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Este material foi obtido através do website de Cipriano Carlos Luckesi
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Por uma prática educativa centrada na pessoa do educando
Cipriano Carlos Luckesi1
Recentemente participei, no Programa de Mestrado em Educação, da Universidade do
Estado da Bahia --- UNEB, Campus de Salvador, de uma Banca Examinadora da Defesa
Pública de Dissertação, intitulada A prática educativa a serviço da formação de
trabalhadores em cooperativa2
, na qual o mestrando apresentou uma investigação realizada
junto aos catadores de lixo no antigo “Lixão”, da cidade, lugar onde os caminhões de coleta
de resíduos domiciliares faziam a sua descarga. Hoje esse espaço já não existe mais. O estudo
teve por foco a exposição da metodologia educativa utilizada para auxiliar os catadores de
lixo desse local --- os badameiros3
--- a passarem de um estado de massa para um estado de
coletivo organizado, tendo em vista a constituição e a manutenção de uma cooperativa, que os
aglutinava como um grupo com um objetivo comum. No início das atividades educativas, os
badameiros formavam uma massa humana despersonalizada, ao final, já possuíam o senso de
individualidade de si e do outro, ao mesmo tempo, que o senso de grupo.
Uma massa de pessoas não é um grupo, na medida em que as individualidades não são
reconhecidas nem por si mesma nem pelos outros, o que suprime a liberdade de cada um e a
relação entre os seus componentes. Um grupo, por outro lado, constitui-se de sujeitos que
minimamente tem a posse de si mesmos, isto é, sua individuação, o que garante, por sua vez a
liberdade de decisão e de relação com o outro e com tudo o mais que se expressa na vida.
Com o que atuou educativamente esse mestrando? Com uma prática educativa
centrada na pessoa do educando, diversamente do que tem ocorrido em nossas escolas, ao
longo do tempo e de forma predominante nos últimos tempos, que se realiza centrada no
currículo. Qual é a diferença dessas posturas?
1
Doutor em Educação e Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal da Bahia, e-mail: luckesi@terra.com.br.
2
Ubton José Argolo Nascimento, A prática educativa a serviço da formação de trabalhadores em cooperativa,
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, FAEEBA, UNEB, Salvador, Bahia, 2006.
Contato: ubton@uol.com.br.
3
Os catadores de lixo desse local recebiam o nome de “badameiros”, termo não dicionarizado, ao menos o
Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa não traz essa palavra.
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Uma prática educativa centrada no currículo tem sua atenção centrada no
cumprimento de um programa curricular, seja ele em termos de tempo e/ou de conteúdo.
Nessa perspectiva desse entendimento, é comum ouvirmos de educadores escolares, em nosso
meio, falas equivalentes a estas: “Como vou dar atenção aos educandos, em suas necessidades,
se eu tenho pouco tempo para cobrir todo o programa da disciplina que ensino?”; ou, então:
“O vestibular exige que o programa curricular seja todo cumprido, o que impede ter tempo
para dar atenção às necessidades específicas dos educandos”; ou ainda: “Como vou dar
atenção às necessidades dos educandos, se tenho todo um programa para cumprir?”
Nesse contexto, onde os educadores, em sua prática cotidiana, revelam essa dicotomia
entre o educando e o currículo, o que prevalece é o currículo e não o educando. Cumpre-se o
currículo, mas não se olha para o educando em seu processo de aprendizagem e
desenvolvimento, e em suas necessidades. Muitas vezes, nem mesmo se olha para a
adequação (ou não) do currículo às necessidades dos educandos, na medida em que, muitas
vezes, é definido de forma genérica, como se pudesse ser adequado para todos os estudantes
de todos os lugares, de todos os tempos e de todos os grupamentos humanos.
Diversamente disso, uma prática educativa centrada no educando, toma-o como centro
de atenção e ponto de partida para toda e qualquer decisão que se venha a tomar
pedagogicamente. Quem vai ser formado é o educando, por isso, importa estar atento a ele, às
suas necessidades e singularidades. Se, em nossa prática educativa cotidiana, falamos em
“formar o educando”, como é que nossa atenção pode estar centrada no currículo? Será que aí
não há um paradoxo? Em nosso discurso cotidiano, afirmamos que formamos o educando,
todavia centramos nossa atenção no currículo em detrimento da sua formação.
Fenomenologicamente, podemos perceber que todo ser humano (e, pois, o educando) é
constituído por diversas dimensões, que se expressam como relação consigo mesmo, com o
outro, com o meio e como o sagrado. O ser humano é um só, ele é uno, porém com dimensões
variadas.
Uma escola, a meu ver, em função de como foi e de como está instituída socialmente,
tem por projeto a formação do educando como pessoa e como cidadão e, para tanto, serve-se
do currículo, como recurso a serviço desse processo. Isso quer dizer que a escola deve estar
totalmente voltada para o educando, como pessoa e como foco da atenção de todas as
atividades. Evidentemente que é importante que um currículo seja cumprido, mas somente na
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medida em que ele é recurso de aprendizagem e desenvolvimento do educando. Uma escola
centrada na pessoa do educando não dispensa um currículo, de forma alguma; contudo,
coloca-o a serviço do processo de formação e desenvolvimento do educando.
