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“Por favor, não me
deixe morrer”
A garota Sonia, de apenas 11 anos, implora à repórter
Eliane Brum para que salve sua vida. Assim como quase
todas as pessoas de sua família, bolivianos do povoado
de Novillero, Sonia é vítima da Doença de Chagas. Antes
de partir de volta para o Brasil, Eliane, então, promete a
ela: “Eu vou contar a tua história para o mundo.”
Por: Lu Cafaggi e Stefânia Firmo
Eliane Brum
Sonia, de 11 anos, e a sobrinha Érica, de 5. Sonia teve reação alérgica ao tratamento da doença e precisou suspendê-
lo. Ainda não há um medicamento pediátrico, por isso as crianças são mais vulneráveis aos seus efeitos.
Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 1
editoria
Fotos: ############
Naquela noite, Eliane Brum con-
ta uma história de terror. Um conto
sobre vidas assombradas por cria-
turas que, em seu sangue, carregam
promessas invisíveis de morte. Ou
uma história verdadeira sobre os
“vampiros da realidade”.
Três de setembro, centro de Belo
Horizonte. É noite de Sempre um
Papo, no SESC Palladium, quan-
do Eliane fala das histórias que
detalhou em reportagem no livro
“Dignidade!”. Histórias de Sonia,
Maria, Cristina e suas famílias do-
entes. E pobres. O título da repor-
tagem defende que os vampiros da
realidade só matam pobres.
O monstro das histórias conta-
das é o barbeiro, vetor da Doença
de Chagas, que despenca sobre os
corpos adormecidos daqueles mo-
radores dos vales da Bolívia. O
ruído de suas asas dá o compas-
so da rotina daquelas aldeias. Seu
sangue – ou o sangue das pessoas,
chupado durante a noite – mancha
as paredes das casas. Sua presença,
em milhares, compete com as vidas
daquelas famílias.
Em tantos momentos, os espec-
tadores que escutam o relato de
Eliane passeiam as mãos ao redor
do pescoço, ou disfarçam, enco-
lhidas, um comichão no braço. A
linguagem de seus corpos tensos
denuncia o desconforto que nasce
a partir daquele mundo novo que
Eliane apresenta.
Novo, sim, mas não porque
sua existência era desconhecida.
Era novo porque, antes, nunca ha-
via parecido tão próximo. Parecia
uma realidade inacessível, tão tris-
te que só cabia em uma abstração.
Um punhado de terra vermelha na
dimensão do “infelizmente, não há
nada que eu possa fazer por eles”.
No entanto, é um mundo vivo,
verdadeiro. E é nosso vizinho de
mapa.
Mas o mapa não conta de seus
personagens, com suas tranças,
Infecção causada
pelo protozoário
Trypanosoma cruzi
e transmitida pelo
barbeiro. Seus
sintomas variam de
inflamaçcão nos
órgãos infectados
a insuficiência
cardíaca. Se não
tratada, a doença
crônica pode ser
fatal.
Projeto cultural
de incentivo
à leitura, que
realiza encontros
entre público e
grandes nomes
da literatura,
em auditórios
espalhados por
mais de trinta
cidades brasileiras.
Livro que reúne
textos de escritores
de diferentes países
que acompanharam
os Médicos Sem
Fronteiras em
suas missões
no tratamento
de doenças
negligenciadas
pelos governantes.
Foi lançado em
2012, no Brasil, pela
editora Leya.
Inseto vetor da
Doença de Chagas.
No povoado que
Eliane visita com
os Médicos Sem
Fronteiras, é
conhecido como
“vinchuca”, nome
que significa,
literalmente,
“deixar-se cair.”
Eliane Brum escreve Jornalismo Literário, um modelo que mescla
aspectos da literatura com os princípios jornalísticos
editoria
Revista Ponto & Vírgula — ### de ####2 Fotos: ############
seus silêncios, suas infâncias, colos e
acanhamentos. Chega a parecer que
o mapa mente, mais esconde do que
revela aquela geografia tão particu-
lar. Geografia que Eliane desvenda.
E que, ao fazer um pacto com a me-
nina Sonia – “eu vou contar a tua
história” – aproxima dois mundos.
Um mundo de cá, de infâncias intei-
ras de chances, encantos, encontros,
cadernos decorados e joelhos ardi-
dos de Merthiolate. E um mundo de
infâncias sufocadas por percevejos
que entalam nas gargantas. Que é
também um mundo de cá, mas um
mundo invisível.
Eliane Brum é jornalista, escri-
tora e documentarista. Atualmente,
escreve uma coluna semanal para a
revista Época. Três semanas após o
bate-papo no SESC Palladium, Elia-
ne concede à Ponto e Vírgula uma
entrevista exclusiva. Pelo telefone,
Eliane nos conta do pouco e do mui-
to que um repórter traz ao mundo
quando compartilha as histórias re-
ais que encontra nos parênteses do
dia-a-dia. Histórias da vida que nin-
guém vê.
Em momento algum, Eliane se re-
fere a Sonia, Maria, Cristina ou suas
famílias como “aquelas” pessoas,
“aquelas” vidas. Um pronome de-
monstrativo mais acolhedor indica
o estigma “dessas” pessoas que ficou
em sua vida reportadeira.
Por que você decide nos
contar as histórias dessas
pessoas? Qual a diferença
que você acredita que seu
trabalho pode trazer ao mun-
do?
Eu acredito profundamente no
poder da narrativa, no poder da his-
tória contada. No poder da história
da vida contada como instrumento
de transformação da própria vida. E
isso é o que dá sentido a minha vida.
Tudo o que eu faço é a partir dessa
crença. E, quando eu encontro a So-
Cristina e Maria estão entre os milhares de camponeses da região de Narciso Campero, na Bolívia, que convivem
com o barbeiro. As duas amigas conheceram-se em uma viagem que fizeram em busca de um marca-passo.
Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 3
editoria
Fotos: ############
nia (e eu já fiz várias matérias muito
complicadas, várias matérias que eu
levei, algumas delas, anos para me
recuperar, outras das quais nunca
vou me recuperar), eu acho que faço
o meu confronto mais profundo
com a impotência. Porque, quando
ela me pede para salvar a vida dela,
o que eu sempre digo para as pesso-
as: “eu vou contar a tua história pro
mundo” (e eu acho que isso é impor-
tante). Quando fui dizer isso para
ela (e eu disse), eu sabia que isso não
seria suficiente, talvez, para salvar a
vida dela. A vida dela. Dela que esta-
va me pedindo. Pedindo a mim.
