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RRRREEEETTTTAAAALLLLHHHHOOOOSSSS
Colagem de textos de diversos autores
Texto de:
JULIO CARRARA
Escrita em 2002
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 1111
PERSONAGENS:
AMIGA 1
AMIGA 2
ATOR
GAROTO
HAMLET
CAMILA
KLEBER
MÃE
PAI
MAÍRA
BRUNO
BETÃO
AMIGO 1
AMIGO 2
SENHORA
MENINO
GARÇOM
MENDIGO 1
MENDIGO 2
MENINA
DENTISTA
SECRETÁRIA
PACIENTE
JOVEM
MENINOS E MENINAS
CENÁRIO: Palco nu. Apenas alguns elementos de cenografia como cadeiras e
mesas com rodinhas e que deverão entrar e sair conforme indicação do texto.
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 2222
PRÓLOGO
(Os atores entram em cena e sentam-se nas cadeiras. Olham para frente. No áudio
ouvimos o bater de bola de um jogo de tênis ou pingue-pongue. Coreograficamente,
olham para os movimentos da bola: direita, esquerda, direita, esquerda. Os gestos são
mecânicos, precisos e a expressão facial neutra. Pausa. Novo ruído de sonoplastia,
desta vez um filme de terror. Os atores, agora como plateia de cinema, pegam
saquinhos de pipocas. Fazem expressões de espanto, pânico, etc. Pausa. Filme
dramático. Atores puxam um lenço da camisa e choram. Pausa. Muda o filme e desta
vez é uma comédia maluca. Atores riem histericamente até perderem o fôlego. Luz vai
descendo em resistência. A cena fica na penumbra. Os atores saem de cena, levando
cada um a sua cadeira para a coxia. Enquanto monta-se a cena seguinte, ouve-se no
áudio, um “Aforismo” de Oscar Wilde.)
GRAVAÇÃO
Que sorte tem os atores! Cabe a eles escolher se querem participar de
uma tragédia ou uma comédia, se querem sofrer ou regozijar-se, rir ou
derramar lágrimas; isso não acontece na vida real. Quase todos os homens e
mulheres são forçados a desempenhar papeis pelos quais não se tem a menor
propensão. O mundo é um palco, mas os papeis foram mal distribuídos. Oscar
Wilde.
CENA 1
(Concepção de Julio Carrara.)
(Duas amigas conversam.)
AMIGA 1
Sou tão sem graça que não consigo um namorado.
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 3333
AMIGA 2
Por que você não vai a um bom salão de beleza e manda que lhe façam
um penteado diferente?
AMIGA 1
Sim, mas isso custa muito dinheiro.
AMIGA 2
Bem, então que tal a ideia de comprar uma revista que tenha sugestões
para diferentes penteados que possam ser feitos por você mesma?
AMIGA 1
Sim, mas eu já tentei isso – e meu cabelo é fino demais. Não para
penteado. Fazendo um coque, ele pelo menos parece normal.
AMIGA 2
Que tal então mudar a maquiagem para melhor realçar as suas feições?
AMIGA 1
Sim, mas a minha pele é alérgica. Tentei uma vez e não deu certo.
AMIGA 2
Bem, já existem muitos produtos não alérgicos. De qualquer forma, por
que você não vai a um dermatologista?
AMIGA 1
Sim, mas eu sei o que ele dirá. Vai dizer que não como direito. Sei que
como muita coisa que não presta e que minhas refeições não são equilibradas.
É o que acontece quando se mora sozinha. E... bem, a beleza está na saúde
interna.
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 4444
AMIGA 2
Bem, isso é verdade. Talvez ajudasse se você entrasse em algum curso
de educação de adultos. Conhecer um pouco de arte, ou saber o que se passa
pelo mundo ajuda a pessoa a conversar bem.
AMIGA 1
Sim, mas esses cursos são todos à noite. E depois do trabalho eu me
sinto completamente exausta.
AMIGA 2
Bem, faça então um curso por correspondência.
AMIGA 1
Sim, mas não tenho tempo nem de escrever para os meus pais. Como é
que poderia encontrar tempo para fazer um curso por correspondência?
AMIGA 2
Você acharia tempo, se achasse que era algo importante.
AMIGA 1
Sim, mas pra você, isso é fácil dizer, por que tem tanta energia. Eu não.
Vivo morta de cansada.
AMIGA 2
Por que você não dorme de noite? Não é de se admirar que viva
cansada, assistindo todas as noites ao último filme da TV.
AMIGA 1
Sim, mas eu tenho que me divertir. E só resta uma coisa dessas, quando
a pessoa é tão sem graça como eu!
(Saem.)
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 5555
CENA 2
(Poema “Solidão”, de Federico García Lorca.)
(Entra um ator e declama a poesia.)
ATOR
Solidão pensativa
Sobre pedra e roseira, morte e desvelo
Onde livre e cativa
Fixa em seu branco vôo,
Canta a luz ferida pelo gelo
Solidão com estilo
De silêncio sem fim e arquitetura,
Onde a planta suspensa
Da ave na espessura
Não consegue cravar-te a carne escura
Em ti deixo esquecida
A frenética chuva de minhas veias
Minha cintura coalhada
E rompendo cadeias,
Rosa débil serei pelas areias
Rosa de minha nudez
Sobre panos de cal e surdo fogo,
Quando já roto o nó,
Limpo de lua e cego
Cruze tuas finas ondas de sossego.
Na curva do rio
O duplo cisne sua brancura canta
Úmida voz sem frio
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 6666
Flui de sua garganta,
E pelos juncos roda e se levanta.
Com sua rosa de farinha
Menino despido mede a ribeira,
Enquanto o bosque afina
Sua música primeira
Em rumor de cristais e madeira.
Coros de sempre-vivas,
Giram loucos pedindo eternidades.
Seus sinais expressivos
Ferem as duas metades
Do mapa que ressuma solidões
A harpa e seu lamento
Preso em nervos de metal dourado,
Tão doce instrumento
Ressonante ou delgado
Busca, ó solidão, teu reino gelado.
No entanto, tu, inacessível
À verde lepra do som,
Não há altura possível
Nem lábio conhecido
Por onde chegue a ti nosso gemido.
Federico García Lorca.
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 7777
CENA 3
(Extraído da cena “Meu time só perde...”, do livro “Teatro Vivo na Escola”, de Ana
Lúcia Cavalieri.)
(Garoto sentado à escrivaninha. À sua volta, livros, cadernos, material escolar. Ele
abre um livro, tira uma fotografia e conversa com ela.)
GAROTO
Isso é que é viver? Estar aqui, sentado numa cadeira, lendo, escrevendo,
estudando, me preparando pras provas, provas, provas e provas?!
Conhecendo coisas do mundo, da vida, mas vendo tudo acontecer longe de
mim... Minha vida continua a mesma chatice. Estou cansado de fazer sempre
as mesmas coisas, conversar com as mesmas pessoas... Fico deprimido quando
paro e penso que a vida tá passando e nunca me aconteceu nada de muito
importante ou alguma coisa que me marcasse... Que adianta gostar de você,
Marília? Você nem olha pra mim, nunca fala comigo, nem sabe que eu existo!
Há três anos caímos na mesma classe e, quando fazemos parte da mesma
equipe, penso em me aproximar de você e até me declarar. Mas como? Se sou
tímido... feio e atrapalhado?! Só sei que você nunca vai me querer. Meu time
só perde; não jogo futebol, não sei dançar, não consigo “ficar”... Lá na classe
eles ficam rindo de mim. Tô sempre por fora... Às vezes penso que sou apenas
um ponto de tangência, entre uma reta qualquer e o planeta.
(Guarda a foto no livro e sai de cena.)
CENA 4
(Extraído de “Hamlet”, de William Shakespeare. Ato III,
Cena I.)
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 8888
HAMLET
Ser ou não ser, eis a questão! O que será mais justo para a consciência:
sofrer os golpes e as pontadas de um destino injusto, ou enfrentar de armas
nas mãos esse mar de desgraças, e lutando acabar com elas? Morrer. Dormir,
nada mais. E dizer que esse sono põe termo a todas as angústias do coração, e
às mil ofensas naturais que a carne traz em si própria! Eis um final que todos
deveríamos desejar intensamente: morrer... dormir... Sonhar, talvez... Sim, essa
é a dúvida! Que sonho vamos ter nesse sono de morte, depois de cortado o fio
da existência? Eis um pensamento que nos faz parar; eis a causa da nossa
paciência diante de anos e anos tão amargos. Se assim não fosse, quem
suportaria os insultos e as burlas dos tempos, os crimes das ditaduras, a
empáfia dos poderosos, a tristeza de amar sem ser correspondido, a lentidão
da justiça, os arbítrios da autoridade, o escárnio dos indignos à modéstia dos
sábios?... Quem suportaria isso, sabendo que pode encontrar o descanso na
ponta de uma faca? Quem carregaria esse fardo, gemendo e suando sob o peso
da vida, se não fosse o receio de alguma coisa depois da morte que confunde a
nossa vontade, e que nos faz preferir os males presentes aos futuros e
desconhecidos? De cada um de nós a consciência faz um covarde. A cor viva
do instinto empalidece à luz do pensamento. E, desta forma,
empreendimentos de grande energia e importância mudam de rumo e se
tornam indignos até do nome de ação. “Hamlet” – William Shakespeare.
