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OS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO
JOSÉ VEGAR
(propriedadeintelectual. Todos os direitos reservados)
COORDENADAS
SOBRE A POSSIBILIDADE DE PARTILHA/3
(uma introdução)
SUPERAR A FRONTEIRA/4
(a avaliação dolorosa da história imaginada)
A MECÂNICA DA NARRATIVA/7
(a extrema importância da estrutura, da forma e do plot)
A IDENTIFICAÇÃO DA VOZ/11
(Um processo de descoberta do modo de fixar a história em texto)
A MANUFACTURA DE PERSONAGENS/14
(escapando às armadilhas do pequeno mundo do autor)
O PODER DA TÉCNICA/17
(dos modos de reproduzir o que foi criado e singularizar o texto)
UM INDICADOR DE REFERÊNCIAS/19
(algumas obras que devem ser companhia).
DEZ SEM FALTA/31
(Se uma lista de ficcionais obrigatórios pode ser levantada)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS/32
SOBRE A POSSIBILIDADE DE PARTILHA
(uma introdução)
Orhan Pamuk acredita que “the center of a novel is a profound opinion or insight about
life, a deeply embedded point of mystery, whether real or imagined. Novelists write in
order to investigate this locus, to discover its implications (…)” (“The naïve and the
sentimental novelist, 2010-153).
O ficcionista quer então aceder ao “ponto de mistério”, para usar o maravilhoso termo
de Pamuk, o que é de uma ambição desmesurada, especialmente porque está isolado
numa imensa solidão e rodeado de fronteiras que o encerram, já que a maior parte dos
elementos decisivos para o surgimento da história ficcional e da sua posterior execução
não são visíveis, não se partilham e não se ensinam.
Na verdade, não é possível inculcar num candidato a escritor uma perturbação que o
domine, e que é afinal a razão maior de toda a criação, ou a capacidade de moldar uma
história a partir desse estado.
Não existe do mesmo modo uma programação que lhe garanta a condição indispensável
para escrever, isto é a maturidade, gerada por uma fusão desconhecida e sempre
personalizada entre experiência, leitura de textos e, principalmente, o efeito provocado
pelo lento percurso do tempo.
Resta então apenas uma possibilidade de partilha de um conjunto modesto de
mecanismos e técnicas, os fundamentais, que, se esquecermos o rigor, poderemos
classificar como regras, sobre o processo de ficção. Ou seja, este manual.
José Vegar
SUPERAR A FRONTEIRA
(a avaliação dolorosa da história imaginada)
Não há ficção sem um processo íntimo de perturbação.A questão pessoal fundamental
que o candidato a escritor deve colocar a si próprio é: O que é que me perturba?
Na palavra perturbação cabem todas as variações. O que é que me fascina? O que é me
intriga? O que é que me interessa?
Se a resposta transportar a identificação de um elemento isolável, provavelmente o
candidato tem o princípio de uma história, porque detectou um tema ou um episódio.
Possuir um tema circunscrito, por maior que seja a sua dimensão, é o primeiro passo
fundamental.
A existência de um tema poder dar origem a um processo criativo impenetrável. A
história pode começar a formar-se a partir de uma memória, de um acto, ou de uma
marca. Ou pode vir de fora, de uma observação na rua. William Gibson revela que “I
have to write an opening sentence. I think with one exception I’ve never changed an
opening sentence after a book was completed” (The Paris Review, 2011).
Na maior parte das vezes, o esboço da história surge através de um processo de
associação caótico e ilegível, onde memórias, imagens e actos se associam e formam
uma cadeia de imaginação e ideias, neste caso destinada a um texto ficcional.
Como aponta DeLillo “I think the scene comes first, an idea of a character in a place.
It’s visual, it’s Technicolor—something I see in a vague way. Then sentence by
sentence into the breach” (The Paris Review, 1993).
No entanto, essa cadeia não dá acesso automático a uma história. Há uma fronteira a
superar.
O Dictionary of Literary Terms & Literary Theory da Penguin Reference, que
passaremos a designar apenas por dicionário, diz que ficção é “a vague and general term
for an imaginative work, usually in prose”, caracterizando a novela como “ a extended
piece of prose fiction(...) a form of story or prose narrative containing characters, action
and incident, and perhaps, a plot” (1998).
Por sua vez, o teórico literário Albert Manguel, num momento feliz, partilhou no diário
“Público”, em Julho de 2010 que “o escritor de ficção tem de estar só, num espaço em
que se torne possível inventar o mundo praticamente de raiz (…)”.