Quando volto para São Paulo, eu
fico paralisada pela primeira vez na
minha vida. Eu não consigo escrever
porque, pela primeira vez, eu achei
que escrever era pouco. Que escre-
ver não ia salvar a vida da Sonia.
Então eu fiquei duas semanas
paralisada e precisei fazer uma re-
flexão muito profunda, um mergu-
lho profundo dentro de mim, para
entender que, se eu não conseguisse
romper essa paralisia e contar a his-
tória da Sonia para o mundo, eu não
ia cumprir a minha parte no pacto
com ela.
E contar uma história é pouco. E
é muito. É pouco e é muito, ao mes-
mo tempo. E acho que isso eu enten-
di. Acho que ser jornalista e contar
histórias reais é sempre um confron-
to cotidiano com a impotência. Só
que, até então, isso nunca tinha fica-
do tão claro para mim. A gente tem
que conviver com esse muito que é
também pouco, mas que é o possí-
vel. E é grande contar uma história
e, por isso, eu escrevo também que,
ao compartilhar o pesadelo que vai
ser meu para sempre com as pessoas,
é uma tentativa de, através da histó-
ria contada, conseguir fazer com que
as pessoas se mobilizem para fazer a
sua parte, para que um dia, no mun-
do, crianças como Sonia não preci-
sem pedir para serem salvas.
Contar uma história é romper
a barreira da invisibilidade. É
aproximar mundos que viviam
apartados. Isso é contar uma
história real e esse é que é o po-
der da reportagem. E eu acredito
muito nisso.
Os jornalistas são
historiadores do
cotidiano. O que
a gente produz é
documento sobre
a nossa época. E
isso é humano.
Suas reportagens são
classificadas como Jorna-
lismo Literário. Você acre-
dita que a linguagem que
você escolhe para contar
suas reportagens – se é
que isso é uma escolha –
pode fazer com que seu
leitor se importe mais com
o que está sendo contado
do que se você escolhesse
uma linguagem jornalística
mais tradicional?
Eu não sei se existe uma lingua-
gem tradicional no jornalismo. Exis-
te bom jornalismo e existe mau jor-
nalismo. E, às vezes, tu ficas apenas
nos números (e aco que os números
são, sim, importantes), mas a gente
precisa dar carne para as estatísticas.
A gente precisa mostrar os rostos, as
vidas, os nomes, os sobrenomes de
quem está por trás, de quem está en-
coberto por essa estatística. A esta-
tística é sempre uma coisa fria.
Então eu acho que a boa repor-
tagem é aquela que consegue, o
máximo possível, dar conta da com-
plexidade daquela realidade. Con-
tar como são aquelas vidas. Quais
são aqueles detalhes que alimentam
aquelas vidas. Como é que é o am-
biente, como é que é o contexto,
como é que é a História. Por isso,
fazer uma boa reportagem dá mui-
to trabalho e as suas informações,
como repórter, não são apenas as es-
tatísticas, não são apenas as palavras
ditas. Mas é toda a complexidade do
real que é feita por um monte de coi-
sas, inclusive por cheiros, por gestos,
por cores... E silêncios, também.
Tem muito mais informação para
apurar do que tu ficar apenas em
aspas e números. Então, isso, para
mim, é bom jornalismo. E é isso que
carrega a pessoas pro mundo do ou-
tro. Porque o repórter vai até onde o
leitor não pode ir. E ele precisa trazer
para o leitor toda a complexidade
desse mundo, para que o leitor pos-
sa sentir, com todas as informações
editoria
Revista Ponto & Vírgula — ### de ####4 Fotos: ############
que o repórter apurou e possa fazer,
então, as suas próprias escolhas a
partir de sua própria interpretação
do mundo.
Então eu fico muito feliz. O maior
elogio que eu posso receber é quan-
do o leitor me diz “lendo a tua re-
portagem, parecia que eu estava lá”.
Então, eu consegui chegar perto des-
sa realidade.
O mais criminoso que a gente
pode fazer é reduzir a complexidade
da realidade. E quando tu enxerga
as pessoas, para além dos números, é
outro envolvimento que tu tem com
a realidade. Tu te implica, à medida
que tu te implica com o outro, com
aquilo que é humano.
Às vezes, as pessoas me dizem
“ah, tu faz matérias humanas” ou
“por que tu escolhe fazer matérias
humanas?”. Eu não consigo nem
entender essa pergunta. “Como as-
sim?” Nós somos contadores da his-
tória cotidiana. Os jornalistas são
historiadores do cotidiano. O que a
gente produz é documento sobre a
nossa época, sobre nosso momento
histórico. E isso é humano. A Histó-
ria é construída por pessoas. Então
toda reportagem é humana. São hu-
manos escrevendo sobre outros.
Uma doença não é só uma doen-
ça. É como se tu fosses escrever so-
bre a Doença de Chagas e escrevesse
só sobre uma doença. Daí tu está
falseando a realidade, está resumin-
do a realidade. Porque uma doença
é História, é contexto, é costume, é
cultura. E é isso o que eu tento fazer
ao contar a história da Maria e da
Cristina, ao contar a história de suas
famílias. O Chagas não é algo que
simplesmente está ali, uma doença
que está fora da História, fora do
Pacientes levam suas famílias inteiras para saber os resultados dos exames de Chagas. Aiquile, Bolívia.
Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 5
editoria
Fotos: ############
processo histórico.
Essa doença só está matando es-
sas pessoas por causa de uma série
de questões históricas, por ser uma
doença da pobreza, por ser uma do-
ença negligenciada. E, por ser uma
doença da pobreza, é uma doença
que a indústria farmacêutica não
tem interesse em pesquisar. E porque
ela não se interessa em pesquisar, só
existe um remédio, que é de 1960
e tem vários efeitos colaterais. Por
causa dos efeitos colaterais, muita
gente não pode se tratar. E a gente
está em 2012 e ainda não se pes-
quisou nenhum outro tratamento,
nenhuma outra vacina para essa do-
ença. Ela é uma doença que poderia
ser erradicada, se fosse erradicado o
seu vetor, que é o barbeiro. E, para
isso, precisaria ter casas, para essas
pessoas, que fossem seguras. E por
que essa população é invisível?
