1. ANTROPOLOGIA, CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES E
ESQUIZOFRENIA: DIÁLOGOS POSSÍVEIS. 1
Andréa Graupen2
RESUMO:
O trabalho aponta para uma possibilidade de diálogo fecundo entre o campo disciplinar
denominado Ciências das Religiões e a Antropologia. A proposta é delimitar, ainda que
modestamente, o campo disciplinar das Ciências das Religiões (e a opção pelo seu uso
no plural, como adotado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da
Paraíba) e de que forma determinadas concepções advindas da Antropologia podem
contribuir de maneira significativa para a pesquisa intitulada Discurso sexual e religioso
de mulheres e homens com diagnóstico de esquizofrenia.
PALAVRAS-CHAVE: ANTROPOLOGIA. CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES.
ESQUIZOFRENIA.
INTRODUÇÃO
A figura do indivíduo, como se concebe atualmente é uma criação da Modernidade, e
refere-se ao “sujeito de direitos, ‘dono do próprio destino’ dentro de uma concepção
liberal de humanidade, extensiva e abstrata” (NUNES, 2007, p. 100). É nesta concepção
de indivíduo que o racionalismo cartesiano vai estabelecer suas bases e neste momento
“instala-se o reino da razão, informado pelas regras do método, oposto às verdades cujas
bases são a tradição e a revelação.” (NUNES, 2007, p.100). E neste contexto o
pensamento mítico-religioso vai sendo paulatinamente substituído por uma concepção
racional e secularizada do mundo, vigente até meados do século XIX. (NUNES, 2007).
Na contramão do processo de secularização iniciado na Modernidade, e que para o
pensamento freudiano (FILORAMO e PRANDI, 2007) e marxista (NUNES, 2007)
prenunciava o fim da religião, observamos atualmente que a religião “estabelece
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Elaborado para a disciplina Antropologia da Religião, do Programa de Pós- Graduação em Antropologia
da UFPE, sob a coordenação da Profa. Dra. Mísia Lins Reesink. Parte da dissertação de Mestrado
intitulada: Discursos sobre sexualidade e religiosidade de mulheres e homens com diagnóstico de
esquizofrenia, sob a orientação do Prof. Dr. José Vaz Magalhães Néto.
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Psicóloga, Especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida/ RJ,
Arteterapeuta - Clínica Pomar/ RJ, Mestre em Ciências das Religiões - PPGCR/UFPB
(andreagraupen@yahoo.com.br).
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2. identidades, configura comportamentos políticos, reordena paixões, ódios, formas de
solidariedade, mercados e ideologias.” (DALGALARRONDO, 2008, p. 231).
O fenômeno religioso, a religiosidade e espiritualidade fazem parte da vida dos seres
humanos. Mesmo aqueles/as que não possuem uma religião institucionalizada são de
várias maneiras mais ou menos tocados/as pela religião haja vista o alcance desta em
diversas esferas da vida humana.
No cotidiano de homens e mulheres com diagnóstico de esquizofrenia o tema religioso é
bastante presente, inclusive sendo considerado como sintoma (delírio místico-religioso),
abordá-lo a partir da antropologia possibilita um olhar menos patológico e
estigmatizante do que o modelo biomédico vem possibilitando ao longo de séculos de
opressão e repressão.
Estudar, pois o fenômeno religioso, em sua complexidade antropológica, sociológica,
histórica, fenomenológica e psicológica faz-se necessário num mundo onde a religião
está bastante viva a despeito de sua morte anunciada. Abordar religião e loucura numa
perspectiva antropológica pode de alguma forma despotencializar a hegemonia do
discurso biomédico sobre aqueles/as que são atingidos pela “loucura”, os
compreendendo a partir da cultura. Visto que o estranhamento (que usualmente
acompanha o contato com a loucura e seus conteúdos religiosos) é uma prerrogativa
do/a antropólogo/a este seria mais um ponto de fecundas trocas.
AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
O campo de estudo denominado “Ciências das Religiões” como o compreendemos
atualmente tem uma trajetória de discussões epistemológicas importantes que
perpassam as Ciências Humanas e Sociais.
Em meados do século XIX é cunhada a expressão “Ciência da Religião” no sentido de
evidenciar a “emancipação das Ciências Humanas em relação à Filosofia e à Teologia –
até então vozes imperantes – no tratamento dos fenômenos religiosos e das concepções
últimas sobre o ser.” (CAMURÇA, 2008).
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3. No seu primórdio, período da ciência positivista e evolucionismo científico, a Ciência
da Religião estava intimamente ligada à apologética e ao cientificismo. No primeiro
caso estaria a Ciência da Religião a serviço de provar a superioridade do cristianismo
sobre as demais religiões, utilizando não mais a apologética tradicional, mas sim os
dados disponibilizados pelas demais disciplinas (lingüística, antropologia cultural,
psicologia, sociologia) que abordavam o fenômeno religioso. No caso do cientificismo,
autores se ocupavam em pesquisar a não-essencialidade da religião, o que contribuiria
para o seu desaparecimento, via secularização do mundo. (FILORAMO e PRANDI,
2007).
Com a crise do positivismo no final do século XIX, tais pressupostos epistemológicos
foram radicalmente questionados abrindo espaço para duas tradições interpretativas da
religião: explicativa ou compreensiva (FILORAMO e PRANDI, 2007).
Tais posicionamentos estariam hoje em vias de superação, pois
[...] a contraposição entre explicação e compreensão vai sendo
progressivamente substituída por um modelo de integração baseado,
de um lado, na necessidade de um pluralismo metodológico que
encontre no interior de cada trajetória as garantias da própria
“cientificidade” e, do outro, na necessidade de levar em conta os
aspectos “subjetivos” da pesquisa, que fazem parte integrante dela e,
com frequência, são seus fatores decisivos. (FILORAMO e PRANDI,
2007, p.11).
Tal denominação Ciência da Religião, de acordo com alguns autores (CAMURÇA,
2008; FILORAMO & PRANDI, 2007) traz uma problemática no que concerne ao uso
do singular: de que há um método único, uma única ciência apta a abordar um objeto
único (a religião). Ao adotar este singular desconsidera-se toda a discussão das
Ciências Sociais e Humanas que culminaram no século XX com a pluralidade
epistemológica característica destas.
Utilizar a denominação Ciências das Religiões implica num posicionamento: estamos
adotando uma abordagem plural para um objeto plural, o que acarreta na concepção de
transdisciplinaridade, característica essencial deste campo de estudo. Ao estudarmos o
fenômeno religioso em Ciências das Religiões não pretendemos atingir uma verdade
universal a respeito da religião, estamos cientes que estamos abordando um fenômeno
polissêmico e multifacetado, que pode ser enriquecido com a diversidade de métodos e
disciplinas com os quais é abordado.
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4. Afinal, o que define a religião é a validade do método particular que
se decide assumir. Nessa perspectiva, o estudo científico da religião
avançou à medida que se demonstrou capaz de assumir novas
perspectivas metodológicas, pois cada novo método, quando eficaz,
contribuiu para se captar um outro aspecto de uma realidade humana
histórica extremamente variada e multifacetada e que – isso deve nos
fazer refletir – se revela resistente a ser capturada de uma vez por
todas numa única rede metodológica. (FILORAMO e PRANDI, 2007,
p. 22).
A partir do exposto, concordo com Filoramo e Prandi (2007) ao afirmarem que o
pesquisador das Ciências das Religiões deve estar apto a praticar um ateísmo
metodológico, escolhendo idiossincraticamente de acordo com suas competências
prévias e fatores externos o instrumento adequado para alcançar o objetivo
interpretativo. (FILORAMO e PRANDI, 2007).