No caso, o que importa é o educando, tudo o mais serve de recurso; recursos
fundamentais, mas recursos. Isso está expresso na velha afirmação da sabedoria universal de
que o “ser humano não foi feito para o sábado, mas, o sábado para o ser humano”. A questão
central não é o futuro do educando nem o vestibular, como propõe hoje nossas escolas
centradas no currículo, mas sim centrada no educando como pessoa e como cidadão.
Nesse contexto de uma prática educativa centrada na formação do educando, vale a
pena compreender quem é esse educando, tendo em vista servir, com a educação escolar, a
sua aprendizagem e, conseqüentemente, ao seu desenvolvimento. Todo ser humano e, no caso,
o educando, constitui-se de diversas dimensões: (1) voltado para si mesmo, (2) para o outro,
(3) para o meio ambiente e (4) para o sagrado.
A expressão “voltado para si mesmo” significa que o educando necessita de formar
para si mesmo um “eu saudável”, que lhe possibilite assumir-se como sujeito de decisões e de
responsabilidades, que seja capaz de escolher e sustentar diante de si e dos outros suas
decisões, levando-as à frente, realizando-as, responsavelmente, enriquecendo-se a si mesmo,
ao outro, ao meio e ao sagrado.
Será que nossa prática educativa tem feito esse papel de dar suporte ao nosso
educando para que vá constituindo sua personalidade como uma pessoa livre, autônoma e
responsável pelas suas escolhas e seus atos?
Por outro lado, existe a dimensão do outro. Nós nos constituímos na relação com o
outro. Nos relacionamos com ele. Nascemos e crescemos num meio natural e social com os
outros. O outro nos acolhe, nos confronta, nos solicita, nos serve. Ninguém aprende e se
desenvolve sozinho, mas sempre em relação com o outro. Então o que significa o outro em
nossa vida? Exatamente o fundamento dos nossos atos éticos. A ética somente tem sentido se
ela tiver como fundamento o outro, que é um ser humano igual a nós mesmos, com os
mesmos direitos e deveres que temos. É na relação com o outro que cada um de nós vai
aprendendo, ao longo da vida, a conviver com o outro, seja ele de que etnia, nação, religião ou
cultura for.
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No início da vida, somos egocentrados , ou seja, “tudo é nosso” ou “deve ser só para
cada um de nós, desde a mãe, o pai, os outros e os objetos”; essa é a ética pré-convencional
(infantil); mas, aos poucos, com o desenvolvimento, aprendemos (ou deveríamos aprender,
pois que tantos não aprenderam) que o outro também necessita de viver e sobreviver, como
nós necessitamos de viver e sobreviver.
Esse nível de relação com o outro se expressa de duas maneiras, uma mais abrangente
do que outra: a primeira maneira de respeitar o outro eticamente é agir responsavelmente,
cumprindo todos os contratos que fazemos, tanto implícita como explicitamente. Existe uma
responsabilidade que pertence a mim e outra, que pertence ao outro. Minimamente, eu
cumpro o que pertence a mim. Essa á a ética contratual, quase que jurídica, mas necessária na
convivência com o outro; ela se denomina de ética convencional.
A segunda forma de vivenciar a ética centrada na relação com o outro é o “amor
universal a serviço da vida”. Então, aprendemos a servir o outro, não em função de um
contrato, mas sim em função das necessidades do outro, ao lado das nossas necessidades e das
nossas possibilidades; essa é a ética pós-convencional.
Também aqui cabe perguntar: O que tem feito nossa escola para que esse
desenvolvimento ético se faça através do ensino das disciplinas que regemos?
Além da dimensão de si mesmo e do outro, há a dimensão do meio ambiente. Vivemos
num determinado meio. Como nos relacionamos com ele? Como ajudamos nossos estudantes
a aprender a se relacionar com ele? Por “meio ambiente”, aqui tanto entendemos o espaço
próximo como o distante; tanto o espaço de nossa casa, de nossa sala de aulas, da nossa rua,
do jardim à frente de nossa casa, como a praça pública de nossa cidade ou de outra cidade,
tanto o córrego junto de nossa casa, como o rio Amazonas, tanto as plantas do nosso jardim
como as diversas matas sobre o solo do nosso país. A dimensão ecológica de cada um de nós
necessita de ser levada em conta na prática educativa, tendo em vista formar nossa capacidade
de respeitar a vida fora de nós, mas, ao mesmo tempo, constitutiva de cada um de nós. A ação
ecológica tem a ver com os processos políticos e sociais de preservação do meio ambiente
natural, mas também tem a ver com os cuidados diretos e imediatos com o meio próximo
mais próximo de nós, onde vivemos nosso cotidiano. Isso também tem a ver com conduta
ética. Servir-se do meio ambiente, sem agredi-lo ou destruí-lo. Essa é a forma de utilizarmo-
nos do meio ambiente para a nossa sobrevivência e de todos os outros, garantindo que outros
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também possam utilizá-lo no presente, em futuro próximo ou no futuro distante. Através do
currículo escolar, como temos trabalhado para que nossos estudantes se formem na
aprendizagem desses cuidados?