(Sai.)
CENA 5
(Concepção de Julio Carrara.)
(UMA RUA. NO CENTRO DO PALCO ESTÁ UM CARRINHO DE
BRINQUEDO. ENTRA UM GAROTO. SE APROXIMA DO CENTRO COM O
OBJETIVO DE “RAPTAR” O BRINQUEDO. QUANDO VAI PEGÁ-LO,
APARECE UMA MULHER EMPURRANDO UM CARRINHO DE BEBÊ. ELE
DISFARÇA. A MULHER SAI DE CENA. O GAROTO TENTA NOVAMENTE,
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 9999
MAS DISFARÇA, POIS VÊ UM MENINO PASSEANDO COM O
CACHORRINHO. CADA VEZ QUE O GAROTO SE APROXIMA DO
BRINQUEDO, APARECE ALGUÉM SUSPEITO. FICA A CARGO DA
DIREÇÃO OS PERSONAGENS QUE APARECERÃO EM CENA. QUANDO O
GAROTO PERCEBE QUE ESTÁ SÓ, FINGE NÃO ESTAR SE IMPORTANDO
COM O BRINQUEDO E VIRA DE COSTAS PARA ELE. NESSE MEIO TEMPO,
APARECE UM 2º GAROTO, QUE PEGA O BRINQUEDO E SAI CORRENDO.
O GAROTO VIRA-SE DE COSTAS PARA PEGAR O CARRINHO E QUANDO
VÊ QUE O BRINQUEDO NÃO ESTÁ MAIS LÁ, FICA COM CARA DE TACHO
E SAI DE CENA, FRUSTRADO)
CENA 6
(Extraído da cena “Nenhum filho meu é viciado em drogas!”, do livro “Drogas e
Prevenção – A Cena e a Reflexão”
de Ana Lúcia Cavalieri e Antonio Carlos Egypto.)
(Mãe entra, puxando pelo braço Bruno, o caçula de seus quatro filhos. Desabafa,
dirigindo-se a Maíra, outra filha.)
MÃE
Será possível? Meus filhos, um bando de alienados? O Marco não sai da
internet e ainda deu pra contar mentiras! Hoje, se fez passar por um
empresário de 40 anos; ontem foi uma perua, uma loura oxigenada! E você,
Bruno, segue o mesmo caminho. (Solta o braço do filho.) Não desgruda um
minuto do videogame, aliás, desgruda sim, só pra tomar refrigerante.
BRUNO
Refri, não, mãe! Coca ou Pepsi-Cola! Por mim eu colocava litros dentro
do filtro e não tomava mais água.
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 10101010
MÃE
Não fale isso, menino! Tá ficando louco? Ninguém vive sem água.
MAÍRA
O Bruno quer provar o contrário. O negócio dele é a cola! Imagine,
refrigerante no filtro... Viva a celulite! Meu Deus, quantas calorias! Milhares, o
dia inteiro.
BRUNO
Você é louca! Só vê calorias, calorias, calorias!
MAÍRA
Olha aqui, pirralho, eu cuido da minha estética, não quero ficar “balofa”
como alguns...
MÃE
Maíra, olha o respeito com o seu irmão.
BRUNO
Há, há, há... estética! Estética da fome, como disse o tio Pedro. Você tá
parecendo um bicho magro, esfomeado!
MAÍRA
Gordo!
BRUNO
Tribufu! Não tem mais nada pra emagrecer, parece um esqueleto
ambulante!
MAÍRA
Mãe, eu vou arrebentar esse menino!
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 11111111
BRUNO
(Provocando.) Com que força?
MÃE
(Nervosa.) Chega! Parem já com essa discussão! Dois irmãos brigando
desse jeito! Não existe mais respeito entre vocês? Hein?!
BRUNO
Foi ela que começou a provocar. Implica comigo agora, mas antes era
louca por chocolate, comia sem parar, não ficava um dia sem comer!
MAÍRA
Isso é passado. Minha vida agora é outra!
MÃE
Eu não sei, não! Deixou o chocolate, mas agora não vive sem os
comprimidos para emagrecer! A sua bolsa parece uma farmácia, anda
obcecada com a idéia de ficar magra. Isso faz mal, minha filha... Não é desse
jeito que você vai manter a forma. É preciso ter uma alimentação balanceada,
saudável, comer verduras...
MAÍRA
Não, mãe! Já vai começar? Você deveria ficar feliz com o meu regime
pra emagrecer. Lá no colégio tem uma menina que emagreceu todos os quilos
que queria, fazendo uma dieta diferente: cheirando cocaína!
MÃE
O quê? Que absurdo! A direção da escola sabe disso? Não, Maíra, não é
possível uma loucura dessas. Deve ser história de adolescente.
MAÍRA
Cai na real, mãe!
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MÃE
Olhem aqui, meus filhos, vocês podem fazer muitas coisas com as quais
eu não concordo, mas graças a Deus nenhum filho meu é viciado em drogas!
Deus nos livre de uma desgraça dessas!
(Entra Betão, o filho mais velho, frequentador de academias, musculoso, quase um
halterofilista.)
BETÃO
Oi, mãe! (Olha para os irmãos.) Os dois já estão brigando de novo? É falta
do que fazer!
MAÍRA
Olha quem fala!
BRUNO
O rascunho do Rambo!
BETÃO
O galinho de briga já está com o peito estufado!
BRUNO
Estufado tá você, e inteiro! Parece um boneco de plástico! (rindo) O Betão
vai estufar até explodir e ficar parecendo um balão murcho, empapuçado!
(Bruno e Maíra se olham, segurando o riso.)
MÃE
(À parte.) Segundo tempo! Vai começar tudo de novo...
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BETÃO
Ô bundão, eu tenho saúde, cuido do meu corpo, malho o dia inteiro
numa academia! Não pareço um pão de queijo, nem um palito de dentes! (Ri.)
MAÍRA
(Irônica.) O Rambo plastificado tem saúde! Vive a poder de energéticos e
anabolizantes! Não é só o seu coração que vai pifar, não, mas tem mais alguma
coisa...
MÃE
Vamos parar! Pelo amor de Deus! É melhor cada um ir para o seu
quarto! Meu Deus, o que eu fiz pra merecer isto? Onde foi que eu errei? (Os
filhos vão saindo; a mãe fica só.) É por isso que não durmo! Esses filhos não me
dão sossego! A minha insônia é eterna... (Lembra-se.) Nossa! Meus
comprimidos acabaram! Tomei o último a noite passada... É preciso comprar
outros, urgente!
(Entra em cena o pai.)
PAI
A luta terminou? Nossa, que cara é essa?
MÃE
Amor, meu remédio pra dormir, acabou! Por favor, você precisa sair pra
comprar...
PAI
O quê? Agora? É tarde! Por que não viu isso antes? Querida, você
precisa parar com essa mania... (Procura alguma coisa nos bolsos da calça e da
camisa. Fica nervoso.) Onde estão meus cigarros? Como? Já acabaram? Será que
tem mais gente fumando nesta casa?! Não posso ficar sem cigarros! Vou ter
que sair pra comprar...
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MÃE
Então aproveite para comprar meu remédio. Aqui está a receita.
(Entrega a receita para o pai. Ambos saem de cena.)
CENA 7
(Concepção de Julio Carrara.)
(Consultório de dentista. O dentista está de costas para o público mexendo nos seus
apetrechos. Na sala de estar, está a secretária. Entra em cena um paciente. Está com
uma faixa enrolada no maxilar e resmunga de dor. Secretária confere na agenda o
horário do paciente e o faz entrar. O paciente senta-se na cadeira do dentista e aguarda
ansioso. O dentista vira-se de frente e põe-se a examinar a boca do paciente. Vai até o
fundo e vem com uma enorme chave de fenda. Coloca a chave na boca do paciente, que
berra de dor. Quando o doutor percebe que não aconteceu nada, pega uma furadeira e
coloca-a na boca do cliente, que urra. O cliente está desesperado. O doutor, sem atingir
êxito, pega uma banana de dinamite e enfia na boca do paciente. Este geme, mexe os
braços. O doutor acende a dinamite e, tapa os ouvidos para não ouvir a explosão. A
dinamite explode – o cliente cospe a banana, mas continua com dor de dente. Tempo.
