1. 1
FACULDADE DE TEOLOGIA
DA IGREJA METODISTA
PORQUE (AINDA) FALAR EM OPÇÃO
PREFERENCIAL PELOS POBRES:
A opção pelos pobres como expressão do
testemunho cristão
JOSÉ LUCAS RIBEIRO
São Bernardo do Campo — 30 de novembro de 2010
2. 2
JOSE LUCAS RIBEIRO
PORQUE (AINDA) FALAR EM OPÇÃO
PREFERENCIAL PELOS POBRES: A OPÇÃO PELOS
POBRES COMO EXPRESSÃO DO TESTEMUNHO
CRISTÃO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao Colegiado de Curso, com vistas à obtenção
de grau — 4º. Ano, Noturno, do Curso de
Bacharel em Teologia da Faculdade de
Teologia da Igreja Metodista. Sob a orientação
do Prof. Ms. Oswaldo de Oliveira Santos
Junior.
São Bernardo do Campo — 30 de novembro de 2010
3. 3
FOLHA DE APROVAÇÃO
A Banca Examinadora considera o trabalho: __________________________________
E atribui o conceito: __________________________________
Orientador: Oswaldo de Oliveira Santos Junior:
________________________________
Leitor/a: __________________________________
Professor de TCC: __________________________________
4. 4
“Uns plantam a semente da couve para o prato de amanhã, outros a semente do
carvalho para o abrigo ao futuro” Rui Barbosa.
5. 5
AGRADECIMENTOS
A todos os docentes da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, muito obrigado.
Muito obrigado, Valéria, minha esposa e minha maior encorajadora; igualmente,
meus filhos: Jéssica(17); Felipe(16); Daniel (14) e todos os meus demais familiares;
vocês são minha maior motivação para perseverar nessa caminhada e para manter a
integridade do meu caráter. Eu os amo muito.
6. 6
SUMARIO
INTRODUÇÃO: ..........................................................................................................8
Capítulo 01: O REINO DE DEUS E A SUA OPÇÃO PELO POBRE: .......................11
1.1 A relação de Jesus com o pobre .........................................................................12
1.2 Eis o Pobre..........................................................................................................13
1.3 O pobre na palestina……………........................................................................15
1.4 O pobre na igreja apostólica ...............................................................................22
1.5 O pobre na igreja cristã até o fim do século III ..................................................28
Capítulo 2: O POBRE NA TEOLOGIA WESLEYANA ………..................................35
2.1 A Inglaterra do Século XVIII ........ ....................................................................35
2.2 J. Wesley e o pobre …........................................................................................36
2.3 A influência de Wesley na sociedade inglesa após sua morte ...........................40
2.4 No Brasil - Um discípulo segue as pisadas do mestre .......................................46
Capítulo 3: A OPÇÃO PELO POBRE NUMA SOCIEDADE CAPITALISTA,
NEOLIBERAL, GLOBALIZADA: ………....................................................................50
3.1 Neoliberalismo – O que é, e o que ele quer de nós ............................................51
3.2 A ética de Jesus – a única alternativa de testemunho convincente.....................60
3.3. Uma fundamentação teórica da opção pelo pobre .............................................68
3.3.1 A opção pelo pobre como recurso de crescimento pesso ……………............69
3.3.2 Pessoas a espera de uma resposta …................................................................72
3.3.3 Sinalizando um caminho .................................................................................89
3.3.4 O lugar do dinheiro na opção pelo pobre ........................................................93
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ........................................................................................97
ANEXO: .......................................................................................................................101
7. 7
RIBEIRO, José Lucas. Porque (ainda) falar em Opção Preferencial pelos
pobres: A opção pelos pobres como expressão do testemunho cristão. 111 f.
Trabalho de conclusão de curso - TCC (Curso Teológico Pastoral – CTP)
Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2010.
RESUMO
O presente trabalho apresenta uma pesquisa da relação dos cristãos com o pobre de sua
época: Jesus, a igreja apostólica, e a igreja dos segundo e terceiros séculos; bem como
sobre as razões de seu crescimento indiscutível sob circunstâncias totalmente
desfavoráveis. Passamos pelo século XVIII para um encontro com John Wesley e seu
movimento metodista e pela importante influência após seu falecimento refletida nos
movimentos dos ―metodistas primitivos‖ do sul da Inglaterra e, na sequencia, para o
extraordinário trabalho de H.C. Tucher no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do
século XX. Não poderíamos deixar de resumir o conceito e as propostas do
neoliberalismo como ideologia dominante no século XXI e suas conseqüências na
espiritualidade da sociedade, particularmente, das igrejas cristãs. Finalizamos com uma
sinalização de caminho para a igreja resgatar sua vocação evangélica em favor do pobre
como forma de reconciliar-se com o verdadeiro espírito do evangelho bíblico e de
reabilitar-se junto à sociedade frente ao seu desgaste moral cada vez mais acentuado em
todos os seguimentos cristãos de nosso país.
Palavras-chave: Jesus, pobre, Palestina, exclusão social, igreja apostólica, comunidades
cristãs, capitalismo, neoliberalismo, globalização e opção pelo pobre, caminho.
8. 8
INTRODUÇÃO
Certa vez, ouvi um professor do seminário Bispo Scilla Franco contar uma
história no mínimo desconfortável para um cristão. Ele relatou que estava aguardando o
embarque em um ônibus na rodoviária de Campinas quando foi abordado por uma
mulher com duas crianças a pedir esmola. Perguntou se ela já tinha tentado arrumar um
trabalho. Ela respondeu que já desistira dessa tentativa, principalmente porque não tinha
um endereço fixo, já que morava na rua. Ele perguntou onde e como. Ela respondeu que
morava em um barraco improvisado debaixo de um viaduto daquela cidade. Então, o
professor quis ouvir dela como ela sobrevivia nessas condições, ela respondeu que fazia
o melhor que podia, mas o pior naquela circunstância, era conviver com a violência. O
professor indagou sobre a natureza da violência à qual ela se referia. Era a de todo tipo
imaginável, mas o pior era a praticada por bandidos e policiais durante a noite. Eles
passavam em bandos e em viaturas, atiravam nos pedaços de madeira que lhe servia de
abrigo, assustavam as crianças que acordavam desesperadas e, com muita frequencia, a
violentavam sexualmente. O professor prolongou o diálogo sugerindo que ela tentasse
algum tipo de ajuda por parte das igrejas. Ela respondeu que já desistira das igrejas
também porque nunca recebera nenhuma ajuda delas. Ele encerrou a conversa
9. 9
perguntando-lhe qual era a sua esperança então. A mãe mendiga respondeu: ―Eu espero
que algum dia um filho de Deus me ajude‖.