Então uma doença não é só uma
doença. Uma doença é uma doen-
ça dentro de um processo histórico
cultural. E esse é meu desafio como
repórter.
Assim como, quando eu falo de
vampiros, eu não estou fazendo uma
graça. Não estou fazendo uma brin-
cadeira com o barbeiro que é um
inseto que suga o sangue. Eles são
vampiros por causa de toda uma
apreensão que toda essa população
tem da realidade. A “vinchuca” (que
é como eles chamam barbeiro em
quéchua, e eles só falam quéchua)
é onipresente para eles. É algo que
molda, que marca a cultura, marca
a vida deles, marca a história deles.
Porque a vinchuca sempre esteve
lá. E eles não sabem que existe um
outro mundo sem vinchuca. Então,
é por isso que são vampiros, por-
que tem essa presença que molda a
vida. Determina a vida e determina
a morte.
Nosso trabalho de repórter é
aproximar os mundos. Até eu ter
contato com a história dessas pes-
soas, até eu ter que fazer esse gesto
interno de me mobilizar para ir até
o mundo deles, Chagas, para mim,
era só uma doença transmitida pelo
barbeiro. Era muito pouco. E não:
é uma tragédia, uma história de ter-
ror real que está acontecendo agora,
neste momento, bem aqui do nosso
lado. Portanto, qualquer pessoa de-
cente tem que estar implicada nisso.
E você sentiu medo ao ir pra
lá, sabendo que é um ambien-
te de risco?
Não senti medo, não. Tem ma-
térias em que eu sinto medo, como
quando envolve uma violência, em
regiões de conflito armado. Aí eu
sinto medo. Mas, nesse caso, não.
Os Médicos Sem Fronteiras só
permitiram que eu ficasse uma sema-
na. Em geral, é o tempo que eles per-
Língua indígena
da América do Sul,
ainda hoje falada
por cerca de dez
milhões de pessoas
de diversos grupos
étnicos. O quéchua
era falado na região
central dos Andes
desde bem antes da
época do Império
Inca.
ONG que oferece
ajuda médico-
humanitária
em regiões do
mundo inteiro que
convivem com
conflitos armados,
desastres naturais,
epidemias, fome,
exclusão social
ou doenças
negligenciadas.
Locais onde o
sistema de saúde
sequer existe
ou não funciona
adequadamente.
Aos nove anos,
Eliane escreveu seu
primeiro romance.
No dia em que
matou um filhote
de barata, sentiu
tanta culpa que
tentou imortalizá-
lo em uma novela
(“Autobiografia
de uma barata”),
escrita em um
caderno.
editoria
Revista Ponto & Vírgula — ### de ####6 Fotos: ############
mitem quando aceitam jornalistas,
por razões de segurança. Eu gostaria
de ter ficado mais. Achei que seria
importante ficar um pouco mais,mas
era o possível. Fiquei uma semana. E
eu também gostaria de ter ficado nas
aldeias, mas é também uma regra de-
les.Tinha de ficar na casa deles, onde
havia mais condições de segurança.
Quando e como você se des-
cobriu repórter? Quando e
como essa repórter escolheu
se aproximar das pessoas
anônimas e da vida cotidiana
dessas pessoas?
Eu acho que já era repórter antes
de saber que era repórter. Sempre fui
uma escutadeira e eu acredito que
meu principal instrumento para a
reportagem é a escuta (que é uma
coisa muito difícil). Então, desde pe-
quena, eu gostava de escutar a histó-
ria das pessoas, em vez de brincar.
Boa parte da minha família é de
origem rural. São pequenos campo-
neses. Alguns sem terra, alguns com
um pouco de terra. Eu morava na
cidade, em Ijuí (Rio Grande do Sul)
que é uma cidade muito pequena,
mas a gente ia, nos fins-de-semana,
ficar com os parentes do meu pai. E
eu gostava. Botava um banquinho e
ficava escutando, num canto, a his-
tória dos adultos, em vez de brin-
car. E eles esqueciam, até, da minha
presença ali, porque eu ficava num
cantinho. Acho que, até hoje, eu sou
essa criança que fica num canto,
num banquinho, escutando a histó-
ria dos outros.
Nunca fui faladeira. Para mim,
está sendo uma experiência muito
nova essa de fazer palestras e dar
entrevistas, que é uma coisa que é
importante. É uma forma de tu com-
partilhar conhecimento, de também
transmitir, continuar contando as
histórias que contam nas reporta-
gens, nos livros, enfim. Mas eu não
sou uma faladeira, eu sou uma escu-
tadeira. Quando eu tenho que falar
muito, eu preciso depois ficar em
casa, trancada, quieta por bastante
tempo, para me recuperar dessa ex-
posição. Eu me sinto, assim, muito
desnuda, falando. Mas acho super
importante, então, por isso, eu faço.
No momento em que aprendo a
escrever (já escutava, antes de saber
ler e escrever), os livros mudam mui-
to a minha vida, eu acho que eles me
salvam. Eu acho que eu fui salva pe-
los livros. Eu era uma criança muito
triste e encontrei uma forma de viver
outras vidas e outros mundos no mo-
mento em que eu começo a ler. E co-
mecei a escrever, também, com onze
anos de idade. Com onze, não. Com
nove anos de idade. Para dar conta
da dor do mundo, que era algo que
eu sentia muito forte. E a escrita era
um jeito de lidar com isso, porque
senão eu me sentia sufocada.
Eu sempre me
interessava não
exatamente pelo
que tinham me
pautado para fazer,
mas pelo que estava
em torno disso, ou
pelos personagens
secundários.
Fui escutando e escrevendo. Aca-
bei fazendo Jornalismo. Fazia His-
tória também, achei que eu ia ser
historiadora. Não achava que eu
servia para ser jornalista, porque eu
me achava muito tímida. Quando já
estava no final da faculdade (ia ter-
minar a faculdade porque já estava
no final, para ter o diploma) tinha
certeza de que eu não iria exercer a
profissão. Aí encontrei um professor
maravilhoso. Sempre conto essa his-
tória. Que se chama Marques Leo-
nam, que me mostrou que ser repór-
ter era a melhor profissão do mundo
e trouxe várias reportagens maravi-
lhosas, às quais eu não tinha acesso
e que eram muito diferentes daquele
jornalismo árido, sem gente, que vi-
gorava naquela época, na maioria
dos jornais. Aí eu escrevi uma ma-
téria para ele, sobre... filas. Todas
as filas que a gente entra desde que
nasce até morrer. Que era um tema
inusitado para aquela época (hoje, já
não seria). Porque era o que me inte-
ressava. Eu me interessava por essas
coisas e esse professor, ao contrário
de outros, disse que eu podia. Disse
que isso era, sim, interessante.