Ao longo da trajetória das Ciências das Religiões a Antropologia se estabelece como
uma disciplina de muitas e significativas contribuições do fenômeno religioso.
Durkheim, em meados do século XIX, com sua discussão sobre sagrado/profano e sua
contribuição no sentido de relativizar a hierarquia entre as religiões, seguindo com
Mauss, que re-elabora e reinterpreta algumas concepções de Durkheim, se dedica ao
estudo do ritual. Muitos antropólogos se dedicaram ao estudo das religiões visto que ela
é parte da experiência humana global e não pode ser observada isolada do contexto
cultural que a expressa. Diversos pesquisadores contemporâneos estudam a religião,
seguindo perspectivas antropológicas mais sociológicas, mais psicológicas ou culturais
e todas trazem subsídios fundamentais para a compreensão do caleidoscópio religioso.
ESQUIZOFRENIA e LOUCURA
Minha formação em psicologia me colocou em contato próximo com a loucura
(esquizofrenia) e consequentemente com seus conteúdos religiosos, classificados a
partir do modelo biomédico de delírios místico-religiosos denotando uma articulação
entre os temas do meu interesse, a saber, Religião e Loucura. Mas a pesquisa extrapola
o campo do patológico, sai da hegemonia discursiva do modelo biomédico para dialogar
com outros campos de estudo, procurando criar diálogos mais fecundos.
Durante séculos a experiência da “desrazão” foi do domínio teológico, uma gama de
explicações de caráter mítico-religioso tentava dar conta deste fenômeno.
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5. A “loucura” era e ainda é para muitos povos indígenas uma experiência intimamente
ligada ao sagrado, demoníaco e os transtornos mentais eram concebidos como fruto de
forças sobrenaturais. (ACKERNECHT apud DALGALARRONDO, 2008).
No século XVII a loucura paulatinamente sai do domínio da religião para ser apropriada
pela medicina, ainda que este campo específico não tivesse modelos claros ou uma
nosografia que pudesse articular e categorizar toda uma sorte de “loucuras”, visto que a
psiquiatria e psicopatologia ainda não haviam surgido.
Com o nascimento da psiquiatria no século XIX a questão da etiologia da loucura ocupa
os primeiros alienistas “A alienação mental era uma doença do corpo ou das paixões?
Tinha origem na desordem dos órgãos ou dos afetos? Enfermidade física ou afecção da
alma?” (PELBART, p. 217). Tais questões, embora não fossem novas, neste momento
estavam intimamente ligadas à legitimação da psiquiatria enquanto ciência médica e o
que se apresentava como imperioso era “fundamentar cientificamente uma prática de
exclusão e moralização, como fazer uma pedagogia do desvio derivar de uma racionalidade
médica?” (PELBART, 1989 p. 218). De acordo com Birman (apud PELBART, 1989), é
neste momento e para justificar sua prática, que o alienismo do século XIX encontra um
corpo para a loucura. A questão da etiologia não tem valor como conhecimento a
serviço de uma possível entidade nosológica, mas vale apenas como justificativa para
uma série de encaminhamentos que visam “curar” o louco no tocante a sociabilidade já
que
o louco é um fracassado em sua sociabilidade — leia-se, em sua
humanidade. A nova psicopatologia será construída com as noções de
"predomínio das paixões" e "lesão da vontade", que representarão,
conjuntamente, o obstáculo maior a essa sociabilidade ideal no interior
da qual a nova psicologia pensa a vida normal e humana do sujeito. É
curioso observar como a nascente psiquiatria articulará o conceito de
sociabilidade e o de afeto. São os afetos que possibilitam as trocas
sociais (instinto sexual, amor maternal, sentimento de piedade), e só o
fazem quando funcionam na intensidade ideal, isto é, quando são
regulados pela vontade. Quando esta definha, os afetos viram paixões,
violentas, egoístas, buscando apenas o prazer e escapando aos
preceitos básicos da convivência e da sociabilidade. A vontade teria
função de autoridade, de regulação da intensidade, de legislação
moral, e seria socialmente determinada, tanto pela educação e família,
quanto pela cultura. (PELBART, 1989, p. 219)
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6. Atualmente de acordo com a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento
da CID-10 (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1993), a esquizofrenia,
classificada com o código F20, ou transtornos esquizofrênicos “são caracterizados, em
geral, por distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção e por
afeto inadequado ou embotado.”