Tudo na história dessa mulher é trágico, porém, a parte mais trágica não me
parece ser a que se refere à sua própria realidade, antes, a que ela exclui os cristãos do
seu conceito de ―filho de Deus‖.
O objetivo do presente trabalho é iniciar uma reflexão sobre o nosso comportamento
enquanto pessoa e igreja cristã frente à realidade marcada pela presença do pobre em
nosso cotidiano. Minha pretensão é construir uma opção de resposta que, ao mesmo
tempo, se apresente como um desafio e uma proposta de nos convencermos enquanto
cristãos e cristãs, a assumir uma prática de testemunho através da opção preferencial
pelo pobre como forma de testemunho cristão. Não aquela macroeconômica, ideológica.
Muita coisa boa tem sido dita e escrita sobre ela, porem, ela parece distante demais do
cotidiano objetivo das pessoas comuns de nossas igrejas. Minha intenção neste caso é
apresentar uma argumentação que possa sensibilizar a cada cristão e cristã bem como
sua comunidade a optar pelo pobre de seu convívio: o que bate à porta da igreja, o que
mora ao lado dela, o de seu bairro e, principalmente, o da própria igreja, uma vez que é
nessa dimensão que identifica-se a parte mais escandalosa provocada pela ausência de
um testemunho apropriadamente cristão e ético, produtor de valores que podem
provocar mudanças incríveis em qualquer sociedade.
No primeiro capítulo, pesquisei um pouco a realidade econômica, social e religiosa
da Palestina no tempo de Jesus Cristo e o impacto que seus ensinos e sua prática
provocaram em todas as camadas sociais de seu breve ministério. Não poderia deixar de
fora as respostas disponibilizadas pelas comunidades cristãs até o final do terceiro
século na dura realidade da igreja num mundo social e econômico que era um deserto
insuportável para cerca de quatro quintos da população do imenso império romano, bem
como a influência dessas respostas para o formidável crescimento do cristianismo,
apesar de sua condição de religião proscrita .
No segundo capítulo, pesquisei o ensino e a prática de John Wesley como resposta
para um tempo não muito melhor que o dos primeiros séculos da era cristã; sua
influência nas gerações posteriores de alguns seguimentos metodistas ingleses e as
transformações ocorridas na sociedade inglesa a médio e longo prazo. Incluí suas
preciosas contribuições para a sociedade brasileira nos primórdios do metodismo
brasileiro. No caso, por falta de espaço, limitei-me ao importante trabalho de Hugh
Clarence Tucker na cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX.
10. 10
No terceiro e último capítulo, dedico um precioso espaço com considerações sobre
a proposta neoliberal como ideologia econômica dominante e algumas de suas
influências na vida da sociedade, da religião cristã e do cotidiano imediato e futuro das
camadas sociais desfavorecidas. Finalmente, concluí com algumas sinalizações de como
a comunidade cristã pode, efetivamente, resgatar sua autoridade moral assumindo sua
responsabilidade bíblica com aqueles sem vez, nem voz e nem esperança nessa
sociedade orientada pelo consumo de bens materiais e simbólicos como ferramentas
indispensáveis de existência psicológica e social.
11. 11
CAPÍTULO 1
O REINO DE DEUS
E A SUA OPÇÃO PELO POBRE
Toda a vida de Jesus é uma atividade pastoral
modelo, pauta e critério para todas as
circunstâncias (...) é a partir do ministério de
Jesus que podemos fazer julgamento apropriado
do que fazemos como igreja em missão no
mundo.1
1
ROSA, Ronaldo Satlher. Cuidado Pastoral em Tempos de Insegurança: Uma hermenêutica
contemporânea. São Paulo: ASTE, 2004. p.29 e 30 .
12. 12
1.1 A relação de Jesus com o pobre
Os Evangelhos mostram uma infinidade de pessoas batendo à ―porta‖ de Jesus.
Geralmente, pessoas completamente excluídas de toda forma de convívio social.
Algumas saíam do leito de enfermidade ou eram levadas nele; outras de seus
leprosários; outras de seus pontos de mendicância; outras das prisões morais nas quais
foram trancafiadas pelos ―justos‖; outros muitos sem trabalho e outros famintos. Porque
as pessoas se sentiam tão intensamente atraídas por Jesus? Houve até quem o
proclamasse ―Filho de Davi‖ (Mc 10.47).2
Porque um mendigo cego que morava na rua viu em Jesus o Filho de Davi e a
mulher da história do meu professor não viu nas igrejas um ―filho de Deus‖?
Quando abordamos o tema do pobre no contexto do evangelho, forçosamente
temos que começar pela definição do próprio Jesus sobre a natureza da sua missão:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porquanto me ungiu para
anunciar boas novas aos pobres; enviou-me para proclamar
libertação aos cativos, e restauração da vista aos cegos, para pôr
em liberdade os oprimidos, e para proclamar o ano aceitável do
Senhor (Lc 4.18,19)3
Corajosamente, Jesus reivindicou para si o cumprimento desse conhecido
oráculo messiânico para apresentar-se publicamente porque ele escolhera encarnar as
esperanças messiânicas de seu povo alimentadas durante séculos pelos profetas. Essa
declaração de Isaías é chamada para orientar o programa do ministério de Jesus e,
consequentemente, orientar suas escolhas ao longo do mesmo. A grosso modo, essa
escolha está radicalmente orientada para o pobre, uma vez que ele está subentendido em
cada um dos destinatários desta declaração profética messiânica, todavia, quem é o
pobre?
2
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1234.
3
Ibid., p.1258.
13. 13
1.2 Eis o Pobre
Conceituar o pobre não é tão simples como pode parecer à primeira vista. Até as
pesquisas sociais procuram precisar esse conceito subdividindo os pobres em camadas
sociais para encontrá-los em seus diversos grupos conforme a necessidade do Estado e
da sociedade para efeito de planejamentos ou estatísticas. Da mesma forma, a palavra
‗pobre‘ é direcionada na bíblia conforme aquilo que se pretende dizer no momento.