O doutor não sabe mais o que fazer. O paciente, sente alguma coisa estranha na boca.
Põe os dedos em um dos dentes e arranca-o com a maior naturalidade. Levanta-se da
cadeira meio grogue e entrega um dente podre gigante para o dentista e sai de cena.)
CENA 8
(Cena escrita por Julio Carrara.)
(Entra em cena Camila com uma pilha de livros nas mãos. Senta-se no chão e começa e
estudar. Entra Kleber, todo animado.)
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KLEBER
Ô Camila, tenho uma proposta pra te fazer...
CAMILA
(Sem olhar pra ele.) Fala.
KLEBER
Vamos descer pra praia? A turma toda tá esperando a gente lá no
Jabaquara...
CAMILA
Ah, Kleber. Não tô a fim.
KLEBER
Mas, por quê? Vai toda a galera da classe...
CAMILA
Semana que vem é o vestibular, Kleber. Cada minuto que passa agora é
sagrado. Não posso perder tempo com coisas supérfluas, que eu posso fazer
depois... Se eu não passar no vestibular, meus pais me matam!
KLEBER
Eu também vou prestar o vestibular e nem por isso tô nessa obsessão
toda.
CAMILA
Por que seus pais não pegam no seu pé. E você também não tá
interessado em fazer uma faculdade!
KLEBER
Como, não? Claro que quero fazer faculdade. Mas pra tudo tem o seu
tempo... Ainda tem uma semana pra primeira fase... E só vamos ficar dois dias
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na praia... Nesse tempo a gente pode relaxar, dar uns mergulhos no mar, rolar
na areia, tomar muita água de coco...
CAMILA
Vai sozinho, Kleber. Não conte comigo...
KLEBER
Você é ou não é a minha namorada?! Não tem como eu ir sozinho,
Camila.
CAMILA
(Folheando os livros.) “O quadrado da hipotenusa é igual a soma dos
quadrados dos catetos”. “A mentira é uma verdade que se esqueceu de
acontecer. Mário Quintana”. “Ilha é uma porção de terra cercada de água por
todos os lados”... “Eduquem as crianças para não castigar os homens.
Pitágoras”... Como é mesmo o teorema de Pitágoras?
KLEBER
Quer prestar atenção em mim, Camila?!
CAMILA
Não enche!
KLEBER
(Explodindo.) Tá bem. Eu vou sozinho pra praia... E pode esquecer que
eu existo. Sua fanática (Vai saindo.)
CAMILA
(Larga os livros e corre até Kleber.) Peraí... Desculpa, é que eu tô nervosa. É
muita pressão em cima da gente. Dos pais, da escola... Aos 17 anos você é
obrigada a escolher por uma profissão que você vai trabalhar o resto da vida!!!
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 17171717
E se eu não gostar do curso que escolhi? E se eu não passar? Não vejo a hora
de tudo isso terminar... Não aguento mais tanta pressão... (Berra.) Droga!!!
KLEBER
Calma... O que você precisa é de um tempo pra descansar a cabeça. Há
quase seis meses você fica enfiada neste quarto, rodeada por livros e cadernos.
Não come, não dorme, não sai... O que você precisa agora é esfriar a cabeça
pra poder enfrentar a prova com tranquilidade...
CAMILA
Você tem razão. Tô precisando cuidar um pouco de mim... O que eu
tinha que estudar, já estudei. (Começa a colocar roupas numa mala.) Ok. Você
venceu. Vamos pra praia curtir o fim de semana.
KLEBER
E sem pensar na prova...
CAMILA
Ainda bem que eu tenho alguém do meu lado que me compreenda... Eu
te amo!
KLEBER
Eu também...
(Beijam-se e saem felizes.)
CENA 9
(Carta de adeus de um jovem de 19 anos, cujo nome
foi omitido. O caso é verídico e aconteceu num hospital de São Paulo.)
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 18181818
(Enfermeiros trazem uma cama de hospital até o centro do palco. Saem. Um jovem está
deitado no leito, em estado terminal. Fala para a plateia como fosse o seu pai. Ouvimos
no áudio o som de um cardiógrafo.)
JOVEM
Acho que neste mundo ninguém procurou descrever o seu próprio
cemitério. Não sei como você, pai vai receber este relato, mas preciso de todas
as forças enquanto é tempo. Sinto muito, acho que essa conversa é a última
que tenho com o senhor. Sinto muito, mesmo... Está em tempo de o senhor
saber a verdade, verdade esta que nunca desconfiou. Vou ser breve e claro,
bastante objetivo... O tóxico me matou. Travei conhecimento com meu
assassino aos 15 anos de idade. Sabe como conheci essa desgraça? Por meio de
um cidadão elegantemente vestido, bem-elegante mesmo e bem falante, que
me apresentou o meu futuro assassino: a droga. Eu tentei recusar, tentei
mesmo, mas o cidadão mexeu com os meus brios, dizendo que eu não era
homem... Não é preciso dizer mais nada, né? Ingressei no mundo do vício. No
começo, foi o devaneio; depois as torturas, a escuridão. Não fazia nada sem
que o tóxico tivesse presente. Em seguida, veio a falta de ar, o medo, as
alucinações. E logo após a euforia do pico novamente, eu me sentia mais gente
que outras pessoas, e o tóxico, meu amigo inseparável, sorria... sorria... sorria...
Quando a gente começa, acha tudo ridículo e engraçado. Eu só estou com 19
anos e sei que não tenho a menor chance de viver. É muito tarde pra mim. Mas
ao senhor, tenho um último pedido a fazer: mostre isso a todos os jovens que o
senhor conhece. Diga-lhes que em cada porta da escola, em cada cursinho de
Faculdade, em qualquer lugar, há sempre um homem elegantemente vestido e
bem falante que irá mostrar o futuro assassino e destruidor de vidas, que os
levarão à loucura e à morte, como aconteceu comigo. Por favor, atenda ao meu
último pedido, antes que seja tarde demais para eles... Perdão, pai. Já sofri
demais. Perdoe-me também, por fazê-lo padecer pelas minhas loucuras.
Adeus!!!
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 19191919
(O jovem morre. Ouve-se no áudio o ruído intermitente de um cardiógrafo. Entram
enfermeiros e retiram a maca com o paciente.)
CENA 10
(Adaptação da crônica “O Troco”, de Tatiana Belinky.)
(Tatiana está sentada numa mesa tomando um café. Aparece um menino, por volta dos
doze anos com uma roupa maltrapilha. Aproxima-se lentamente da senhora e pede
baixinho.)
MENINO
A senhora podia me comprar um sanduíche?
TATIANA
Sinto muito, aqui não vendem sanduíches, menino.
MENINO
Eu sei. Mas tem uma lanchonete ali na frente, do outro lado da rua!
(Indica a lanchonete.)
TATIANA
Espere um momento! (Procura o dinheiro na bolsa, mas acha apenas uma
nota alta, muito mais do que necessário para comprar apenas um sanduíche. Entrega
ao garoto, que sai correndo.) Bem, ele bem que precisa, isso lhe dará para muitos
sanduíches. Bom proveito!
(Tatiana toma o café tranquilamente. de repente volta o garoto com um sanduíche
numa mão e com o dinheiro na outra.)
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MENINO
(Sério.) O seu troco, dona! (Tatiana fica parada, sem reagir. O garoto coloca o
troco na mão dela, resoluto e depois sorri.) Muito obrigado!
(Sai correndo.)
TATIANA
Fique com o troco. (Mas o garoto já estava longe. Para a plateia.) Eu poderia
ter ido atrás dele, ou deveria chamá-lo, mas algo me disse, lá no meu íntimo,
que eu não devia fazer isso. Deveria mais aceitar a dignidade com que essa
criança pobre não abusou do meu gesto, que, evidentemente, não entendeu
não como uma esmola, mas como uma prova de confiança na sua correção.
(Termina de tomar café e sai.)
