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Introdução


                                                       "Cada dia é um dia roubado da morte (...)
                                                        é viver o momento com toda intensidade.
                                                   Compreender que o hoje é o que existe de real.
                                                                         Soltar as amarras, voar,
                                                                   sonhar, ser com profundidade"
                                                                               Clarice Lispector




   O presente trabalho monográfico é resultado do curso de pós-graduação Latu Sensu de
Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial promovido pela Faculdade de
Saúde Ibituruna – FASI de Montes Claros / MG em parceria com a Escola Nacional de Saúde
Pública – ENSP da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.


   Objetivamos neste, especificamente, aprimorar o pensamento técnico-acadêmico para a
atuação no campo da Atenção Psicossocial referente ao resgate do cotidiano dos usuários dos
serviços de Saúde Mental como elemento norteador da clínica em Terapia Ocupacional.


   O campo da Atenção Psicossocial, a partir dos contextos da Reforma Psiquiátrica, em
âmbitos locais e macro-regionais, interpola os trabalhadores dos serviços de Saúde Mental a
engajarem-se em práticas centradas na superação dos modelos segregacionistas em função
da doença mental para a emancipação de sujeitos ditos “loucos”, numa perspectiva social
sempre ampliada. Assim, dada a emergente necessidade de promoção, desenvolvimento e
aprimoramento de recursos em Saúde Mental, que gradualmente devam favorecer o processo
de inclusão cidadã das pessoas portadoras de sofrimento mental nos cenários sócio-políticos e
culturais da sociedade organizada brasileira, acredito que a reflexão do presente estudo venha
somar esforços e contribuir na transformação da realidade que, por ora, é apresentada a nós –
trabalhadores da Saúde Mental na construção da Atenção Psicossocial.


   Este trabalho compreende-se como um breve estudo de revisão bibliográfica cuja temática
foi desenvolvida em 05 capítulos. No primeiro é apresentada a concepção ontogênica do
cotidiano a partir de alguns primórdios do estudo da atividade humana, que representará
alicerce para conceber mais amplamente a importância dos processos de fazer como forma de
constituição pessoal, social, cultural, histórica. No capítulo seguinte é iniciada a discussão
sobre o alcance do uso da atividade humana através da óptica da clínica, que se dá pela
evolução das técnicas de atividades - forma primitiva de tratar em Terapia Ocupacional;
outrossim, há correlação do 2º com o 4º capítulo, que se presta a identificar a perspectiva da
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Atenção Psicossocial para as práticas em Saúde Mental contemporâneas. No 3º capítulo é, por
sua vez, onde foi realizado maior aprofundamento revisional teórico do Cotidiano como foco do
estudo; para, então, culminar na reflexão científica da Terapia Ocupacional como Produção de
Vida - veículo para ressignificação do cotidiano em contextos específicos de cuidado, da
clínica ocupacional e dos serviços prestados.


   Sou terapeuta ocupacional, profissional da área da Saúde, habilitado ao exercício na saúde
pública e privada, nos três níveis de atenção, interessado na atuação integral, global e
totalizante do sujeito frente às suas incessantes demandas de bem-estar bio-psicossocial para
lidar com o seu cotidiano de vida – sempre particular e intransferível. O cotidiano é, portanto,
para mim o cerne de todas as possibilidades de ação e perspectivas da clínica – do debruçar-
se sobre outrem no intuito de fomentar cuidados e fronteira para aproximação. A partir deste
engajamento encontro aqui um espaço de reflexão diante dos caminhos que passo a entender
como norteadores do meu trabalho clínico-vivencial através da Terapia Ocupacional na Saúde
Mental.


   Almejo que esta escrita seja um veículo de necessidade e entrelace entre os terapeutas
ocupacionais: profissionais que ousamos fazer e ter de refazer processos de viver todos os
dias, em nossos ofícios práxicos de cuidado, orientados pelo convívio cotidiano.
11



I. O Fazer Humano: Ontogênese do Cotidiano


                                                                        "Tudo é verdade e caminho"
                                                                                 Fernando Pessoa




   O fazer humano, isto é: trabalho, atividades de autocuidado, lazer, recreação, atividades
socializantes, religião, sexualidade, enfim, toda a pluralidade de interferências do indivíduo
diante do que lhe seja externo através de processos culturais serve como atributo para
concebermos o cotidiano da pessoa em sua dimensão histórica e evolucional. O fazer humano
é, assim, atividade contínua de colocar-se como um ser capaz, que pode responder demandas
e solucionar questões com ações transformadoras, permitindo que o indivíduo ocupe um papel
sujeito de sua própria existência, ou seja, o ser é o elemento ativo através de seu fazer -
responsável pelo processo da realização humana sócio-histórica, de vir-a-ser pessoa, cidadão,
singular em seus elementos sociais e culturais.


   A noção teórico-filósofica de fazer humano, objeto de estudo da Terapia Ocupacional, em
sua cientificidade contemporânea, remonta a palavra grega práxis, que se traduz como
atividade, ação, realização. A evolução da Terapia Ocupacional se deu através do uso do
trabalho por determinado paciente, inicialmente empírico, ou ainda nos primórdios do
nascimento da clínica (FOUCAULT, 1980) quando concebida como mera ocupação como
forma de distração ou correção pedagógico-moralizante para, finalmente, constituir-se (hoje)
em a Ciência da Ocupação Humana. De técnicas já consideradas arcaicas como a
laborterapia, a ergoterapia e a praxiterapia - técnica de tratamento usada com doentes mentais
crônicos internados em manicômios visando a utilização do trabalho como ocupação
terapêutica se forma crescentemente complexa (FRANCISCO, 2001), a profissão encontra-se,
desde os últimos vinte anos em atividade de pesquisa profissional sistemática (PÁDUA e
MAGALHÃES, 2003). Neste momento temos que a Terapia Ocupacional consolida-se como a
Ciência da Ocupação Humana, portanto do cotidiano humano.


   O uso de atividades como forma de cura, inicialmente denominada praxiterapia, técnica do
tipo terapêutica ocupacional (no Brasil, com extensiva visibilidade científica na década de 60),
na qual a ocupação terapêutica sempre fora compreendida como: “psicoterapia” de acordo
com Simon foi se dar como logos entre a atividade somática e psíquica” Arruda (1962, p. 15),
desta forma, ocupar através de atividades para utilização na clínica marcou-se como o
primórdio da clínica em Terapia Ocupacional; o que ainda se mantêm como pré-concepção por
instituições e profissionais que conceituam o ofício do terapeuta ocupacional como de
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recreação ou mesmo de ocupação para distração de alienados. Em termos de clínica, este uso
da ocupação como meio psicoterápico e também fisioterápico, portanto recurso terapêutico, foi
no sentido de prover tratamento, por ora empírico e dogmático, para fins morais e espirituais
de acordo com a máxima “corpo são, mente sã”.


    Marcos históricos da Terapia Ocupacional, no que tange à clínica através do fazer humano,
estão relacionados a dois contextos distintos. O primeiro referente às experiências lúdicas das
culturas greco-romanas, nas quais as atividades contemplativas e hedonistas de artes, tais a
música, a leitura, a poesia, os jogos serviam como pilares da organização social e de valores
ético-estéticos naquelas sociedades. Mais tarde, o segundo momento que ainda repercute
considerável influência para a compreensão atual de clínica e cuidado em Saúde Mental,
temos a égide da Psiquiatria incorporando a atividade humana com o uso da ocupação
terapêutica para efeitos ora disciplinadores, educativos, de técnica de “psicagogia” – termo de
Hermann Simon (ARRUDA, 1962) e ora de ressocialização como no caso do Tratamento
Moral de Phillipe Pinel (ARRUDA, 1962). Herança esta, última, que representa o imaginário
do que venha a ser o papel a Terapia Ocupacional e sua contribuição metodológica às
instituições psiquiátricas / de Saúde Mental / de Atenção Psicossocial, portanto, concebido de
forma reducionista ao ocupar por ocupar.


    Portanto, o fazer humano, inerente à espécie humana, primórdio da evolução quando o
homem primata em suas necessidades de sobrevivência na tribo descobriu formas de superar
obstáculos, saciar a fome, subir em árvores para proteger-se e alimentar, construir
equipamentos para manejar desafios do seu ambiente, é resultado da própria evolução e é
também um causador dela. Também é válido ressaltar a natureza lúdica do ser humano cujo
brincar é o seu rudimento mais antigo que a cultura (chamado de Huizinga): “o brinquedo
realiza na imperfeição do mundo e na confusão da vida uma perfeição temporária e limitada”
Arruda (1962, p. 18-19), através do brincar (entendido de forma ampla em termos de
recreação, lazer, ludicidade) se coletiviza saberes no grupo e trocas inter-geracionais, portanto
transmissão de cultura e emancipação da espécie.


    A vida em si é (toda) atividade, é fazer para realizar-se, e o ser cria à medida que se
depara com necessidades de mudar e superar a substancialidade do que vive, enfim. Segundo
Arruda (1962, p. 17) viver é atividade pelo seu “princípio psicofísico da existência humana
oposto à inatividade absoluta que é a morte”. Para Friedrich Niestzche (ARRUDA, 1962) este
princípio era denominado Leistungstherapie: a atividade criadora, princípio finalista do
psiquismo humano, ou seja, atividade que cria e que desenvolve a condição psíquica do
sujeito.
13




   Elementos do tipo: atividade, ocupação, trabalho – termo derivado do tripaliare: um
instrumento de três tranças usado para torturar servos e vassalos chamado de tripálio, de
acordo com Barahona Fernandes citado por Arruda (1962), e ainda exercício ou labor –
correlacionado ao termo do latim labore que se traduz como fadiga, bem como lazer,
recreação, ludicidade e outros múltiplos resultantes das atividades sócio-culturais do indivíduo
irão compor a extensão do que significa o fazer humano, por extensão, o cotidiano.
14



II. Ocupação Humana como Forma de Tratamento: Evolução da Clínica em Terapia
Ocupacional


                                                                "Assim como falham as palavras
                                                    quando querem exprimir qualquer pensamento,
                                                                  assim falham os pensamentos
                                                      quando querem exprimir qualquer realidade"
                                                                              Fernando Pessoa




   Remonta à antiguidade o uso intuitivo das atividades para obtenção de benefícios,
experimentação de técnicas como empirismo e transmissão de conhecimento e cultura. No
entanto, o uso de atividades com intenção terapêutica surge entre os egípcios, datando 2000
a.C. em que as atividades artísticas ou lúdicas eram usadas como entretenimentos em seitas
através de passeios de jardins, cantos, rituais, danças, configurando à atividade humana um
primeiro fim de intencionalidade.


   Em 1030 a.C. Saul, rei de Israel, foi tratado de depressão pelas músicas da harpa de Davi
– primeira cura utilizando a atividade como recurso terapêutico ou mesmo uma técnica de
musicoterapia pioneira. Platão, em “A República” considera a saúde espiritual e corporal
passíveis de serem obtidas e mantidas através da música, do relaxamento e da atividade
contemplativa com o uso da música; Aristóteles, por sua vez, relacionou efeito benéfico da
música a uma catarse emocional, encontrando aí a primeira explicação para o uso de uma
atividade humana de acordo com fim que se destinaria a ela. O valor terapêutico reconhecido à
música foi concebido, originalmente, a partir das considerações de Conidorus e Pitágoras.


   Tais são os precursores do uso de atividades com fins curativos, terapêuticos, paliativos.
No entanto, a concepção que se tem hoje de clínica em Terapia Ocupacional ultrapassa o
limite de prescrições de atividades como recursos isolados em si mesmos para fins
terapêuticos. Vale ressalvar que o termo clínica, na acepção do termo klinus “inclinar-se sobre
o leito” ou ainda klinikós “ leito ou cama, estar ao leito” conforme observações de Paulo
Amarante em seu texto “A (clínica) e a Reforma Psiquiátrica”, remete-nos a um processo
dinâmico, ao qual o ofício do terapeuta ocupacional também evoluiu ao longo dos séculos até
a contemporaneidade.


   O Tratamento Moral Pineliano, de Philippe Pinel, em sua origem moderna do século XVIII,
aplicado inicialmente em 1791, no Asilo de Bicêtre com a proposta de “quebra dos grilhões que
mantinham presos os insanos do espírito” Arruda (1962, p. 25), influenciou o principal método
15



de aplicação num contexto clínico da Terapia Ocupacional. Por se basear numa crença
pedagógica e moralizadora de que o trabalho deveria ser utilizado como elemento
normatizador do funcionamento comportamental e social do portador de transtornos mentais
na instituição asilar psiquiátrica:


                   “A terapêutica ocupacional limitava-se então “aos exercícios metódicos, as
                   distrações e o trabalho, que constituem a base do tratamento moral, deveriam ser
                   ordenados e presididos pelos médicos” Teixeira (1997, p. 315).


   Pode-se apontar que o Tratamento Moral foi implicar numa herança pedagogizante para a
consolidação da Terapia Ocupacional, naquele contexto histórico, uma vez que “imprimia a
marca de seus ensinamentos critérios pelo aprendizado da ordem, do trabalho, da realidade e
da sociabilidade”; Oliveira (2004, p. 4) as atividades eram prescritas conforme uma
necessidade de educar, disciplinar, efetivar coerção e norma à loucura no manicômio –
instrumento de correção pedagógica, de acordo com “a prescrição médica habilidosa” Teixeira
(1997, p. 313), para os alienados mentais, os desvalidos da razão, os contraditórios.


   Faz-se importante apontar, de forma meramente didática, as principais correntes do
pensamento psiquiátrico contemporâneo, que representam os primórdios do paradigma
científico da Terapia Ocupacional, de acordo com Silveira (1966, p. 5-18):


a) Organicismo:


   - Emil Kraepelin admite que a ociosidade agrava e apressa o processo de “demência
precoce”, recomenda trabalhos físicos, jogos de solução fácil, leituras leves. Indicação
terapêutica das fases tumultuosas da doença já instaladas e espera-se a completa ruína moral
e mental do doentes “dementes”. Ocupações não são agentes curativos, meros suportes
elementares, pragmáticos, realizáveis;


   - Bleuler e Simon – nova concepção da demência precoce de Kraepelin agora denominada
de esquizofrenia, que segundo verificou Bleuler reações afetivas intensas com manifestações
tardias. Distinção entre sintomas fundamentais orgânicos e sintomas acessórios psíquicos.
Mudança da atitude do psiquiatra com novas perspectivas e tentativas terapêuticas;


   - Simon – declara-se afinidade de pensamento com Bleuler e foi o pioneiro em constituir
uma concepção teórica sobre o tratamento ocupacional. Associa conceitos psiquiátricos à uma
concepção filosófica de vida – a idéia de logos, sentido de ação regida por sabedoria
(concepção que se encontra no Evangelho de S. João), assim a vida é atividade incessante.
16



Cria seu método de tratamento mais ativo ou tratamento hiper-ativo. Preconizando o uso de
capacidades, como um método educativo, a dita psicagogia, contrária ao laissez faire ou o
“dolce far niente” – sinonímias de ociosidade, portanto inércia. Neste momento, encontra-se a
eliminação do comportamento do louco, uma tentativa de afastamento transitório do que
provoca distúrbios mentais, buscando equipar tal finalidade através da hospedagem do
portador de sofrimento psíquico no hospital psiquiátrico, onde ali as ocupações seriam
escolhidas de forma individualizadas de acordo com os sintomas do paciente, uma espécie de
projeto terapêutico primevo;


    - Carl Schneider – Simon estabelece a ocupação terapêutica como psicoterapia, uma
psicagogia, para Schneider é puramente uma terapêutica biológica. Os exercícios das
atividades para envolver somático e psíquico, totalidade do ser humano. Configurando assim
como um método de pesquisa se dá através do uso da terapêutica ocupacional. Alcançando
um conhecimento profundo e prévio da patologia para uma terapêutica realmente ativa: busca
de entender as leis do dinamismo psíquico, uma aposta para as indicações específicas para
cada doença e para cada síndrome;


b) Pensamento Jacksoniano:


    - o neurologista inglês John Hughlings Jackson estudou funções nervosas e psíquicas
dentro de uma hierarquia estrutural, propôs então sua dissolução das funções nervosas que
poderiam se dar invertidamente do menos organizado para o mais, do mais complexo para o
mais simples, do mais voluntário para o mais automático;


c) Neo-Jacksonianos:


    - Paul Sidavon focalizou sua terapêutica ocupacional na doença mental, na perturbação
das funções de adaptação, onde ocorre dissolução das funções superiores de adaptação
social de acordo com a condição patológica. Encontrar adaptação ao mundo exterior para os
níveis funcionais ainda intactos, assim encontrar e fornecer condições de relações entre os
internos dos asilos / manicômios através de trabalhos vantajosos, úteis, solidários para
reestruturar a personalidade de forma progressivamente elevada. Propôs-se, então, o grupo de
trabalho, escolha de ocupação para sociabilidade do doente, com ritmo de trabalho e uso de
material em ocupações lúdicas, expressivas, cópias e reproduções, criações artesanais e
utilitárias   (nota   nossa:   método,   que   apesar   de   rudimentar,   aproxima-se   mais
caracteristicamente com o que se é praticado hoje em Terapia Ocupacional nas modalidades
de serviços assistenciais de Saúde Mental onde freqüentemente não há garantida a presença
17



de um profissional terapeuta ocupacional devidamente regulamentado para tal exercício;
sendo esta “Terapia Ocupacional” realizada por leigos ou profissionais de nível médio ou
superior de outras áreas do conhecimento);


d) Psicanálise:


   - Sigmund Freud compreendeu o trabalho como um dos melhores meios de deslocamento
da libido, possibilitando satisfação de exigências instintivas e com atividades aceitas
socialmente (sublimação). Assim, a terapêutica seria uma orientação vital à realidade com
execução de trabalhos, através da incorporação sólida do sujeito à comunidade humana. As
atividades seriam indicadas para saciar necessidades libidinosas e que promovam gozo de
aceitação por parte do meio social. Prescritas mediante conhecimento da dinâmica dos
sintomas, afinal “só se pode progredir pelo prazer” conforme Mme. Sechehaye compreende a
atividade que liga o sujeito ao que lhe interessar, neste caso; e há outro uso de atividades
criadoras por Frieda Fromm Reichmann como forma de viabilizar a expressão artística no
contexto psicanalítico;


e) Psicologia Analítica:


   - Carl Gustav Jung, apesar de não usar as terminologias vigentes de ocupação terapêutica
ou mesmo terapêutica ocupacional, estabelece psicoterapia intimamente impregnada de
atividade, onde há segundo Silveira (1996) maior aprofundamento teórico para a sua
terapêutica ocupacional. Atividades ocupacionais escolhidas intencionalmente para solicitar o
emprego de quatro funções: pensamento, sensação, sentimento, intuição. O indivíduo procura
traduzir suas emoções em imagens no caminho de sua cura que é dar forma objetiva às
experiências internas. Considerando nisso os elementos culturais e artísticos como
fenomenologia humana que possam ser estimulados na condução terapêutica.