Para efeito desta monografia, o tipo de pobre que desejo encontrar é o pobre do
evangelho citado no texto bíblico acima transcrito. A título de conceituação, o Fundo
de Combate a Pobreza oferece uma definição bastante objetiva:
De uma forma bastante ampla, a pobreza é considerada como a
privação acentuada dos elementos básicos para a sobrevivência
humana, incluindo a falta de alimentação adequada, a carência de
habitação e vestuário, a baixa escolarização, a falta de participação
nas decisões políticas etc. Isso se manifesta no fato de certos
indivíduos não possuírem renda e/ou patrimônio suficientes para ter
acesso a bens e serviços em níveis considerados adequados, de
acordo com o padrão vigente numa sociedade.4
Esse é o pobre considerado preferencial na proclamação do evangelho. Marco
Antonio de Oliveira cita uma colaboração pertinente do documento da II Conferência
do Episcopado Latino-americano:
(...) os carentes dos mais elementares bens materiais, em contraste
com o acúmulo de riquezas em mãos de uma minoria, às vezes a custo
da pobreza de muitos. Os pobres são aqueles que não só estão
privados de seus bens materiais, mas também no plano da dignidade
humana necessitam de plena participação social e política.5
Parece que estas definições identificam de forma sucinta o pobre do evangelho
que é o objeto da presente pesquisa. Esse pobre está muito bem declarado como alvo
prioritário da missão de Jesus.―E Jesus, ao desembarcar, viu uma grande multidão e
4
Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE) Fundo Estatal de Combate à Pobreza.
Disponível em: <HTTP://www.ipece.ce.gov.br/politicas%20publicas/cart-fecop.pdf>. Acessado
em 24/06/2010).
5
OLIVEIRA, Marco Antonio de. A teologia social do metodismo brasileiro e a opção preferencial pelos
pobres na teologia latino-americana: Possibilidades de mediação tendo como pano de fundo a religião
em movimento (Artigo científico). Disponível em <WWW.metodistavilaisabel.org.br/.../Teologia-Social-
do-Metodismo-Brasileiro.pdf >. Acessado em 12 de maio 2010.
14. 14
compadeceu-se deles, porque eram como ovelhas que não têm pastor; e começou a
ensinar-lhes muitas coisas‖(Mt. 6.34).6
Considerarei o pobre como sujeito social a partir da definição de Simões e
desses dois textos dos Evangelhos como orientadores básicos da relação de Jesus com a
classe social marginalizada, aqueles que confrontam nossa consciência cristã e põe à
prova a autenticidade de nossa confissão. É mais que estatística social ou objeto de
discurso político ou ideológico; é aquele que cruza o nosso caminho e regularmente bate
à porta de nossa igreja. É o pobre do grego ptochos7 (mendigo, esmoleiro, destituído de
riqueza, de influencia, de posição e de honras, humilde, aflito, desamparado, impotente
para realizar um projeto, carente de alimentos, cultura ou lazer). Helena Bossetti faz
uma pertinente leitura existencial dessa enorme comunidade de pobres:
Multidões condenadas à indigência material e espiritual por falta de
profetas, de pastores, de homens de Deus. Gente reduzida a viver o
presente com resignada aceitação, com triste miopia, sem alegria sem
felicidade, abandonada à própria sorte pelos seus chefes. Não havia
quem interpretasse a história, quem trouxesse a palavra de esperança:
não havia quem abrisse os olhos das multidões, quem ensinasse a
olhar o presente como momento salvífico, como visita jubilosa do
amor do Pai... Jesus tinha diante de si um povo traído em sua vocação
mais profunda, um povo despojado de sua identidade pelos chefes.
Não eram mais um ―rebanho‖, mas ovelhas dispersas. Tanto Marcos
como Mateus dão a entender que atitude e as ações de Jesus eram
respostas de ―compaixão‖ e manifestavam sua decisão de reunir as
ovelhas em ―rebanho‖. Os dois evangelistas ligam a resposta da
compaixão de Jesus antes de tudo à pobreza espiritual das multidões, à
sua fome de Deus e de sua palavra (Mc.6.34; Mt.9.35).8
Neste caso, a salvação pessoal está necessariamente vinculada à relação que
temos com as pessoas nessas condições mencionadas por Jesus. Aquele que se abriu à
necessidade de seu irmão entrará no Reino. É claro também que o critério não se resume
nisso.
Esse pobre está bem presente no discurso de Jesus, como por exemplo, ―Porque
tive fome, e deste-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e
hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; estive na prisão, e fostes ver-me‖(Mt
6
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1201.
7
Disponível em:
<http://www.searchgodsword.org/lex/grk/view.cgi?number=4434http://translate.google.com.br/translate?
hl=pt->. Acessado em 26/02/2010.
8
BOSSETTI, Helena; PANIMOLLE, Salvatore A. Deus-Pastor na Bíblia: Solidariedade de Deus com
seu povo. São Paulo: Paulinas,1985. p.53 .
15. 15
25.36).9 A libertação que Jesus oferecia aos aflitos não se limitava à salvação da alma
ou à libertação física de doenças ou possessão demoníaca, mas alcançava todas as
dimensões da vida. Desmarginalizava os marginalizados por qualquer razão, promovia e
integrava os excluídos conferindo a eles o que hoje chamamos ―cidadania‖.
Sua palavra e sua prática são marcadas pela ternura e a aproximação e
pelo convite à conscientização, em vista da promoção da liberdade e
da vida. É solidário e compassivo, nada exigindo deles a não ser a
tomada de consciência de sua dignidade de filhos de Deus, a fim de
não introjetarem os mecanismos e atitudes dos opressores.10
1.3 O pobre na palestina
Com as informações que temos disponibilizado pela pesquisa não parece injusto
identificar a grande maioria dentre a multidão que ia ao encontro de Jesus como sendo
de pessoas sem trabalho ou sem esperança, condição que não pode ser dissociada da
dominação romana com a aquiescência do templo estendida à grande maioria do povo
da Galiléia e da Judéia no contexto de Jesus. O Império se apropriava das terras e
permitia que as pessoas continuassem morando nela para produzir para o Estado. Nesse
caso o empobrecimento do camponês era abrupto, pois, pouco ou quase nada sobrava
para ele sustentar a sua família. Basicamente, o que ele conseguia produzir era
destinado aos impostos e à alimentação dos soldados romanos, uma vez que a Palestina
era uma província imperial, aquela que, devido à sua alta susceptibilidade à revoltas
populares, exigia a monitoração direta do Império através da presença do exército sob o
comando de um procurador criteriosamente escolhido cuja característica principal fosse
a dureza, preferencialmente a crueldade.