Por último, existe a dimensão do sagrado. Sagrado, aqui, não quer dizer o religioso.
Este pode ser confessional e, por isso mesmo, muitas vezes, pode se manifestar dogmático e
rígido. O sagrado é mais amplo. Expressa o sentimento de respeito por alguma coisa que é
maior do que nós; pode ser a vida, a natureza, Deus. A dimensão do sagrado nos inspira
respeito, inspira um sentimento de submissão a algo que é maior do que nós. Essa experiência
pode ser aprendida pela vivência e não pela imposição da autoridade. Será que temos
oferecido aos nossos estudantes oportunidades de desenvolver essa dimensão, através do
silêncio, da meditação, de rituais vivenciados, da escuta de si mesmo?
Bem, se o projeto pedagógico é formar o educando, para que serve o currículo? Ele é
o mediador, o recurso com o qual vamos formar o educando. O currículo com suas disciplinas,
seus conteúdos e suas atividades, nada mais é do que um meio para que a formação do
educando se processe. O currículo, no contexto de uma prática pedagógica centrada nele
mesmo, atende fundamentalmente a formação do pensamento conceitual do educando, muitas
vezes, sem nenhum vínculo com a vida pessoal e cotidiana; porém, numa visão centrada na
pessoa do educando, coloca-se a serviço da sua formação como pessoa, portanto de uma
forma integral. E, para isso, não necessita de desviar-se dos seus conteúdos, mas sim colocar
conteúdos e atividades a serviço da formação da pessoa do educando.
Vamos trazer alguns exemplos. A língua nacional, --- caso não seja ensinada
exclusivamente para aprender a sua estrutura e aprender a mecânica da leitura e as relações
entre as partes de um texto, de um parágrafo ou de uma oração (atividade intitulada, a meu ver,
inadequadamente, de interpretação de texto) ---, pode ser riquíssima para a formação do
educando. A gramática como um todo expressa um ordenamento da forma de se expressar,
isso exige regras. Mas, também, os conteúdos das leituras trazem compreensões variadas
sobre o mundo e a vida, o que ajuda o educando a estar constituindo sua visão de mundo.
E, a alfabetização? Esta área de aprendizagem da língua nacional exige que a criança
esteja encerrando a experiência egocentrada e inicie o abrir-se para a fase da socialização. A
alfabetização exige não só conhecer e servir-se das letras, mas também servir-se das letras
numa determinada ordem. A ordem das letras constitui forma e dá sentido da palavra. Por
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exemplo, usar “b+a” forma a sílaba “ba”; mas, invertendo-se a ordem, portanto, usando-se
“a+b” não formamos uma sílaba; ou ainda, “antes de p e b usa-se o m”. Na vida, em muitas
ocasiões necessitamos de seguir regras, sob pena de nos destruirmos ou sob pena de
destruirmos os outros. Por que não aprender isso desde cedo?
Então o professorar(a) de alfabetização pode servir-se dos elementos curriculares para
dar suporte à criança para que aprenda que na vida existem regras e papéis; uma experiência
fundamental para a constituição de um “eu saudável” consigo mesmo, com os outros, com o
meio e com o sagrado. Importa dizer que isso não implica em submissão, mas em
compreensão e uso adequado das regras.
O próprio ato de aprender a ler e escrever exige uma disciplina, uma atenção
específica, o que é um elemento fundamental da aprendizagem para o desenvolvimento do
“eu”; ou seja, é uso da energia pessoal para encontrar uma solução para uma questão que está
posta para a criança (disciplina).
O mesmo pode-se dizer da matemática, que ajuda a compreender a ordem no espaço,
mas também, do ponto de vista da formação do sujeito, pode ajudá-lo a aprender a dar ordem
no espaço. Todas as outras disciplinas do Ensino Fundamental, Médio e Superior, têm
potencialidades e devem oferecer recursos tanto para a aprendizagem conceitual de suas áreas
de conhecimento, assim como para a formação do educando. Deste modo, o currículo não
tomará o lugar que pertence ao educando, porém, sim, será um recurso fundamental a seu
serviço, tendo em vista sua formação.
Caso assumamos a compreensão de que a prática educativa tem por finalidade a
formação do educando e não o cumprimento do currículo, está posto para todos nós o desafio:
“como servir-nos dos conteúdos e atividades de nossa disciplina para formar o educando, para
além da aquisição de conceitos, das fórmulas e dos procedimentos; formá-lo como sujeito e
como cidadão”.