão monumental e a onipresença dos contêineres com suas
e-architect.co.uk janelas gigantescas, tem sido referido o bom gosto do jardim, onde se pode descansar e conversar
prazerosamente.
Assim, confrontando a relação espacial interna e a relação com a cidade é justo, sim, apontar a nova
criação de Márcio Koogan como singular exemplo de ótima arquitetura contemporânea. Todavia, ela vai
além: a loja mostra um pensamento cinematográfico aplicado à construção. Esta criação do cenário, este
conduzir o olhar, antes de conduzir o caminho, acontece na loja MiCasa e se repete claramente na
Decameron. Andar ali significar confrontar perspectivas, ser atraídos por uma porta exuberante e por
janelas majestosas – ainda que tais janelas sejam meros rasgos sobre o metal, sem folhas e sem
bandeiras.
Kogan sente o impulso de surpreender, à moda da tradicional casa japonesa que mesmo contando com
pouco terreno, obriga-nos a passar sobre um pequeno lago de carpas, numa ponte amiúde menor que
um ser humano, para fazermos uma curva, e descobrirmos, atrás de um arbusto uma varanda ou algum
outro pedaço da moradia, oculto da rua. O labirinto, a surpresa, o zig-zag, tudo isso nos remete à
simplesesofisticado.blogspot.com esquete de filmagens. Sintomo-nos como um camera-man, como um fotógrafo feliz que a cada passo vê
um novo enquadramento. Este filme, uma vista à loja da Decameron, possui um diretor inteligente e é
justo reconhecer, montou um filme de arte.