Os impostos atingiam todas as classes sociais e todas as formas de produção. O
agricultor pagava-os na forma in natura e chegava a 25% da produção. O imposto
individual era proporcional à renda; havia ainda os impostos recolhidos diretamente nas
alfândegas e as taxas sobre a circulação de mercadorias recolhidas nas pontes e
encruzilhadas das estradas importantes sobre todo tipo de produção rural: gados,
forragem, pescado e qualquer produto da lavoura ou do pomar e até mesmo sobre a
9
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1201.
10
FELLER, Vitor Galdino. A Revelação de Deus a Partir dos Excluídos. São Paulo: Paulus, 1995. p.57.
16. 16
água. Não podiam esquecer de colocar nas contas o dinheiro da corrupção para os
soldados e para a caixinha dos publicanos que recebiam os tributos nas alfândegas sob
concessão do Estado na forma de serviço prestado, ficando livres para cobrar mais para
aumentar seus lucros. As legiões romanas eram estacionadas na Síria; cerca de três mil
homens viviam de prontidão na Palestina e, em Cesaréia onde morava o Procurador,
aguardava o grosso da tropa. A ração desses soldados romanos era mantida pela
população ―por fora‖ através de contribuição extra para essa finalidade.11
Além dos tributos romanos havia também os impostos judaicos. Um total de 24
tipos diferentes de tributos era imposto ao povo a título religioso; isso dá a ideia da
importância econômica do templo. As didracmas (taxa por indivíduo), dízimos, taxas
sobre o comércio sagrado de animais para o sacrifício, taxa de câmbio, ofertas diversas
em dinheiro ou in natura donativos de peregrinos, etc. Tudo era cuidadosamente
sacralizado e destinado à: manutenção da suntuosidade do templo, dos salários dos
funcionários do templo, da renda exorbitante da elite do templo formada por sacerdotes,
escribas e fariseus, igualmente os serviços dos levitas e de outros, também do culto
público e gastos com beneficência. Essa conta era paga pelos 600 ou 700 mil israelitas
que viviam toda a Palestina e pelos outros 6 ou 7 milhões espalhados pelas outras partes
do Império Romano. Contra o camponês comum, pesava também, o monopólio do
comércio religioso assegurado pela elite do templo escondido nas formas mais sutis
imagináveis como, por exemplo, esse preceito rabínico quanto ao comércio de ovelhas
por parte de produtores que não tinham acesso a esse negócio: ―Ninguém deve comprar
leite, lã ou carne diretamente dos pastores, pois, são ladrões que desviam parte do
rebanho do dono‖12 ; e os levitas do templo eram orientados para encontrar qualquer
defeito em animais que fossem identificados como comprados fora dos limites do
monopólio do comércio de animais para o sacrifício, assim, do peregrino era tirada até a
possibilidade de economizar uns trocados comprando esses animais de qualquer sitiante
ao longo da estrada. Examinando por esse anglo, compreendemos melhor as razões de
Jesus para romper definitivamente com o sistema religioso expulsando do pátio do
11
BRANCO, Raul. Cristianismo primitivo: Os ensinamentos do personagem que dividiu a história.
Disponível em: <http://api.ning.com/files/EBifTj8233drnn1FMsOHGrqCB8PkbghfAS5-
7bxQAc*BehdMQwl40WRIC9AWKjDJ8*8fvO8oz36*y-
V0DlEUZwQ8uR51TYfF/CRISTIANISMOPRIMITIVOO> . Acessado em: 13 /04/ 2010.
12
Idem
17. 17
templo esses negociantes do comércio sagrado, e a consequente reação da elite religiosa
de Jerusalém, introduzindo no templo, ―cegos e coxos e ele os curou‖( Mt 21.14).13
Essa multidão de patrícios judeus tinha sua vida governada pelas leis civis e
religiosas do templo de Jerusalém que funcionava também como uma espécie de estado
judeu. Ele era o vínculo que unia todos os judeus de qualquer classe social, ou
intelectual que, além do templo, tinham em comum a esperança messiânica. Essa
esperança era o elemento que mantinha o povo submetido à tamanha perversidade. Para
se ter uma ideia mais acurada da riqueza do templo, quando ele foi destruído, no ano 70
d.C., o ouro retirado dele foi tão abundante que a sua oferta no mercado da Província da
Síria caiu pela metade. O estado de pobreza por meio da transferência de renda e do
confisco dos produtos do trabalho acabava excluindo o trabalhador da vida religiosa
também, uma vez que não conseguia cumprir à risca os preceitos de purificação e fazer
as ofertas e os sacrifícios que a Lei e a Tradição exigiam. O camponês, o artesão e o
comerciante eram obrigados a se virar da melhor maneira que pudessem para driblar o
sistema e, pelo menos, sustentar sua família.
A tradição israelita construiu-se sobre a expectativa messiânica de um Salvador
humano que libertaria o povo da opressão estrangeira e do sofrimento imposto pela
dominação a partir de um governo estabelecido em Jerusalém. Essa esperança
cristalizou-se durante e após o exílio babilônico no século VI a.C. Após o retorno para a
terra natal a situação não melhorou muito. A vida foi tocando a passos lentos. Lentos e
traumáticos em razão da pobreza e das sucessivas dominações estrangeiras, algumas
delas afrontaram duramente a identidade judaica aprofundando ainda mais as raízes da
esperança messiânica que teimava em não concretizar-se. A chegada dos romanos
endureceu ainda mais a realidade tornando urgente o aparecimento do Messias. A
palestina se tornou terreno fértil para todo tipo de proposta messiânica encarnada pelas
mais variadas propostas de pessoas que se candidatavam a messias, causando ao povo
mais sofrimentos com as retaliações políticas de Roma. A elite judaica não ajudava
muito, antes, aliava-se, como de costume, à dominação estrangeira para garantir sua
sobrevivência e manter seu status quo, sempre escondida atrás da sacralidade do templo
e das demais instituições judaicas.
Jesus era originário de Nazaré, região camponesa da Galiléia; membro de uma
família de carpinteiros cresceu convivendo com a pobreza dos camponeses e
13
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1193.