   A   clínica    na   Terapia   Ocupacional,   finalmente,   relacionar-se-á,   sob   concepção
psicobiológica e interacionista social de Adolph Meyer, ao


                   “reconhecimento de que a saúde de um indivíduo estava vinculada às
                   complexidades das experiências diárias em um mundo físico e social complexo e
                   propunha o enfoque de sua abordagem mais sobre o estilo de vida do homem que
                   sobre sua doença” Oliveira (2004, p. 5).


   Tais concepções psiquiátricas para o uso da atividade como elemento terapêutico, passível
de aplicação clínica, estruturaram assim um primitivo desenho do paradigma científico da
18



Terapia Ocupacional. Paradigma que ali compreendia a atividade humana no centro de
estudos, pesquisas e reflexões deontológicas da profissão, o que contemporaneamente veio
se consolidar mais ampliadamente como a ciência da ocupação humana enfatizando a
vivência, logo o cotidiano do ser, como objeto de estudo e de produção tecnológica.


    A Terapia Ocupacional compreende a saúde “dentro do contexto da vida diária, com seu
equilíbrio de trabalho, repouso, lazer” Oliveira (2004, p. 5), sendo a partir disso, definida como
“a própria Terapia Ocupacional é um processo de mudança através do fazer” Hagedorn (1999,
p.127-149), o que confere caráter inovador e holístico à clínica na concepção da Terapia
Ocupacional. Tal holismo será desenhado através das amplas necessidades humanas,
sensíveis a partir do cotidiano de vidas daqueles aos quais a profissão comprometer-se-á a
cuidar Oliveira (2004, p. 5-6).


    Para Hahn apud Oliveira (2004, p. 6) a abordagem da Terapia Ocupacional, no que se
refere à promoção de saúde, guarda profícua correlação com o cotidiano como seu pilar da
clínica. Aponta ainda:


                  “A promoção da saúde tem a ver com o dia-a-dia saudável, de tal modo que o
                  indivíduo possa usufruir o melhor que a vida tem a oferecer, seja da forma como ele
                  se alimenta ou como ele lida com o stress. É exatamente aí que a Terapia
                  Ocupacional tem a responsabilidade da intervenção em promover a saúde do
                  indivíduo, podendo-se usar as atividades da vida diária (AVD) e atividades da vida
                  prática (AVP) com qualidade, como sinônimo de estilo de vida saudável” Hahn apud
                  Oliveira (2004, p. 6).


    Portanto, a clínica em Terapia Ocupacional é construída a partir do processo complexo de
manutenção, recuperação, adaptação, proteção e ou promoção do cotidiano dos seus clientes
a partir de eixos sustentadores da clínica – áreas de performance ocupacional: 1) trabalho /
atividades produtivas, atividades instrumentais e/ou da vida prática; 2) lazer e atividades
recreativas, atividades sociais e comunitárias; 3) autocuidado e demais atividades da vida
diária.
19



III. O Cotidiano: Fundamentação Teórica


                                                                    “A vida só é possível reinventada"
                                                                                     Cecília Meireles




   O cotidiano concebido como eixo de referência para a composição do presente estudo
monográfico faz-se essencialmente é uma fonte inesgotável de saber para as atuações em
Terapia Ocupacional. Eixo de referência, estrutura axial, cerne da clínica, é o cotidiano em
Terapia Ocupacional matéria-prima para uma clínica que inaugura possibilidades aos sujeitos
para que estes edifiquem sua existência a partir da transformação de seu próprio mundo
relacional do fazer humano; bem como, a estruturação do dia-a-dia de um indivíduo irá
promover sua inserção em contextos relevantes de vida, seja no trabalho produtivo, na
manutenção de autocuidado diário, nas performances da vida prática sócio-comunitária, seja
no lazer ou na atividade criadora que gera linguagem e singularidade sempre emancipatórias.


   Cotidiano é o alicerce para o desenvolvimento das potencialidades humanas nos contextos
de vida significativos para a pessoa e, portanto, suas relações existenciais com aquilo que lhe
seja a priori relevante, ou seja: que lhe seja causador de realização pessoal, de enfrentamento,
de causalidade de escolhas, de manutenção de independência, promoção de autonomia,
superação de limites, reconhecimento de potenciais e alargamento de compreensões diante de
si mesmo. A Terapia Ocupacional vem trazer ao dia-a-dia das pessoas, que procura ajudar,
formas de inovar e superar demandas, para que possibilidades sejam incorporadas ao
desempenho de um sujeito em atividades significativas. Eis que a Terapia Ocupacional
interessa-se por abordar o ser humano em suas interfaces relativas ao seu contexto de vida
(intrínseco ou extrínseco do sujeito e dos grupos), utilizando uma avaliação de uso de lentes
sistêmicas holísticas, para alcançar inovação de concepções para a saúde e a propor
caminhos para o sujeito, na clínica, de maneira singular em sua terapêutica de vir-a-ser.


   O cotidiano é por excelência o ferramental de trabalho próprio do ofício de terapeuta
ocupacional.


                  “Sempre faz parte do repertório da Terapia Ocupacional a atenção às experiências,
                  às produções, às narrativas dos sujeitos envolvidos (...) nestes contextos variados,
                  nas situações cotidianas é ou tem sido, na prática do terapeuta ocupacional, juntar
                  os pedaços, costurar os retalhos, os fragmentos, os ‘fios de Ariadne’ da vida desses
                  sujeitos envolvidos nas ações” Oliveira (2004, p. 11).
20



   Tendo como finalidade uma ação cuidadora, num contexto clínico, portanto terapêutica:


                  “para o terapeuta ocupacional, que tem, entre seus princípios, que o fazer / trabalho
                  é um organizador do comportamento humano e que, usado terapeuticamente,
                  produz uma organização do comportamento cotidiano” Oliveira (2004, p. 12).


   O que irá construir a clínica para e pelo cotidiano, esse seu pilar diante o objeto maior de
estudo que é a ocupação humana “uma viagem de autoconhecimento na reconstrução de sua
biografia” Oliveira (2004, p. 13).


   Numa perspectiva filosófica temos que o cotidiano seja todo o modo de fazer, a vivência do
ser, uma característica ontológica inerente ao ser social na sua dimensão cotidiana, intrínseca
às objetivações genéricas das formas de pensamento e ação, pelos quais, o indivíduo se
relaciona imediatamente com o mundo à sua volta (HELLER, 1989, 1994). O cotidiano é a
estrutura de referência de promoção e continuidade da vivência de qualquer pessoa. Em
Terapia Ocupacional há a retomada desta instância para a promoção da clínica que se
compromete com a edificação da autonomia do sujeito. Assim, identificar o cotidiano do cliente
e dali propor intervenções que resgatem bem-estar, que promovam habilidades para o ser se
fazer, que identifiquem limites a serem ampliados se torna o desafio criador da Terapia
Ocupacional, são ações que corroboram para a visibilidade de sua especificidade científica.
Nos dizeres do terapeuta ocupacional Luiz Gonzaga Pereira Leal:


                  “itinerário que conduz a esse ‘centro’ está permeado de obstáculos e que tão bem
                  se encontram desenhados nas circunvoluções, muitas vezes complicadas e
                  confusas, que o paciente exerce para nele ancorar-se. Podendo, a exemplo do
                  ‘labirinto’, adentrá-lo e dele regressar, tendo o ‘centro’ do mesmo como ‘marco e
                  guia’” Leal (2005, p. 27).


   Assim, o cotidiano reproduzido na clínica da Terapia Ocupacional através de dispositivos
grupais como as oficinas terapêuticas, os grupos de atividades ou os grupos terapêuticos, será
dimensionado num contexto socializante, portanto, promotor de possibilidades de inserção
social e pertencimento ao grupo / entrelaçamento interpessoal e processos de vínculos.


                  “Nas situações dos grupos de Terapia Ocupacional, a interação com o outro é tanto
                  marcada pelas narrativas das histórias dos fazeres cotidianos como pela
                  reconstrução destes fazeres, uma vez que isto traz a possibilidade de uma
                  ressignificação da realidade com muito mais premência do que outras situações”
                  Oliveira (2004, p. 14).


   A Terapia Ocupacional, através de suas diferentes metodologias (avaliação do histórico
ocupacional, análise do processo de atividade, prescrição de atividades ditas terapêuticas,
treino das atividades da vida diária, da vida prática e/ou instrumentais da vida diária, do
21



manejo da psicoterapia ocupacional com o uso de atividades livres, criativas e expressivas),
veio evidenciar, no campo da Saúde Mental, uma prática legítima do fazer humano que gera
transformações de sujeitos para a clínica e a Atenção Psicossocial.


   A atividade humana utilizada na clínica é a dinâmica totalizante dos sujeitos em suas
relações consigo, com o outro e com o mundo, num processo, por excelência terapêutico
ocupacional, incessante de transformação, autoconhecimento e inserção social. Portanto, é
possível depreender que “a principal importância da Terapia Ocupacional reside no fato de se
oferecerem ao paciente oportunidades de intervir na realidade externa segundo sua intenção,
vontade e com liberdade” Jorge (1990, p. 13) estabelecendo-se, então, “como sendo um modo
crítico-laborativo das relações humanas” numa perspectiva psicoterapêutica Jorge (1981, p.
84).


   Nesta mesma concepção psicoterapêutica da Terapia Ocupacional, tem-se que o indivíduo
ao fazer passa a se modificar, atualiza-se naquilo que o objeto o informa de seu processo de
fazer e autodescoberta; portanto, espécie de relação na qual o ser se reconhece no processo
de fazer e no produto um conhecimento próprio sobre si mesmo - daí vai estabelecer com o
cotidiano um universo relacional mediado por processos de fazer, de mudança, de utilização
do princípio de liberdade e de criação através da atividade humana na clínica ocupacional.


   Tendo no cotidiano seu eixo de saber e atuação - desta forma, tecnologia, que é a
aplicação deste saber, nos serviços e demais dispositivos de ajuda onde é convocada a
contribuir, a Terapia Ocupacional se constrói de forma complexa ao se debruçar no fazer
humano como objeto de estudo (BARTALOTTI e DE CARLO, 2001) e o cotidiano, finalmente,
faz-se a matéria-prima de toda a substancialidade de sua clínica, numa dinâmica desafiadora
que


                  “em cada momento histórico e em cada realidade social, terapeutas ocupacionais
                  depararam com transformações que se por um lado influenciaram suas ações, por
                  outro exigiram que novas ações fossem propostas, novos olhares fossem
                  construídos” Bartalotti e De Carlo (2001, p. 173).


   A Terapia Ocupacional segue seus caminhos e descaminhos, ao adaptar atividades
humanas e processos de fazer, ampliar possibilidades de ação individual e/ou manejos de
interação entre sujeitos na clínica, à medida que conota sua preocupação com o universo
relacional humano na eleição de que o cotidiano é o meio pelo qual vai emancipar a pessoa
humana diante o processo de superar e realizar-se.
22



   Interessa-nos deste momento em diante compreender o contexto da Atenção Psicossocial
para refletir no cotidiano como eixo norteador para as práticas da Terapia Ocupacional, em sua
clínica na Saúde Mental: possibilitar reflexão e pontos de diálogo.
23



IV. A Atenção Psicossocial: Campo de Práticas da Reforma em Saúde Mental


                                                                 “Todo terapeuta que queira estar
                                                            à altura dos desafios de nossa época
                                                                   precisa desenvolver a maestria
                                                                          para facilitar que o outro
                                                           desperte o seu próprio mestre interior”
                                                                                 Graf Dürckheim




   Dar-se-á prosseguimento ao presente estudo monográfico, considerando, deste marco
adiante, a transformação do Modelo Hospitalocêntrico-Manicomial (Segregacionista) no de
Assistência em Saúde Mental, que de acordo com Galletti (2004) caracteriza-se por um
complexo de ações que incluem: - rompimento da estrutura asilar segregacionista (física e
ideológica); - redução das internações manicomiais tradicionais (mudanças estruturais no
sistema de saúde brasileiro); - criação de propostas para valorização do processo de
subjetivação (ampliação e diversificação das ações multi, inter e transdisciplinares em Saúde
Mental); - inovações de tecnologias terapêuticas e experiências grupais – surgimento das
oficinas terapêuticas a partir da Terapia Ocupacional e incorporadas ao sistema público de
saúde de forma ampliada. Entende-se, aqui, que as oficinas serão dispositivos de maior
repercussão do cotidiano dos usuários de Saúde Mental, em função da oferta em maior
número nos serviços e serem elas a principal ferramenta de organização das ofertas nas
modalidades assistenciais psicossociais.


   Introdutoriamente é possível fazer uma caracterização das ditas Oficinas Terapêuticas
(GALLETTI, 2004): - não há um universo homogêneo de intervenção clínico-terapêutica, nem
mesmo um único tipo de objetivação para as ações ali realizadas; - não há um único regime de
produção; - multiplicidade de formas, processos e linguagens, portanto de produção de
saberes e trocas clínicas; - suposta liberdade nas novas invenções para a Clínica de Saúde
Mental; - naturalização de práticas em oficinas veio correlata à destruição da prática
manicomial-hospitalocêntrica; as oficinas estruturam-se à medida que o manicômio foi sendo
desconstruído.


   As oficinas terapêuticas surgiram como dispositivos de socialização e / ou agrupamento e
foram eleitas como o dispositivo da Atenção Psicossocial que se identificam como espaços de
o homem se fazer, portanto, cotidiano institucional onde é produzida a vida e reproduzidas
formas de vivências – objetivo próprio e particular da Terapia Ocupacional que foi ampliado e
incorporado à lógica da assistência da Atenção Psicossocial. Segundo o terapeuta ocupacional
24



Ronaldo Guilherme Vitelli Viana, do Grupo de Estudos Profundos de Terapia Ocupacional -
GES.TO (nota nossa: trata-se de um grupo de renome especializado na formação continuada
de terapeutas ocupacionais de acordo com a orientação do Professor Rui Chamone Jorge,
inestimável estudioso da área de Terapia Ocupacional e Psicoterapia Ocupacional, em Belo
Horizonte / MG), a oficina é o espaço de o homem se fazer, é na clínica o ferramental para o
indivíduo conhecer a si mesmo, fazer na vida, fazer para a vida, produzir a si mesmo e
estabelecer relações significativas para o seu cotidiano a ser emancipado, logo, a Terapia
Ocupacional estabelece, assim, sua clínica para emancipação humana através do fazer e do
cotidiano.




   O termo oficina que tem etimologia no Latim: officina, palavra relativa ao universo do
trabalho, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio - Século XXI, [Do lat. officina.] significa:


                  - “S. f.
                   1.      Lugar onde se exerce um ofício.
                   2.      Lugar onde se fazem consertos em veículos automóveis.
                   3.      Dependência de igreja, convento, etc., destinada a refeitório, despensa ou
                  cozinha.
                   4.      Fig. Lugar onde se verificam grandes transformações

                  - Oficina pedagógica. Educ. Esp.
                   1.      Ambiente destinado ao desenvolvimento das aptidões e habilidades de
                  portadores de necessidades especiais, mediante atividades laborativas orientadas
                  por professores capacitados, e em que estão disponíveis diferentes tipos de
                  equipamentos e materiais para o ensino ou aprendizagem, nas diversas áreas do
                  desempenho profissional” (FERREIRA, 1999).