Nesta perspectiva mais tradicional, a experiência da pessoa que apresenta um transtorno
é sempre avaliada pelos outros, o louco perde sua potência de fala.
DIÁLOGOS COM A ANTROPOLOGIA
Certa de que a antropologia pode contribuir de forma significativa na discussão sobre a
loucura e a religião, abordarei alguns conceitos de autores que podem auxiliar a
pesquisa em andamento.
Lévi-Strauss (1980), no início do seu trabalho O Totemismo Hoje, levanta a questão da
pretensa objetividade da ciência frente às pessoas estudadas e afirma que
Como se, sob o pretexto de objetividade científica, os primeiros
procurassem, inconscientemente, representar os segundos mais
diferentes do que eles realmente são, quer se trate de doentes mentais,
quer de pretensos “primitivos” (LÉVI-STRAUSS, 1980, p.95, grifo do
autor)
Tal postura, de “anormalizar” certas formas de representar o mundo, estaria a serviço de
manter a ordem estabelecida, a manutenção de valores tidos como universais, evitando
assim uma desestruturação da ordem social, moral ou intelectualmente aceita. (LÉVI-
STRAUSS, 1980).
Tal fato, alvo da crítica do pensador francês é algo que a medicina, legitimada pela
sociedade, fez (e ainda faz!) de forma significativa com os/as esquizofrênicos/as. Ao
focar seu olhar sobre a diferença presente no comportamento destas pessoas e elevá-la
exponencialmente criou-se toda uma cultura da repressão e afastamento que de certa
maneira faz com que a ordem em todos os níveis seja mantida. Ainda que a um preço
absurdo: o confinamento e marginalização de seres humanos.
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7. O esquizofrênico, ou louco como é comumente chamado, apresenta-se como alguém
que perdeu o contato com a realidade de acordo com autores de orientação
psicodinâmica. (DALGALARRONDO, 2000).
Mas a qual realidade tais autores se referem? Na minha convivência cotidiana com
pessoas diagnosticadas como esquizofrênicas, é como se houvesse um desvelamento do
véu que cobre a estrutura inconsciente (o inconsciente lévi-straussiano3) revelando a sua
estrutura binária. Na verdade seria não apenas um desvelamento, mas uma possibilidade
de simultaneidade/coexistência no nível mais superficial, destes pares de opostos que se
apresentam nos momentos de crise destas pessoas, inclusive trazendo uma série de
conflitos no que diz respeito à relação entre sexualidade e religiosidade como pólos
opostos e complementares que surgem ao mesmo tempo. Isso não é uma realidade?
No trabalho com a loucura uma questão que surge muitas vezes diz respeito à
veracidade da experiência relatada pelos esquizofrênicos/as. Muitos profissionais
tendem a desqualificar o relato destas pessoas, ou prontamente enquadrá-lo numa
categoria de falsidade, mentira e alucinação/delírio. Inúmeras vezes tais indivíduos
sentem-se não compreendidos em suas angústias e temores. Toren (2006) em seu
trabalho nas Ilhas Fiji aborda a questão da verdade ou como sugere o título do seu
trabalho: Como sabemos o que é verdade? O caso do Mana em Fiji.