É este exactamente o ponto, já que “inventar o mundo praticamente de raíz”, exige um
processo. Como escreve Porter Abbott em The Cambridge Introduction to Narrative
“(…) narrative is the representation of an event or a series of events. Event is the key
word here, though some people prefer the word “action”. Without an event or an action,
you may have a description, an exposition, an argument, a lyric, some combination of
these or something else altogether, but you won´t have a narrative” (2013:67-79).
A fronteira é exactamente a referida pelo dicionário, por Manguel e pela introdução. O
começo da construção de um texto ficcional poder ser uma das consequências de um
processo íntimo de perturbação.
Mas este último não é suficiente. Se o autor não possuir maturidade intelectual e
existencial, se não tiver distância do seu tema, se não criar uma organização ficcional,
isto é uma história e um discurso, se não assentar a ideia inicial numa continuidade
espacial e temporal, e principalmente se não desenvolver uma acção ou um evento,
estará apenas a produzir uma catarse, uma meditação ou uma história limitada.
A superação da fronteira exige uma perturbação e um tema, mas exige depois, num
momento seguinte, a aplicação destes dois elementos como pilares fundadores de uma
história. Num terceiro momento, obriga a que a história seja a mediação e a construção,
a representação do tema, através do desenho dos personagens e da acção, da sua
colocação no tempo e no espaço, e do desenvolvimento deste pequeno mundo no texto.
Como diz Manguel, “inventar o mundo de raiz”.
Escrito de outra maneira, alerta Barthes, em “Image. Music. Text”, a “function of
narrative is not to represent”, ou seja reproduzir uma realidade, mas isso e algo mais,
isto é “it is to constitute a spectacle still very enigmatic for us but in any case not of a
mimetic order…”
De seguida, há que ter em conta que a escrita ficcional é um processo intrincado e lento.
É necessária rotina de escrita, idealmente diária, para que a história se vá desenhando na
mente e no papel. É necessária lentidão para que o texto corresponda à história que o
autor tem em mente.
McPhee escreve que “the way to do a piece of writing is three or four times over, never
once. For me, the hardest part comes first, getting something-- anything--out in front of
me. Sometimes in a nervous frenzy I just fling words as if I were flinging mud at a wall.
Blurt out, heave out, babble out something--anything-as a first draft. With that, you
have achieved a sort of nucleus. Then, as you work it over and alter it, you begin to
shape sentences that score higher with the ear and eye. Edit it again-top to bottom. The
chances are that about now you'll be seeing something that you are sort of eager for
others to see. And all that takes time” (The New Yorker, 29 Abril 2013).
Provando que há um processo para escrever ficção, e que o conhece bem, McPhee
acrescenta que “You get in your car and drive home. On the way, your mind is still
knitting at the words. You think of a better way to say something, a good phrase to
correct a certain problem. Without the drafted version-if it did not exist-you obviously
would not be thinking of things that would improve it. In short, you may be actually
writing only two or three hours a day, but your mind, in one way or another, is working
on it twenty-four hours a day-yes, while you sleep-but only if some sort of draft or
earlier version already exists. Until it exists, writing has not really begun" (The New
Yorker, 29 Abril 2013).
Há ainda um outro desafio a considerar, o da realidade a que pertencemos. J.G. Ballard
(Author´s Note, Crash, 1995) escreveu que “increasingly, our concepts of past, present
and future are being forced to revise themselves. (…) We have annexed the future into
the present, as merely one of those manifold alternatives open to us. Options multiply
around us, and we live in an almost infantile world where any demand, any possibility,
whether for lifestyles, travel, sexual roles and identities, can be satisfied instantly”.
Para além disso, acrescenta Ballard “I feel that the balance between fiction and reality
has changed significantly in the past decades. Increasingly their roles are reversed. We
live in a world ruled by fictions of every kind – mass merchandising, advertising,
politics conducted as a branch of advertising, the pre – empting of any original response
to experience by the television screen. We live inside an enormous novel (…)” (1995).
Deste modo, defende Ballard, “the writer´s task is to invent the reality” (1995).
Como escreve Woods, a casa da ficção só tem duas ou três portas. A principal é a
passagem da fronteira entre perturbação e o levantamento de uma história, que construa
o mundo de raiz. Há depois o desafio lançado por Ballard.