CENA 11
(Baseado em “A Última Crônica”, de Fernando Sabino)
(Um garçom arruma as mesas e cadeiras, como se fosse fechar o local. Nesse momento,
aparece um casal de mendigos com uma menina pequena. O homem traz um saco de
estopa nas costas e a mulher segura na mão da menina. O garçom caminha até ele com
um gesto de mandá-los embora. O homem educadamente pede para usar uma das
mesas. O garçom, a contragosto, autoriza. Os três sentam-se à mesa. A menina no
centro e os pais nas laterais. O homem tira do saco um único pedaço de bolo, enrolado
num papel-toalha. Coloca o bolo no centro da mesa. A mãe pega uma velinha de 5 anos
que estava guardada no bolso e põe no bolo. O pai pega uma caixa de fósforos, risca
um palito e acende a velinha. Os dois se levantam e começam a cantar “parabéns pra
você”, batendo palmas, mas sem nenhum ruído. A menina sente-se a criatura mais
feliz do mundo, enquanto o garçom, que observava atentamente a cena, engole em
seco. A menina assopra a velinha, tira a velinha do bolo, lambe o glacê da base e
começa a comer o pedaço do bolo. Olha para o garçom e oferece um pedaço para ele,
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 21212121
que recusa. A menina come o bolo com imenso prazer. Quando termina, o pai limpa
as migalhas da mesa, colocando-as no saco, mas esquecem a vela ali. o pai chega para
o garçom, limpa a mão na calça e ergue a mão em sinal de agradecimento. O garçom
aperta a mão do mendigo e fica olhando para a saída deles. Antes de sair, a menina
acena a mão para ele, se despedindo. Saem. O garçom, sozinho, olha para a mesa, vê a
velinha, pega-a e fica olhando para ela, profundamente emocionado.)
CENA 12
(Extraído da crônica “Papos” de Luís Fernando Veríssimo.)
(Dois amigos se encontram.)
AMIGO 1
Me disseram...
AMIGO 2
Disseram-me.
AMIGO 1
Hein?
AMIGO 2
O correto é “disseram-me”. Não, “me disseram”.
AMIGO 1
Eu falo como quero. E te digo mais... Ou é “digo-te”?
AMIGO 2
O quê?
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 22222222
AMIGO 1
Digo-te que você...
AMIGO 2
O “te” e o “você” não combinam
AMIGO 1
Lhe digo?
AMIGO 2
Também não. O que você ia me dizer?
AMIGO 1
Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou lhe partir
a sua cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?
AMIGO 2
Partir-te a cara.
AMIGO 1
Pois é. Parti-la-ei-de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me?
AMIGO 2
É para o seu bem.
AMIGO 1
Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender.
Mais uma correção e eu...
AMIGO 2
O quê?
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 23232323
AMIGO 1
O mato.
AMIGO 2
Que mato?
AMIGO 1
Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?
AMIGO 2
Eu só estava querendo...
AMIGO 1
Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo é elitismo.
AMIGO 2
Se você prefere falar errado.
AMIGO 1
Falo como todo mundo fala. O importante é que me entenderem. Ou
entenderem-me?
AMIGO 2
No caso... não sei.
AMIGO 1
Ah, não sabe? Não o sabes? Sabe-lo não?
AMIGO 2
Esquece.
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 24242424
AMIGO 1
Não. Como “esquece”? Você prefere falar errado? E o certo é “esquece”
ou “esqueça”? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos.
AMIGO 2
Depende.
AMIGO 1
Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas
não sabe-os.
AMIGO 2
Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.
AMIGO 1
Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso
mais dize-lo-te o que dizer-te-ia.
AMIGO 2
Por quê?
AMIGO 1
Porque, com todo este papo, esqueci-lo.
(Saem.)
CENA 13
(Cena de Julio Carrara)
(Entra em cena um rapaz maltrapilho. Traz nas mãos dezenas de folhetinhos.)
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 25252525
RAPAZ
E aí, rapaziada? Tamos aí. Tô aqui fazendo meus biscates. A vida é dura,
né? A gente tem que ganhar dinheiro, não importa como, não é mesmo? Olha
só... tá vendo isso aqui... esse monte de papel na mão? É o meu sustento. Vou
lá, entro no ônibus, pulo a catraca e entrego esse papel pros trouxas, me
fingindo de deficiente e desempregado. Querem ver só?
(Outros atores entram e ficam como se estivessem dentro de um ônibus em movimento.
Entra o rapaz, fingindo ter um problema físico. Com toda a dificuldade do mundo, pula
a catraca e começa a entregar os papeis. Alguns não aceitam, outros pegam a
contragosto, etc. Quando termina de entregar, faz seu discurso decorado.)
RAPAZ
Atenção senhores passageiros, eu tô desempregado, passando por
necessidade e com oito filhos pra criar. Eu peço pra vocês qualquer tipo de
ajuda: pode ser qualquer trocado, vale transporte, ticket refeição. O importante
é que seja de coração. Eu sou deficiente físico e neste estado não arrumo
emprego e não posso comprar leite para os meus oito filhos. Por favor, me
ajude. Que Deus dê tudo isso em dobro pra vocês; que Deus abençoe a quem
me ajudar e a quem não ajudar também... Obrigado.
(Vai passando e pegando o papel de volta. Alguns dão passe de metrô ou ônibus para
ele. De repente, um conhecido deste rapaz, olha pra ele, reconhecendo-o.)
HOMEM
Januário! Salafrário. Você não é deficiente coisíssima nenhuma. E nem
tem filho. Não tem vergonha, não? (Pausa. Todos olham furiosos para ele.) Ficar
roubando gente honesta e trabalhadora? (Grita.) Pau nele!!!
(A multidão corre atrás do rapaz, que imediatamente esquece sua deficiência física e
foge desesperadamente sob os gritos de protestos.)
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 26262626
CENA 14
(Montar uma cena utilizando as palavras abaixo. pode ser um rap, com diversos
andamentos, tonalidades, volume e intensidade.)
– Meu time só perde.
– Me sinto só.
– Preciso passar no Vestibular!
– Amizade.
– Generosidade.
– Como vai minha gramática?
– Oi . Tudo bem?
– Nenhum filho meu é viciado em drogas!
– Tô com dor de dente.
– Parabéns pra você.
– Ser ou não ser, eis a questão.
– O mundo é um palco
– Sabotagem
(A cena a seguir começa a ter outro ritmo e andamento. As frases são desconexas, sem,
aparentemente, nenhum sentido. Por exemplo:)
- Os ratos tem pulgas, as pulgas não tem ratos
- O céu está em cima, o chão está embaixo
- Quais os dias da semana?
- Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado, Domingo, Segunda...
- Posso descer lá em cima?
(Inventar outras frases. De repente, não se entende mais nada. Uma verdadeira
poluição sonora. Os atores se comportam como robôs enlouquecidos, agindo como se
estivessem contaminados por um vírus de computador até desaparecerem de cena.)
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 27272727
EPÍLOGO
(Enquanto a cena anterior está sendo executada, os atores pegam as cadeiras e colocam
na mesma marcação do prólogo. Sentam-se nas cadeiras e ficam olhando para frente.
Ouve-se no áudio um texto de Plínio Marcos.)
GRAVAÇÃO
Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do cotidiano tornem um
homem duro ou cínico o suficiente para ele permanecer indiferente às
desgraças ou alegrias coletivas, sempre haverá no seu coração, por minúsculo
que seja, um recanto suave onde ele guarda ecos dos sons de alguns
momentos de amor que viveu na sua vida. Bendito seja quem souber dirigir-se
a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingí-lo no pequeno
núcleo macio de sua sensibilidade e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa
grotesca forma de autodestruição que por desencanto ou medo se sujeita, e
inquietá-lo, comovê-lo para as lutas comuns da libertação. Os atores tem esse
dom. Eles têm o talento de atingir as pessoas nos pontos onde não existe
defesa. Os atores, eles e mais ninguém, tem esse dom. O ator é o Cristo da
Humanidade e seu talento é muito mais uma condenação que uma dádiva. O
ator tem que saber que para ser ator de verdade vai ter que fazer mil e uma
renúncias, mil e um sacrifícios. É preciso que o ator tenha muita coragem,
muita humildade e sobretudo, um transbordamento de amor fraterno para
abdicar da própria personalidade em favor das personalidades de suas
personagens, com a única finalidade de fazer a sociedade entender que o ser
humano não tem instinto e sensibilidade padronizados como os hipócritas,
com seus códigos e ética, pretendem. Eu amo os atores nas suas alucinantes
variações de humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no
desespero de sua insegurança quando ele, sem a bússola da fé ou da ideologia,
é obrigado a vagar por labirintos de sua mente, procurando no seu mais
secreto íntimo afinidades com as distorções de caráter que seu personagem
tem. Eu amo muito mais o ator quando, depois de tantos martírios surge no
palco com segurança, emprestando seu corpo, sua voz, sua alma, sua
sensibilidade para expor sem nenhuma reserva, toda a fragilidade do ser
Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 28282828
humano reprimido, violentado. Eu amo o ator que se empresta inteiro para
expor para a platéia os aleijões da alma humana, com a única finalidade de
que seu público entenda, se compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de
um mundo melhor. Amo os atores e por eles amo o teatro, e sei que é por eles
que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha
que se valer da técnica mecânica. Plínio Marcos.