A autora, a partir do seu trabalho de campo vai propor uma discussão entre crer e saber,
afirmando que o saber é construído não a posteriori com um exercício de reflexão, mas
culturalmente e é o próprio mundo dos significados das pessoas. Tal discussão, apesar
de saber que estou tirando do contexto no qual foi formulada, parece-me de extrema
importância para a abordagem com pessoas esquizofrênicas/loucas. Como qualificar os
relatos destas pessoas, quando afirmam ouvir vozes, verem espíritos de parentes já
mortos4? Na prática de profissionais de saúde existe uma tendência a pré-julgar a fala
dos/as esquizofrênicos/as a priori como patológicas.
3
Aqui o inconsciente se difere do inconsciente freudiano. “O inconsciente, para Lévi-Strauss, é uma
espécie de recipiente e elaborador de um número finito de relações constantes de tipo binário, como cru-
cozido, macho-fêmea, endogamia-exogamia, em grupo-fora do grupo etc.” (FILORAMO E PRANDI,
2007, p. 216).
4
Não discutirei os aspectos de integridade egóica, de desintegração total da personalidade e adaptação ao
universo circundante que, para o modelo biomédico seria indicativo de uma psicopatologia; também não
pretendo desqualificar os relatos de sofrimento e angústia destas pessoas, mas pretendo relativizar o
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8. Concordo com Toren (2006) quando afirma que
[...] se tivéssemos de afirmar, da forma mais concisa possível, qual
teria sido a contribuição da antropologia para as ciências humanas,
minha resposta seria a de que o corpus formado pela etnografia de
diferentes povos, em diferentes momentos e lugares mostra, em
primeiro lugar, que as pessoas em toda parte tomam como
evidentemente verdadeiras suas idéias sobre si mesmas e sobre o
mundo que as rodeia e, em segundo lugar, que o maravilhoso é
justamente o mundo habitado confirmar em toda parte todos os
variados entendimentos que formamos a seu respeito. O que as
pessoas tomam como fato evidente não é em geral passível de
confirmação segundo um modelo grosso modo científico, de acordo
com o qual afirma-se uma hipótese para então tentar refutá-la. De
modo geral, as pessoas raciocinam indutivamente e fazem
racionalizações a posteriori. (TOREN, 2006, p. 450, grifos da autora)
Assim como os informantes de Toren, acontece de os/as esquizofrênicos/as, rirem do
descrédito evidente em muitos profissionais de saúde frente às suas colocações. Muitas
vezes eles/as ironizam verbalmente está descrença. Certa vez ouvi uma mulher de uns
50 anos, diagnosticada como esquizofrênica desde os 23 anos dizer: “Sei que o Dr.X
não acredita no que eu digo, mas tenho que dizer, não vou mentir né Dra.? Estou aqui
para me tratar...” e riu disso.
Qual é a verdade? A verdade do profissional ou do/a esquizofrênico/a? Será que existe
uma verdade a ser revelada pela psiquiatria e que estaria escondida nos porões da
psique? Sair do lugar de certezas pode ser muito desestabilizador, por isso muitas
pessoas apegam-se ferozmente a suas verdades, fechando-se para a verdade dos outros.
Para a autora, estudar a questão da verdade tem a ver com a necessidade constante de
rever constantemente, ao longo dos anos, suas perspectivas teóricas e perceber que
minhas próprias idéias sobre o mundo e sobre o que é ser humano não
são mais sólidas, mais defensáveis ou bem-fundadas — não são mais
válidas — do que as de outras pessoas [...] Tal percepção é algo que
nos é praticamente impossível de sustentar permanentemente como
real, precisamente porque, não importa quão conscientes estejamos de
que o conhecimento é transformado no mesmo processo em que é
conservado (isto é, o processo de produção de significado ao longo do
tempo), jamais podemos abrir mão de nossas certezas correntes sobre
o mundo habitado — especialmente, talvez, se nos consideramos
engajados, como me considero, em um esforço científico para
conhecimento biomédico ao sugerir, como faz a antropologia, que devemos levar em conta o que
nossos/as “informantes” nos dizem.