18. 18
indignando-se com as condições de vida às quais eles estavam submetidos. A condição
de produtora de alimentos para exportação para a capital do Império submeteu-os a uma
realidade marcada por mais trabalho e menos comida em sua própria mesa, eles, por sua
vez, encontraram em Jesus alguém capaz de representá-los, defendê-los e orientá-los.
As informações disponíveis sobre esse condicionamento social do povo nos ajuda a
entender melhor o significado da declaração de Jesus ao ver as pessoas que o
procuravam e o acompanhavam por toda parte como ovelhas ―cansadas e desgarradas,
como ovelhas sem pastor‖(Mt.9.36).14
Jesus rompeu com o sistema religioso, denunciou a hipocrisia das lideranças
civis e religiosas de Jerusalém, e colocou a descoberta a fragilidade moral e ética dos
―pastores‖ do povo. Por meio de um revolucionário método de ensino que provocava
em seus ouvintes a reflexão sobre toda natureza de tema relevante para o seu cotidiano,
trouxe libertação mental para seus seguidores e, do mesmo modo, libertou-os das
amarras dos costumes da tradição que os mantinha na exclusão social e moral.
Os Evangelhos fornecem informações suficientes para afirmarmos com
segurança que a principal preocupação de Jesus era com os socialmente desassistidos
por serem eles os excluídos de toda sorte de participação social, econômica e religiosa.
Seus ensinos, práticas de compaixão e de solidariedade foram direcionados
prioritariamente aos excluídos, socialmente ou religiosamente ou moralmente. As
formas de exclusão eram diversas e a absoluta dependência da compaixão divina foi a
razão de Jesus para priorizar os marginalizados.
Fazer justiça aos pobres foi uma causa urgente encarnada por Jesus. Por justiça,
entende-se o conceito de Deus para o termo: conforto, solidariedade, perdão,
atendimentos das necessidades básicas, inclusão social e religiosa, etc. A pobreza
sempre será resultado da injustiça. Creio que cabe aqui mencionar o conceito hebraico
de ‗justiça‘.
Segundo a Bíblia, estabelecer ―a justiça e o direito‖ para o povo judeu
significa prolongar o ato libertador de Deus que o retirou da opressão em que
vivia no Egito. É fidelidade à aliança estabelecida com Deus; ela deve
conduzir à plenitude da vida. Nesta perspectiva, o termo justiça, partindo dos
laços estabelecidos entre pessoas que vivem em sociedade, manifesta também
a relação dos seres humanos com Deus. O primeiro sentido não é anulado,
antes, é assumido dentro de uma conotação tão importante e rica na Escritura
14
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1173.
19. 19
que chega a equivaler à salvação, ou seja, da plena comunhão com Deus e
com os outros.15
O nosso conceito de ‗justiça‘ está vinculado ao Direito romano; o direito legal
herdado da concepção romana, que, por sua vez, é uma decorrência da filosofia grega,
que não está necessariamente vinculado à justiça, mas à legalidade. Na bíblia,
particularmente no Antigo Testamento, o conceito de justiça é bem mais abrangente.
Vamos examiná-lo mais apropriadamente uma vez que caminhará conosco ao longo de
todo o presente trabalho.
Algumas palavras são chaves para compreender a concepção do que
efetivamente significa esse conceito que, por sua vez, é indispensável para compreensão
do caráter de Deus, logo, de Jesus. Vamos às palavras:
sedaqah ►direito por condição; justiça (honradez; retidão; mérito;
crédito).
Hésed ►bondade; graça (solidariedade , amor).
shalom ►paz; vida plena; prosperidade.
hod ►estatuto.
torah ►instrução.
tom ► integridade.
Ao longo de todo o Antigo Testamento essas e outras palavras são usadas para
definir justiça conforme o que se deseja dizer para uma situação específica. Alguns
textos resumem bem o significado desses termos, como, por exemplo: ― O efeito da
justiça será a paz, e o fruto da justiça repouso e segurança para sempre. O meu povo
habitará em moradas de paz, em moradas bem seguras e em lugares quietos e
tranqüilos”(Is.32.17,18).16 Outro texto o associa bem o caráter messiânico de Jesus:
“A justiça será o cinto dos seus lombos, e a fidelidade o cinto dos seus rins”(Is.11.5).17
O mesmo se diz em sentido inverso: “Por isso o direito se tornou atrás, e a justiça se
pôs de longe; porque a verdade anda tropeçando pelas ruas, e a eqüidade não pode
15
CARVALHO, Sávio Pereira de. A opção de Deus pelos pobres. Monografia. 2007. p.41. Disponível
em: <www.metodistavilaisabel.org.br/.../A_OPCAO_DE_DEUS_PELOS_POBRES.pdf > . Acessado:
12/05/2010).
16
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.890.
17
Idem.
20. 20
entrar”(Is.59.14).18 Nessas afirmações temos de forma bem apropriada a ideia de o que
seja uma sociedade justa para o pensamento bíblico: teto para morar, segurança,
tranquilidade, fidelidade, justiça, direito, verdade, equidade; enfim, a justiça bíblica é a
relação correta com o outro em todos os níveis das relações, particularmente, as sociais
e econômicas. Estas três afirmações resumem o caráter do Messias cuja esperança nutria
Israel nas fases de muita angústia.
Javé é identificado na experiência de Israel como bondade,
misericórdia e graça (...) que atravessa toda a história concedendo ao
mundo Justiça, Vida, Sustento, Salvação e Esperança. Assim, o poder
de Javé, criando o mundo, está envolvido com sua misericórdia a fim
de substanciar o sustento da vida comunitária do mundo.19
Compreendendo melhor a justiça bíblica hebraica, compreendemos mais
adequadamente por que Jesus encarnou tão radicalmente esse conceito na sua relação
com o pobre; literalmente até as ultimas consequências. “Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”(Mt 5.6).20 A instalação do Reino de
Deus saciará a fome de justiça do pobre. Estamos habituados a interpretar esta bem-
aventurança de forma espiritualizada, como sendo essa fartura de justiça e de pão um
consolo alcançado de alguma forma numa era escatológica, porém, os Evangelhos não
deixam dúvida quanto à possibilidade dessa realidade como resultado das conquistas do
reino efetivadas pelo cuidado solidário de seus discípulos com o pobre. Esse sinal do
advento messiânico Jesus confiou aos seus discípulos; eles são seus portadores.