Essa matéria acabou sendo ins-
crita num concurso universitário
da região Sul do Brasil. Eu ganhei,
o prêmio era um estágio no jornal
Zero Hora, em Porto Alegre, e foi
assim que eu entrei no jornalismo.
Na Zero Hora, acabei sendo con-
tratada, depois. Em 1988. Aí eu
descobri que isso de ser repórter é
mesmo o que eu sou, não aquilo que
eu faço. E, desde sempre, eu me in-
teressei por essas histórias. Antes de
ter consciência disso, quando eu ia
cobrir alguma coisa, eu sempre me
interessava não exatamente pelo que
tinham me pautado para fazer, mas
pelo que estava em torno disso, ou
pelos personagens secundários. Era
essa a matéria que eu acabava tra-
zendo.
Por causa disso, em 1999, eu fui
fazer “A Vida que ninguém vê”, que
era uma coluna de reportagens, des-
sa vez, assumidamente sobre pesso-
as anônimas, sobre pessoas que, em
geral, não são notícia da imprensa.
Mas fui escolhida para fazer isso
porque eu já fazia isso, naturalmen-
te.
A partir de certo momento, isso se
transforma em algo muito consciente
em mim. Eu começo a refletir sobre
o que eu faço. Então, é uma escolha
política consciente. É, sim, uma es-
Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 7
editoria
Fotos: ############
colha política, porque, como eu fa-
lei, eu vejo a nossa profissão como a
de historiadores do cotidiano. O que
a gente produz é documento sobre
o que está acontecendo agora. Isso
influencia a vida das pessoas hoje e
vai influenciar a compreensão deste
momento histórico daqui a cinqüen-
ta, cem anos. Então, sempre que eu
faço uma matéria, que seja uma nota
ou uma matéria de vinte páginas, eu
preciso ter a certeza de que, quan-
do o historiador, daqui a cem anos,
procurar minha matéria num arqui-
vo digital, ele vai ser bem informado
sobre esta época, sobre este momen-
to histórico. Sobre as contradições,
sobre as nuances. Ele vai ter essas in-
formações. Eu faço o meu trabalho
com o peso dessa responsabilidade.
O dia em que eu achar que não
dou mais conta disso, por algum
motivo, eu vou deixar de fazer esse
trabalho, porque é muito sério.
Quando a gente reduz a realidade,
a gente comete um crime. Então,
quando a gente está contando o
nosso momento histórico e a gente
deixa de fora a maior parte das pes-
soas, dos homens e das mulheres que
constroem este país, este mundo,
esta comunidade, a gente está dizen-
do para essas pessoas que as vidas
delas não importam. Que a morte
delas também não importa. E isso
tem um efeito enorme sobre a vida
dessas pessoas.
Então a minha escolha política é
contar a vida da maioria das pesso-
as. A vida das pessoas supostamente
comuns. E mostrar que não existem
vidas comuns. Toda vida é extraor-
dinária. Por isso, eu também digo
que sou uma repórter de desacon-
tecimentos. Porque eu me interes-
so mais por aquilo que se repete.
E por aquilo que se repete sem que
ninguém veja. Então, são desacon-
tecimentos desde a vida só suposta-
mente comum das pessoas, como é
desacontecimento aquilo que se re-
pete e que não é visto, como essa ge-
ração de jovens pobres e, a maioria
deles, pardos e negros, que morrem
antes dos vinte anos. Como até esses
conflitos na República Democrática
do Congo, como outros conflitos
africanos, que, por se repetirem, vi-
ram desacontecimentos. Desaconte-
cem. E a imprensa, em geral, cobre
os acontecimentos, aquilo que, de
repente, sai da rotina. Só que tem
rotinas de violência, tem rotinas de
vários tipos que precisam ser conta-
das. Então a minha escolha é uma
escolha política.
Você chegou a mencionar o
conteúdo das reportagens
que, atualmente, é armaze-
nado, publicado e comparti-
lhado digitalmente.
editoria
Revista Ponto & Vírgula — ### de ####8 Fotos: ############
Partindo disso, como você vê
o futuro do impresso?
Eu não me preocupo com o futu-
ro do impresso, até porque eu não
tenho como saber o que vai aconte-
cer. Eu me preocuparia se estivesse
em risco a reportagem, o futuro da
reportagem. E isso eu tenho certeza
de que não está em risco. Porque a
reportagem, pelo menos da forma
que eu vejo, é a narrativa da His-
tória contemporânea, da história
cotidiana. E isso não tem como não
ser contado. A humanidade existe
como narrativa. Nós sabemos que
existimos pela narrativa. Que, antes,
era oral e, agora, é também escrita.
Então, não existe como isso morrer.
A reportagem é uma coisa que vai
sempre existir.
Agora, se ela é feita em meios di-
gitais ou impressos, acho que isso é
um problema menor. Claro que tem
uma questão de modelo de negócios
que está em discussão e que nos afe-
ta e que é importante. Modelos de
financiamento das reportagens, es-
pecialmente. A reportagem é uma
coisa cara, acho que sempre vai ser
cara. Então todas essas discussões
são importantes.
Mas o que me importa mais é ter
certeza de que a reportagem jamais
vai morrer. A imprensa pode mudar
a plataforma. E eu acho que é até
meio inevitável que tudo isso seja,
cada vez mais, digital. Porque é uma
mudança tecnológica muito impor-
tante, muito revolucionária. E eu já
leio grande parte dos livros, hoje,
em e-book. Eu viajo muito, então,
pra mim, é maravilhoso poder car-
regar quinhentos livros em algo que
tem menos de um quilo. E, hoje, eu
trabalho, fundamentalmente, na in-
ternet e acho que a internet dá pos-
sibilidades que antes eu não tinha.
Como a de poder dar para os textos
o tamanho que os textos merecem
ter, o que sempre foi uma grande
questão pra mim.