   Desta forma, compreende-se a abrangência que o termo implica no que se refere a um
dispositivo de ações para a Saúde Mental. As Oficinas Terapêuticas conceituadas como
espaços das oficinas, onde são realizadas atividades, relacionam-se às ênfases em: trabalho,
ofício, ferramenta, instrumento, atividade, indústria, arte e profissão (GALLETTI, 2004).
Necessidade de atuar diante dos usuários de Saúde Mental numa perspectiva de Atenção
Psicossocial e constituir as intervenções para uma clínica ampliada em Saúde Mental, além de
estabelecer um universo de significação através da prática de oficinas que sustente a proposta
terapêutica ou clínica. Oficinas se tornam práticas de produções de saber, com interfaces na
cultura, no social / cidadania e na humanização do cuidado e vão consolidar-se na oferta dos
dispositivos da reforma em Saúde Mental brasileira.
25



    Ainda no país, as oficinas ganham maior vitalidade e visibilidade a partir da década de 70
(GALLETTI, 2004), em especial ao pioneirismo da Drª. Nise da Silveira* - célebre psiquiatra
brasileira que por sua práticas anti-psiquiátricas, em sua terapêutica ocupacional humanitária e
revolucionariamente inclusiva, atemporal, marcou definitivamente um diálogo entre cuidado,
terapia, arte e processos de fazer para a Saúde Mental.                Neste contexto do surgimento
histórico das oficinas, há um questionamento quanto à hegemonia dos saber médico centrado
(Psiquiatria) que poderia ser discutido através da produção dos pacientes nas ditas oficinas.
Mais tardiamente, houve a busca de profissionais com outras formações no que tange à
utilização de oficinas como métodos favoráveis à humanização da assistência em Saúde
Mental e que suscitassem a descronificação de paciente, que inicialmente ainda foram
tentativas e experiências isoladas, mas representaram tentativas de modernização de
tratamento e equipamentos institucionais em Saúde Mental nacionalmente.


    Paralelamente ao surgimento das oficinas terapêuticas há mudança no panorama brasileiro
com o acirramento da Reforma Psiquiátrica e da Abertura Política no país. Agravam-se na
ocasião o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental através de denúncias, produções
artístico-jornalísticas com grande visibilidade na mídia e nos meios acadêmicos. O que
também repercutiu na mobilização de familiares e outros movimentos comunitários associados
à causa da Saúde Mental, representando uma ampliação da postura revolucionária de meados
da década de 70.


    Soma-se ao panorama a luta de trabalhadores contra a exploração capital, o choque entre
organismos governamentais e não-governamentais, e as tentativas de constituição de políticas
públicas de Saúde Mental para a desconstrução do paradigma psiquiátrico, asséptico,
normalizador e excludente (GALLETTI, 2004): este é o cenário do nascimento da Reforma
Psiquiátrica e da Saúde Mental.



* Drª. Nise da Silveira foi um dos maiores expoentes da história da Psiquiatria brasileira, exercendo
grande influência para a concepção da Terapia Ocupacional em sua atuação em Saúde Mental.
Psiquiatra alagoana de uma personalidade única, que ao propor práticas humanitárias contrárias
àquelas vigentes da Psiquiatria - limitadas ao uso indiscriminado de psicotrópicos e métodos de
contenção físico-química, inaugurou um panorama de pesquisa científica sobre a Psique. Alcançou,
assim, tamanha repercussão ao propor e conduzir o tratamento das doenças mentais pelo uso de
atividades criativas associado aos processos de lidar, através das emoções e a subjetividade dos
pacientes internos das instituições manicomiais. Definitivamente uma dita ousadia jamais concebida até
então no país. Sua indispensável biografia pode ser apreciada em artigos como: -“A Biografia de uma
Pioneira”, pelo poeta Ferreira Gullar, para o Jornal Folha de S. Paulo, em 1963; - “Nise da Silveira -
Homenagem a uma Guerreira da Luz”, pela psicoterapeuta Teresa Vignoli, além de sua própria
publicação, que inclui, dentre vários, os títulos: “Jung, Vida e Obra”, “Terapêutica Ocupacional - Teoria e
Prática”, “A Emoção de Lidar”, “Imagens do Inconsciente” e o “Mundo das Imagens”. Indica-se,
oportunamente, outro profícuo registro de sua historicidade e obra no sítio eletrônico:
www.museuimagensdoinconsciente.org.br/
26




   Já na década de 80, o Brasil assiste a elaboração de: “POR UMA SOCIEDADE SEM
MANICÔMIOS” – incisiva temática do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, proferida
em um Encontro Nacional de Saúde Mental. Tal temática iria se consolidar como a
configuração de todo o ideário brasileiro reformista na área psiquiátrica, em especial na criação
da Atenção Psicossocial e na influência da formação profissional dos diversos atores
envolvidos com a produção da Reforma. Assistiu-se em São Paulo a inovação de serviços
pioneiros de Atenção Psicossocial em São Paulo, Santos, mais tardiamente em Belo
Horizonte, a partir de 1982, 1989 a 1996, São criados os Centros de Atenção Psicossocial -
CAPS, os Núcleos de Atenção Psicossocial - NAPS, as unidades básicas de saúde UBS’s
(“centros de saúde”) estruturam-se com as primeiras equipes de Saúde Mental, são também
estruturadas as Unidades de Emergências Psiquiátricas, as Enfermarias de Saúde Mental e a
Saúde Mental Hospitalar, os Hospitais-Dia em Saúde Mental, os Centros de Convivência e as
Cooperativas solidárias do trabalho e geração de renda em Saúde Mental. Enfim, o cenário
para o movimento reformista brasileiro foi sendo equipado de forma intensa com a abertura
política brasileira e a formulação do Sistema Único de Saúde – SUS.


   Em Belo Horizonte / MG a criação dos Centros de Referência em Saúde Mental –
CERSAM’s, deu-se de acordo com o território microrregionalizado da capital mineira, com
inspiração antimanicomial, segundo os dizeres de Osvaldo Giacoia Júnior, atribui na
experiência mineira um diferencial à Atenção Psicossocial:


                  “a luta manicomial implica necessariamente a politização da clínica – uma clínica
                  que é essencialmente do cuidado, feita à contracorrente da alegada auto-suficiência
                  da medicalização terapêutica da doença mental grave, que se pretende apolítica,
                  inebriada com a suposta onipotência dos modernos psicofármacos” Giacoia Júnior
                  (2003, p. 10).


   Assim, a clínica antimanicomial a partir da Reforma Psiquiátrica brasileira, sobretudo a
mineira, almeja “politizar o espaço da clínica e agenciá-lo na luta pela transformação de
nossas relações com a loucura” Giacoia Júnior (2003, p. 11).


   A Atenção Psicossocial com os projetos pioneiros em São Paulo do Centro de Atenção
Psicossocial Prof. Luiz Cerqueira e do Núcleo de Atenção Psicossocial de Santos, a partir de
1987, tem seu escopo para a caracterização dos novos serviços de Saúde Mental já
comprometidos com a lógica integral:


                  “a assistência é definida como de atenção integral (no sentido psicossocial),
                  personalizada, exercida através de “programas de atividades psicoterápicas,
                  socioterápicas de arte de terapia ocupacional” dentro de um enfoque multidisciplinar
27



                   e pluri-disciplinar. A doença mental deve ser pensada no campo da saúde coletiva,
                   levando-se em conta os contextos micro e macro social, como a família, o trabalho e
                   seu contexto histórico, tentando produzir uma reinterpretação de elementos
                   culturais” Amarante e Torre (2001, p. 29).


   Neste sentido, pode-se inferir que a Atenção Psicossocial representa um processo de
aquisição a partir de interfaces com a produção de uma nova cultura:


                   “do lado dos chamados novos dispositivos assistenciais (...) um CERSAM, um centro
                   de convivência e uma moradia protegida não são, nem se propõem a ser, espaços
                   que refletem ou reproduzem as conquistas científicas de nosso tempo; são
                   inovações da cultura que inscrevem num outro registro” Lobosque (2003, p. 153).

   Sendo aqui uma possibilidade de questionamento, portanto de proposição, a partir da
concepção da clínica antimanicomial da psiquiatra mineira Ana Marta Lobosque: - este outro
registro perpassa o cotidiano dos usuários dos serviços de Saúde Mental como um qualificador
da clínica em Saúde Mental com ênfase na Atenção Psicossocial? A autora aponta-nos uma
espécie de lema:


                   “aos serviços substitutivos, cabe romper com esta antipática posição de razão diante
                   da loucura; serão novos se, e apenas se, buscarem para o sofrimento psíquico um
                   lugar de cidadania” Lobosque (2003, p. 154),


logo, o presente estudo irá identificar quais os elementos da Reforma Psiquiátrica, em especial
da construção da Atenção Psicossocial, mais se articulam com a proximidade deste “lugar de
cidadania”, buscando apontar respostas que a Terapia Ocupacional encontrou em si a partir do
eixo no cotidiano como produção de clínica e a clínica militante como almejo da categoria de
seus profissionais.


   Rede de Serviços, ditos substitutivos ao Modelo Manicomial, de acordo com a necessidade
de desconstrução do Modelo Asilar-Manicomial, foram articulados entre si, com equipes
multiprofissionais em todos os projetos, fortalecimento da rede de funcionamento extra-
hospitalar, territorialização dos serviços de Saúde Mental, abertura de dispositivos para
atender vários níveis de complexidades. Lógica substitutiva para enfrentar a segregação.
Assim:


                   “tornar cada vez mais fluidas, mais transitáveis, mais flexíveis, as fronteiras entre as
                   instituições destinadas a eles [portadores de sofrimentos mentais] e a sociedade
                   onde se desenrola a vida e o destino de todos nós, loucos ou não” Lobosque (2003,
                   p. 17).
28



   Desafiando-se à construção na desconstrução do modelo asilar segregacionista,
assistencialista manicomial e hospitalocêntrico em uma clínica da Saúde Mental, com ênfase
na política antimanicomial e na Atenção Psicossocial como eixo de cuidados – “retirar a clínica
da Saúde Mental de sua tradicional função de controle social, feita em nome dos ditames
técnicos e científicos, para colocá-la a trabalho da autonomia e independência de pessoas”
Lobosque (2003, p. 20), sobretudo àquelas privadas do convívio social durante internações
crônicas longuíssimas em instituições asilares manicomiais nacionais.


   Neste momento histórico, terapeutas ocupacionais são convocados a desenvolver
trabalhos de readaptação social, com vieses de reinserção sócio-comunitária, mas ainda
fortemente marcados por uma concepção organicista de adaptação, conserto, manejo de
seqüelas com as quais os indivíduos egressaram dos manicômios voltaram totalmente
despreparados para o laço na vida fora dos muros. Mais tarde veremos a preocupação da
Terapia Ocupacional através das suas primeiras experiências de acompanhamento terapêutico
externo, na comunidade e no território, dos egressos de longas internações psiquiátricas, como
produção de uma aposta na emancipação dos sujeitos através da circulação social e da
ampliação de redes e suportes sociais.


   A Terapia Ocupacional como produção de laços sociais e possibilidades de inserção no
grupo, a partir dos dispositivos de oficinas terapêuticas, de produção, de geração de trabalho e
renda: priorização do fazer do portador de sofrimento psíquico no seu cotidiano, assim
constituído, seja ele institucional ou sócio-familiar em função de um processo de emancipação,
que culmina com graus de autonomia e independência para ampliação da participação na vida
social.


   Tal lógica psicossocial na Terapia Ocupacional assemelha-se ao que Lobosque (2003, p.
166) enfatizou na “luta política: a luta antimanicomial aí se situa, com seu importante lugar no
cenário brasileiro das políticas de emancipação”. A autora ainda explicita:


                  “criar na cidade um tipo de funcionamento e de trânsito, de produção e de trocas,
                  que afirme entre todos os homens, loucos ou não, esta igualdade negada, não me
                  parece ser uma questão, digamos, setorial, uma questão exclusivamente da Saúde,
                  ou da Saúde Mental: creio tratar-se de uma crucial questão política” Lobosque
                  (2003, p. 166);


neste lugar encontramos a preocupação da Terapia Ocupacional em produzir sua clínica
militante através da promoção do cotidiano, portanto, destes fazeres e enlaces sócio-políticos
dos indivíduos, em grande relevância com a proposta da Atenção Psicossocial - aqui exposta
neste trabalho monográfico.
29




   A Reforma Psiquiátrica brasileira esboça seu projeto de Saúde Mental e luta
antimanicomial através da militância - “projeto de uma sociedade sem manicômios, para fazer-
se valer, necessita de movimentos sociais que se constituam com independência e
mantenham acesa a combatividade” Lobosque (2003, p. 49). Dentro do movimento de
trabalhadores da Saúde Mental a crítica aponta para a necessidade de erradicar resquícios de
uma clínica voltada para um ortopedismo mental (nota nossa: neologismo utilizado pelos
militantes da luta antimanicomial ao se referir ao manicômio mental que favorece segregação e
exclusão social dos indivíduos portadores de sofrimento mental), o que em Terapia
Ocupacional viu-se a gradual superação da clínica centrada nos sintomas, nos desajustes dos
componentes psíquicos a partir dos transtornos mentais diversos para uma clínica engajada
com a emancipação cotidiana dos sujeitos em processos de empoderamento de si mesmos,
através do fazer terapêutico, e no estabelecimento de novas conquistas do laço social seja no
acompanhamento terapêutico de circulação social, seja na estruturação das oficinas
terapêuticas como o espaço de o homem se (re)fazer.


   No que tange à estruturação da Política Pública de Saúde Mental, as oficinas terapêuticas
sofreram nova concepção:


                 “Todos os dispositivos que usam de alguma forma o trabalho como instrumento
                 terapêutico (...). Um dispositivo quase sempre experimental, que não segue uma
                 fundamentação teórica rígida, nem modelo padrão de funcionamento, um dispositivo
                 que é essencialmente constituído no quotidiano por seus pacientes e técnicos”
                 Lopes (1996, p. 78-82) apud Galletti (2004, p. 31).


   Nesse contexto, as oficinas passaram a coabitarem-se como mecanismos de manutenção
para uma efetivação da política pró-Saúde Mental. Foram se constituindo obedecendo alguns
aspectos: - articulação de uma demanda no campo “reabilitador” Lopes (1996, p. 78-82) apud
Galletti (2004, p. 31), as experiências de Terapia Ocupacional apontariam, então, as oficinas
como espaço privilegiado de reaprendizados, de readaptação frente à exclusão experimentada
nos períodos das grandes internações; - ofertas criadas com ligação direta ao trabalho, uma
vez que terapeutas ocupacionais priorizaram a ênfase na atividade produtiva, remunerável,
como forma de inserção da clientela marginalizada, visando sua reintegração e também
sobrevivência material; - produção de recursos financeiros para os usuários, estruturação da
inserção / reinserção do sujeito à sociedade através de redes de apoio ao trabalho protegido e
/ ou solidário, num viés institucional, pouco emancipador naquela ocasião; - encontro entre
trabalho e função social através da terapia, contribuição mais significativa da Terapia
Ocupacional no que se refere à expansão das oficinas no sistema público de saúde brasileiro.
30



   Neste momento observa-se um fenômeno de ampliação da participação do portador de
sofrimento psíquico no campo social, com ampliada a assistência de forma dinâmica, como
também sustentação dos processos coletivos e solidários do trabalho.


   Enuncia-se, então, que “as oficinas foram estruturando-se de forma expandida na Saúde
Mental encontrando no viés terapêutico sua característica mais visível” Rocha (1997, p. 29)
apud Galletti (2004, p. 33). Observa-se assim a supremacia da terapia (nota nossa: aqui não
se refere à especificidade da Terapia Ocupacional, e sim ao genérico do termo; quando o
dispositivo de oficina começou a se relacionar ao estatuto terapêutico) em relação aos outros
campos de saber, utilização de diversificados ditos recursos terapêuticos como modalidades
para a promoção da Clínica em Saúde Mental, como as redes de suporte social e a
participação dos familiares.


   As oficinas terapêuticas vão contribuir aí para a diferenciação entre clínica entendida pelo
conceito de instituição de assistência à Atenção Psicossocial e situando a terapia como seu
instrumento privilegiado. Uma vez que a relação de trabalho e artes nas oficinas produz
inserção no coletivo não só para pacientes portadores de sofrimento psíquico como qualquer
ser humano: produção de arte e da vida material, sendo assim interessou-se ampliar o método
terapêutico ocupacional como produtor de ações para toda a Saúde Mental, assistiu-se aí uma
descaracterização das oficinas como um domínio de saber e aplicação tecnológica exclusivos
do terapeuta ocupacional.


   Tais oficinas passam a se caracterizar como veículos para a produção de intercessores
clínicos para a Saúde Mental:


                  “Esses espaços [das ditas oficinas] têm promovido na desestabilização nos
                  enquadramentos específicos de cada área. Nos espaços de oficinas, estão
                  envolvidos profissionais de diversas origens – Psicologia, Terapia Ocupacional,
                  Fonoaudiologia, Serviço Social, que não seguem uma corrente específica, mas
                  geralmente estão comprometidas a propiciar aos usuários na gama de
                  experimentações sociais e, a partir daí, criar possibilidades diversificadas de ser e
                  estar-no-mundo” Galletti (2004, p. 36).


   Estes dispositivos vão formatar uma diversidade de possibilidades de ações sempre com
espaços clínicos que valorizaram o hibridismo, a mobilidade, a instabilidade (mutabilidade de
estruturas e ofertas), sem identidade única, com experimentação múltiplas e incessantes,
interseção com vários campos e saberes, espaço agora pouco restrito quanto à especializada
profissional, dando possibilidade de problematização e descontinuidade das produções
31



terapêuticas, com nova cultura de intervenções e escapismo do modelo segregacionista
normalizador.