A maior parte dos ensinos de Jesus e do desafio ao discipulado está associada à
conversão do coração ao pobre ou à renúncia ao conforto. Vamos ver alguns casos:
Antes dai esmola do que tiverdes, e eis que tudo vos será limpo (...)
Vendei o que tendes, e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não se
envelheçam; tesouro nos céus que nunca acabe, aonde não chega
ladrão e a traça não rói Lc 11.41;12.33.21 Disse-lhe Jesus: Se queres
ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um
tesouro no céu; e vem, e segue-me (...) o Filho do homem não tem
onde reclinar a cabeça Mt 19.21;8.20.22
18
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p. 918.
19
SIQUEIRA, Tércio Machado. CASTRO, Clovis Pinto de. in: Por uma fé cidadã. São Paulo. Metodista:
Loyola, 2000. p.87 .
20
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1162.
21
Ibid., p.1275.
22
Ibid., p.1277.
21. 21
Para ser reconhecido por aqueles que deseja salvar, o Filho do Homem não tem terra
para cultivar ou criar gados e nem mesmo teto para morar. Aqueles que optam por seu
projeto não devem esperar dele nada melhor do que ele tinha para si mesmo, ―o Filho do
Homem não tem onde reclinar a cabeça‖ Lc 9. 58.23
Zaqueu sinalizou sua conversão com a doação de seus bens aos pobres (Lc
19.18), e ao jovem rico, Jesus exigiu a entrega da sua riqueza para segui-lo como prova
de perfeição espiritual (Mt 19.21); afora outras citações e episódios ao longo de todo o
Novo Testamento (Lc 1.41; At 10.12; 24.17). O caso de Zaqueu que era ―chefe dos
publicanos e era rico‖, é ainda mais interessante porque ele se dispôs a dar ―aos pobres
metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, o restituo
quadruplicado‖. Observando a partir da perspectiva do conceito popular sobre o
publicano quanto à sua desonestidade ao cobrar mais do que o estipulado, conceito
endossado por Lucas (Lc 3.12,13), subtraindo do contribuinte o recurso que ele não
devia, temos uma visão bem ampla do que significou para ele aquele encontro com
Jesus. Dar esmola é uma forma de o discípulo mostrar seu amor por Jesus e a
autenticidade do caráter de sua conversão. O próprio Jesus fazia uso do caixa do grupo
para acudir os pobres (Jo 13.29).
Muito interessante é o conceito hebraico de ‗ esmola‘. Essa palavra vem de
eleemosyne que vem de éleos que, por sua vez, vem de hésed;24 significa partilha,
solidariedade, compromisso. Isso substancia extremamente o ensino de Jesus e,
consequentemente, nossa reflexão sobre a relação do evangelho com o pobre; e a nossa
relação com a esmola.
A maior parte do ministério de Jesus foi dedicada aos pobres, começando por
seu nascimento e se estendendo por toda a sua vivência familiar numa família de
carpinteiros. Ele gastou tempo com os cegos, com os leprosos das estradas, com os
doentes, com os artesãos, os pescadores e com os desempregados que engrossavam a
multidão de ouvintes e seguidores. Preocupou-se com suas enfermidades, com os
salários injustos e com o peso dos tributos sobre a vida do povo, do abandono por
parte dos ―pastores‖ lideranças religiosas e civis e ―comprou briga‖ com a instituição
23
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1271.
24
Vida Pastoral: Revista Bimestral para sacerdotes e Agentes de Pastoral. Paulus, Setembro/outubro,
226; 2002. p.25 .
22. 22
religiosa que os excluía tanto por serem pobres quanto por serem doentes ou
ritualmente impuros em razão da ocupação profissional. Para Jesus, ser pobre
significava viver como pobre, ser solidário a ele e desmascarar os mecanismos
religiosos, sociais e políticos que os lançavam e mantinham na pobreza. A pobreza era
uma realidade concreta no cotidiano de Jesus. A compaixão era a sua resposta. Sua
prática era mais que um pacote de programa social destinado a pessoas sem rosto e
sem história, conhecidas apenas pelas estatísticas. Para ele, ter compaixão do pobre
significava mais que enviar um lote de cesta básica; significava olhar, ouvir, tocar,
caminhar, acolher, alimentar, defender, ensinar, compadecer-se, comprometer-se
pessoalmente.
1.4 O pobre na igreja apostólica
Carlos Mesters25 oferece uma extensa lista de excluídos por razões diversas.
Dela podemos deduzir o caráter dessas exclusões e dividi-las conforme a sua natureza:
● Excluídos por doenças: leprosos, cegos, paralíticos, endemoninhados, muitos
outros.
● Excluídos morais: prostitutas, ladrões.
● Excluídos políticos: publicanos e soldados.
● Excluídos por caráter religioso (hereges): estrangeiros, samaritanos
● Excluídos por gênero: mulheres.
● Excluídos em razão da pobreza: pobres, famintos, mendigos.
A lista acusa excluídos que não se encaixam nesses grupos que identifiquei. De
qualquer modo, me parece claro que a maior parte dessas categorias de excluídos era
formada por pobres na conceituação que elaborada para o propósito do presente
trabalho.
As pistas da preocupação da igreja apostólica com o pobre começam com o Atos
dos Apóstolos como decorrência natural da respostas das pessoas à pregação cristã. A
25
MESTERS, Carlos. A prática libertadora de Jesus. Disponível em:
<http://www.google.com.br/search?q=grupos+excluidos+na+palestina+do+tempo+de+jesus&hl=pt->.
Acessado em 27/06/2010.
23. 23
renúncia aos bens materiais em favor da caridade é relatada de forma tão natural quanto
a pregação e a conversão, parece não haver separação entre conversão e caridade, ainda
que seja à custa do empobrecimento pessoal; ―a fraternidade não pode limitar-se a
palavras generosas, tem que ter dimensões concretas, inclusive materiais e
financeiras‖.26
Como recurso de teorização me parece que o episódio da cura do coxo na Porta
Formosa do templo é paradigmático na elaboração da teologia social que orienta a
prática das comunidades ao longo dos primeiros três séculos. A Formosa era a que
separava o primeiro do segundo pátio. O primeiro era o espaço público do templo
permitido aos gentios, enfim, aos impuros propriamente ditos, o pórtico de Salomão, o
mercado de animais para o sacrifício e o cambio de moedas. A porta Formosa era o
limite de acesso para todos os portadores de qualquer natureza de impureza; após ela
havia 03 átrios: o das mulheres, o dos homens e o dos sacerdotes onde ficava também o
altar. Ao lado externo dela ficava um mendigo coxo de ambos os pés, aquele lugar era o
acesso máximo permitido a ele. Era um lugar estratégico para esmolar, pois, aqueles que
entravam na casa de Deus eram, por força da consciência, obrigados a doá-lo alguma
coisa e os que saíam o faziam satisfeitos de si mesmos e, portanto estavam mais
predispostos à caridade. O coxo pediu uma esmola a Pedro e João que entravam. Era um
pobre que abordava os fiéis na porta da igreja.