JOSE VEGAR
(Propriedade intelectual. Todos os direitos reservados)
DO ORDENAMENTO DOS MECANISMOS REGULADORES
UM GPS PARA OS CONJURADOS
(no cumprimento do protocolo editorial da introdução)
PÁG. 4
A DELIMITAÇÃO DO TERRITÓRIO
(notas teóricas e históricas fundamentais das várias tipologias de não ficção criativa)
PÁG. 6
UM INDESTRUTÍVEL TRILHO PARA DETER CONHECIMENTO
(a matriz simples de aquisição dos elementos básicos necessários para a descodificação
da realidade a explorar)
PÁG. 13
A CONSTRUÇÃO DA CAPACIDADE INVESTIGATIVA
(o estabelecimento de uma metodologia, o poder da observação, a conquista da
confiança, a superior capacidade de ser nativo, e a validade do conhecimento técnico e
académico)
PÁG. 16
O ACTO PENOSO DE DOMESTICAR OS CAÓTICOS FACTOS OBTIDOS
(o imperialismo ditatorial da obrigatoriedade de erguer uma estrutura brilhante, assente
nas propriedades mapa de controlo e ferramenta de imaginação)
PÁG. 20
A EDUCAÇÃO DO PODER NARRATIVO
(o banimento do adjectivo, a calibração do pormenor e da metáfora, e o domínio de
outras técnicas obscuras)
PÁG. 24
UMA RECOLHA SELECTIVA
(as referências escolhidas e o sempre precioso apontamento dos textos bibliográficos
maiores)
PÁG. 32
OLÁ, SOU UM AUTOR E PRECISO DE SOBREVIVER
(anotação impressionista de um mercado alucinante)
PÁG. 39
UM GPS PARA OS CONJURADOS
(no cumprimento do protocolo editorial da introdução)
Um autor ou um teórico em busca do local perfeito para fixar uma geografia da
desolação precisa apenas de marcar passagem e instalar-se na paisagem portuguesa de
não ficção. À medida que investiga o território natural da não ficção, imprensa,
televisão, livros, sítios, sentirá um assombro devastador e sentirá também reforçada a
pertinência da sua pergunta fundamental de investigação: Como conseguem os
protugueses escapar ao fascínio da não ficção?
Na verdade, é uma pergunta decisivamente pertinente. De facto, a partir dos anos 60 do
século passado, e para referir apenas a corrente massiva, o texto e a imagem de não
ficção criativa, nas suas várias tipologias, do jornalismo narrativo ao documentário,
passando pela escrita de viagens e pela biografia, tornaram-se géneros literários e
cinematográficos maiores. O poder destes géneros pode ser descrito de forma muito
rasurada. Trazem a realidade ao texto, usando formas narrativas fascinantes.
Porque razão este Poder não contaminou Portugal é uma questão académica por
responder. Sabem-se, empiricamente, alguns factores decisivos, como são o
conservadorismo da classe académica, que apenas admite o artigo científico e o ensaio,
e a submissão da cultura jornalísticaà notícia e ao tema político.
Sabe-se também, o que é muito importante, que o mercado não mostra paixão pelos
produtos de não ficção, e que não há, muito pelo contrário, uma tradição democrática de
revelação e transparência por parte daqueles que são protagonistas ou sabem de uma
boa história.
Contra este estado dominante, resistem, e resistiram desde o século 19, os conjurados da
não ficção, vulgarmente conhecidos, no território nacional, como “os tipos das
histórias”. São eles, no fundo uma seita insignificante, que continuam a investigar as
várias manifestações do real que os fascinam, e a tentar escrever e a filmar com
virtuosismo.
A conjura provoca o fechamento, muitas vezes, e uma desesperada busca de referências
que cumpram um número considerável de funções, do conforto de encontrar uma ideia
de um par, ao guiamento de um mestre.
É então, decididamente, para suportar a conjura que foi escrito este “Manual de Regras
Instáveis para a Execução Precária da Operação Limitada de Fixação de uma Realidade
em Texto”, um título sóbrio e conciso, como exigem as regras sagradas.
O manual é, aparentemente, um objecto híbrido, que tenta atingir, numa harmonia zen
radical, dois objectivos extremamente distantes entre si. Antes do mais, o de partilhar o
recorte de alguns princípios teóricos fundamentais, e distribuir algumas referências
bibliográficas brilhantes. Depois, o de revelar os modos cruciais técnicos e oficinais
para investigar e escrever os factos.
Uma tamanha ambição está votada ao tremendo fracasso, como rapidamente irão
descobrir os escassos leitores deste manual.