   A Terapia Ocupacional, por sua vez, vai se apropriar, como veremos adiante no presente
estudo monográfico, das oficinas como espaço para a produção de vida cotidiana, da vida
diária humana. As oficinas produtivas, ou ainda oficinas de trabalho, são aquelas que o
terapeuta ocupacional media processos de fazer em que as relações com o trabalho, as
funções produtivas, os ofícios, portanto, são (res)significados numa dimensão emancipatória
do fazer humano.


                   “O trabalho, na vida adulta, é o mediador central da construção, do desenvolvimento
                   e complementação dessa identidade e do indivíduo, na medida em que o confronta
                   com um mundo externo, com lógicas, desafios, regras e valores que
                   necessariamente se chocarão com a história singular de cada um” Lancman (2004,
                   p. 73).


   Deste modo,


                   “(...) o trabalho tem esta função central na produção da identidade e é um elemento-
                   chave na constituição psíquica dos indivíduos (...), o trabalho, aquilo que se faz, a
                   relação com todos os aspectos que o envolvem, produz a inteligência, modifica o
                   corpo, as relações sociais e constitui o indivíduo psiquicamente. Neste sentido, o
                   trabalho é entendido como um continuum, que se estende para além dele e
                   influencia todas as esferas da vida humana” Lancman (2004, p. 74).


   As oficinas em Terapia Ocupacional guardam um aspecto significativo dado à socialização
e ao agrupamento dos indivíduos, de aporte à reinserção de usuários e parcelas sociais
estigmatizadas e ou deficitárias em termos de aceitação social. São oficinas ditas de
convivência para combater “o isolamento, a ruptura com o social e a impossibilidade de
coletivizar experiências pessoais, é o produtor de sofrimento psíquico” Leal (1999, p. 79) apud
Galletti (1994, p. 65), que se importem em valorizar a diversidade de atividades e propostas
para o fazer, que se articulem com o funcionamento institucional para acolhimento de
demandas encaminhadas de usuários da Rede de Saúde Mental. As oficinas de Terapia
Ocupacional, historicamente, vão demonstrar recusa sistemática dos profissionais para que a
clínica ocupacional não seja vista como mera técnica, ou com um aporte teórico único,
destinada ao entretenimento, à distração e ao combate ao ócio excessivo dos usuários nos
dispositivos públicos da Saúde Mental, uma vez que os terapeutas ocupacionais se
propuseram a estruturar o seu saber através da atividade humana aplicada aos contextos da
vida diária, ao cotidiano, à ocupação em termos de funcionalidade, papéis, desempenhos
cotidianos. Por isso não há o interesse
32



                    “de propor uma técnica terapêutica para resolver os problemas das demais técnicas,
                    e sim problematizar, promover estratégias particulares, singulares, que digam
                    respeito aos problemas também circulares que a clínica nos propõe” Neves et al
                    (1996, p. 183) apud Galletti (2004, p. 85).


E a Terapia Ocupacional vai se comprometer com sua clínica dita pelos profissionais da área
como militante, transdisciplinar (idem) e holística, uma vez que é erguida para e pelo cotidiano
dos indivíduos.


                    “Preocupada com a criação de novas maneiras de viver, uma clínica que se
                    ocupasse das produções do inconsciente para além de uma pura fantasmagoria,
                    tiranias da intimidade)” Neves et al (1996, p. 183) apud Galletti (2004, p. 85)


essas experiências foram efetivadas na área comprometidas com o viés aglutinador das
oficinas.


   Um exemplo relevante foi aquele em que os terapeutas ocupacionais da Universidade de
São Paulo propuseram a criação do Espaço Lúdico Terapêutico - ELT (parceria entre
Universidade, Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, daí articularam com profissionais
de outras áreas, dentre elas Psicologia e Fonoaudiologia, estratégias para atendimentos de
crianças, famílias, adolescentes, internações, alcançando assim uma atuação para o fora
institucional em prol de estabelecimento de parcerias em redes mútuas de ação.


   Tais oficinas, neste contexto, foram traçadas com o caráter de organização entre o social e
o indivíduo para intermediar totalidades, em que se reconhece o holismo da visão de homem e
saúde em Terapia Ocupacional. Foi no ELT que as identidades sociais tornaram ampliadas
pelo lugar de os ditos “normais’ e “loucos” conviverem, se dando aos encontros entre
terapeutas e pacientes como cidadãos. A Terapia Ocupacional ali desenhada como o lugar de
trabalhar e a sua oficina é um laboratório de produção de vida e da vivência (sócio-cultural,
grupal). A instituição é transformada em um renovado dispositivo social, criação de uma função
articuladora, tem sua proposta ampliada para toda a rede de atenção à Saúde Mental na
capital paulista.


   As oficinas em Saúde Mental contemporâneas (GALLETTI, 2004), produzidas nos serviços
de Atenção Psicossocial, podem ser caracterizadas por: - profusa heterogeneidade / hibridismo
de práticas; - outras intervenções da clínica (com a incorporação de diferentes modalidades de
especialistas); - oficinas não se dão atreladas a nenhum paradigma científico isolado; - há
precariedade constitutiva de dispositivos – constituídos na conexão de diversos saberes; -
extravasamento de fronteiras científicas para elevação da experiência clínica; - potente espaço
33



de experimentação; - efetuação da transdisciplinaridade. - possibilidades de experimentar
bordas e limites criando novas formas de subjetividade; - subversão de padrões majoritários de
assistência à Saúde; - não estão limitadas ao terreno da Saúde Mental; - operar com encontros
híbridos nos espaços clínicos; - afinidade grande da prática expansiva de oficinas com os
postulados da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial; - instrumento intercessor para
ocupar lugar terapêutico de originalidade, singularidade, sem rigor de práticas assistenciais
(GALLETTI, 2004).
34



V. Terapia Ocupacional e o Cotidiano Ressignificado: Produção de Vida


                                                                                 “A alma é um cenário.
                                                  Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
                                                                                   inundada de alegria.
                                                                  Por vezes, ela é como um pôr do sol,
                                                                                     triste e nostálgico”
                                                                                          Rubem Alves

                                                                                “Ao produzir o mundo,
                                                                          o homem produz a si mesmo”
                                                                                       Marx e Engels




   A Terapia Ocupacional, finalmente, entendida como Ciência da Ocupação Humana,
portanto tendo como primordial preocupação a própria experiência humana, anuncia que:


                  “a atividade humana seja entendida como espaço para criar, recriar, produzir um
                  mundo humano. Que esta seja repleta de simbolismo, isto é, que a ação não seja
                  meramente um ato biológico, mas um ato cheio de intenções, vontades, desejos e
                  necessidades (...); não basta fazer, fazer e fazer, acreditando que o simples curso
                  das coisas com isso se modifique. O fazer deve acontecer através do processo de
                  identificação das necessidades, problematização e superação do conflito [nota
                  nossa: no cotidiano mais significativo do indivíduo] (...) é necessário um profissional
                  preparado, cuja tarefa é a de se dispor, também, como instrumento terapêutico ou
                  recurso terapêutico, com o propósito de incomodar, de ativar e revelar o conflito para
                  a sua proposição” Francisco (2005. p.17).


   Neste ínterim, a ação do terapeuta ocupacional, em sua clínica do cotidiano, faz-se da
problematização de um fazer que mereça ser ressignificado pelo indivíduo que passa a possuir
a si mesmo e a possuir o seu próprio processo de transformação. Esse um processo
terapêutico de fazer que se proponha incessante, ainda que o sujeito diante disto se depare
com sua incompletude, inerente à sucessão de vivências e possibilidades que é viver. Uma
clínica para e pelo fazer que não se deponha a extinguir as lacunas do ser, mas que o
emancipe a superá-las através de uma postura sucessivamente marcada pelo desejo e a
necessidade de transformar, lidar. Assim, cabe ao sujeito emergir; afinal “existir, seja como for”
(de acordo com a poesia de Carlos Drummond de Andrade, em Passagem da Noite).


   Não há mudança do objeto de estudo em Terapia Ocupacional, que continua a ser o fazer
humano. No entanto ao eleger o cotidiano como o eixo da clínica, neste presente estudo
monográfico, ouve a ousadia de ressignificar o objeto de estudo da Terapia Ocupacional –
35



                  “a Terapia Ocupacional deva assumir, cada vez mais, o papel de promoção do
                  homem (....) tal promoção se dá por meio do desenvolvimento da personalidade e
                  das potencialidades ou capacidades humanas” Francisco (2005. p. 20).


   De tal forma, depreende-se uma concepção ampliada da clínica que poderia ser
displicentemente dimensionada a partir dos processos daqueles clientes que mantém um fazer
ativo, sem dar devida discussão àquele cotidiano de que não empreende um processo de
mudança, de transformação de si ou do universo relacional ao seu redor, e ainda assim
sobrevive. Este não-fazer cotidiano é motivo de discussão, algo objeto de intervenção, que
gera processos de saúde-doença que interpolam à Terapia Ocupacional objetivar ações e
contextos de cuidados.


   Terapeutas ocupacionais são cientistas do fazer humano, conforme os dizeres de Reilly
apud Francisco (2005. p. 39): tais profissionais consideram que o “objetivo da Terapia
Ocupacional é encorajar o encontro aberto e ativo com tarefas que razoavelmente pertencem a
seu papel de vida”, assim fabricam a clínica do cotidiano. Procuram envolver seus clientes em
processos de fazer mobilizadores de mudanças, de transformações complexas para além das
experiências do setting ocupacional qualificado como mediador de proteção e estimulação nos
grupos, oficinas ou sessões individuais de psicoterapia ocupacional para então edificar junto
ao cliente um cotidiano ressignificado. Este acontecimento é a produção de vida, geração de
vivência do que seja apropriação por parte do sujeito diante do seu mundo relacional na busca
de resgatar significação para aquilo que viva diariamente. A superação daquilo que fora
configurado como limite eleva o ser a seu status práxico no empossamento da vida que advém
repleta de desejo e criação particulares, ou ainda


                  “por intermédio do terapeuta ocupacional, uma variedade de experiências essas que
                  permitirão ao indivíduo desenvolver aquelas capacidades, habilidades e destrezas
                  necessárias para uma vida satisfatória e produtiva” Mosey apud Francisco (2005.
                  p.39).


   O processo de ressignificação do fazer, da atividade de realização humana e por extensão,
do cotidiano, alcança na Terapia Ocupacional um processo psicoterapêutico a partir da
dinâmica entre atividade e produção de significado para a vida, por parte do indivíduo.


                  “Como processo psicoterapêutico [nota nossa: a Terapia Ocupacional] deve seguir-
                  se necessariamente que o produto sendo feito e o trabalho de fazê-lo são
                  considerados secundários ao julgamento de como o produto e o processo de fazê-lo
                  afetam suas relações com os outros. A ocupação passa então a ser a ferramenta da
                  manipulação de suas relações com outras pessoas e não o objetivo primordial em
                  si” Fidler e Fidler apud Francisco (2005. p.41).
36



    Numa visão marxista histórica, de onde se baseia o paradigma praxicológico da profissão,
temos que em Terapia Ocupacional, a produção de vida seja a partir da produção práxica de
relações do ser com o seu processo de trabalho, de inter-relação com o grupo social e sua
atribuição de valor ao processo da produção, uma vez que através dela o indivíduo se projeta
no mundo dos objetos, problematiza o alcance de seu próprio trabalho produtivo e integra valor
a si como humano, inserido numa fabricação do mundo humano, portanto.


                  “Como a Terapia Ocupacional é uma prática de saúde que propõe o uso da
                  atividade como recurso terapêutico, uma das possibilidades de ela vir a ser um
                  espaço para transformar a si mesma e assim contribuir para a transformação social
                  mais significante é através desse fazer. Um fazer que busca conscientizar os
                  homens da opressão a que estão submetidos como membros de uma sociedade
                  classista. Um fazer que desvela as determinações sociais vividas, busca descobrir
                  formas revolucionárias, mostra a contradição e o conflito da saúde numa sociedade
                  de classes” Francisco (2005. p.66).


    O que se denomina de produção de vida é a suma produção de atividade humana
propriamente dita, de enfrentamento de contextos cotidianos que possibilitem a transformação
do ser:


                  “a atividade propriamente humana só se verifica quando os atos dirigidos a um
                  objeto [nota nossa: ou a uma relação ou contexto de vida] para transformá-lo se
                  iniciam com um resultado ideal ou finalidade e terminam com um resultado ou
                  produto efetivo real” Vasquez apud Francisco (2005. p. 46),


em função da natureza práxica do ser humano: “o homem é um ser que em suas relações
necessita estar sempre encontrando novas soluções para as situações de vida que se
apresentam” Francisco (2005. p. 47) e assim ressignificar seu cotidiano e existência.


    A produção de vida é alcançada na diversidade da existência do indivíduo e suas
perspectivas de ascensão, superação ou mesmo adaptação para uma qualidade de vida em
termos de automanutenção, inserção social e participação em papéis da vida diária. Pelas
quais, o terapeuta se empresta a um caminho compartilhado de experiências e vivências
sempre desafiado junto ao cliente, este principal interessado nas possibilidades de ser e
existir.


                  “Assim, lidar com o cotidiano é sempre intervenção que exige um lidar com a
                  concretude do homem, esse movimento de múltiplas relações. O cotidiano não é
                  rotina, não é a simples repetição mecânica de ações que levam a um fazer por fazer
                  [nota nossa: fazer alienado ou mecanicista]. O cotidiano é o lugar onde buscamos
                  exercer nossa atividade prática transformadora, é o social; é o contexto em que
                  vivemos” Francisco (2005. p.76).
37



   Ressignificar o cotidiano, produzir a vida toda, são os pilares da ciência da ocupação
humana da Terapia Ocupacional:


                  “uma ciência que tem, como sujeito e objeto de seu conhecimento, o homem. Um
                  homem que não é o homem natural, mas o homem que transforma a natureza em
                  humanidade e que, também e principalmente, é um homem que faz, que ao fazer
                  simboliza e se objetiva e, com isso, se torna ser de sua existência” Carvalho (2005,
                  p.26).


E no seu ofício o profissional tem como desafio:


                  “com base na leitura do cotidiano e seus contextos e da histórica ocupacional dos
                  envolvidos é que o terapeuta ocupacional deverá encaminhar a ação. Dessa forma
                  poderá auxiliar o sujeito, o grupo e a coletividade a compreender suas próprias
                  necessidades e definir suas estratégias de lidar com os conflitos cotidianos, a
                  ressignificar seu fazer e pensar sua ação no mundo, respeitando-se os diferentes
                  momentos e possibilidades dos envolvidos. Será por meio da ação grupal e coletiva
                  que poderá dar a manifestação das solidariedades e o fortalecimento da trama
                  social” Galheigo (2005, p. 44).


   Daí, ressignificar a produção de suas vidas emana nos indivíduos uma necessidade vital de
existir, de inscreverem-se singulares e potencializados no cotidiano mais idiossincrático, pelo
convívio salutar de inserção no grupo, ao qual se pode pertencer, fortalecer-se, emancipar-se
ou ainda remover-se, declinar-se, transitar, reconhecer. Nos dizeres do filósofo Félix Guattari
“os indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes”. E lograr
o cotidiano como estatuto do fazer em uma fonte de ressignificação, tal qual atribuição de
outros símbolos para apropriar-se de si mesmo numa dinâmica incessante de transformação
do que se é ou se está sendo, por vir-a-ser enfim.
38



Considerações Finais


                                                           “Compreender inclui, necessariamente,
                                                                         um processo de empatia...
                                              Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura,
                                                                          simpatia e generosidade”
                                                                                      Edgar Morin




    O presente trabalho monográfico traçou uma reflexão a respeito da contribuição da área de
conhecimento da Terapia Ocupacional, no que se refere ao cotidiano de vida dos ditos
usuários dos serviços de Saúde Mental - os portadores de sofrimentos psíquicos, como um
eixo norteador de práticas, e, portanto, produtor de tecnologias e discurso, além de norteador
de práticas para o cuidado.


    O campo da Atenção Psicossocial é uma diversidade de interfaces, nas quais a Saúde
Mental destaca-se pela procura de inserção dos “loucos” nos cenários de vida
contemporâneos seja na cultura, no trabalho formal ou protegido, no núcleo familiar, no
sistema de educação e nas relações de saúde. Tal procura é atravessada por um modo de
fazer que encontra, entre outras áreas científicas e discursos ideológicos, a Terapia
Ocupacional como ferramenta articuladora de processos de emancipação para os sujeitos nas
modalidades de inserção social ampliada e de reabilitação de recursos e contextos para a vida
diária.


    A eleição do cotidiano, como um eixo para a clínica terapêutica ocupacional, aqui objeto do
estudo, refletiu o compromisso em repensar a vida de cada indivíduo que se atravessa pelos
caminhos e descaminhos do fazer de si mesmos, dia após dia, mantendo-se num processo
inadiável entre saúde-doença, conquista e ruptura de fazeres para o ser. Marcando essa
singularidade para a contribuição da Terapia Ocupacional em Saúde Mental.