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9. compreender de que modo nós, humanos, nos tornamos aquilo que
somos. (TOREN, 2006, p.452)
Na minha pesquisa com @s esquizofrênic@s os conceitos de religião e sexualidade
serão trabalhados e definidos a partir do campo, do que meus informantes disserem e a
validação intersubjetiva será essencial para a compreensão deste universo.
Então de que forma criar um espaço para a verdade alheia sem corremos o risco de cair
numa relativização extrema? Toren (2006) não afirma que tudo é relativo, mas se ocupa
com o processo de autopoiese (autocriação) que se dá no nível micro-histórico
biologicamente e singularmente, sendo a intersubjetividade uma condição fundamental
do ser humano.
Para ela a intersubjetividade
implica produzirmos significados a partir de significados que outros
produziram e estão produzindo: isto é, como qualquer outro ser
humano, estou emaranhada em relações multifacetadas com outros
que têm seus próprios entendimentos das relações sociais e da
constituição do mundo. Em qualquer encontro com outra pessoa,
quem quer que seja, eu assimilo seu entendimento ao meu próprio e,
ao fazê-lo, me acomodo — mais ou menos — às idéias que ela tem
sobre o mundo e sobre nosso relacionamento.(TOREN, 2006, p. 452)
Como o mundo é um local em permanente construção, mas já tendo sido significado em
todos os aspectos, para Toren (2006) estamos produzindo novos significados
cotidianamente, sendo o significado sempre emergente e cambiante, nunca fixo.
O que estou indicando aqui é que o mundo habitado sustenta todas as
nossas descrições historicamente constituídas a seu respeito, de tal
modo que essas descrições, sempre e inevitavelmente parciais, se
fazem objetivas de maneiras diversas. (TOREN, 2006, p. 453)
Então de que maneira podemos compreender/explicar outras experiências se existem
múltiplos significados? Para Toren (2006) é possível algo tornar-se explicável não pelo
fato de determinados conceitos serem universais (ela cita o tempo como exemplo), mas
porque enquanto vivendo num mundo concretamente habitado temos que lidar com
processos relativamente invariantes, sendo o universal invariável cria-se uma
possibilidade de entendimento. Sendo a pessoa diagnosticada como esquizofrênica
9
10. alguém que habita e compartilha este mundo, onde na pluralidade de significados
existem os universais, existe a possibilidade de entendimento da sua fala a partir do
momento que os situarmos no mundo. O/A louco/a é alguém deste mundo por mais que
(retomando Lévi-Strauss) desejem ressaltar e tornar apenas evidente suas diferenças.
Ainda em Toren (2006) encontro outra contribuição para minha pesquisa no que tange a
força moral da linguagem, pois segundo a autora a linguagem produz não apenas uma
ação pura, mas produz uma eficácia. Então aprender sobre a linguagem seria aprender o
que a linguagem pode fazer e como o faz, seu caráter performativo.
Para os Estudos Críticos do Discurso (ECD), referencial teórico-metodológico adotado
na minha pesquisa, o discurso/linguagem não é apenas um objeto verbal, é uma ação
que constrói e legitima a realidade. O ECD considera que o discurso não é mera
representação sendo compreendido “como uma interação situada, como uma prática
social ou como um tipo de comunicação numa situação social, cultural, histórica ou
política” (VAN DIJK, 2008, p. 12). Segundo Toren (2006) a linguagem deve ser vista
como um instrumento analítico que revela a natureza do mundo e a condição humana e
“o próprio discurso é constitutivo daquilo que as pessoas são e do que podem ser”.
(TOREN, 2006, p. 467). A linguagem encontra em Toren uma confirmação da
importância da linguagem como constitutiva.