No entanto, poderá ter sobrevivido uma ambição mais razoável, a de que o manual seja
uma porta de entrada num mundo criativo fascinante ou uma companhia dos aspirantes
a conjurados e envelhecidos conjurados da não ficção.
José Vegar
2012

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INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

  • 1. OS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO JOSÉ VEGAR (propriedadeintelectual. Todos os direitos reservados)
  • 2. COORDENADAS SOBRE A POSSIBILIDADE DE PARTILHA/3 (uma introdução) SUPERAR A FRONTEIRA/4 (a avaliação dolorosa da história imaginada) A MECÂNICA DA NARRATIVA/7 (a extrema importância da estrutura, da forma e do plot) A IDENTIFICAÇÃO DA VOZ/11 (Um processo de descoberta do modo de fixar a história em texto) A MANUFACTURA DE PERSONAGENS/14 (escapando às armadilhas do pequeno mundo do autor) O PODER DA TÉCNICA/17 (dos modos de reproduzir o que foi criado e singularizar o texto) UM INDICADOR DE REFERÊNCIAS/19 (algumas obras que devem ser companhia). DEZ SEM FALTA/31 (Se uma lista de ficcionais obrigatórios pode ser levantada) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS/32 SOBRE A POSSIBILIDADE DE PARTILHA
  • 3. (uma introdução) Orhan Pamuk acredita que “the center of a novel is a profound opinion or insight about life, a deeply embedded point of mystery, whether real or imagined. Novelists write in order to investigate this locus, to discover its implications (…)” (“The naïve and the sentimental novelist, 2010-153). O ficcionista quer então aceder ao “ponto de mistério”, para usar o maravilhoso termo de Pamuk, o que é de uma ambição desmesurada, especialmente porque está isolado numa imensa solidão e rodeado de fronteiras que o encerram, já que a maior parte dos elementos decisivos para o surgimento da história ficcional e da sua posterior execução não são visíveis, não se partilham e não se ensinam. Na verdade, não é possível inculcar num candidato a escritor uma perturbação que o domine, e que é afinal a razão maior de toda a criação, ou a capacidade de moldar uma história a partir desse estado. Não existe do mesmo modo uma programação que lhe garanta a condição indispensável para escrever, isto é a maturidade, gerada por uma fusão desconhecida e sempre personalizada entre experiência, leitura de textos e, principalmente, o efeito provocado pelo lento percurso do tempo. Resta então apenas uma possibilidade de partilha de um conjunto modesto de mecanismos e técnicas, os fundamentais, que, se esquecermos o rigor, poderemos classificar como regras, sobre o processo de ficção. Ou seja, este manual. José Vegar SUPERAR A FRONTEIRA (a avaliação dolorosa da história imaginada)
  • 4. Não há ficção sem um processo íntimo de perturbação.A questão pessoal fundamental que o candidato a escritor deve colocar a si próprio é: O que é que me perturba? Na palavra perturbação cabem todas as variações. O que é que me fascina? O que é me intriga? O que é que me interessa? Se a resposta transportar a identificação de um elemento isolável, provavelmente o candidato tem o princípio de uma história, porque detectou um tema ou um episódio. Possuir um tema circunscrito, por maior que seja a sua dimensão, é o primeiro passo fundamental. A existência de um tema poder dar origem a um processo criativo impenetrável. A história pode começar a formar-se a partir de uma memória, de um acto, ou de uma marca. Ou pode vir de fora, de uma observação na rua. William Gibson revela que “I have to write an opening sentence. I think with one exception I’ve never changed an opening sentence after a book was completed” (The Paris Review, 2011). Na maior parte das vezes, o esboço da história surge através de um processo de associação caótico e ilegível, onde memórias, imagens e actos se associam e formam uma cadeia de imaginação e ideias, neste caso destinada a um texto ficcional. Como aponta DeLillo “I think the scene comes first, an idea of a character in a place. It’s visual, it’s Technicolor—something I see in a vague way. Then sentence by sentence into the breach” (The Paris Review, 1993). No entanto, essa cadeia não dá acesso automático a uma história. Há uma fronteira a superar. O Dictionary of Literary Terms & Literary Theory da Penguin Reference, que passaremos a designar apenas por dicionário, diz que ficção é “a vague and general term for an imaginative work, usually in prose”, caracterizando a novela como “ a extended piece of prose fiction(...) a form of story or prose narrative containing characters, action and incident, and perhaps, a plot” (1998).