    Os desafios de desenhar esta clínica da ocupação humana ultrapassam os limites de
práticas ortodoxas centradas em processos esvaziados de técnicas alienantes de atividades,
para enfim privilegiar o dimensionamento do ser como o principal artífice de sua própria
existência, práxis e historicidade.
39



Referências




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Atenção Psicossocial: Análise de Dois Projetos Pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil. In:
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40



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O cotidiano na Terapia Ocupacional

  • 1. 9 Introdução "Cada dia é um dia roubado da morte (...) é viver o momento com toda intensidade. Compreender que o hoje é o que existe de real. Soltar as amarras, voar, sonhar, ser com profundidade" Clarice Lispector O presente trabalho monográfico é resultado do curso de pós-graduação Latu Sensu de Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial promovido pela Faculdade de Saúde Ibituruna – FASI de Montes Claros / MG em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Objetivamos neste, especificamente, aprimorar o pensamento técnico-acadêmico para a atuação no campo da Atenção Psicossocial referente ao resgate do cotidiano dos usuários dos serviços de Saúde Mental como elemento norteador da clínica em Terapia Ocupacional. O campo da Atenção Psicossocial, a partir dos contextos da Reforma Psiquiátrica, em âmbitos locais e macro-regionais, interpola os trabalhadores dos serviços de Saúde Mental a engajarem-se em práticas centradas na superação dos modelos segregacionistas em função da doença mental para a emancipação de sujeitos ditos “loucos”, numa perspectiva social sempre ampliada. Assim, dada a emergente necessidade de promoção, desenvolvimento e aprimoramento de recursos em Saúde Mental, que gradualmente devam favorecer o processo de inclusão cidadã das pessoas portadoras de sofrimento mental nos cenários sócio-políticos e culturais da sociedade organizada brasileira, acredito que a reflexão do presente estudo venha somar esforços e contribuir na transformação da realidade que, por ora, é apresentada a nós – trabalhadores da Saúde Mental na construção da Atenção Psicossocial. Este trabalho compreende-se como um breve estudo de revisão bibliográfica cuja temática foi desenvolvida em 05 capítulos. No primeiro é apresentada a concepção ontogênica do cotidiano a partir de alguns primórdios do estudo da atividade humana, que representará alicerce para conceber mais amplamente a importância dos processos de fazer como forma de constituição pessoal, social, cultural, histórica. No capítulo seguinte é iniciada a discussão sobre o alcance do uso da atividade humana através da óptica da clínica, que se dá pela evolução das técnicas de atividades - forma primitiva de tratar em Terapia Ocupacional; outrossim, há correlação do 2º com o 4º capítulo, que se presta a identificar a perspectiva da
  • 2. 10 Atenção Psicossocial para as práticas em Saúde Mental contemporâneas. No 3º capítulo é, por sua vez, onde foi realizado maior aprofundamento revisional teórico do Cotidiano como foco do estudo; para, então, culminar na reflexão científica da Terapia Ocupacional como Produção de Vida - veículo para ressignificação do cotidiano em contextos específicos de cuidado, da clínica ocupacional e dos serviços prestados. Sou terapeuta ocupacional, profissional da área da Saúde, habilitado ao exercício na saúde pública e privada, nos três níveis de atenção, interessado na atuação integral, global e totalizante do sujeito frente às suas incessantes demandas de bem-estar bio-psicossocial para lidar com o seu cotidiano de vida – sempre particular e intransferível. O cotidiano é, portanto, para mim o cerne de todas as possibilidades de ação e perspectivas da clínica – do debruçar- se sobre outrem no intuito de fomentar cuidados e fronteira para aproximação. A partir deste engajamento encontro aqui um espaço de reflexão diante dos caminhos que passo a entender como norteadores do meu trabalho clínico-vivencial através da Terapia Ocupacional na Saúde Mental. Almejo que esta escrita seja um veículo de necessidade e entrelace entre os terapeutas ocupacionais: profissionais que ousamos fazer e ter de refazer processos de viver todos os dias, em nossos ofícios práxicos de cuidado, orientados pelo convívio cotidiano.
  • 3. 11 I. O Fazer Humano: Ontogênese do Cotidiano "Tudo é verdade e caminho" Fernando Pessoa O fazer humano, isto é: trabalho, atividades de autocuidado, lazer, recreação, atividades socializantes, religião, sexualidade, enfim, toda a pluralidade de interferências do indivíduo diante do que lhe seja externo através de processos culturais serve como atributo para concebermos o cotidiano da pessoa em sua dimensão histórica e evolucional. O fazer humano é, assim, atividade contínua de colocar-se como um ser capaz, que pode responder demandas e solucionar questões com ações transformadoras, permitindo que o indivíduo ocupe um papel sujeito de sua própria existência, ou seja, o ser é o elemento ativo através de seu fazer - responsável pelo processo da realização humana sócio-histórica, de vir-a-ser pessoa, cidadão, singular em seus elementos sociais e culturais. A noção teórico-filósofica de fazer humano, objeto de estudo da Terapia Ocupacional, em sua cientificidade contemporânea, remonta a palavra grega práxis, que se traduz como atividade, ação, realização. A evolução da Terapia Ocupacional se deu através do uso do trabalho por determinado paciente, inicialmente empírico, ou ainda nos primórdios do nascimento da clínica (FOUCAULT, 1980) quando concebida como mera ocupação como forma de distração ou correção pedagógico-moralizante para, finalmente, constituir-se (hoje) em a Ciência da Ocupação Humana. De técnicas já consideradas arcaicas como a laborterapia, a ergoterapia e a praxiterapia - técnica de tratamento usada com doentes mentais crônicos internados em manicômios visando a utilização do trabalho como ocupação terapêutica se forma crescentemente complexa (FRANCISCO, 2001), a profissão encontra-se, desde os últimos vinte anos em atividade de pesquisa profissional sistemática (PÁDUA e MAGALHÃES, 2003). Neste momento temos que a Terapia Ocupacional consolida-se como a Ciência da Ocupação Humana, portanto do cotidiano humano. O uso de atividades como forma de cura, inicialmente denominada praxiterapia, técnica do tipo terapêutica ocupacional (no Brasil, com extensiva visibilidade científica na década de 60), na qual a ocupação terapêutica sempre fora compreendida como: “psicoterapia” de acordo com Simon foi se dar como logos entre a atividade somática e psíquica” Arruda (1962, p. 15), desta forma, ocupar através de atividades para utilização na clínica marcou-se como o primórdio da clínica em Terapia Ocupacional; o que ainda se mantêm como pré-concepção por instituições e profissionais que conceituam o ofício do terapeuta ocupacional como de
  • 4. 12 recreação ou mesmo de ocupação para distração de alienados. Em termos de clínica, este uso da ocupação como meio psicoterápico e também fisioterápico, portanto recurso terapêutico, foi no sentido de prover tratamento, por ora empírico e dogmático, para fins morais e espirituais de acordo com a máxima “corpo são, mente sã”. Marcos históricos da Terapia Ocupacional, no que tange à clínica através do fazer humano, estão relacionados a dois contextos distintos. O primeiro referente às experiências lúdicas das culturas greco-romanas, nas quais as atividades contemplativas e hedonistas de artes, tais a música, a leitura, a poesia, os jogos serviam como pilares da organização social e de valores ético-estéticos naquelas sociedades. Mais tarde, o segundo momento que ainda repercute considerável influência para a compreensão atual de clínica e cuidado em Saúde Mental, temos a égide da Psiquiatria incorporando a atividade humana com o uso da ocupação terapêutica para efeitos ora disciplinadores, educativos, de técnica de “psicagogia” – termo de Hermann Simon (ARRUDA, 1962) e ora de ressocialização como no caso do Tratamento Moral de Phillipe Pinel (ARRUDA, 1962). Herança esta, última, que representa o imaginário do que venha a ser o papel a Terapia Ocupacional e sua contribuição metodológica às instituições psiquiátricas / de Saúde Mental / de Atenção Psicossocial, portanto, concebido de forma reducionista ao ocupar por ocupar. Portanto, o fazer humano, inerente à espécie humana, primórdio da evolução quando o homem primata em suas necessidades de sobrevivência na tribo descobriu formas de superar obstáculos, saciar a fome, subir em árvores para proteger-se e alimentar, construir equipamentos para manejar desafios do seu ambiente, é resultado da própria evolução e é também um causador dela. Também é válido ressaltar a natureza lúdica do ser humano cujo brincar é o seu rudimento mais antigo que a cultura (chamado de Huizinga): “o brinquedo realiza na imperfeição do mundo e na confusão da vida uma perfeição temporária e limitada” Arruda (1962, p. 18-19), através do brincar (entendido de forma ampla em termos de recreação, lazer, ludicidade) se coletiviza saberes no grupo e trocas inter-geracionais, portanto transmissão de cultura e emancipação da espécie. A vida em si é (toda) atividade, é fazer para realizar-se, e o ser cria à medida que se depara com necessidades de mudar e superar a substancialidade do que vive, enfim. Segundo Arruda (1962, p. 17) viver é atividade pelo seu “princípio psicofísico da existência humana oposto à inatividade absoluta que é a morte”. Para Friedrich Niestzche (ARRUDA, 1962) este princípio era denominado Leistungstherapie: a atividade criadora, princípio finalista do psiquismo humano, ou seja, atividade que cria e que desenvolve a condição psíquica do sujeito.
  • 5. 13 Elementos do tipo: atividade, ocupação, trabalho – termo derivado do tripaliare: um instrumento de três tranças usado para torturar servos e vassalos chamado de tripálio, de acordo com Barahona Fernandes citado por Arruda (1962), e ainda exercício ou labor – correlacionado ao termo do latim labore que se traduz como fadiga, bem como lazer, recreação, ludicidade e outros múltiplos resultantes das atividades sócio-culturais do indivíduo irão compor a extensão do que significa o fazer humano, por extensão, o cotidiano.
  • 6. 14 II. Ocupação Humana como Forma de Tratamento: Evolução da Clínica em Terapia Ocupacional "Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade" Fernando Pessoa Remonta à antiguidade o uso intuitivo das atividades para obtenção de benefícios, experimentação de técnicas como empirismo e transmissão de conhecimento e cultura. No entanto, o uso de atividades com intenção terapêutica surge entre os egípcios, datando 2000 a.C. em que as atividades artísticas ou lúdicas eram usadas como entretenimentos em seitas através de passeios de jardins, cantos, rituais, danças, configurando à atividade humana um primeiro fim de intencionalidade. Em 1030 a.C. Saul, rei de Israel, foi tratado de depressão pelas músicas da harpa de Davi – primeira cura utilizando a atividade como recurso terapêutico ou mesmo uma técnica de musicoterapia pioneira. Platão, em “A República” considera a saúde espiritual e corporal passíveis de serem obtidas e mantidas através da música, do relaxamento e da atividade contemplativa com o uso da música; Aristóteles, por sua vez, relacionou efeito benéfico da música a uma catarse emocional, encontrando aí a primeira explicação para o uso de uma atividade humana de acordo com fim que se destinaria a ela. O valor terapêutico reconhecido à música foi concebido, originalmente, a partir das considerações de Conidorus e Pitágoras. Tais são os precursores do uso de atividades com fins curativos, terapêuticos, paliativos. No entanto, a concepção que se tem hoje de clínica em Terapia Ocupacional ultrapassa o limite de prescrições de atividades como recursos isolados em si mesmos para fins terapêuticos. Vale ressalvar que o termo clínica, na acepção do termo klinus “inclinar-se sobre o leito” ou ainda klinikós “ leito ou cama, estar ao leito” conforme observações de Paulo Amarante em seu texto “A (clínica) e a Reforma Psiquiátrica”, remete-nos a um processo dinâmico, ao qual o ofício do terapeuta ocupacional também evoluiu ao longo dos séculos até a contemporaneidade. O Tratamento Moral Pineliano, de Philippe Pinel, em sua origem moderna do século XVIII, aplicado inicialmente em 1791, no Asilo de Bicêtre com a proposta de “quebra dos grilhões que mantinham presos os insanos do espírito” Arruda (1962, p. 25), influenciou o principal método
  • 7. 15 de aplicação num contexto clínico da Terapia Ocupacional. Por se basear numa crença pedagógica e moralizadora de que o trabalho deveria ser utilizado como elemento normatizador do funcionamento comportamental e social do portador de transtornos mentais na instituição asilar psiquiátrica: “A terapêutica ocupacional limitava-se então “aos exercícios metódicos, as distrações e o trabalho, que constituem a base do tratamento moral, deveriam ser ordenados e presididos pelos médicos” Teixeira (1997, p. 315). Pode-se apontar que o Tratamento Moral foi implicar numa herança pedagogizante para a consolidação da Terapia Ocupacional, naquele contexto histórico, uma vez que “imprimia a marca de seus ensinamentos critérios pelo aprendizado da ordem, do trabalho, da realidade e da sociabilidade”; Oliveira (2004, p. 4) as atividades eram prescritas conforme uma necessidade de educar, disciplinar, efetivar coerção e norma à loucura no manicômio – instrumento de correção pedagógica, de acordo com “a prescrição médica habilidosa” Teixeira (1997, p. 313), para os alienados mentais, os desvalidos da razão, os contraditórios. Faz-se importante apontar, de forma meramente didática, as principais correntes do pensamento psiquiátrico contemporâneo, que representam os primórdios do paradigma científico da Terapia Ocupacional, de acordo com Silveira (1966, p. 5-18): a) Organicismo: - Emil Kraepelin admite que a ociosidade agrava e apressa o processo de “demência precoce”, recomenda trabalhos físicos, jogos de solução fácil, leituras leves. Indicação terapêutica das fases tumultuosas da doença já instaladas e espera-se a completa ruína moral e mental do doentes “dementes”. Ocupações não são agentes curativos, meros suportes elementares, pragmáticos, realizáveis; - Bleuler e Simon – nova concepção da demência precoce de Kraepelin agora denominada de esquizofrenia, que segundo verificou Bleuler reações afetivas intensas com manifestações tardias. Distinção entre sintomas fundamentais orgânicos e sintomas acessórios psíquicos. Mudança da atitude do psiquiatra com novas perspectivas e tentativas terapêuticas; - Simon – declara-se afinidade de pensamento com Bleuler e foi o pioneiro em constituir uma concepção teórica sobre o tratamento ocupacional. Associa conceitos psiquiátricos à uma concepção filosófica de vida – a idéia de logos, sentido de ação regida por sabedoria (concepção que se encontra no Evangelho de S. João), assim a vida é atividade incessante.
  • 8. 16 Cria seu método de tratamento mais ativo ou tratamento hiper-ativo. Preconizando o uso de capacidades, como um método educativo, a dita psicagogia, contrária ao laissez faire ou o “dolce far niente” – sinonímias de ociosidade, portanto inércia. Neste momento, encontra-se a eliminação do comportamento do louco, uma tentativa de afastamento transitório do que provoca distúrbios mentais, buscando equipar tal finalidade através da hospedagem do portador de sofrimento psíquico no hospital psiquiátrico, onde ali as ocupações seriam escolhidas de forma individualizadas de acordo com os sintomas do paciente, uma espécie de projeto terapêutico primevo; - Carl Schneider – Simon estabelece a ocupação terapêutica como psicoterapia, uma psicagogia, para Schneider é puramente uma terapêutica biológica. Os exercícios das atividades para envolver somático e psíquico, totalidade do ser humano. Configurando assim como um método de pesquisa se dá através do uso da terapêutica ocupacional. Alcançando um conhecimento profundo e prévio da patologia para uma terapêutica realmente ativa: busca de entender as leis do dinamismo psíquico, uma aposta para as indicações específicas para cada doença e para cada síndrome; b) Pensamento Jacksoniano: - o neurologista inglês John Hughlings Jackson estudou funções nervosas e psíquicas dentro de uma hierarquia estrutural, propôs então sua dissolução das funções nervosas que poderiam se dar invertidamente do menos organizado para o mais, do mais complexo para o mais simples, do mais voluntário para o mais automático; c) Neo-Jacksonianos: - Paul Sidavon focalizou sua terapêutica ocupacional na doença mental, na perturbação das funções de adaptação, onde ocorre dissolução das funções superiores de adaptação social de acordo com a condição patológica. Encontrar adaptação ao mundo exterior para os níveis funcionais ainda intactos, assim encontrar e fornecer condições de relações entre os internos dos asilos / manicômios através de trabalhos vantajosos, úteis, solidários para reestruturar a personalidade de forma progressivamente elevada. Propôs-se, então, o grupo de trabalho, escolha de ocupação para sociabilidade do doente, com ritmo de trabalho e uso de material em ocupações lúdicas, expressivas, cópias e reproduções, criações artesanais e utilitárias (nota nossa: método, que apesar de rudimentar, aproxima-se mais caracteristicamente com o que se é praticado hoje em Terapia Ocupacional nas modalidades de serviços assistenciais de Saúde Mental onde freqüentemente não há garantida a presença