Do ponto de vista do mendigo, sua situação era aquela mesmo, pois não via
como as coisas poderiam ser diferentes, estava pagando pelos pecados de seus pais, já
que nascera coxo; as coisas sempre foram assim, então elas deveriam ser assim mesmo.
Do ponto de vista de sua família, não haveria muito que pudesse ser feito;
colocá-lo no ponto de mendicância era tudo. Era muito comum pessoa nessas condições
ser abandonada pela família; ela tinha o assentimento da religião se o quisessem fazer,
a propósito, era de bom tom se precaver do contato físico com pessoas impuras, ainda
mais aquelas feitas impuras pela deficiência física, já que estavam sendo punidas por
seus pecados ou pelos de seus pais. A exclusão em nome de Deus é uma das mais
perversas que se pode fazer.
Do ponto de vista dos ―puros‖, a presença daquele homem na porta da igreja
com a mão estendida por uma esmola era até uma necessidade, já que eles precisavam
26
HOORNAERT, Eduardo. Formação do cristianismo IX: O combate à fome. Janeiro/fevereiro 1997.
Disponível em: <http//www.igrejanova.jor.br/>. Acessado em: 25/04/2010.
24. 24
dos esmoleiros para exercer sua justiça e mostrar quão piedosos eram. E do ponto de
vista daqueles dois apóstolos de Jesus de Nazaré que entravam por aquela porta para o
culto da tarde? Sob quais lentes eles olhariam para aquele pobre homem que os
abordava na porta da igreja? Este é o ponto.
Pedro e João tinham naquele pobre a opção de entrarem para o culto em paz
após ignorar o homem, já que a salvação era dada por Jesus; ou jogar uma moeda para
ele, alimentando o sistema que mantinha a população marginal na marginalidade, sem
sofrerem nenhuma censura por isso fosse pela igreja ou pela sociedade ou pela própria
consciência; ou poderiam apresentar uma resposta nova na condição de proclamadores
do evangelho do Nazareno com quem aprenderam e treinaram para responder a essas
situações.
A primeira resposta deles foi um gesto: ―Pedro fitando os olhos nele com João‖
(At 3.4-8)27; fitar é o verbo grego atenizô: olhar para, olhar firmemente em, olhar
atentamente, fixar os olhos em. Luiz Carlos Ramos lê o comportamento dos apóstolos
da seguinte forma:
Pedro e João subiam ao templo para a oração da hora nona, i.e., às três
horas da tarde. Isso também não é intrigante? Pedro e João
iam diariamente ao templo, logo, cruzavam com o coxo todos os dias.
E mais, naquele mesmo dia, já era a terceira vez que Pedro e João
passavam pelo coxo. A primeira teria sido às nove horas e a segunda
ao meio-dia, no trajeto rumo ás suas orações diárias. Por que só agora
Pedro e João pararam para falar com o coxo? Por que não o curaram
antes? Parece que, de fato, Pedro e João nunca tinham visto aquele
homem que, para nós, tipifica todas aquelas pessoas a quem a Igreja
deve alcançar com a mensagem da salvação.28
A segunda resposta foi uma palavra: ―Olha para nós‖. Resposta corajosa;
frequentemente somos nós quem ouve isso daquele que nos aborda em busca de ajuda.
Geralmente não queremos olhar. Queremos é nos livrar dele o mais rápido possível. A
resposta do homem estabeleceu a poderosa comunicação do olhar. Quem olha e é
olhado já está envolvido pelo estabelecimento de alguma natureza de vínculo.
Frequentemente, os Evangelhos mencionam o olhar de Jesus, geralmente fluindo
compaixão: ―E Jesus, movido de grande compaixão, estendeu a mão, e tocou-o‖ (Mc
1.41). Não se tem compaixão sem olhar, esta só pode manifestar se houver uma troca de
27
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1354.
28
RAMOS, Luiz Carlos. Conversão da cabeça aos pés. Disponível em:
<HTTP://www.luizcarlosramos.net./> Acessado em: 17/06/2010.
25. 25
olhares, sem ela o milagre não acontece. Compaixão é sentir com as entranhas o
sofrimento do outro; é mais que dó, a dor intelectual passageira pelo sofrimento do
outro e que costuma ser curada antes da próxima esquina.
A terceira resposta foi: ―Não temos ouro nem prata‖. Esta declaração não afirma
necessariamente que não tivessem uma moeda para aquele homem; ele não esperava
mais que isso. Igualmente não significava o fim dos recursos e nem a lavagem das mãos
por parte do discípulo do Galileu, ao contrário, sempre há algo que se possa fazer desde
que haja um mínimo de predisposição para fazer o bem. Ninguém precisava ter dinheiro
de sobra para dar uma esmola. Eles poderiam estar dizendo o que dizemos todas as
semanas nas portas de nossas igrejas, nas ruas e em outros lugares de nosso meio
ambiente: não temos dinheiro bastante para resolver um problema social tão abrangente.
―Não lhes bastariam duzentos denários de pão‖ (Jo 6.7);29 geralmente, é a saída
estratégica para a consciência entrar na igreja e cultuar a Deus em paz. Deus sabe que se
tivéssemos dinheiro suficiente criaríamos uma instituição de caridade para acolher todas
essas pessoas. É assim que argumentamos conosco mesmos frente a essas pessoas.
Nossa piedade é tão grande que só admitimos resolver o problema de todos com uma
tacada só. Pedro e João não tem a solução do problema, porém, não ficam indiferentes.
Sempre se pode fazer algo quando se olha com os olhos do coração.