(Repetição da cena inicial. O espetáculo deverá terminar num alto astral enorme, com
as gargalhadas histéricas dos atores tornando assistir à comédia maluca do início.
Black-out.)
FIM
Abril/2002

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13. retalhos

  • 1. RRRREEEETTTTAAAALLLLHHHHOOOOSSSS Colagem de textos de diversos autores Texto de: JULIO CARRARA Escrita em 2002
  • 2. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 1111 PERSONAGENS: AMIGA 1 AMIGA 2 ATOR GAROTO HAMLET CAMILA KLEBER MÃE PAI MAÍRA BRUNO BETÃO AMIGO 1 AMIGO 2 SENHORA MENINO GARÇOM MENDIGO 1 MENDIGO 2 MENINA DENTISTA SECRETÁRIA PACIENTE JOVEM MENINOS E MENINAS CENÁRIO: Palco nu. Apenas alguns elementos de cenografia como cadeiras e mesas com rodinhas e que deverão entrar e sair conforme indicação do texto.
  • 3. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 2222 PRÓLOGO (Os atores entram em cena e sentam-se nas cadeiras. Olham para frente. No áudio ouvimos o bater de bola de um jogo de tênis ou pingue-pongue. Coreograficamente, olham para os movimentos da bola: direita, esquerda, direita, esquerda. Os gestos são mecânicos, precisos e a expressão facial neutra. Pausa. Novo ruído de sonoplastia, desta vez um filme de terror. Os atores, agora como plateia de cinema, pegam saquinhos de pipocas. Fazem expressões de espanto, pânico, etc. Pausa. Filme dramático. Atores puxam um lenço da camisa e choram. Pausa. Muda o filme e desta vez é uma comédia maluca. Atores riem histericamente até perderem o fôlego. Luz vai descendo em resistência. A cena fica na penumbra. Os atores saem de cena, levando cada um a sua cadeira para a coxia. Enquanto monta-se a cena seguinte, ouve-se no áudio, um “Aforismo” de Oscar Wilde.) GRAVAÇÃO Que sorte tem os atores! Cabe a eles escolher se querem participar de uma tragédia ou uma comédia, se querem sofrer ou regozijar-se, rir ou derramar lágrimas; isso não acontece na vida real. Quase todos os homens e mulheres são forçados a desempenhar papeis pelos quais não se tem a menor propensão. O mundo é um palco, mas os papeis foram mal distribuídos. Oscar Wilde. CENA 1 (Concepção de Julio Carrara.) (Duas amigas conversam.) AMIGA 1 Sou tão sem graça que não consigo um namorado.
  • 4. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 3333 AMIGA 2 Por que você não vai a um bom salão de beleza e manda que lhe façam um penteado diferente? AMIGA 1 Sim, mas isso custa muito dinheiro. AMIGA 2 Bem, então que tal a ideia de comprar uma revista que tenha sugestões para diferentes penteados que possam ser feitos por você mesma? AMIGA 1 Sim, mas eu já tentei isso – e meu cabelo é fino demais. Não para penteado. Fazendo um coque, ele pelo menos parece normal. AMIGA 2 Que tal então mudar a maquiagem para melhor realçar as suas feições? AMIGA 1 Sim, mas a minha pele é alérgica. Tentei uma vez e não deu certo. AMIGA 2 Bem, já existem muitos produtos não alérgicos. De qualquer forma, por que você não vai a um dermatologista? AMIGA 1 Sim, mas eu sei o que ele dirá. Vai dizer que não como direito. Sei que como muita coisa que não presta e que minhas refeições não são equilibradas. É o que acontece quando se mora sozinha. E... bem, a beleza está na saúde interna.
  • 5. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 4444 AMIGA 2 Bem, isso é verdade. Talvez ajudasse se você entrasse em algum curso de educação de adultos. Conhecer um pouco de arte, ou saber o que se passa pelo mundo ajuda a pessoa a conversar bem. AMIGA 1 Sim, mas esses cursos são todos à noite. E depois do trabalho eu me sinto completamente exausta. AMIGA 2 Bem, faça então um curso por correspondência. AMIGA 1 Sim, mas não tenho tempo nem de escrever para os meus pais. Como é que poderia encontrar tempo para fazer um curso por correspondência? AMIGA 2 Você acharia tempo, se achasse que era algo importante. AMIGA 1 Sim, mas pra você, isso é fácil dizer, por que tem tanta energia. Eu não. Vivo morta de cansada. AMIGA 2 Por que você não dorme de noite? Não é de se admirar que viva cansada, assistindo todas as noites ao último filme da TV. AMIGA 1 Sim, mas eu tenho que me divertir. E só resta uma coisa dessas, quando a pessoa é tão sem graça como eu! (Saem.)
  • 6. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 5555 CENA 2 (Poema “Solidão”, de Federico García Lorca.) (Entra um ator e declama a poesia.) ATOR Solidão pensativa Sobre pedra e roseira, morte e desvelo Onde livre e cativa Fixa em seu branco vôo, Canta a luz ferida pelo gelo Solidão com estilo De silêncio sem fim e arquitetura, Onde a planta suspensa Da ave na espessura Não consegue cravar-te a carne escura Em ti deixo esquecida A frenética chuva de minhas veias Minha cintura coalhada E rompendo cadeias, Rosa débil serei pelas areias Rosa de minha nudez Sobre panos de cal e surdo fogo, Quando já roto o nó, Limpo de lua e cego Cruze tuas finas ondas de sossego. Na curva do rio O duplo cisne sua brancura canta Úmida voz sem frio
  • 7. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 6666 Flui de sua garganta, E pelos juncos roda e se levanta. Com sua rosa de farinha Menino despido mede a ribeira, Enquanto o bosque afina Sua música primeira Em rumor de cristais e madeira. Coros de sempre-vivas, Giram loucos pedindo eternidades. Seus sinais expressivos Ferem as duas metades Do mapa que ressuma solidões A harpa e seu lamento Preso em nervos de metal dourado, Tão doce instrumento Ressonante ou delgado Busca, ó solidão, teu reino gelado. No entanto, tu, inacessível À verde lepra do som, Não há altura possível Nem lábio conhecido Por onde chegue a ti nosso gemido. Federico García Lorca.
  • 8. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 7777 CENA 3 (Extraído da cena “Meu time só perde...”, do livro “Teatro Vivo na Escola”, de Ana Lúcia Cavalieri.) (Garoto sentado à escrivaninha. À sua volta, livros, cadernos, material escolar. Ele abre um livro, tira uma fotografia e conversa com ela.) GAROTO Isso é que é viver? Estar aqui, sentado numa cadeira, lendo, escrevendo, estudando, me preparando pras provas, provas, provas e provas?! Conhecendo coisas do mundo, da vida, mas vendo tudo acontecer longe de mim... Minha vida continua a mesma chatice. Estou cansado de fazer sempre as mesmas coisas, conversar com as mesmas pessoas... Fico deprimido quando paro e penso que a vida tá passando e nunca me aconteceu nada de muito importante ou alguma coisa que me marcasse... Que adianta gostar de você, Marília? Você nem olha pra mim, nunca fala comigo, nem sabe que eu existo! Há três anos caímos na mesma classe e, quando fazemos parte da mesma equipe, penso em me aproximar de você e até me declarar. Mas como? Se sou tímido... feio e atrapalhado?! Só sei que você nunca vai me querer. Meu time só perde; não jogo futebol, não sei dançar, não consigo “ficar”... Lá na classe eles ficam rindo de mim. Tô sempre por fora... Às vezes penso que sou apenas um ponto de tangência, entre uma reta qualquer e o planeta. (Guarda a foto no livro e sai de cena.) CENA 4 (Extraído de “Hamlet”, de William Shakespeare. Ato III, Cena I.)