  • 9. 17 de um profissional terapeuta ocupacional devidamente regulamentado para tal exercício; sendo esta “Terapia Ocupacional” realizada por leigos ou profissionais de nível médio ou superior de outras áreas do conhecimento); d) Psicanálise: - Sigmund Freud compreendeu o trabalho como um dos melhores meios de deslocamento da libido, possibilitando satisfação de exigências instintivas e com atividades aceitas socialmente (sublimação). Assim, a terapêutica seria uma orientação vital à realidade com execução de trabalhos, através da incorporação sólida do sujeito à comunidade humana. As atividades seriam indicadas para saciar necessidades libidinosas e que promovam gozo de aceitação por parte do meio social. Prescritas mediante conhecimento da dinâmica dos sintomas, afinal “só se pode progredir pelo prazer” conforme Mme. Sechehaye compreende a atividade que liga o sujeito ao que lhe interessar, neste caso; e há outro uso de atividades criadoras por Frieda Fromm Reichmann como forma de viabilizar a expressão artística no contexto psicanalítico; e) Psicologia Analítica: - Carl Gustav Jung, apesar de não usar as terminologias vigentes de ocupação terapêutica ou mesmo terapêutica ocupacional, estabelece psicoterapia intimamente impregnada de atividade, onde há segundo Silveira (1996) maior aprofundamento teórico para a sua terapêutica ocupacional. Atividades ocupacionais escolhidas intencionalmente para solicitar o emprego de quatro funções: pensamento, sensação, sentimento, intuição. O indivíduo procura traduzir suas emoções em imagens no caminho de sua cura que é dar forma objetiva às experiências internas. Considerando nisso os elementos culturais e artísticos como fenomenologia humana que possam ser estimulados na condução terapêutica. A clínica na Terapia Ocupacional, finalmente, relacionar-se-á, sob concepção psicobiológica e interacionista social de Adolph Meyer, ao “reconhecimento de que a saúde de um indivíduo estava vinculada às complexidades das experiências diárias em um mundo físico e social complexo e propunha o enfoque de sua abordagem mais sobre o estilo de vida do homem que sobre sua doença” Oliveira (2004, p. 5). Tais concepções psiquiátricas para o uso da atividade como elemento terapêutico, passível de aplicação clínica, estruturaram assim um primitivo desenho do paradigma científico da
  • 10. 18 Terapia Ocupacional. Paradigma que ali compreendia a atividade humana no centro de estudos, pesquisas e reflexões deontológicas da profissão, o que contemporaneamente veio se consolidar mais ampliadamente como a ciência da ocupação humana enfatizando a vivência, logo o cotidiano do ser, como objeto de estudo e de produção tecnológica. A Terapia Ocupacional compreende a saúde “dentro do contexto da vida diária, com seu equilíbrio de trabalho, repouso, lazer” Oliveira (2004, p. 5), sendo a partir disso, definida como “a própria Terapia Ocupacional é um processo de mudança através do fazer” Hagedorn (1999, p.127-149), o que confere caráter inovador e holístico à clínica na concepção da Terapia Ocupacional. Tal holismo será desenhado através das amplas necessidades humanas, sensíveis a partir do cotidiano de vidas daqueles aos quais a profissão comprometer-se-á a cuidar Oliveira (2004, p. 5-6). Para Hahn apud Oliveira (2004, p. 6) a abordagem da Terapia Ocupacional, no que se refere à promoção de saúde, guarda profícua correlação com o cotidiano como seu pilar da clínica. Aponta ainda: “A promoção da saúde tem a ver com o dia-a-dia saudável, de tal modo que o indivíduo possa usufruir o melhor que a vida tem a oferecer, seja da forma como ele se alimenta ou como ele lida com o stress. É exatamente aí que a Terapia Ocupacional tem a responsabilidade da intervenção em promover a saúde do indivíduo, podendo-se usar as atividades da vida diária (AVD) e atividades da vida prática (AVP) com qualidade, como sinônimo de estilo de vida saudável” Hahn apud Oliveira (2004, p. 6). Portanto, a clínica em Terapia Ocupacional é construída a partir do processo complexo de manutenção, recuperação, adaptação, proteção e ou promoção do cotidiano dos seus clientes a partir de eixos sustentadores da clínica – áreas de performance ocupacional: 1) trabalho / atividades produtivas, atividades instrumentais e/ou da vida prática; 2) lazer e atividades recreativas, atividades sociais e comunitárias; 3) autocuidado e demais atividades da vida diária.
  • 11. 19 III. O Cotidiano: Fundamentação Teórica “A vida só é possível reinventada" Cecília Meireles O cotidiano concebido como eixo de referência para a composição do presente estudo monográfico faz-se essencialmente é uma fonte inesgotável de saber para as atuações em Terapia Ocupacional. Eixo de referência, estrutura axial, cerne da clínica, é o cotidiano em Terapia Ocupacional matéria-prima para uma clínica que inaugura possibilidades aos sujeitos para que estes edifiquem sua existência a partir da transformação de seu próprio mundo relacional do fazer humano; bem como, a estruturação do dia-a-dia de um indivíduo irá promover sua inserção em contextos relevantes de vida, seja no trabalho produtivo, na manutenção de autocuidado diário, nas performances da vida prática sócio-comunitária, seja no lazer ou na atividade criadora que gera linguagem e singularidade sempre emancipatórias. Cotidiano é o alicerce para o desenvolvimento das potencialidades humanas nos contextos de vida significativos para a pessoa e, portanto, suas relações existenciais com aquilo que lhe seja a priori relevante, ou seja: que lhe seja causador de realização pessoal, de enfrentamento, de causalidade de escolhas, de manutenção de independência, promoção de autonomia, superação de limites, reconhecimento de potenciais e alargamento de compreensões diante de si mesmo. A Terapia Ocupacional vem trazer ao dia-a-dia das pessoas, que procura ajudar, formas de inovar e superar demandas, para que possibilidades sejam incorporadas ao desempenho de um sujeito em atividades significativas. Eis que a Terapia Ocupacional interessa-se por abordar o ser humano em suas interfaces relativas ao seu contexto de vida (intrínseco ou extrínseco do sujeito e dos grupos), utilizando uma avaliação de uso de lentes sistêmicas holísticas, para alcançar inovação de concepções para a saúde e a propor caminhos para o sujeito, na clínica, de maneira singular em sua terapêutica de vir-a-ser. O cotidiano é por excelência o ferramental de trabalho próprio do ofício de terapeuta ocupacional. “Sempre faz parte do repertório da Terapia Ocupacional a atenção às experiências, às produções, às narrativas dos sujeitos envolvidos (...) nestes contextos variados, nas situações cotidianas é ou tem sido, na prática do terapeuta ocupacional, juntar os pedaços, costurar os retalhos, os fragmentos, os ‘fios de Ariadne’ da vida desses sujeitos envolvidos nas ações” Oliveira (2004, p. 11).
  • 12. 20 Tendo como finalidade uma ação cuidadora, num contexto clínico, portanto terapêutica: “para o terapeuta ocupacional, que tem, entre seus princípios, que o fazer / trabalho é um organizador do comportamento humano e que, usado terapeuticamente, produz uma organização do comportamento cotidiano” Oliveira (2004, p. 12). O que irá construir a clínica para e pelo cotidiano, esse seu pilar diante o objeto maior de estudo que é a ocupação humana “uma viagem de autoconhecimento na reconstrução de sua biografia” Oliveira (2004, p. 13). Numa perspectiva filosófica temos que o cotidiano seja todo o modo de fazer, a vivência do ser, uma característica ontológica inerente ao ser social na sua dimensão cotidiana, intrínseca às objetivações genéricas das formas de pensamento e ação, pelos quais, o indivíduo se relaciona imediatamente com o mundo à sua volta (HELLER, 1989, 1994). O cotidiano é a estrutura de referência de promoção e continuidade da vivência de qualquer pessoa. Em Terapia Ocupacional há a retomada desta instância para a promoção da clínica que se compromete com a edificação da autonomia do sujeito. Assim, identificar o cotidiano do cliente e dali propor intervenções que resgatem bem-estar, que promovam habilidades para o ser se fazer, que identifiquem limites a serem ampliados se torna o desafio criador da Terapia Ocupacional, são ações que corroboram para a visibilidade de sua especificidade científica. Nos dizeres do terapeuta ocupacional Luiz Gonzaga Pereira Leal: “itinerário que conduz a esse ‘centro’ está permeado de obstáculos e que tão bem se encontram desenhados nas circunvoluções, muitas vezes complicadas e confusas, que o paciente exerce para nele ancorar-se. Podendo, a exemplo do ‘labirinto’, adentrá-lo e dele regressar, tendo o ‘centro’ do mesmo como ‘marco e guia’” Leal (2005, p. 27). Assim, o cotidiano reproduzido na clínica da Terapia Ocupacional através de dispositivos grupais como as oficinas terapêuticas, os grupos de atividades ou os grupos terapêuticos, será dimensionado num contexto socializante, portanto, promotor de possibilidades de inserção social e pertencimento ao grupo / entrelaçamento interpessoal e processos de vínculos. “Nas situações dos grupos de Terapia Ocupacional, a interação com o outro é tanto marcada pelas narrativas das histórias dos fazeres cotidianos como pela reconstrução destes fazeres, uma vez que isto traz a possibilidade de uma ressignificação da realidade com muito mais premência do que outras situações” Oliveira (2004, p. 14). A Terapia Ocupacional, através de suas diferentes metodologias (avaliação do histórico ocupacional, análise do processo de atividade, prescrição de atividades ditas terapêuticas, treino das atividades da vida diária, da vida prática e/ou instrumentais da vida diária, do
  • 13. 21 manejo da psicoterapia ocupacional com o uso de atividades livres, criativas e expressivas), veio evidenciar, no campo da Saúde Mental, uma prática legítima do fazer humano que gera transformações de sujeitos para a clínica e a Atenção Psicossocial. A atividade humana utilizada na clínica é a dinâmica totalizante dos sujeitos em suas relações consigo, com o outro e com o mundo, num processo, por excelência terapêutico ocupacional, incessante de transformação, autoconhecimento e inserção social. Portanto, é possível depreender que “a principal importância da Terapia Ocupacional reside no fato de se oferecerem ao paciente oportunidades de intervir na realidade externa segundo sua intenção, vontade e com liberdade” Jorge (1990, p. 13) estabelecendo-se, então, “como sendo um modo crítico-laborativo das relações humanas” numa perspectiva psicoterapêutica Jorge (1981, p. 84). Nesta mesma concepção psicoterapêutica da Terapia Ocupacional, tem-se que o indivíduo ao fazer passa a se modificar, atualiza-se naquilo que o objeto o informa de seu processo de fazer e autodescoberta; portanto, espécie de relação na qual o ser se reconhece no processo de fazer e no produto um conhecimento próprio sobre si mesmo - daí vai estabelecer com o cotidiano um universo relacional mediado por processos de fazer, de mudança, de utilização do princípio de liberdade e de criação através da atividade humana na clínica ocupacional. Tendo no cotidiano seu eixo de saber e atuação - desta forma, tecnologia, que é a aplicação deste saber, nos serviços e demais dispositivos de ajuda onde é convocada a contribuir, a Terapia Ocupacional se constrói de forma complexa ao se debruçar no fazer humano como objeto de estudo (BARTALOTTI e DE CARLO, 2001) e o cotidiano, finalmente, faz-se a matéria-prima de toda a substancialidade de sua clínica, numa dinâmica desafiadora que “em cada momento histórico e em cada realidade social, terapeutas ocupacionais depararam com transformações que se por um lado influenciaram suas ações, por outro exigiram que novas ações fossem propostas, novos olhares fossem construídos” Bartalotti e De Carlo (2001, p. 173). A Terapia Ocupacional segue seus caminhos e descaminhos, ao adaptar atividades humanas e processos de fazer, ampliar possibilidades de ação individual e/ou manejos de interação entre sujeitos na clínica, à medida que conota sua preocupação com o universo relacional humano na eleição de que o cotidiano é o meio pelo qual vai emancipar a pessoa humana diante o processo de superar e realizar-se.
  • 14. 22 Interessa-nos deste momento em diante compreender o contexto da Atenção Psicossocial para refletir no cotidiano como eixo norteador para as práticas da Terapia Ocupacional, em sua clínica na Saúde Mental: possibilitar reflexão e pontos de diálogo.
  • 15. 23 IV. A Atenção Psicossocial: Campo de Práticas da Reforma em Saúde Mental “Todo terapeuta que queira estar à altura dos desafios de nossa época precisa desenvolver a maestria para facilitar que o outro desperte o seu próprio mestre interior” Graf Dürckheim Dar-se-á prosseguimento ao presente estudo monográfico, considerando, deste marco adiante, a transformação do Modelo Hospitalocêntrico-Manicomial (Segregacionista) no de Assistência em Saúde Mental, que de acordo com Galletti (2004) caracteriza-se por um complexo de ações que incluem: - rompimento da estrutura asilar segregacionista (física e ideológica); - redução das internações manicomiais tradicionais (mudanças estruturais no sistema de saúde brasileiro); - criação de propostas para valorização do processo de subjetivação (ampliação e diversificação das ações multi, inter e transdisciplinares em Saúde Mental); - inovações de tecnologias terapêuticas e experiências grupais – surgimento das oficinas terapêuticas a partir da Terapia Ocupacional e incorporadas ao sistema público de saúde de forma ampliada. Entende-se, aqui, que as oficinas serão dispositivos de maior repercussão do cotidiano dos usuários de Saúde Mental, em função da oferta em maior número nos serviços e serem elas a principal ferramenta de organização das ofertas nas modalidades assistenciais psicossociais. Introdutoriamente é possível fazer uma caracterização das ditas Oficinas Terapêuticas (GALLETTI, 2004): - não há um universo homogêneo de intervenção clínico-terapêutica, nem mesmo um único tipo de objetivação para as ações ali realizadas; - não há um único regime de produção; - multiplicidade de formas, processos e linguagens, portanto de produção de saberes e trocas clínicas; - suposta liberdade nas novas invenções para a Clínica de Saúde Mental; - naturalização de práticas em oficinas veio correlata à destruição da prática manicomial-hospitalocêntrica; as oficinas estruturam-se à medida que o manicômio foi sendo desconstruído. As oficinas terapêuticas surgiram como dispositivos de socialização e / ou agrupamento e foram eleitas como o dispositivo da Atenção Psicossocial que se identificam como espaços de o homem se fazer, portanto, cotidiano institucional onde é produzida a vida e reproduzidas formas de vivências – objetivo próprio e particular da Terapia Ocupacional que foi ampliado e incorporado à lógica da assistência da Atenção Psicossocial. Segundo o terapeuta ocupacional
  • 16. 24 Ronaldo Guilherme Vitelli Viana, do Grupo de Estudos Profundos de Terapia Ocupacional - GES.TO (nota nossa: trata-se de um grupo de renome especializado na formação continuada de terapeutas ocupacionais de acordo com a orientação do Professor Rui Chamone Jorge, inestimável estudioso da área de Terapia Ocupacional e Psicoterapia Ocupacional, em Belo Horizonte / MG), a oficina é o espaço de o homem se fazer, é na clínica o ferramental para o indivíduo conhecer a si mesmo, fazer na vida, fazer para a vida, produzir a si mesmo e estabelecer relações significativas para o seu cotidiano a ser emancipado, logo, a Terapia Ocupacional estabelece, assim, sua clínica para emancipação humana através do fazer e do cotidiano. O termo oficina que tem etimologia no Latim: officina, palavra relativa ao universo do trabalho, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio - Século XXI, [Do lat. officina.] significa: - “S. f. 1. Lugar onde se exerce um ofício. 2. Lugar onde se fazem consertos em veículos automóveis. 3. Dependência de igreja, convento, etc., destinada a refeitório, despensa ou cozinha. 4. Fig. Lugar onde se verificam grandes transformações - Oficina pedagógica. Educ. Esp. 1. Ambiente destinado ao desenvolvimento das aptidões e habilidades de portadores de necessidades especiais, mediante atividades laborativas orientadas por professores capacitados, e em que estão disponíveis diferentes tipos de equipamentos e materiais para o ensino ou aprendizagem, nas diversas áreas do desempenho profissional” (FERREIRA, 1999). Desta forma, compreende-se a abrangência que o termo implica no que se refere a um dispositivo de ações para a Saúde Mental. As Oficinas Terapêuticas conceituadas como espaços das oficinas, onde são realizadas atividades, relacionam-se às ênfases em: trabalho, ofício, ferramenta, instrumento, atividade, indústria, arte e profissão (GALLETTI, 2004). Necessidade de atuar diante dos usuários de Saúde Mental numa perspectiva de Atenção Psicossocial e constituir as intervenções para uma clínica ampliada em Saúde Mental, além de estabelecer um universo de significação através da prática de oficinas que sustente a proposta terapêutica ou clínica. Oficinas se tornam práticas de produções de saber, com interfaces na cultura, no social / cidadania e na humanização do cuidado e vão consolidar-se na oferta dos dispositivos da reforma em Saúde Mental brasileira.