  • 5. Por sua vez, o teórico literário Albert Manguel, num momento feliz, partilhou no diário “Público”, em Julho de 2010 que “o escritor de ficção tem de estar só, num espaço em que se torne possível inventar o mundo praticamente de raiz (…)”. É este exactamente o ponto, já que “inventar o mundo praticamente de raíz”, exige um processo. Como escreve Porter Abbott em The Cambridge Introduction to Narrative “(…) narrative is the representation of an event or a series of events. Event is the key word here, though some people prefer the word “action”. Without an event or an action, you may have a description, an exposition, an argument, a lyric, some combination of these or something else altogether, but you won´t have a narrative” (2013:67-79). A fronteira é exactamente a referida pelo dicionário, por Manguel e pela introdução. O começo da construção de um texto ficcional poder ser uma das consequências de um processo íntimo de perturbação. Mas este último não é suficiente. Se o autor não possuir maturidade intelectual e existencial, se não tiver distância do seu tema, se não criar uma organização ficcional, isto é uma história e um discurso, se não assentar a ideia inicial numa continuidade espacial e temporal, e principalmente se não desenvolver uma acção ou um evento, estará apenas a produzir uma catarse, uma meditação ou uma história limitada. A superação da fronteira exige uma perturbação e um tema, mas exige depois, num momento seguinte, a aplicação destes dois elementos como pilares fundadores de uma história. Num terceiro momento, obriga a que a história seja a mediação e a construção, a representação do tema, através do desenho dos personagens e da acção, da sua colocação no tempo e no espaço, e do desenvolvimento deste pequeno mundo no texto. Como diz Manguel, “inventar o mundo de raiz”. Escrito de outra maneira, alerta Barthes, em “Image. Music. Text”, a “function of narrative is not to represent”, ou seja reproduzir uma realidade, mas isso e algo mais, isto é “it is to constitute a spectacle still very enigmatic for us but in any case not of a mimetic order…” De seguida, há que ter em conta que a escrita ficcional é um processo intrincado e lento. É necessária rotina de escrita, idealmente diária, para que a história se vá desenhando na mente e no papel. É necessária lentidão para que o texto corresponda à história que o autor tem em mente.
  • 6. McPhee escreve que “the way to do a piece of writing is three or four times over, never once. For me, the hardest part comes first, getting something-- anything--out in front of me. Sometimes in a nervous frenzy I just fling words as if I were flinging mud at a wall. Blurt out, heave out, babble out something--anything-as a first draft. With that, you have achieved a sort of nucleus. Then, as you work it over and alter it, you begin to shape sentences that score higher with the ear and eye. Edit it again-top to bottom. The chances are that about now you'll be seeing something that you are sort of eager for others to see. And all that takes time” (The New Yorker, 29 Abril 2013). Provando que há um processo para escrever ficção, e que o conhece bem, McPhee acrescenta que “You get in your car and drive home. On the way, your mind is still knitting at the words. You think of a better way to say something, a good phrase to correct a certain problem. Without the drafted version-if it did not exist-you obviously would not be thinking of things that would improve it. In short, you may be actually writing only two or three hours a day, but your mind, in one way or another, is working on it twenty-four hours a day-yes, while you sleep-but only if some sort of draft or earlier version already exists. Until it exists, writing has not really begun" (The New Yorker, 29 Abril 2013). Há ainda um outro desafio a considerar, o da realidade a que pertencemos. J.G. Ballard (Author´s Note, Crash, 1995) escreveu que “increasingly, our concepts of past, present and future are being forced to revise themselves. (…) We have annexed the future into the present, as merely one of those manifold alternatives open to us. Options multiply around us, and we live in an almost infantile world where any demand, any possibility, whether for lifestyles, travel, sexual roles and identities, can be satisfied instantly”. Para além disso, acrescenta Ballard “I feel that the balance between fiction and reality has changed significantly in the past decades. Increasingly their roles are reversed. We live in a world ruled by fictions of every kind – mass merchandising, advertising, politics conducted as a branch of advertising, the pre – empting of any original response to experience by the television screen. We live inside an enormous novel (…)” (1995). Deste modo, defende Ballard, “the writer´s task is to invent the reality” (1995).
  • 7. Como escreve Woods, a casa da ficção só tem duas ou três portas. A principal é a passagem da fronteira entre perturbação e o levantamento de uma história, que construa o mundo de raiz. Há depois o desafio lançado por Ballard.