Mas eu acho que a reportagem
até vive um grande momento, apesar
de todas essas indefinições, todas es-
sas dúvidas, essas inseguranças que
sempre fazem parte de qualquer mu-
dança. É um momento muito rico
porque com toda essa quantidade
de informações na rede, com tanta
gente escrevendo, com tantas vozes
narrativas novas que a gente tem,
hoje, a gente vai precisar ser muito
melhor. A gente vai precisar fazer re-
portagens muito melhores para ser
lido. Porque tem que ser algo muito
bom, hoje, para que o leitor dê o seu
tempo para ler a nossa reportagem.
Então, a reportagem ganha com
isso. Os grandes repórteres e as boas
reportagens estão beneficiados por
essa competição que hoje é muito
maior, por causa da internet.
A fotógrafa e assessora de
imprensa dos MSF, Vánia
Alves, registrou momentos
do dia-a-dia das famílias
entrevistadas por Eliane.
Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 9
editoria
Fotos: ############

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  • 1. “Por favor, não me deixe morrer” A garota Sonia, de apenas 11 anos, implora à repórter Eliane Brum para que salve sua vida. Assim como quase todas as pessoas de sua família, bolivianos do povoado de Novillero, Sonia é vítima da Doença de Chagas. Antes de partir de volta para o Brasil, Eliane, então, promete a ela: “Eu vou contar a tua história para o mundo.” Por: Lu Cafaggi e Stefânia Firmo Eliane Brum Sonia, de 11 anos, e a sobrinha Érica, de 5. Sonia teve reação alérgica ao tratamento da doença e precisou suspendê- lo. Ainda não há um medicamento pediátrico, por isso as crianças são mais vulneráveis aos seus efeitos. Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 1 editoria Fotos: ############
  • 2. Naquela noite, Eliane Brum con- ta uma história de terror. Um conto sobre vidas assombradas por cria- turas que, em seu sangue, carregam promessas invisíveis de morte. Ou uma história verdadeira sobre os “vampiros da realidade”. Três de setembro, centro de Belo Horizonte. É noite de Sempre um Papo, no SESC Palladium, quan- do Eliane fala das histórias que detalhou em reportagem no livro “Dignidade!”. Histórias de Sonia, Maria, Cristina e suas famílias do- entes. E pobres. O título da repor- tagem defende que os vampiros da realidade só matam pobres. O monstro das histórias conta- das é o barbeiro, vetor da Doença de Chagas, que despenca sobre os corpos adormecidos daqueles mo- radores dos vales da Bolívia. O ruído de suas asas dá o compas- so da rotina daquelas aldeias. Seu sangue – ou o sangue das pessoas, chupado durante a noite – mancha as paredes das casas. Sua presença, em milhares, compete com as vidas daquelas famílias. Em tantos momentos, os espec- tadores que escutam o relato de Eliane passeiam as mãos ao redor do pescoço, ou disfarçam, enco- lhidas, um comichão no braço. A linguagem de seus corpos tensos denuncia o desconforto que nasce a partir daquele mundo novo que Eliane apresenta. Novo, sim, mas não porque sua existência era desconhecida. Era novo porque, antes, nunca ha- via parecido tão próximo. Parecia uma realidade inacessível, tão tris- te que só cabia em uma abstração. Um punhado de terra vermelha na dimensão do “infelizmente, não há nada que eu possa fazer por eles”. No entanto, é um mundo vivo, verdadeiro. E é nosso vizinho de mapa. Mas o mapa não conta de seus personagens, com suas tranças, Infecção causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e transmitida pelo barbeiro. Seus sintomas variam de inflamaçcão nos órgãos infectados a insuficiência cardíaca. Se não tratada, a doença crônica pode ser fatal. Projeto cultural de incentivo à leitura, que realiza encontros entre público e grandes nomes da literatura, em auditórios espalhados por mais de trinta cidades brasileiras. Livro que reúne textos de escritores de diferentes países que acompanharam os Médicos Sem Fronteiras em suas missões no tratamento de doenças negligenciadas pelos governantes. Foi lançado em 2012, no Brasil, pela editora Leya. Inseto vetor da Doença de Chagas. No povoado que Eliane visita com os Médicos Sem Fronteiras, é conhecido como “vinchuca”, nome que significa, literalmente, “deixar-se cair.” Eliane Brum escreve Jornalismo Literário, um modelo que mescla aspectos da literatura com os princípios jornalísticos editoria Revista Ponto & Vírgula — ### de ####2 Fotos: ############
  • 3. seus silêncios, suas infâncias, colos e acanhamentos. Chega a parecer que o mapa mente, mais esconde do que revela aquela geografia tão particu- lar. Geografia que Eliane desvenda. E que, ao fazer um pacto com a me- nina Sonia – “eu vou contar a tua história” – aproxima dois mundos. Um mundo de cá, de infâncias intei- ras de chances, encantos, encontros, cadernos decorados e joelhos ardi- dos de Merthiolate. E um mundo de infâncias sufocadas por percevejos que entalam nas gargantas. Que é também um mundo de cá, mas um mundo invisível. Eliane Brum é jornalista, escri- tora e documentarista. Atualmente, escreve uma coluna semanal para a revista Época. Três semanas após o bate-papo no SESC Palladium, Elia- ne concede à Ponto e Vírgula uma entrevista exclusiva. Pelo telefone, Eliane nos conta do pouco e do mui- to que um repórter traz ao mundo quando compartilha as histórias re- ais que encontra nos parênteses do dia-a-dia. Histórias da vida que nin- guém vê. Em momento algum, Eliane se re- fere a Sonia, Maria, Cristina ou suas famílias como “aquelas” pessoas, “aquelas” vidas. Um pronome de- monstrativo mais acolhedor indica o estigma “dessas” pessoas que ficou em sua vida reportadeira. Por que você decide nos contar as histórias dessas pessoas? Qual a diferença que você acredita que seu trabalho pode trazer ao mun- do? Eu acredito profundamente no poder da narrativa, no poder da his- tória contada. No poder da história da vida contada como instrumento de transformação da própria vida. E isso é o que dá sentido a minha vida. Tudo o que eu faço é a partir dessa crença. E, quando eu encontro a So- Cristina e Maria estão entre os milhares de camponeses da região de Narciso Campero, na Bolívia, que convivem com o barbeiro. As duas amigas conheceram-se em uma viagem que fizeram em busca de um marca-passo. Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 3 editoria Fotos: ############