  • 17. 25 Ainda no país, as oficinas ganham maior vitalidade e visibilidade a partir da década de 70 (GALLETTI, 2004), em especial ao pioneirismo da Drª. Nise da Silveira* - célebre psiquiatra brasileira que por sua práticas anti-psiquiátricas, em sua terapêutica ocupacional humanitária e revolucionariamente inclusiva, atemporal, marcou definitivamente um diálogo entre cuidado, terapia, arte e processos de fazer para a Saúde Mental. Neste contexto do surgimento histórico das oficinas, há um questionamento quanto à hegemonia dos saber médico centrado (Psiquiatria) que poderia ser discutido através da produção dos pacientes nas ditas oficinas. Mais tardiamente, houve a busca de profissionais com outras formações no que tange à utilização de oficinas como métodos favoráveis à humanização da assistência em Saúde Mental e que suscitassem a descronificação de paciente, que inicialmente ainda foram tentativas e experiências isoladas, mas representaram tentativas de modernização de tratamento e equipamentos institucionais em Saúde Mental nacionalmente. Paralelamente ao surgimento das oficinas terapêuticas há mudança no panorama brasileiro com o acirramento da Reforma Psiquiátrica e da Abertura Política no país. Agravam-se na ocasião o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental através de denúncias, produções artístico-jornalísticas com grande visibilidade na mídia e nos meios acadêmicos. O que também repercutiu na mobilização de familiares e outros movimentos comunitários associados à causa da Saúde Mental, representando uma ampliação da postura revolucionária de meados da década de 70. Soma-se ao panorama a luta de trabalhadores contra a exploração capital, o choque entre organismos governamentais e não-governamentais, e as tentativas de constituição de políticas públicas de Saúde Mental para a desconstrução do paradigma psiquiátrico, asséptico, normalizador e excludente (GALLETTI, 2004): este é o cenário do nascimento da Reforma Psiquiátrica e da Saúde Mental. * Drª. Nise da Silveira foi um dos maiores expoentes da história da Psiquiatria brasileira, exercendo grande influência para a concepção da Terapia Ocupacional em sua atuação em Saúde Mental. Psiquiatra alagoana de uma personalidade única, que ao propor práticas humanitárias contrárias àquelas vigentes da Psiquiatria - limitadas ao uso indiscriminado de psicotrópicos e métodos de contenção físico-química, inaugurou um panorama de pesquisa científica sobre a Psique. Alcançou, assim, tamanha repercussão ao propor e conduzir o tratamento das doenças mentais pelo uso de atividades criativas associado aos processos de lidar, através das emoções e a subjetividade dos pacientes internos das instituições manicomiais. Definitivamente uma dita ousadia jamais concebida até então no país. Sua indispensável biografia pode ser apreciada em artigos como: -“A Biografia de uma Pioneira”, pelo poeta Ferreira Gullar, para o Jornal Folha de S. Paulo, em 1963; - “Nise da Silveira - Homenagem a uma Guerreira da Luz”, pela psicoterapeuta Teresa Vignoli, além de sua própria publicação, que inclui, dentre vários, os títulos: “Jung, Vida e Obra”, “Terapêutica Ocupacional - Teoria e Prática”, “A Emoção de Lidar”, “Imagens do Inconsciente” e o “Mundo das Imagens”. Indica-se, oportunamente, outro profícuo registro de sua historicidade e obra no sítio eletrônico: www.museuimagensdoinconsciente.org.br/
  • 18. 26 Já na década de 80, o Brasil assiste a elaboração de: “POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS” – incisiva temática do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, proferida em um Encontro Nacional de Saúde Mental. Tal temática iria se consolidar como a configuração de todo o ideário brasileiro reformista na área psiquiátrica, em especial na criação da Atenção Psicossocial e na influência da formação profissional dos diversos atores envolvidos com a produção da Reforma. Assistiu-se em São Paulo a inovação de serviços pioneiros de Atenção Psicossocial em São Paulo, Santos, mais tardiamente em Belo Horizonte, a partir de 1982, 1989 a 1996, São criados os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, os Núcleos de Atenção Psicossocial - NAPS, as unidades básicas de saúde UBS’s (“centros de saúde”) estruturam-se com as primeiras equipes de Saúde Mental, são também estruturadas as Unidades de Emergências Psiquiátricas, as Enfermarias de Saúde Mental e a Saúde Mental Hospitalar, os Hospitais-Dia em Saúde Mental, os Centros de Convivência e as Cooperativas solidárias do trabalho e geração de renda em Saúde Mental. Enfim, o cenário para o movimento reformista brasileiro foi sendo equipado de forma intensa com a abertura política brasileira e a formulação do Sistema Único de Saúde – SUS. Em Belo Horizonte / MG a criação dos Centros de Referência em Saúde Mental – CERSAM’s, deu-se de acordo com o território microrregionalizado da capital mineira, com inspiração antimanicomial, segundo os dizeres de Osvaldo Giacoia Júnior, atribui na experiência mineira um diferencial à Atenção Psicossocial: “a luta manicomial implica necessariamente a politização da clínica – uma clínica que é essencialmente do cuidado, feita à contracorrente da alegada auto-suficiência da medicalização terapêutica da doença mental grave, que se pretende apolítica, inebriada com a suposta onipotência dos modernos psicofármacos” Giacoia Júnior (2003, p. 10). Assim, a clínica antimanicomial a partir da Reforma Psiquiátrica brasileira, sobretudo a mineira, almeja “politizar o espaço da clínica e agenciá-lo na luta pela transformação de nossas relações com a loucura” Giacoia Júnior (2003, p. 11). A Atenção Psicossocial com os projetos pioneiros em São Paulo do Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz Cerqueira e do Núcleo de Atenção Psicossocial de Santos, a partir de 1987, tem seu escopo para a caracterização dos novos serviços de Saúde Mental já comprometidos com a lógica integral: “a assistência é definida como de atenção integral (no sentido psicossocial), personalizada, exercida através de “programas de atividades psicoterápicas, socioterápicas de arte de terapia ocupacional” dentro de um enfoque multidisciplinar
  • 19. 27 e pluri-disciplinar. A doença mental deve ser pensada no campo da saúde coletiva, levando-se em conta os contextos micro e macro social, como a família, o trabalho e seu contexto histórico, tentando produzir uma reinterpretação de elementos culturais” Amarante e Torre (2001, p. 29). Neste sentido, pode-se inferir que a Atenção Psicossocial representa um processo de aquisição a partir de interfaces com a produção de uma nova cultura: “do lado dos chamados novos dispositivos assistenciais (...) um CERSAM, um centro de convivência e uma moradia protegida não são, nem se propõem a ser, espaços que refletem ou reproduzem as conquistas científicas de nosso tempo; são inovações da cultura que inscrevem num outro registro” Lobosque (2003, p. 153). Sendo aqui uma possibilidade de questionamento, portanto de proposição, a partir da concepção da clínica antimanicomial da psiquiatra mineira Ana Marta Lobosque: - este outro registro perpassa o cotidiano dos usuários dos serviços de Saúde Mental como um qualificador da clínica em Saúde Mental com ênfase na Atenção Psicossocial? A autora aponta-nos uma espécie de lema: “aos serviços substitutivos, cabe romper com esta antipática posição de razão diante da loucura; serão novos se, e apenas se, buscarem para o sofrimento psíquico um lugar de cidadania” Lobosque (2003, p. 154), logo, o presente estudo irá identificar quais os elementos da Reforma Psiquiátrica, em especial da construção da Atenção Psicossocial, mais se articulam com a proximidade deste “lugar de cidadania”, buscando apontar respostas que a Terapia Ocupacional encontrou em si a partir do eixo no cotidiano como produção de clínica e a clínica militante como almejo da categoria de seus profissionais. Rede de Serviços, ditos substitutivos ao Modelo Manicomial, de acordo com a necessidade de desconstrução do Modelo Asilar-Manicomial, foram articulados entre si, com equipes multiprofissionais em todos os projetos, fortalecimento da rede de funcionamento extra- hospitalar, territorialização dos serviços de Saúde Mental, abertura de dispositivos para atender vários níveis de complexidades. Lógica substitutiva para enfrentar a segregação. Assim: “tornar cada vez mais fluidas, mais transitáveis, mais flexíveis, as fronteiras entre as instituições destinadas a eles [portadores de sofrimentos mentais] e a sociedade onde se desenrola a vida e o destino de todos nós, loucos ou não” Lobosque (2003, p. 17).
  • 20. 28 Desafiando-se à construção na desconstrução do modelo asilar segregacionista, assistencialista manicomial e hospitalocêntrico em uma clínica da Saúde Mental, com ênfase na política antimanicomial e na Atenção Psicossocial como eixo de cuidados – “retirar a clínica da Saúde Mental de sua tradicional função de controle social, feita em nome dos ditames técnicos e científicos, para colocá-la a trabalho da autonomia e independência de pessoas” Lobosque (2003, p. 20), sobretudo àquelas privadas do convívio social durante internações crônicas longuíssimas em instituições asilares manicomiais nacionais. Neste momento histórico, terapeutas ocupacionais são convocados a desenvolver trabalhos de readaptação social, com vieses de reinserção sócio-comunitária, mas ainda fortemente marcados por uma concepção organicista de adaptação, conserto, manejo de seqüelas com as quais os indivíduos egressaram dos manicômios voltaram totalmente despreparados para o laço na vida fora dos muros. Mais tarde veremos a preocupação da Terapia Ocupacional através das suas primeiras experiências de acompanhamento terapêutico externo, na comunidade e no território, dos egressos de longas internações psiquiátricas, como produção de uma aposta na emancipação dos sujeitos através da circulação social e da ampliação de redes e suportes sociais. A Terapia Ocupacional como produção de laços sociais e possibilidades de inserção no grupo, a partir dos dispositivos de oficinas terapêuticas, de produção, de geração de trabalho e renda: priorização do fazer do portador de sofrimento psíquico no seu cotidiano, assim constituído, seja ele institucional ou sócio-familiar em função de um processo de emancipação, que culmina com graus de autonomia e independência para ampliação da participação na vida social. Tal lógica psicossocial na Terapia Ocupacional assemelha-se ao que Lobosque (2003, p. 166) enfatizou na “luta política: a luta antimanicomial aí se situa, com seu importante lugar no cenário brasileiro das políticas de emancipação”. A autora ainda explicita: “criar na cidade um tipo de funcionamento e de trânsito, de produção e de trocas, que afirme entre todos os homens, loucos ou não, esta igualdade negada, não me parece ser uma questão, digamos, setorial, uma questão exclusivamente da Saúde, ou da Saúde Mental: creio tratar-se de uma crucial questão política” Lobosque (2003, p. 166); neste lugar encontramos a preocupação da Terapia Ocupacional em produzir sua clínica militante através da promoção do cotidiano, portanto, destes fazeres e enlaces sócio-políticos dos indivíduos, em grande relevância com a proposta da Atenção Psicossocial - aqui exposta neste trabalho monográfico.
  • 21. 29 A Reforma Psiquiátrica brasileira esboça seu projeto de Saúde Mental e luta antimanicomial através da militância - “projeto de uma sociedade sem manicômios, para fazer- se valer, necessita de movimentos sociais que se constituam com independência e mantenham acesa a combatividade” Lobosque (2003, p. 49). Dentro do movimento de trabalhadores da Saúde Mental a crítica aponta para a necessidade de erradicar resquícios de uma clínica voltada para um ortopedismo mental (nota nossa: neologismo utilizado pelos militantes da luta antimanicomial ao se referir ao manicômio mental que favorece segregação e exclusão social dos indivíduos portadores de sofrimento mental), o que em Terapia Ocupacional viu-se a gradual superação da clínica centrada nos sintomas, nos desajustes dos componentes psíquicos a partir dos transtornos mentais diversos para uma clínica engajada com a emancipação cotidiana dos sujeitos em processos de empoderamento de si mesmos, através do fazer terapêutico, e no estabelecimento de novas conquistas do laço social seja no acompanhamento terapêutico de circulação social, seja na estruturação das oficinas terapêuticas como o espaço de o homem se (re)fazer. No que tange à estruturação da Política Pública de Saúde Mental, as oficinas terapêuticas sofreram nova concepção: “Todos os dispositivos que usam de alguma forma o trabalho como instrumento terapêutico (...). Um dispositivo quase sempre experimental, que não segue uma fundamentação teórica rígida, nem modelo padrão de funcionamento, um dispositivo que é essencialmente constituído no quotidiano por seus pacientes e técnicos” Lopes (1996, p. 78-82) apud Galletti (2004, p. 31). Nesse contexto, as oficinas passaram a coabitarem-se como mecanismos de manutenção para uma efetivação da política pró-Saúde Mental. Foram se constituindo obedecendo alguns aspectos: - articulação de uma demanda no campo “reabilitador” Lopes (1996, p. 78-82) apud Galletti (2004, p. 31), as experiências de Terapia Ocupacional apontariam, então, as oficinas como espaço privilegiado de reaprendizados, de readaptação frente à exclusão experimentada nos períodos das grandes internações; - ofertas criadas com ligação direta ao trabalho, uma vez que terapeutas ocupacionais priorizaram a ênfase na atividade produtiva, remunerável, como forma de inserção da clientela marginalizada, visando sua reintegração e também sobrevivência material; - produção de recursos financeiros para os usuários, estruturação da inserção / reinserção do sujeito à sociedade através de redes de apoio ao trabalho protegido e / ou solidário, num viés institucional, pouco emancipador naquela ocasião; - encontro entre trabalho e função social através da terapia, contribuição mais significativa da Terapia Ocupacional no que se refere à expansão das oficinas no sistema público de saúde brasileiro.
  • 22. 30 Neste momento observa-se um fenômeno de ampliação da participação do portador de sofrimento psíquico no campo social, com ampliada a assistência de forma dinâmica, como também sustentação dos processos coletivos e solidários do trabalho. Enuncia-se, então, que “as oficinas foram estruturando-se de forma expandida na Saúde Mental encontrando no viés terapêutico sua característica mais visível” Rocha (1997, p. 29) apud Galletti (2004, p. 33). Observa-se assim a supremacia da terapia (nota nossa: aqui não se refere à especificidade da Terapia Ocupacional, e sim ao genérico do termo; quando o dispositivo de oficina começou a se relacionar ao estatuto terapêutico) em relação aos outros campos de saber, utilização de diversificados ditos recursos terapêuticos como modalidades para a promoção da Clínica em Saúde Mental, como as redes de suporte social e a participação dos familiares. As oficinas terapêuticas vão contribuir aí para a diferenciação entre clínica entendida pelo conceito de instituição de assistência à Atenção Psicossocial e situando a terapia como seu instrumento privilegiado. Uma vez que a relação de trabalho e artes nas oficinas produz inserção no coletivo não só para pacientes portadores de sofrimento psíquico como qualquer ser humano: produção de arte e da vida material, sendo assim interessou-se ampliar o método terapêutico ocupacional como produtor de ações para toda a Saúde Mental, assistiu-se aí uma descaracterização das oficinas como um domínio de saber e aplicação tecnológica exclusivos do terapeuta ocupacional. Tais oficinas passam a se caracterizar como veículos para a produção de intercessores clínicos para a Saúde Mental: “Esses espaços [das ditas oficinas] têm promovido na desestabilização nos enquadramentos específicos de cada área. Nos espaços de oficinas, estão envolvidos profissionais de diversas origens – Psicologia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Serviço Social, que não seguem uma corrente específica, mas geralmente estão comprometidas a propiciar aos usuários na gama de experimentações sociais e, a partir daí, criar possibilidades diversificadas de ser e estar-no-mundo” Galletti (2004, p. 36). Estes dispositivos vão formatar uma diversidade de possibilidades de ações sempre com espaços clínicos que valorizaram o hibridismo, a mobilidade, a instabilidade (mutabilidade de estruturas e ofertas), sem identidade única, com experimentação múltiplas e incessantes, interseção com vários campos e saberes, espaço agora pouco restrito quanto à especializada profissional, dando possibilidade de problematização e descontinuidade das produções
  • 23. 31 terapêuticas, com nova cultura de intervenções e escapismo do modelo segregacionista normalizador. A Terapia Ocupacional, por sua vez, vai se apropriar, como veremos adiante no presente estudo monográfico, das oficinas como espaço para a produção de vida cotidiana, da vida diária humana. As oficinas produtivas, ou ainda oficinas de trabalho, são aquelas que o terapeuta ocupacional media processos de fazer em que as relações com o trabalho, as funções produtivas, os ofícios, portanto, são (res)significados numa dimensão emancipatória do fazer humano. “O trabalho, na vida adulta, é o mediador central da construção, do desenvolvimento e complementação dessa identidade e do indivíduo, na medida em que o confronta com um mundo externo, com lógicas, desafios, regras e valores que necessariamente se chocarão com a história singular de cada um” Lancman (2004, p. 73). Deste modo, “(...) o trabalho tem esta função central na produção da identidade e é um elemento- chave na constituição psíquica dos indivíduos (...), o trabalho, aquilo que se faz, a relação com todos os aspectos que o envolvem, produz a inteligência, modifica o corpo, as relações sociais e constitui o indivíduo psiquicamente. Neste sentido, o trabalho é entendido como um continuum, que se estende para além dele e influencia todas as esferas da vida humana” Lancman (2004, p. 74). As oficinas em Terapia Ocupacional guardam um aspecto significativo dado à socialização e ao agrupamento dos indivíduos, de aporte à reinserção de usuários e parcelas sociais estigmatizadas e ou deficitárias em termos de aceitação social. São oficinas ditas de convivência para combater “o isolamento, a ruptura com o social e a impossibilidade de coletivizar experiências pessoais, é o produtor de sofrimento psíquico” Leal (1999, p. 79) apud Galletti (1994, p. 65), que se importem em valorizar a diversidade de atividades e propostas para o fazer, que se articulem com o funcionamento institucional para acolhimento de demandas encaminhadas de usuários da Rede de Saúde Mental. As oficinas de Terapia Ocupacional, historicamente, vão demonstrar recusa sistemática dos profissionais para que a clínica ocupacional não seja vista como mera técnica, ou com um aporte teórico único, destinada ao entretenimento, à distração e ao combate ao ócio excessivo dos usuários nos dispositivos públicos da Saúde Mental, uma vez que os terapeutas ocupacionais se propuseram a estruturar o seu saber através da atividade humana aplicada aos contextos da vida diária, ao cotidiano, à ocupação em termos de funcionalidade, papéis, desempenhos cotidianos. Por isso não há o interesse