  • 9. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 8888 HAMLET Ser ou não ser, eis a questão! O que será mais justo para a consciência: sofrer os golpes e as pontadas de um destino injusto, ou enfrentar de armas nas mãos esse mar de desgraças, e lutando acabar com elas? Morrer. Dormir, nada mais. E dizer que esse sono põe termo a todas as angústias do coração, e às mil ofensas naturais que a carne traz em si própria! Eis um final que todos deveríamos desejar intensamente: morrer... dormir... Sonhar, talvez... Sim, essa é a dúvida! Que sonho vamos ter nesse sono de morte, depois de cortado o fio da existência? Eis um pensamento que nos faz parar; eis a causa da nossa paciência diante de anos e anos tão amargos. Se assim não fosse, quem suportaria os insultos e as burlas dos tempos, os crimes das ditaduras, a empáfia dos poderosos, a tristeza de amar sem ser correspondido, a lentidão da justiça, os arbítrios da autoridade, o escárnio dos indignos à modéstia dos sábios?... Quem suportaria isso, sabendo que pode encontrar o descanso na ponta de uma faca? Quem carregaria esse fardo, gemendo e suando sob o peso da vida, se não fosse o receio de alguma coisa depois da morte que confunde a nossa vontade, e que nos faz preferir os males presentes aos futuros e desconhecidos? De cada um de nós a consciência faz um covarde. A cor viva do instinto empalidece à luz do pensamento. E, desta forma, empreendimentos de grande energia e importância mudam de rumo e se tornam indignos até do nome de ação. “Hamlet” – William Shakespeare. (Sai.) CENA 5 (Concepção de Julio Carrara.) (UMA RUA. NO CENTRO DO PALCO ESTÁ UM CARRINHO DE BRINQUEDO. ENTRA UM GAROTO. SE APROXIMA DO CENTRO COM O OBJETIVO DE “RAPTAR” O BRINQUEDO. QUANDO VAI PEGÁ-LO, APARECE UMA MULHER EMPURRANDO UM CARRINHO DE BEBÊ. ELE DISFARÇA. A MULHER SAI DE CENA. O GAROTO TENTA NOVAMENTE,
  • 10. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 9999 MAS DISFARÇA, POIS VÊ UM MENINO PASSEANDO COM O CACHORRINHO. CADA VEZ QUE O GAROTO SE APROXIMA DO BRINQUEDO, APARECE ALGUÉM SUSPEITO. FICA A CARGO DA DIREÇÃO OS PERSONAGENS QUE APARECERÃO EM CENA. QUANDO O GAROTO PERCEBE QUE ESTÁ SÓ, FINGE NÃO ESTAR SE IMPORTANDO COM O BRINQUEDO E VIRA DE COSTAS PARA ELE. NESSE MEIO TEMPO, APARECE UM 2º GAROTO, QUE PEGA O BRINQUEDO E SAI CORRENDO. O GAROTO VIRA-SE DE COSTAS PARA PEGAR O CARRINHO E QUANDO VÊ QUE O BRINQUEDO NÃO ESTÁ MAIS LÁ, FICA COM CARA DE TACHO E SAI DE CENA, FRUSTRADO) CENA 6 (Extraído da cena “Nenhum filho meu é viciado em drogas!”, do livro “Drogas e Prevenção – A Cena e a Reflexão” de Ana Lúcia Cavalieri e Antonio Carlos Egypto.) (Mãe entra, puxando pelo braço Bruno, o caçula de seus quatro filhos. Desabafa, dirigindo-se a Maíra, outra filha.) MÃE Será possível? Meus filhos, um bando de alienados? O Marco não sai da internet e ainda deu pra contar mentiras! Hoje, se fez passar por um empresário de 40 anos; ontem foi uma perua, uma loura oxigenada! E você, Bruno, segue o mesmo caminho. (Solta o braço do filho.) Não desgruda um minuto do videogame, aliás, desgruda sim, só pra tomar refrigerante. BRUNO Refri, não, mãe! Coca ou Pepsi-Cola! Por mim eu colocava litros dentro do filtro e não tomava mais água.
  • 11. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 10101010 MÃE Não fale isso, menino! Tá ficando louco? Ninguém vive sem água. MAÍRA O Bruno quer provar o contrário. O negócio dele é a cola! Imagine, refrigerante no filtro... Viva a celulite! Meu Deus, quantas calorias! Milhares, o dia inteiro. BRUNO Você é louca! Só vê calorias, calorias, calorias! MAÍRA Olha aqui, pirralho, eu cuido da minha estética, não quero ficar “balofa” como alguns... MÃE Maíra, olha o respeito com o seu irmão. BRUNO Há, há, há... estética! Estética da fome, como disse o tio Pedro. Você tá parecendo um bicho magro, esfomeado! MAÍRA Gordo! BRUNO Tribufu! Não tem mais nada pra emagrecer, parece um esqueleto ambulante! MAÍRA Mãe, eu vou arrebentar esse menino!
  • 12. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 11111111 BRUNO (Provocando.) Com que força? MÃE (Nervosa.) Chega! Parem já com essa discussão! Dois irmãos brigando desse jeito! Não existe mais respeito entre vocês? Hein?! BRUNO Foi ela que começou a provocar. Implica comigo agora, mas antes era louca por chocolate, comia sem parar, não ficava um dia sem comer! MAÍRA Isso é passado. Minha vida agora é outra! MÃE Eu não sei, não! Deixou o chocolate, mas agora não vive sem os comprimidos para emagrecer! A sua bolsa parece uma farmácia, anda obcecada com a idéia de ficar magra. Isso faz mal, minha filha... Não é desse jeito que você vai manter a forma. É preciso ter uma alimentação balanceada, saudável, comer verduras... MAÍRA Não, mãe! Já vai começar? Você deveria ficar feliz com o meu regime pra emagrecer. Lá no colégio tem uma menina que emagreceu todos os quilos que queria, fazendo uma dieta diferente: cheirando cocaína! MÃE O quê? Que absurdo! A direção da escola sabe disso? Não, Maíra, não é possível uma loucura dessas. Deve ser história de adolescente. MAÍRA Cai na real, mãe!
  • 13. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 12121212 MÃE Olhem aqui, meus filhos, vocês podem fazer muitas coisas com as quais eu não concordo, mas graças a Deus nenhum filho meu é viciado em drogas! Deus nos livre de uma desgraça dessas! (Entra Betão, o filho mais velho, frequentador de academias, musculoso, quase um halterofilista.) BETÃO Oi, mãe! (Olha para os irmãos.) Os dois já estão brigando de novo? É falta do que fazer! MAÍRA Olha quem fala! BRUNO O rascunho do Rambo! BETÃO O galinho de briga já está com o peito estufado! BRUNO Estufado tá você, e inteiro! Parece um boneco de plástico! (rindo) O Betão vai estufar até explodir e ficar parecendo um balão murcho, empapuçado! (Bruno e Maíra se olham, segurando o riso.) MÃE (À parte.) Segundo tempo! Vai começar tudo de novo...
  • 14. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 13131313 BETÃO Ô bundão, eu tenho saúde, cuido do meu corpo, malho o dia inteiro numa academia! Não pareço um pão de queijo, nem um palito de dentes! (Ri.) MAÍRA (Irônica.) O Rambo plastificado tem saúde! Vive a poder de energéticos e anabolizantes! Não é só o seu coração que vai pifar, não, mas tem mais alguma coisa... MÃE Vamos parar! Pelo amor de Deus! É melhor cada um ir para o seu quarto! Meu Deus, o que eu fiz pra merecer isto? Onde foi que eu errei? (Os filhos vão saindo; a mãe fica só.) É por isso que não durmo! Esses filhos não me dão sossego! A minha insônia é eterna... (Lembra-se.) Nossa! Meus comprimidos acabaram! Tomei o último a noite passada... É preciso comprar outros, urgente! (Entra em cena o pai.) PAI A luta terminou? Nossa, que cara é essa? MÃE Amor, meu remédio pra dormir, acabou! Por favor, você precisa sair pra comprar... PAI O quê? Agora? É tarde! Por que não viu isso antes? Querida, você precisa parar com essa mania... (Procura alguma coisa nos bolsos da calça e da camisa. Fica nervoso.) Onde estão meus cigarros? Como? Já acabaram? Será que tem mais gente fumando nesta casa?! Não posso ficar sem cigarros! Vou ter que sair pra comprar...