  • 4. nia (e eu já fiz várias matérias muito complicadas, várias matérias que eu levei, algumas delas, anos para me recuperar, outras das quais nunca vou me recuperar), eu acho que faço o meu confronto mais profundo com a impotência. Porque, quando ela me pede para salvar a vida dela, o que eu sempre digo para as pesso- as: “eu vou contar a tua história pro mundo” (e eu acho que isso é impor- tante). Quando fui dizer isso para ela (e eu disse), eu sabia que isso não seria suficiente, talvez, para salvar a vida dela. A vida dela. Dela que esta- va me pedindo. Pedindo a mim. Quando volto para São Paulo, eu fico paralisada pela primeira vez na minha vida. Eu não consigo escrever porque, pela primeira vez, eu achei que escrever era pouco. Que escre- ver não ia salvar a vida da Sonia. Então eu fiquei duas semanas paralisada e precisei fazer uma re- flexão muito profunda, um mergu- lho profundo dentro de mim, para entender que, se eu não conseguisse romper essa paralisia e contar a his- tória da Sonia para o mundo, eu não ia cumprir a minha parte no pacto com ela. E contar uma história é pouco. E é muito. É pouco e é muito, ao mes- mo tempo. E acho que isso eu enten- di. Acho que ser jornalista e contar histórias reais é sempre um confron- to cotidiano com a impotência. Só que, até então, isso nunca tinha fica- do tão claro para mim. A gente tem que conviver com esse muito que é também pouco, mas que é o possí- vel. E é grande contar uma história e, por isso, eu escrevo também que, ao compartilhar o pesadelo que vai ser meu para sempre com as pessoas, é uma tentativa de, através da histó- ria contada, conseguir fazer com que as pessoas se mobilizem para fazer a sua parte, para que um dia, no mun- do, crianças como Sonia não preci- sem pedir para serem salvas. Contar uma história é romper a barreira da invisibilidade. É aproximar mundos que viviam apartados. Isso é contar uma história real e esse é que é o po- der da reportagem. E eu acredito muito nisso. Os jornalistas são historiadores do cotidiano. O que a gente produz é documento sobre a nossa época. E isso é humano. Suas reportagens são classificadas como Jorna- lismo Literário. Você acre- dita que a linguagem que você escolhe para contar suas reportagens – se é que isso é uma escolha – pode fazer com que seu leitor se importe mais com o que está sendo contado do que se você escolhesse uma linguagem jornalística mais tradicional? Eu não sei se existe uma lingua- gem tradicional no jornalismo. Exis- te bom jornalismo e existe mau jor- nalismo. E, às vezes, tu ficas apenas nos números (e aco que os números são, sim, importantes), mas a gente precisa dar carne para as estatísticas. A gente precisa mostrar os rostos, as vidas, os nomes, os sobrenomes de quem está por trás, de quem está en- coberto por essa estatística. A esta- tística é sempre uma coisa fria. Então eu acho que a boa repor- tagem é aquela que consegue, o máximo possível, dar conta da com- plexidade daquela realidade. Con- tar como são aquelas vidas. Quais são aqueles detalhes que alimentam aquelas vidas. Como é que é o am- biente, como é que é o contexto, como é que é a História. Por isso, fazer uma boa reportagem dá mui- to trabalho e as suas informações, como repórter, não são apenas as es- tatísticas, não são apenas as palavras ditas. Mas é toda a complexidade do real que é feita por um monte de coi- sas, inclusive por cheiros, por gestos, por cores... E silêncios, também. Tem muito mais informação para apurar do que tu ficar apenas em aspas e números. Então, isso, para mim, é bom jornalismo. E é isso que carrega a pessoas pro mundo do ou- tro. Porque o repórter vai até onde o leitor não pode ir. E ele precisa trazer para o leitor toda a complexidade desse mundo, para que o leitor pos- sa sentir, com todas as informações editoria Revista Ponto & Vírgula — ### de ####4 Fotos: ############
  • 5. que o repórter apurou e possa fazer, então, as suas próprias escolhas a partir de sua própria interpretação do mundo. Então eu fico muito feliz. O maior elogio que eu posso receber é quan- do o leitor me diz “lendo a tua re- portagem, parecia que eu estava lá”. Então, eu consegui chegar perto des- sa realidade. O mais criminoso que a gente pode fazer é reduzir a complexidade da realidade. E quando tu enxerga as pessoas, para além dos números, é outro envolvimento que tu tem com a realidade. Tu te implica, à medida que tu te implica com o outro, com aquilo que é humano. Às vezes, as pessoas me dizem “ah, tu faz matérias humanas” ou “por que tu escolhe fazer matérias humanas?”. Eu não consigo nem entender essa pergunta. “Como as- sim?” Nós somos contadores da his- tória cotidiana. Os jornalistas são historiadores do cotidiano. O que a gente produz é documento sobre a nossa época, sobre nosso momento histórico. E isso é humano. A Histó- ria é construída por pessoas. Então toda reportagem é humana. São hu- manos escrevendo sobre outros. Uma doença não é só uma doen- ça. É como se tu fosses escrever so- bre a Doença de Chagas e escrevesse só sobre uma doença. Daí tu está falseando a realidade, está resumin- do a realidade. Porque uma doença é História, é contexto, é costume, é cultura. E é isso o que eu tento fazer ao contar a história da Maria e da Cristina, ao contar a história de suas famílias. O Chagas não é algo que simplesmente está ali, uma doença que está fora da História, fora do Pacientes levam suas famílias inteiras para saber os resultados dos exames de Chagas. Aiquile, Bolívia. Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 5 editoria Fotos: ############