  • 24. 32 “de propor uma técnica terapêutica para resolver os problemas das demais técnicas, e sim problematizar, promover estratégias particulares, singulares, que digam respeito aos problemas também circulares que a clínica nos propõe” Neves et al (1996, p. 183) apud Galletti (2004, p. 85). E a Terapia Ocupacional vai se comprometer com sua clínica dita pelos profissionais da área como militante, transdisciplinar (idem) e holística, uma vez que é erguida para e pelo cotidiano dos indivíduos. “Preocupada com a criação de novas maneiras de viver, uma clínica que se ocupasse das produções do inconsciente para além de uma pura fantasmagoria, tiranias da intimidade)” Neves et al (1996, p. 183) apud Galletti (2004, p. 85) essas experiências foram efetivadas na área comprometidas com o viés aglutinador das oficinas. Um exemplo relevante foi aquele em que os terapeutas ocupacionais da Universidade de São Paulo propuseram a criação do Espaço Lúdico Terapêutico - ELT (parceria entre Universidade, Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, daí articularam com profissionais de outras áreas, dentre elas Psicologia e Fonoaudiologia, estratégias para atendimentos de crianças, famílias, adolescentes, internações, alcançando assim uma atuação para o fora institucional em prol de estabelecimento de parcerias em redes mútuas de ação. Tais oficinas, neste contexto, foram traçadas com o caráter de organização entre o social e o indivíduo para intermediar totalidades, em que se reconhece o holismo da visão de homem e saúde em Terapia Ocupacional. Foi no ELT que as identidades sociais tornaram ampliadas pelo lugar de os ditos “normais’ e “loucos” conviverem, se dando aos encontros entre terapeutas e pacientes como cidadãos. A Terapia Ocupacional ali desenhada como o lugar de trabalhar e a sua oficina é um laboratório de produção de vida e da vivência (sócio-cultural, grupal). A instituição é transformada em um renovado dispositivo social, criação de uma função articuladora, tem sua proposta ampliada para toda a rede de atenção à Saúde Mental na capital paulista. As oficinas em Saúde Mental contemporâneas (GALLETTI, 2004), produzidas nos serviços de Atenção Psicossocial, podem ser caracterizadas por: - profusa heterogeneidade / hibridismo de práticas; - outras intervenções da clínica (com a incorporação de diferentes modalidades de especialistas); - oficinas não se dão atreladas a nenhum paradigma científico isolado; - há precariedade constitutiva de dispositivos – constituídos na conexão de diversos saberes; - extravasamento de fronteiras científicas para elevação da experiência clínica; - potente espaço
  • 25. 33 de experimentação; - efetuação da transdisciplinaridade. - possibilidades de experimentar bordas e limites criando novas formas de subjetividade; - subversão de padrões majoritários de assistência à Saúde; - não estão limitadas ao terreno da Saúde Mental; - operar com encontros híbridos nos espaços clínicos; - afinidade grande da prática expansiva de oficinas com os postulados da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial; - instrumento intercessor para ocupar lugar terapêutico de originalidade, singularidade, sem rigor de práticas assistenciais (GALLETTI, 2004).
  • 26. 34 V. Terapia Ocupacional e o Cotidiano Ressignificado: Produção de Vida “A alma é um cenário. Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca, inundada de alegria. Por vezes, ela é como um pôr do sol, triste e nostálgico” Rubem Alves “Ao produzir o mundo, o homem produz a si mesmo” Marx e Engels A Terapia Ocupacional, finalmente, entendida como Ciência da Ocupação Humana, portanto tendo como primordial preocupação a própria experiência humana, anuncia que: “a atividade humana seja entendida como espaço para criar, recriar, produzir um mundo humano. Que esta seja repleta de simbolismo, isto é, que a ação não seja meramente um ato biológico, mas um ato cheio de intenções, vontades, desejos e necessidades (...); não basta fazer, fazer e fazer, acreditando que o simples curso das coisas com isso se modifique. O fazer deve acontecer através do processo de identificação das necessidades, problematização e superação do conflito [nota nossa: no cotidiano mais significativo do indivíduo] (...) é necessário um profissional preparado, cuja tarefa é a de se dispor, também, como instrumento terapêutico ou recurso terapêutico, com o propósito de incomodar, de ativar e revelar o conflito para a sua proposição” Francisco (2005. p.17). Neste ínterim, a ação do terapeuta ocupacional, em sua clínica do cotidiano, faz-se da problematização de um fazer que mereça ser ressignificado pelo indivíduo que passa a possuir a si mesmo e a possuir o seu próprio processo de transformação. Esse um processo terapêutico de fazer que se proponha incessante, ainda que o sujeito diante disto se depare com sua incompletude, inerente à sucessão de vivências e possibilidades que é viver. Uma clínica para e pelo fazer que não se deponha a extinguir as lacunas do ser, mas que o emancipe a superá-las através de uma postura sucessivamente marcada pelo desejo e a necessidade de transformar, lidar. Assim, cabe ao sujeito emergir; afinal “existir, seja como for” (de acordo com a poesia de Carlos Drummond de Andrade, em Passagem da Noite). Não há mudança do objeto de estudo em Terapia Ocupacional, que continua a ser o fazer humano. No entanto ao eleger o cotidiano como o eixo da clínica, neste presente estudo monográfico, ouve a ousadia de ressignificar o objeto de estudo da Terapia Ocupacional –
  • 27. 35 “a Terapia Ocupacional deva assumir, cada vez mais, o papel de promoção do homem (....) tal promoção se dá por meio do desenvolvimento da personalidade e das potencialidades ou capacidades humanas” Francisco (2005. p. 20). De tal forma, depreende-se uma concepção ampliada da clínica que poderia ser displicentemente dimensionada a partir dos processos daqueles clientes que mantém um fazer ativo, sem dar devida discussão àquele cotidiano de que não empreende um processo de mudança, de transformação de si ou do universo relacional ao seu redor, e ainda assim sobrevive. Este não-fazer cotidiano é motivo de discussão, algo objeto de intervenção, que gera processos de saúde-doença que interpolam à Terapia Ocupacional objetivar ações e contextos de cuidados. Terapeutas ocupacionais são cientistas do fazer humano, conforme os dizeres de Reilly apud Francisco (2005. p. 39): tais profissionais consideram que o “objetivo da Terapia Ocupacional é encorajar o encontro aberto e ativo com tarefas que razoavelmente pertencem a seu papel de vida”, assim fabricam a clínica do cotidiano. Procuram envolver seus clientes em processos de fazer mobilizadores de mudanças, de transformações complexas para além das experiências do setting ocupacional qualificado como mediador de proteção e estimulação nos grupos, oficinas ou sessões individuais de psicoterapia ocupacional para então edificar junto ao cliente um cotidiano ressignificado. Este acontecimento é a produção de vida, geração de vivência do que seja apropriação por parte do sujeito diante do seu mundo relacional na busca de resgatar significação para aquilo que viva diariamente. A superação daquilo que fora configurado como limite eleva o ser a seu status práxico no empossamento da vida que advém repleta de desejo e criação particulares, ou ainda “por intermédio do terapeuta ocupacional, uma variedade de experiências essas que permitirão ao indivíduo desenvolver aquelas capacidades, habilidades e destrezas necessárias para uma vida satisfatória e produtiva” Mosey apud Francisco (2005. p.39). O processo de ressignificação do fazer, da atividade de realização humana e por extensão, do cotidiano, alcança na Terapia Ocupacional um processo psicoterapêutico a partir da dinâmica entre atividade e produção de significado para a vida, por parte do indivíduo. “Como processo psicoterapêutico [nota nossa: a Terapia Ocupacional] deve seguir- se necessariamente que o produto sendo feito e o trabalho de fazê-lo são considerados secundários ao julgamento de como o produto e o processo de fazê-lo afetam suas relações com os outros. A ocupação passa então a ser a ferramenta da manipulação de suas relações com outras pessoas e não o objetivo primordial em si” Fidler e Fidler apud Francisco (2005. p.41).
  • 28. 36 Numa visão marxista histórica, de onde se baseia o paradigma praxicológico da profissão, temos que em Terapia Ocupacional, a produção de vida seja a partir da produção práxica de relações do ser com o seu processo de trabalho, de inter-relação com o grupo social e sua atribuição de valor ao processo da produção, uma vez que através dela o indivíduo se projeta no mundo dos objetos, problematiza o alcance de seu próprio trabalho produtivo e integra valor a si como humano, inserido numa fabricação do mundo humano, portanto. “Como a Terapia Ocupacional é uma prática de saúde que propõe o uso da atividade como recurso terapêutico, uma das possibilidades de ela vir a ser um espaço para transformar a si mesma e assim contribuir para a transformação social mais significante é através desse fazer. Um fazer que busca conscientizar os homens da opressão a que estão submetidos como membros de uma sociedade classista. Um fazer que desvela as determinações sociais vividas, busca descobrir formas revolucionárias, mostra a contradição e o conflito da saúde numa sociedade de classes” Francisco (2005. p.66). O que se denomina de produção de vida é a suma produção de atividade humana propriamente dita, de enfrentamento de contextos cotidianos que possibilitem a transformação do ser: “a atividade propriamente humana só se verifica quando os atos dirigidos a um objeto [nota nossa: ou a uma relação ou contexto de vida] para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal ou finalidade e terminam com um resultado ou produto efetivo real” Vasquez apud Francisco (2005. p. 46), em função da natureza práxica do ser humano: “o homem é um ser que em suas relações necessita estar sempre encontrando novas soluções para as situações de vida que se apresentam” Francisco (2005. p. 47) e assim ressignificar seu cotidiano e existência. A produção de vida é alcançada na diversidade da existência do indivíduo e suas perspectivas de ascensão, superação ou mesmo adaptação para uma qualidade de vida em termos de automanutenção, inserção social e participação em papéis da vida diária. Pelas quais, o terapeuta se empresta a um caminho compartilhado de experiências e vivências sempre desafiado junto ao cliente, este principal interessado nas possibilidades de ser e existir. “Assim, lidar com o cotidiano é sempre intervenção que exige um lidar com a concretude do homem, esse movimento de múltiplas relações. O cotidiano não é rotina, não é a simples repetição mecânica de ações que levam a um fazer por fazer [nota nossa: fazer alienado ou mecanicista]. O cotidiano é o lugar onde buscamos exercer nossa atividade prática transformadora, é o social; é o contexto em que vivemos” Francisco (2005. p.76).
  • 29. 37 Ressignificar o cotidiano, produzir a vida toda, são os pilares da ciência da ocupação humana da Terapia Ocupacional: “uma ciência que tem, como sujeito e objeto de seu conhecimento, o homem. Um homem que não é o homem natural, mas o homem que transforma a natureza em humanidade e que, também e principalmente, é um homem que faz, que ao fazer simboliza e se objetiva e, com isso, se torna ser de sua existência” Carvalho (2005, p.26). E no seu ofício o profissional tem como desafio: “com base na leitura do cotidiano e seus contextos e da histórica ocupacional dos envolvidos é que o terapeuta ocupacional deverá encaminhar a ação. Dessa forma poderá auxiliar o sujeito, o grupo e a coletividade a compreender suas próprias necessidades e definir suas estratégias de lidar com os conflitos cotidianos, a ressignificar seu fazer e pensar sua ação no mundo, respeitando-se os diferentes momentos e possibilidades dos envolvidos. Será por meio da ação grupal e coletiva que poderá dar a manifestação das solidariedades e o fortalecimento da trama social” Galheigo (2005, p. 44). Daí, ressignificar a produção de suas vidas emana nos indivíduos uma necessidade vital de existir, de inscreverem-se singulares e potencializados no cotidiano mais idiossincrático, pelo convívio salutar de inserção no grupo, ao qual se pode pertencer, fortalecer-se, emancipar-se ou ainda remover-se, declinar-se, transitar, reconhecer. Nos dizeres do filósofo Félix Guattari “os indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes”. E lograr o cotidiano como estatuto do fazer em uma fonte de ressignificação, tal qual atribuição de outros símbolos para apropriar-se de si mesmo numa dinâmica incessante de transformação do que se é ou se está sendo, por vir-a-ser enfim.
  • 30. 38 Considerações Finais “Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia... Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade” Edgar Morin O presente trabalho monográfico traçou uma reflexão a respeito da contribuição da área de conhecimento da Terapia Ocupacional, no que se refere ao cotidiano de vida dos ditos usuários dos serviços de Saúde Mental - os portadores de sofrimentos psíquicos, como um eixo norteador de práticas, e, portanto, produtor de tecnologias e discurso, além de norteador de práticas para o cuidado. O campo da Atenção Psicossocial é uma diversidade de interfaces, nas quais a Saúde Mental destaca-se pela procura de inserção dos “loucos” nos cenários de vida contemporâneos seja na cultura, no trabalho formal ou protegido, no núcleo familiar, no sistema de educação e nas relações de saúde. Tal procura é atravessada por um modo de fazer que encontra, entre outras áreas científicas e discursos ideológicos, a Terapia Ocupacional como ferramenta articuladora de processos de emancipação para os sujeitos nas modalidades de inserção social ampliada e de reabilitação de recursos e contextos para a vida diária. A eleição do cotidiano, como um eixo para a clínica terapêutica ocupacional, aqui objeto do estudo, refletiu o compromisso em repensar a vida de cada indivíduo que se atravessa pelos caminhos e descaminhos do fazer de si mesmos, dia após dia, mantendo-se num processo inadiável entre saúde-doença, conquista e ruptura de fazeres para o ser. Marcando essa singularidade para a contribuição da Terapia Ocupacional em Saúde Mental. Os desafios de desenhar esta clínica da ocupação humana ultrapassam os limites de práticas ortodoxas centradas em processos esvaziados de técnicas alienantes de atividades, para enfim privilegiar o dimensionamento do ser como o principal artífice de sua própria existência, práxis e historicidade.
  • 31. 39 Referências AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G. A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: Análise de Dois Projetos Pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil. In: Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n.58, p-26-34, mai./ago. 2001. ARRUDA, E. Terapêutica Ocupacional Psiquiátrica. Rio de Janeiro: 1962. BARTALOTTI, C. C. e DE CARLO, M. M. R. P. In: BARTALOTTI, C. C. e DE CARLO, M. M. R. P. (org.). Terapia Ocupacional no Brasil – Fundamentos e Perspectivas. São Paulo: Plexus Editora, 2001. CARVALHO, F. B. O Conceito de Símbolo em Cassirer, Freud e Ricoueur como Fundamento para a Terapia Ocupacional. In: PÁDUA, E. M. M. & MAGALHÃES, L. V. Terapia Ocupacional – Teoria e Prática. 3 ed. Campinas, SP: Papirus, 2005. p. 15-26. FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI. Versão 3.0. Nova Fronteira e Lexikon Informática, 1999. FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1980. FRANCISCO, B. R. Terapia Ocupacional. 2 ed. Campinas, SP: Papirus, 2001. GALHEIGO, S. M. O Social: Idas e Vindas de um Campo de Ação em Terapia Ocupacional. In: PÁDUA, E. M. M. & MAGALHÃES, L. V. Terapia Ocupacional – Teoria e Prática. 3 ed Campinas, SP: Papirus, 2005. p. 15-26. GALLETTI, M. C. Oficina em Saúde Mental: instrumento terapêutico ou intercessor clínico? Goiânia: Ed. da UCG, 2004. GIACOIA JÚNIOR, O. Prefácio. In: LOBOSQUE, A. M. Clínica em Movimento. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2003. HAGEDORN, R. Fundamentos da Prática em Terapia Ocupacional. São Paulo: Dynamis, cap. 2, 1999. p. 127-149. HELLER, A. Cotidiano e História. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1989. HELLER, A. Sociologia de La Vida Cotidiana. 4.ed. Barcelona: Península, 1994. JORGE, R. C. O Objeto e a Especificidade da Terapia Ocupacional. Belo Horizonte: GES.TO, 1990. JORGE, R. C.. Terapia Ocupacional Psiquiátrica, Aperfeiçoamento. Belo Horizonte: FUMARC / PUC MG, 1981. LEAL, L. G. P. Terapia Ocupacional – Guardados de Gavetas e Outros Guardados. Recife: Ed. do Autor, 2005. LOBOSQUE, A. M. Clínica em Movimento. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2003.
  • 32. 40 OLIVEIRA, A. J. Terapia Ocupacional: Perspectiva para a Educação em Saúde do Trabalhador. In: LANCMAN, S. (org.) Saúde, Trabalho e Terapia Ocupacional. São Paulo: Roca, 2004. PÁDUA, E. M. M. de e MAGALHÃES, L. V. Terapia Ocupacional: Teoria e Prática. Campinas, SP: Papirus, 2003. SILVEIRA, N. Terapêutica Ocupacional – Teoria e Prática. Rio de Janeiro: 1966. TEIXEIRA, M. O. L. Nascimento da Psiquiatria no Brasil. In: VENÂNCIO, A. T., LEAL, E. M. & DELGADO, P. G. (org.). O Campo da Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia / Te Corá Editora, 1997.