  • 15. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 14141414 MÃE Então aproveite para comprar meu remédio. Aqui está a receita. (Entrega a receita para o pai. Ambos saem de cena.) CENA 7 (Concepção de Julio Carrara.) (Consultório de dentista. O dentista está de costas para o público mexendo nos seus apetrechos. Na sala de estar, está a secretária. Entra em cena um paciente. Está com uma faixa enrolada no maxilar e resmunga de dor. Secretária confere na agenda o horário do paciente e o faz entrar. O paciente senta-se na cadeira do dentista e aguarda ansioso. O dentista vira-se de frente e põe-se a examinar a boca do paciente. Vai até o fundo e vem com uma enorme chave de fenda. Coloca a chave na boca do paciente, que berra de dor. Quando o doutor percebe que não aconteceu nada, pega uma furadeira e coloca-a na boca do cliente, que urra. O cliente está desesperado. O doutor, sem atingir êxito, pega uma banana de dinamite e enfia na boca do paciente. Este geme, mexe os braços. O doutor acende a dinamite e, tapa os ouvidos para não ouvir a explosão. A dinamite explode – o cliente cospe a banana, mas continua com dor de dente. Tempo. O doutor não sabe mais o que fazer. O paciente, sente alguma coisa estranha na boca. Põe os dedos em um dos dentes e arranca-o com a maior naturalidade. Levanta-se da cadeira meio grogue e entrega um dente podre gigante para o dentista e sai de cena.) CENA 8 (Cena escrita por Julio Carrara.) (Entra em cena Camila com uma pilha de livros nas mãos. Senta-se no chão e começa e estudar. Entra Kleber, todo animado.)
  • 16. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 15151515 KLEBER Ô Camila, tenho uma proposta pra te fazer... CAMILA (Sem olhar pra ele.) Fala. KLEBER Vamos descer pra praia? A turma toda tá esperando a gente lá no Jabaquara... CAMILA Ah, Kleber. Não tô a fim. KLEBER Mas, por quê? Vai toda a galera da classe... CAMILA Semana que vem é o vestibular, Kleber. Cada minuto que passa agora é sagrado. Não posso perder tempo com coisas supérfluas, que eu posso fazer depois... Se eu não passar no vestibular, meus pais me matam! KLEBER Eu também vou prestar o vestibular e nem por isso tô nessa obsessão toda. CAMILA Por que seus pais não pegam no seu pé. E você também não tá interessado em fazer uma faculdade! KLEBER Como, não? Claro que quero fazer faculdade. Mas pra tudo tem o seu tempo... Ainda tem uma semana pra primeira fase... E só vamos ficar dois dias
  • 17. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 16161616 na praia... Nesse tempo a gente pode relaxar, dar uns mergulhos no mar, rolar na areia, tomar muita água de coco... CAMILA Vai sozinho, Kleber. Não conte comigo... KLEBER Você é ou não é a minha namorada?! Não tem como eu ir sozinho, Camila. CAMILA (Folheando os livros.) “O quadrado da hipotenusa é igual a soma dos quadrados dos catetos”. “A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer. Mário Quintana”. “Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados”... “Eduquem as crianças para não castigar os homens. Pitágoras”... Como é mesmo o teorema de Pitágoras? KLEBER Quer prestar atenção em mim, Camila?! CAMILA Não enche! KLEBER (Explodindo.) Tá bem. Eu vou sozinho pra praia... E pode esquecer que eu existo. Sua fanática (Vai saindo.) CAMILA (Larga os livros e corre até Kleber.) Peraí... Desculpa, é que eu tô nervosa. É muita pressão em cima da gente. Dos pais, da escola... Aos 17 anos você é obrigada a escolher por uma profissão que você vai trabalhar o resto da vida!!!
  • 18. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 17171717 E se eu não gostar do curso que escolhi? E se eu não passar? Não vejo a hora de tudo isso terminar... Não aguento mais tanta pressão... (Berra.) Droga!!! KLEBER Calma... O que você precisa é de um tempo pra descansar a cabeça. Há quase seis meses você fica enfiada neste quarto, rodeada por livros e cadernos. Não come, não dorme, não sai... O que você precisa agora é esfriar a cabeça pra poder enfrentar a prova com tranquilidade... CAMILA Você tem razão. Tô precisando cuidar um pouco de mim... O que eu tinha que estudar, já estudei. (Começa a colocar roupas numa mala.) Ok. Você venceu. Vamos pra praia curtir o fim de semana. KLEBER E sem pensar na prova... CAMILA Ainda bem que eu tenho alguém do meu lado que me compreenda... Eu te amo! KLEBER Eu também... (Beijam-se e saem felizes.) CENA 9 (Carta de adeus de um jovem de 19 anos, cujo nome foi omitido. O caso é verídico e aconteceu num hospital de São Paulo.)
  • 19. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 18181818 (Enfermeiros trazem uma cama de hospital até o centro do palco. Saem. Um jovem está deitado no leito, em estado terminal. Fala para a plateia como fosse o seu pai. Ouvimos no áudio o som de um cardiógrafo.) JOVEM Acho que neste mundo ninguém procurou descrever o seu próprio cemitério. Não sei como você, pai vai receber este relato, mas preciso de todas as forças enquanto é tempo. Sinto muito, acho que essa conversa é a última que tenho com o senhor. Sinto muito, mesmo... Está em tempo de o senhor saber a verdade, verdade esta que nunca desconfiou. Vou ser breve e claro, bastante objetivo... O tóxico me matou. Travei conhecimento com meu assassino aos 15 anos de idade. Sabe como conheci essa desgraça? Por meio de um cidadão elegantemente vestido, bem-elegante mesmo e bem falante, que me apresentou o meu futuro assassino: a droga. Eu tentei recusar, tentei mesmo, mas o cidadão mexeu com os meus brios, dizendo que eu não era homem... Não é preciso dizer mais nada, né? Ingressei no mundo do vício. No começo, foi o devaneio; depois as torturas, a escuridão. Não fazia nada sem que o tóxico tivesse presente. Em seguida, veio a falta de ar, o medo, as alucinações. E logo após a euforia do pico novamente, eu me sentia mais gente que outras pessoas, e o tóxico, meu amigo inseparável, sorria... sorria... sorria... Quando a gente começa, acha tudo ridículo e engraçado. Eu só estou com 19 anos e sei que não tenho a menor chance de viver. É muito tarde pra mim. Mas ao senhor, tenho um último pedido a fazer: mostre isso a todos os jovens que o senhor conhece. Diga-lhes que em cada porta da escola, em cada cursinho de Faculdade, em qualquer lugar, há sempre um homem elegantemente vestido e bem falante que irá mostrar o futuro assassino e destruidor de vidas, que os levarão à loucura e à morte, como aconteceu comigo. Por favor, atenda ao meu último pedido, antes que seja tarde demais para eles... Perdão, pai. Já sofri demais. Perdoe-me também, por fazê-lo padecer pelas minhas loucuras. Adeus!!!
  • 20. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 19191919 (O jovem morre. Ouve-se no áudio o ruído intermitente de um cardiógrafo. Entram enfermeiros e retiram a maca com o paciente.) CENA 10 (Adaptação da crônica “O Troco”, de Tatiana Belinky.) (Tatiana está sentada numa mesa tomando um café. Aparece um menino, por volta dos doze anos com uma roupa maltrapilha. Aproxima-se lentamente da senhora e pede baixinho.) MENINO A senhora podia me comprar um sanduíche? TATIANA Sinto muito, aqui não vendem sanduíches, menino. MENINO Eu sei. Mas tem uma lanchonete ali na frente, do outro lado da rua! (Indica a lanchonete.) TATIANA Espere um momento! (Procura o dinheiro na bolsa, mas acha apenas uma nota alta, muito mais do que necessário para comprar apenas um sanduíche. Entrega ao garoto, que sai correndo.) Bem, ele bem que precisa, isso lhe dará para muitos sanduíches. Bom proveito! (Tatiana toma o café tranquilamente. de repente volta o garoto com um sanduíche numa mão e com o dinheiro na outra.)