  • 6. processo histórico. Essa doença só está matando es- sas pessoas por causa de uma série de questões históricas, por ser uma doença da pobreza, por ser uma do- ença negligenciada. E, por ser uma doença da pobreza, é uma doença que a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar. E porque ela não se interessa em pesquisar, só existe um remédio, que é de 1960 e tem vários efeitos colaterais. Por causa dos efeitos colaterais, muita gente não pode se tratar. E a gente está em 2012 e ainda não se pes- quisou nenhum outro tratamento, nenhuma outra vacina para essa do- ença. Ela é uma doença que poderia ser erradicada, se fosse erradicado o seu vetor, que é o barbeiro. E, para isso, precisaria ter casas, para essas pessoas, que fossem seguras. E por que essa população é invisível? Então uma doença não é só uma doença. Uma doença é uma doen- ça dentro de um processo histórico cultural. E esse é meu desafio como repórter. Assim como, quando eu falo de vampiros, eu não estou fazendo uma graça. Não estou fazendo uma brin- cadeira com o barbeiro que é um inseto que suga o sangue. Eles são vampiros por causa de toda uma apreensão que toda essa população tem da realidade. A “vinchuca” (que é como eles chamam barbeiro em quéchua, e eles só falam quéchua) é onipresente para eles. É algo que molda, que marca a cultura, marca a vida deles, marca a história deles. Porque a vinchuca sempre esteve lá. E eles não sabem que existe um outro mundo sem vinchuca. Então, é por isso que são vampiros, por- que tem essa presença que molda a vida. Determina a vida e determina a morte. Nosso trabalho de repórter é aproximar os mundos. Até eu ter contato com a história dessas pes- soas, até eu ter que fazer esse gesto interno de me mobilizar para ir até o mundo deles, Chagas, para mim, era só uma doença transmitida pelo barbeiro. Era muito pouco. E não: é uma tragédia, uma história de ter- ror real que está acontecendo agora, neste momento, bem aqui do nosso lado. Portanto, qualquer pessoa de- cente tem que estar implicada nisso. E você sentiu medo ao ir pra lá, sabendo que é um ambien- te de risco? Não senti medo, não. Tem ma- térias em que eu sinto medo, como quando envolve uma violência, em regiões de conflito armado. Aí eu sinto medo. Mas, nesse caso, não. Os Médicos Sem Fronteiras só permitiram que eu ficasse uma sema- na. Em geral, é o tempo que eles per- Língua indígena da América do Sul, ainda hoje falada por cerca de dez milhões de pessoas de diversos grupos étnicos. O quéchua era falado na região central dos Andes desde bem antes da época do Império Inca. ONG que oferece ajuda médico- humanitária em regiões do mundo inteiro que convivem com conflitos armados, desastres naturais, epidemias, fome, exclusão social ou doenças negligenciadas. Locais onde o sistema de saúde sequer existe ou não funciona adequadamente. Aos nove anos, Eliane escreveu seu primeiro romance. No dia em que matou um filhote de barata, sentiu tanta culpa que tentou imortalizá- lo em uma novela (“Autobiografia de uma barata”), escrita em um caderno. editoria Revista Ponto & Vírgula — ### de ####6 Fotos: ############
  • 7. mitem quando aceitam jornalistas, por razões de segurança. Eu gostaria de ter ficado mais. Achei que seria importante ficar um pouco mais,mas era o possível. Fiquei uma semana. E eu também gostaria de ter ficado nas aldeias, mas é também uma regra de- les.Tinha de ficar na casa deles, onde havia mais condições de segurança. Quando e como você se des- cobriu repórter? Quando e como essa repórter escolheu se aproximar das pessoas anônimas e da vida cotidiana dessas pessoas? Eu acho que já era repórter antes de saber que era repórter. Sempre fui uma escutadeira e eu acredito que meu principal instrumento para a reportagem é a escuta (que é uma coisa muito difícil). Então, desde pe- quena, eu gostava de escutar a histó- ria das pessoas, em vez de brincar. Boa parte da minha família é de origem rural. São pequenos campo- neses. Alguns sem terra, alguns com um pouco de terra. Eu morava na cidade, em Ijuí (Rio Grande do Sul) que é uma cidade muito pequena, mas a gente ia, nos fins-de-semana, ficar com os parentes do meu pai. E eu gostava. Botava um banquinho e ficava escutando, num canto, a his- tória dos adultos, em vez de brin- car. E eles esqueciam, até, da minha presença ali, porque eu ficava num cantinho. Acho que, até hoje, eu sou essa criança que fica num canto, num banquinho, escutando a histó- ria dos outros. Nunca fui faladeira. Para mim, está sendo uma experiência muito nova essa de fazer palestras e dar entrevistas, que é uma coisa que é importante. É uma forma de tu com- partilhar conhecimento, de também transmitir, continuar contando as histórias que contam nas reporta- gens, nos livros, enfim. Mas eu não sou uma faladeira, eu sou uma escu- tadeira. Quando eu tenho que falar muito, eu preciso depois ficar em casa, trancada, quieta por bastante tempo, para me recuperar dessa ex- posição. Eu me sinto, assim, muito desnuda, falando. Mas acho super importante, então, por isso, eu faço. No momento em que aprendo a escrever (já escutava, antes de saber ler e escrever), os livros mudam mui- to a minha vida, eu acho que eles me salvam. Eu acho que eu fui salva pe- los livros. Eu era uma criança muito triste e encontrei uma forma de viver outras vidas e outros mundos no mo- mento em que eu começo a ler. E co- mecei a escrever, também, com onze anos de idade. Com onze, não. Com nove anos de idade. Para dar conta da dor do mundo, que era algo que eu sentia muito forte. E a escrita era um jeito de lidar com isso, porque senão eu me sentia sufocada. Eu sempre me interessava não exatamente pelo que tinham me pautado para fazer, mas pelo que estava em torno disso, ou pelos personagens secundários. Fui escutando e escrevendo. Aca- bei fazendo Jornalismo. Fazia His- tória também, achei que eu ia ser historiadora. Não achava que eu servia para ser jornalista, porque eu me achava muito tímida. Quando já estava no final da faculdade (ia ter- minar a faculdade porque já estava no final, para ter o diploma) tinha certeza de que eu não iria exercer a profissão. Aí encontrei um professor maravilhoso. Sempre conto essa his- tória. Que se chama Marques Leo- nam, que me mostrou que ser repór- ter era a melhor profissão do mundo e trouxe várias reportagens maravi- lhosas, às quais eu não tinha acesso e que eram muito diferentes daquele jornalismo árido, sem gente, que vi- gorava naquela época, na maioria dos jornais. Aí eu escrevi uma ma- téria para ele, sobre... filas. Todas as filas que a gente entra desde que nasce até morrer. Que era um tema inusitado para aquela época (hoje, já não seria). Porque era o que me inte- ressava. Eu me interessava por essas coisas e esse professor, ao contrário de outros, disse que eu podia. Disse que isso era, sim, interessante. Essa matéria acabou sendo ins- crita num concurso universitário da região Sul do