  • 8. JOSE VEGAR (Propriedade intelectual. Todos os direitos reservados) DO ORDENAMENTO DOS MECANISMOS REGULADORES UM GPS PARA OS CONJURADOS (no cumprimento do protocolo editorial da introdução) PÁG. 4 A DELIMITAÇÃO DO TERRITÓRIO (notas teóricas e históricas fundamentais das várias tipologias de não ficção criativa) PÁG. 6 UM INDESTRUTÍVEL TRILHO PARA DETER CONHECIMENTO (a matriz simples de aquisição dos elementos básicos necessários para a descodificação da realidade a explorar) PÁG. 13 A CONSTRUÇÃO DA CAPACIDADE INVESTIGATIVA
  • 9. (o estabelecimento de uma metodologia, o poder da observação, a conquista da confiança, a superior capacidade de ser nativo, e a validade do conhecimento técnico e académico) PÁG. 16 O ACTO PENOSO DE DOMESTICAR OS CAÓTICOS FACTOS OBTIDOS (o imperialismo ditatorial da obrigatoriedade de erguer uma estrutura brilhante, assente nas propriedades mapa de controlo e ferramenta de imaginação) PÁG. 20 A EDUCAÇÃO DO PODER NARRATIVO (o banimento do adjectivo, a calibração do pormenor e da metáfora, e o domínio de outras técnicas obscuras) PÁG. 24 UMA RECOLHA SELECTIVA (as referências escolhidas e o sempre precioso apontamento dos textos bibliográficos maiores) PÁG. 32 OLÁ, SOU UM AUTOR E PRECISO DE SOBREVIVER (anotação impressionista de um mercado alucinante) PÁG. 39
  • 10. UM GPS PARA OS CONJURADOS (no cumprimento do protocolo editorial da introdução) Um autor ou um teórico em busca do local perfeito para fixar uma geografia da desolação precisa apenas de marcar passagem e instalar-se na paisagem portuguesa de não ficção. À medida que investiga o território natural da não ficção, imprensa, televisão, livros, sítios, sentirá um assombro devastador e sentirá também reforçada a pertinência da sua pergunta fundamental de investigação: Como conseguem os protugueses escapar ao fascínio da não ficção? Na verdade, é uma pergunta decisivamente pertinente. De facto, a partir dos anos 60 do século passado, e para referir apenas a corrente massiva, o texto e a imagem de não ficção criativa, nas suas várias tipologias, do jornalismo narrativo ao documentário, passando pela escrita de viagens e pela biografia, tornaram-se géneros literários e cinematográficos maiores. O poder destes géneros pode ser descrito de forma muito rasurada. Trazem a realidade ao texto, usando formas narrativas fascinantes. Porque razão este Poder não contaminou Portugal é uma questão académica por responder. Sabem-se, empiricamente, alguns factores decisivos, como são o conservadorismo da classe académica, que apenas admite o artigo científico e o ensaio, e a submissão da cultura jornalísticaà notícia e ao tema político. Sabe-se também, o que é muito importante, que o mercado não mostra paixão pelos produtos de não ficção, e que não há, muito pelo contrário, uma tradição democrática de revelação e transparência por parte daqueles que são protagonistas ou sabem de uma boa história.
  • 11. Contra este estado dominante, resistem, e resistiram desde o século 19, os conjurados da não ficção, vulgarmente conhecidos, no território nacional, como “os tipos das histórias”. São eles, no fundo uma seita insignificante, que continuam a investigar as várias manifestações do real que os fascinam, e a tentar escrever e a filmar com virtuosismo. A conjura provoca o fechamento, muitas vezes, e uma desesperada busca de referências que cumpram um número considerável de funções, do conforto de encontrar uma ideia de um par, ao guiamento de um mestre. É então, decididamente, para suportar a conjura que foi escrito este “Manual de Regras Instáveis para a Execução Precária da Operação Limitada de Fixação de uma Realidade em Texto”, um título sóbrio e conciso, como exigem as regras sagradas. O manual é, aparentemente, um objecto híbrido, que tenta atingir, numa harmonia zen radical, dois objectivos extremamente distantes entre si. Antes do mais, o de partilhar o recorte de alguns princípios teóricos fundamentais, e distribuir algumas referências bibliográficas brilhantes. Depois, o de revelar os modos cruciais técnicos e oficinais para investigar e escrever os factos. Uma tamanha ambição está votada ao tremendo fracasso, como rapidamente irão descobrir os escassos leitores deste manual. No entanto, poderá ter sobrevivido uma ambição mais razoável, a de que o manual seja uma porta de entrada num mundo criativo fascinante ou uma companhia dos aspirantes a conjurados e envelhecidos conjurados da não ficção. José Vegar 2012