  • 21. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 20202020 MENINO (Sério.) O seu troco, dona! (Tatiana fica parada, sem reagir. O garoto coloca o troco na mão dela, resoluto e depois sorri.) Muito obrigado! (Sai correndo.) TATIANA Fique com o troco. (Mas o garoto já estava longe. Para a plateia.) Eu poderia ter ido atrás dele, ou deveria chamá-lo, mas algo me disse, lá no meu íntimo, que eu não devia fazer isso. Deveria mais aceitar a dignidade com que essa criança pobre não abusou do meu gesto, que, evidentemente, não entendeu não como uma esmola, mas como uma prova de confiança na sua correção. (Termina de tomar café e sai.) CENA 11 (Baseado em “A Última Crônica”, de Fernando Sabino) (Um garçom arruma as mesas e cadeiras, como se fosse fechar o local. Nesse momento, aparece um casal de mendigos com uma menina pequena. O homem traz um saco de estopa nas costas e a mulher segura na mão da menina. O garçom caminha até ele com um gesto de mandá-los embora. O homem educadamente pede para usar uma das mesas. O garçom, a contragosto, autoriza. Os três sentam-se à mesa. A menina no centro e os pais nas laterais. O homem tira do saco um único pedaço de bolo, enrolado num papel-toalha. Coloca o bolo no centro da mesa. A mãe pega uma velinha de 5 anos que estava guardada no bolso e põe no bolo. O pai pega uma caixa de fósforos, risca um palito e acende a velinha. Os dois se levantam e começam a cantar “parabéns pra você”, batendo palmas, mas sem nenhum ruído. A menina sente-se a criatura mais feliz do mundo, enquanto o garçom, que observava atentamente a cena, engole em seco. A menina assopra a velinha, tira a velinha do bolo, lambe o glacê da base e começa a comer o pedaço do bolo. Olha para o garçom e oferece um pedaço para ele,
  • 22. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 21212121 que recusa. A menina come o bolo com imenso prazer. Quando termina, o pai limpa as migalhas da mesa, colocando-as no saco, mas esquecem a vela ali. o pai chega para o garçom, limpa a mão na calça e ergue a mão em sinal de agradecimento. O garçom aperta a mão do mendigo e fica olhando para a saída deles. Antes de sair, a menina acena a mão para ele, se despedindo. Saem. O garçom, sozinho, olha para a mesa, vê a velinha, pega-a e fica olhando para ela, profundamente emocionado.) CENA 12 (Extraído da crônica “Papos” de Luís Fernando Veríssimo.) (Dois amigos se encontram.) AMIGO 1 Me disseram... AMIGO 2 Disseram-me. AMIGO 1 Hein? AMIGO 2 O correto é “disseram-me”. Não, “me disseram”. AMIGO 1 Eu falo como quero. E te digo mais... Ou é “digo-te”? AMIGO 2 O quê?
  • 23. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 22222222 AMIGO 1 Digo-te que você... AMIGO 2 O “te” e o “você” não combinam AMIGO 1 Lhe digo? AMIGO 2 Também não. O que você ia me dizer? AMIGO 1 Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou lhe partir a sua cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz? AMIGO 2 Partir-te a cara. AMIGO 1 Pois é. Parti-la-ei-de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me? AMIGO 2 É para o seu bem. AMIGO 1 Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender. Mais uma correção e eu... AMIGO 2 O quê?
  • 24. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 23232323 AMIGO 1 O mato. AMIGO 2 Que mato? AMIGO 1 Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem? AMIGO 2 Eu só estava querendo... AMIGO 1 Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo é elitismo. AMIGO 2 Se você prefere falar errado. AMIGO 1 Falo como todo mundo fala. O importante é que me entenderem. Ou entenderem-me? AMIGO 2 No caso... não sei. AMIGO 1 Ah, não sabe? Não o sabes? Sabe-lo não? AMIGO 2 Esquece.
  • 25. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 24242424 AMIGO 1 Não. Como “esquece”? Você prefere falar errado? E o certo é “esquece” ou “esqueça”? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos. AMIGO 2 Depende. AMIGO 1 Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não sabe-os. AMIGO 2 Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser. AMIGO 1 Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso mais dize-lo-te o que dizer-te-ia. AMIGO 2 Por quê? AMIGO 1 Porque, com todo este papo, esqueci-lo. (Saem.) CENA 13 (Cena de Julio Carrara) (Entra em cena um rapaz maltrapilho. Traz nas mãos dezenas de folhetinhos.)
  • 26. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 25252525 RAPAZ E aí, rapaziada? Tamos aí. Tô aqui fazendo meus biscates. A vida é dura, né? A gente tem que ganhar dinheiro, não importa como, não é mesmo? Olha só... tá vendo isso aqui... esse monte de papel na mão? É o meu sustento. Vou lá, entro no ônibus, pulo a catraca e entrego esse papel pros trouxas, me fingindo de deficiente e desempregado. Querem ver só? (Outros atores entram e ficam como se estivessem dentro de um ônibus em movimento. Entra o rapaz, fingindo ter um problema físico. Com toda a dificuldade do mundo, pula a catraca e começa a entregar os papeis. Alguns não aceitam, outros pegam a contragosto, etc. Quando termina de entregar, faz seu discurso decorado.) RAPAZ Atenção senhores passageiros, eu tô desempregado, passando por necessidade e com oito filhos pra criar. Eu peço pra vocês qualquer tipo de ajuda: pode ser qualquer trocado, vale transporte, ticket refeição. O importante é que seja de coração. Eu sou deficiente físico e neste estado não arrumo emprego e não posso comprar leite para os meus oito filhos. Por favor, me ajude. Que Deus dê tudo isso em dobro pra vocês; que Deus abençoe a quem me ajudar e a quem não ajudar também... Obrigado. (Vai passando e pegando o papel de volta. Alguns dão passe de metrô ou ônibus para ele. De repente, um conhecido deste rapaz, olha pra ele, reconhecendo-o.) HOMEM Januário! Salafrário. Você não é deficiente coisíssima nenhuma. E nem tem filho. Não tem vergonha, não? (Pausa. Todos olham furiosos para ele.) Ficar roubando gente honesta e trabalhadora? (Grita.) Pau nele!!! (A multidão corre atrás do rapaz, que imediatamente esquece sua deficiência física e foge desesperadamente sob os gritos de protestos.)
  • 27. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 26262626 CENA 14 (Montar uma cena utilizando as palavras abaixo. pode ser um rap, com diversos andamentos, tonalidades, volume e intensidade.) – Meu time só perde. – Me sinto só. – Preciso passar no Vestibular! – Amizade. – Generosidade. – Como vai minha gramática? – Oi . Tudo bem? – Nenhum filho meu é viciado em drogas! – Tô com dor de dente. – Parabéns pra você. – Ser ou não ser, eis a questão. – O mundo é um palco – Sabotagem (A cena a seguir começa a ter outro ritmo e andamento. As frases são desconexas, sem, aparentemente, nenhum sentido. Por exemplo:) - Os ratos tem pulgas, as pulgas não tem ratos - O céu está em cima, o chão está embaixo - Quais os dias da semana? - Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado, Domingo, Segunda... - Posso descer lá em cima? (Inventar outras frases. De repente, não se entende mais nada. Uma verdadeira poluição sonora. Os atores se comportam como robôs enlouquecidos, agindo como se estivessem contaminados por um vírus de computador até desaparecerem de cena.)
  • 28. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 27272727 EPÍLOGO (Enquanto a cena anterior está sendo executada, os atores pegam as cadeiras e colocam na mesma marcação do prólogo. Sentam-se nas cadeiras e ficam olhando para frente. Ouve-se no áudio um texto de Plínio Marcos.) GRAVAÇÃO Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do cotidiano tornem um homem duro ou cínico o suficiente para ele permanecer indiferente às desgraças ou alegrias coletivas, sempre haverá no seu coração, por minúsculo que seja, um recanto suave onde ele guarda ecos dos sons de alguns momentos de amor que viveu na sua vida. Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingí-lo no pequeno núcleo macio de sua sensibilidade e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa grotesca forma de autodestruição que por desencanto ou medo se sujeita, e inquietá-lo, comovê-lo para as lutas comuns da libertação. Os atores tem esse dom. Eles têm o talento de atingir as pessoas nos pontos onde não existe defesa. Os atores, eles e mais ninguém, tem esse dom. O ator é o Cristo da Humanidade e seu talento é muito mais uma condenação que uma dádiva. O ator tem que saber que para ser ator de verdade vai ter que fazer mil e uma renúncias, mil e um sacrifícios. É preciso que o ator tenha muita coragem, muita humildade e sobretudo, um transbordamento de amor fraterno para abdicar da própria personalidade em favor das personalidades de suas personagens, com a única finalidade de fazer a sociedade entender que o ser humano não tem instinto e sensibilidade padronizados como os hipócritas, com seus códigos e ética, pretendem. Eu amo os atores nas suas alucinantes variações de humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no desespero de sua insegurança quando ele, sem a bússola da fé ou da ideologia, é obrigado a vagar por labirintos de sua mente, procurando no seu mais secreto íntimo afinidades com as distorções de caráter que seu personagem tem. Eu amo muito mais o ator quando, depois de tantos martírios surge no palco com segurança, emprestando seu corpo, sua voz, sua alma, sua sensibilidade para expor sem nenhuma reserva, toda a fragilidade do ser
  • 29. Julio CarrarJulio CarrarJulio CarrarJulio Carraraaaa RetalhosRetalhosRetalhosRetalhos 28282828 humano reprimido, violentado. Eu amo o ator que se empresta inteiro para expor para a platéia os aleijões da alma humana, com a única finalidade de que seu público entenda, se compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de um mundo melhor. Amo os atores e por eles amo o teatro, e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica. Plínio Marcos. (Repetição da cena inicial. O espetáculo deverá terminar num alto astral enorme, com as gargalhadas histéricas dos atores tornando assistir à comédia maluca do início. Black-out.) FIM Abril/2002