Brasil. Eu ganhei, o prêmio era um estágio no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, e foi assim que eu entrei no jornalismo. Na Zero Hora, acabei sendo con- tratada, depois. Em 1988. Aí eu descobri que isso de ser repórter é mesmo o que eu sou, não aquilo que eu faço. E, desde sempre, eu me in- teressei por essas histórias. Antes de ter consciência disso, quando eu ia cobrir alguma coisa, eu sempre me interessava não exatamente pelo que tinham me pautado para fazer, mas pelo que estava em torno disso, ou pelos personagens secundários. Era essa a matéria que eu acabava tra- zendo. Por causa disso, em 1999, eu fui fazer “A Vida que ninguém vê”, que era uma coluna de reportagens, des- sa vez, assumidamente sobre pesso- as anônimas, sobre pessoas que, em geral, não são notícia da imprensa. Mas fui escolhida para fazer isso porque eu já fazia isso, naturalmen- te. A partir de certo momento, isso se transforma em algo muito consciente em mim. Eu começo a refletir sobre o que eu faço. Então, é uma escolha política consciente. É, sim, uma es- Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 7 editoria Fotos: ############
  • 8. colha política, porque, como eu fa- lei, eu vejo a nossa profissão como a de historiadores do cotidiano. O que a gente produz é documento sobre o que está acontecendo agora. Isso influencia a vida das pessoas hoje e vai influenciar a compreensão deste momento histórico daqui a cinqüen- ta, cem anos. Então, sempre que eu faço uma matéria, que seja uma nota ou uma matéria de vinte páginas, eu preciso ter a certeza de que, quan- do o historiador, daqui a cem anos, procurar minha matéria num arqui- vo digital, ele vai ser bem informado sobre esta época, sobre este momen- to histórico. Sobre as contradições, sobre as nuances. Ele vai ter essas in- formações. Eu faço o meu trabalho com o peso dessa responsabilidade. O dia em que eu achar que não dou mais conta disso, por algum motivo, eu vou deixar de fazer esse trabalho, porque é muito sério. Quando a gente reduz a realidade, a gente comete um crime. Então, quando a gente está contando o nosso momento histórico e a gente deixa de fora a maior parte das pes- soas, dos homens e das mulheres que constroem este país, este mundo, esta comunidade, a gente está dizen- do para essas pessoas que as vidas delas não importam. Que a morte delas também não importa. E isso tem um efeito enorme sobre a vida dessas pessoas. Então a minha escolha política é contar a vida da maioria das pesso- as. A vida das pessoas supostamente comuns. E mostrar que não existem vidas comuns. Toda vida é extraor- dinária. Por isso, eu também digo que sou uma repórter de desacon- tecimentos. Porque eu me interes- so mais por aquilo que se repete. E por aquilo que se repete sem que ninguém veja. Então, são desacon- tecimentos desde a vida só suposta- mente comum das pessoas, como é desacontecimento aquilo que se re- pete e que não é visto, como essa ge- ração de jovens pobres e, a maioria deles, pardos e negros, que morrem antes dos vinte anos. Como até esses conflitos na República Democrática do Congo, como outros conflitos africanos, que, por se repetirem, vi- ram desacontecimentos. Desaconte- cem. E a imprensa, em geral, cobre os acontecimentos, aquilo que, de repente, sai da rotina. Só que tem rotinas de violência, tem rotinas de vários tipos que precisam ser conta- das. Então a minha escolha é uma escolha política. Você chegou a mencionar o conteúdo das reportagens que, atualmente, é armaze- nado, publicado e comparti- lhado digitalmente. editoria Revista Ponto & Vírgula — ### de ####8 Fotos: ############
  • 9. Partindo disso, como você vê o futuro do impresso? Eu não me preocupo com o futu- ro do impresso, até porque eu não tenho como saber o que vai aconte- cer. Eu me preocuparia se estivesse em risco a reportagem, o futuro da reportagem. E isso eu tenho certeza de que não está em risco. Porque a reportagem, pelo menos da forma que eu vejo, é a narrativa da His- tória contemporânea, da história cotidiana. E isso não tem como não ser contado. A humanidade existe como narrativa. Nós sabemos que existimos pela narrativa. Que, antes, era oral e, agora, é também escrita. Então, não existe como isso morrer. A reportagem é uma coisa que vai sempre existir. Agora, se ela é feita em meios di- gitais ou impressos, acho que isso é um problema menor. Claro que tem uma questão de modelo de negócios que está em discussão e que nos afe- ta e que é importante. Modelos de financiamento das reportagens, es- pecialmente. A reportagem é uma coisa cara, acho que sempre vai ser cara. Então todas essas discussões são importantes. Mas o que me importa mais é ter certeza de que a reportagem jamais vai morrer. A imprensa pode mudar a plataforma. E eu acho que é até meio inevitável que tudo isso seja, cada vez mais, digital. Porque é uma mudança tecnológica muito impor- tante, muito revolucionária. E eu já leio grande parte dos livros, hoje, em e-book. Eu viajo muito, então, pra mim, é maravilhoso poder car- regar quinhentos livros em algo que tem menos de um quilo. E, hoje, eu trabalho, fundamentalmente, na in- ternet e acho que a internet dá pos- sibilidades que antes eu não tinha. Como a de poder dar para os textos o tamanho que os textos merecem ter, o que sempre foi uma grande questão pra mim. Mas eu acho que a reportagem até vive um grande momento, apesar de todas essas indefinições, todas es- sas dúvidas, essas inseguranças que sempre fazem parte de qualquer mu- dança. É um momento muito rico porque com toda essa quantidade de informações na rede, com tanta gente escrevendo, com tantas vozes narrativas novas que a gente tem, hoje, a gente vai precisar ser muito melhor. A gente vai precisar fazer re- portagens muito melhores para ser lido. Porque tem que ser algo muito bom, hoje, para que o leitor dê o seu tempo para ler a nossa reportagem. Então, a reportagem ganha com isso. Os grandes repórteres e as boas reportagens estão beneficiados por essa competição que hoje é muito maior, por causa da internet. A fotógrafa e assessora de imprensa dos MSF, Vánia Alves, registrou momentos do dia-a-dia das famílias entrevistadas por Eliane. Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 9 editoria Fotos: ############