Collins (2005) traz uma instigante perspectiva de se abordar um fenômeno, no caso o
encontro de orações de um grupo Quaker britânico, ao abordá-lo a partir de treze pontos
de vista distintos. Ao abordar tal prática Collins propõe um rigoroso e engajado diálogo
teórico a partir das informações advindas das pessoas com quem trabalha (no caso os
Quakers). Para o autor tal engajamento dialético possibilita que uma variedade de vozes
interpretativas sejam bem-vindas e ouvidas (COLLINS, 2005). Segundo o autor, não
apenas os antropólogos e sociólogos estão interpretando as ações daqueles/as que estão
estudando, mas também eles/as mesmos/as estão interpretando suas ações. A partir
desta constatação afirma que os acadêmicos não têm o direito de monopolizar as
interpretações e propõe não apenas uma justaposição do ponto de vista êmico e ético,
mas que seu objeto de estudo, no caso o ‘ritual’ Quaker de oração pode ser visto a partir
de perspectivas teóricas distintas e não excludentes, mas que estariam a serviço ou iriam
ao encontro da própria interpretação dos participantes. No caso do meu objeto de
10
11. estudo, loucura/esquizofrenia e suas possíveis relações com a religião, tal abordagem
pode ser bastante empoderadora5 ao levar em conta o que os/as loucos/as/
esquizofrênicos/as tem a dizer e propondo um local de encontro entre teoria e prática.
Abordar um fenômeno da maneira que Collins (2005) propõe seria não tentar enquadrar
o “objeto” a uma teoria específica, mas ao levar em conta o que as pessoas têm a dizer
sobre suas próprias práticas, fazer uma negociação que me parece bastante fecunda.
CONSIDERAÇÕES
O diálogo, ainda que de forma inicial da minha parte, entre Antropologia, Ciências das
Religiões e a pesquisa intitulada Práticas discursivas sexuais e religiosas de mulheres e
homens com diagnóstico de esquizofrenia sugere um caminho fértil a ser percorrido.
Difícil é falar de outro lugar que não o de psicóloga visto que esta tem sido minha
prática desde sempre, o que busquei foi estabelecer algumas relações entre a minha
pesquisa e algumas propostas da Antropologia, mais como um exercício de
aproximação.
Como proposta de trabalho, estou ciente que a Antropologia contribui de forma
significativa para o estudo das religiões e me apresenta questões essenciais para a
postura necessária no meu futuro trabalho de campo, como o estranhamento necessário,
a validação intersubjetiva bem como os conceitos de sagrado/profano, magia, crença e
verdade, mutualidade, que serão utilizados, mesmo que a partir de outro lugar que não o
de antropóloga.
Em particular os trabalhos de Toren (2006) e Collins (2005) apontam questões
essenciais à minha prática enquanto pesquisadora em Ciências das Religiões.
REFERÊNCIAS
5
O termo é uma tradução da palavra de língua inglesa “empowerment”.
11
12. CAMURÇA, M. Ciência da religião, ciências da religião, ciências das religiões? In:
Ciências sociais e ciências da religião: polêmicas e interlocuções. São Paulo: Paulinas,
2008.
COLLINS, P. Thirteen Ways of Looking at a ‘Ritual’. In Journal of Contemporary
Religion, Vol. 20, No. 3, 2005 pp. 323–342.
DALGALARRONDO, P. Religião, psicopatologia & saúde mental. Editora Artmed,
Porto Alegre 2008.
FILORAMO, G.; PRANDI, C. As Ciências das Religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
LÉVI-STRAUSS, C. O Totemismo hoje. 2.ed. São Paulo: Ed. Abril, 1980.
NUNES, M.J.R. A sociologia da religião. In: USARSKI, F. Espectro disciplinar da
ciência da religião. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 99-119.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação Internacional de Doenças
(CID-10). 10. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
PELBART, P. P. Da Clausura do fora ao fora da clausura - loucura e desrazão.
Editora Brasiliense, São Paulo, 1991.
TOREN, C. Como sabemos o que é verdade? O caso do Mana em Fiji. In: Mana. 12(2):
449-477.
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