O Evangelho só seria boa nova para aquele homem se ele apresentasse uma
resposta criativa que o resgatasse definitivamente daquele cativeiro. ―Em nome de
Jesus, o Nazareno, levanta e anda. E tomando-o pela mão direita o levantou‖ (At
3.6,7);30 o verdadeiro proclamador do evangelho do Nazareno sabe que não é o bastante
falar. É preciso tocar para que o milagre ocorra. Só toca quem ama e se compadece.
Tocar é envolver-se. Ao tocar naquele homem, Pedro, como seu Mestre, rompe com o
sistema que o mantinha no cativeiro múltiplo da pobreza e da exclusão. Tocar em um
impuro o impossibilitava de entrar no templo sem se lavar primeiro e até de tocar em
outras pessoas, mas Pedro ignora a regra porque aprendeu com o Nazareno que a regra
ultima é a do amor; a regra da vida. Ignorar esta anulava qualquer culto que pudesse ser
prestado naquele templo. Em favor daquele homem é quebrada a regra que tornava
maldito aquele que a Lei declara maldito. Na quebra da regra, o homem é salvo e pela
primeira vez passa por aquela porta e ―entrou no templo com Pedro e João, andando,
29
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1314.
30
Ibid.; p.1254.
26. 26
pulando e louvando a Deus‖(v.8). Para aquele homem a apropriada proclamação do
evangelho cumpriu as profecias messiânicas:
Mas para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, e
cura trará nas suas asas; e saireis e saltareis como bezerros da
estrebaria‖ (Is 35:6). ―Então os coxos saltarão como cervos, e a língua
dos mudos cantará; porque águas arrebentarão no deserto e ribeiros no
ermo (Ml 4.2).31
A esse atrevimento, os guardas do sistema reagiram encarcerando os apóstolos,
porém, ―vendo estar com eles o homem que fora curado, nada tinham que dizer em
contrário‖(At 4.14)32; frente a verdade incontestável do Evangelho que Pedro e João
proclamavam nada mais puderam fazer além de reconhecerem que eles ―haviam estado
com Jesus‖.
A cura do doente não pressupõe apenas a solução do seu problema imediato de
saúde física, antes, proclama também a sua inclusão na sociedade como homem apto
para o trabalho e para suas atividades religiosas e outras que ele desejar executar, enfim,
sua inclusão numa vida com dignidade. Hoornaerte endossa bem essa afirmação:
A pobreza social é sem dúvida uma doença, um mal a ser erradicado,
algo de vergonhoso para um povo. A cura, nesse sentido, implica
uma série de atividades terapêuticas não só de ordem física e
psicológica, mas também política e social. Quer nos parecer que a
dupla recomendação de Jesus no sentido de ao mesmo tempo curar os
doentes e anunciar o reino se enquadra bem aí..33
É indispensável caracterizar o pobre da Palestina e o pobre das comunidades
cristãs dos primeiros séculos. O primeiro era essencialmente camponês. Estava
completamente associado ao cultivo da terra e à criação de pequenos animais,
submetido às condições tributárias impostas pelo império e, excluídos da vida religiosa
em razão da pobreza. O segundo era urbano, uma vez que o cristianismo foi um
fenômeno da cidade. Cerca de 80% da população do império era desassistida pelo
Estado. Dentre essa multidão o que diferenciava um pobre do outro era apenas o grau de
31
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.892,1147.
32
Ibid., p.1355.
33
HOORNAERT, Janeiro/fevereiro 1997. Disponível em: <http//www.igrejanova.jor.br/>. Acessado em:
25/04/2010.
27. 27
pobreza: pobreza indigente e pobreza suportável. Era uma mistura de ex-camponeses
em busca de melhores condições de vida na cidade, numerosa multidão de escravos na
mais completa escuridão para quem a religião era a única centelha de luz onde podia
encontrar algum conforto, e de forasteiros em busca de trabalho e moradia. Era um povo
completamente sem acesso a qualquer coisa que possamos identificar como cidadania;
que não tinha sustento garantido para a próxima semana ou mesmo para o próximo dia
de vida, dependente completamente da solidariedade a título de recurso de emergência
de sobrevivência.
A resposta de Pedro e João na porta Formosa do templo em Jerusalém inaugurou
uma nova forma de olhar para esse excluído da sociedade. O Evangelho deve oferecer
resposta de libertação e de esperança, senão não é o evangelho de Jesus Cristo. Tocados
pela compaixão inerente ao evangelho de Jesus proclamado pelos discípulos, muitos,
como Barnabé, doaram seus recursos financeiros para a caridade de sorte que os
primeiros anos da história da igreja foram marcados por um movimento expressivo de
dinheiro para a atividade social destinada, prioritariamente, às viúvas e aos órfãos. No
cristianismo como fenômeno urbano a caridade acaba se tornando muito dependente do
dinheiro. Os cultos da comunidade de discípulos tinham como parte principal a refeição
comunitária na qual era celebrada também a eucaristia, esta constituía-se uma blasfêmia
se praticada indiferentemente à fome de quem comunga. Atos dos Apóstolos menciona
a morte e a ressurreição de uma mulher caridosa de nome Dorcas que morava na cidade
portuária de Jope e prestava relevante serviço de caridade em Lida, capital do distrito de
Samaria. O testemunho de caridade dessa mulher, somado ao milagre de sua
ressurreição por meio de Pedro, constituiu-se um testemunho tão poderoso na região
que durante o século II permaneceu ali uma comunidade cristã a despeito das suas
dramáticas convulsões políticas por sucessivas décadas na última metade do primeiro
século e primeira do segundo. Conforme relato de Paulo em Gálatas 2.10, após o
concílio de lideranças cristãs em Jerusalém, registrado no capítulo 15 de Atos, para
resolver pendências associadas ao judaísmo, Pedro, João e Tiago, ―reputados por
34
colunas da igreja‖ (Gl 2.10) , enviaram-no em companhia de Barnabé com apenas a
recomendação de que ―lembrássemos dos pobres‖. A Epístola aos Gálatas é uma
severa exortação contra o retorno ou a conversão daquela comunidade às práticas
34
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1482.
28. 28
legalistas de purificação judaica, a mesma questão que originou aquele concílio. Neste
caso ele omite a recomendação documentada na carta produzida pelo concílio sobre o
repúdio à idolatria associada com os sacrifícios pagãos nos quais os pobres da cidade
tinham a rara oportunidade de comer carne, e restabelece o ensino de Jesus sobre a
superioridade da caridade frente aos preceitos religiosos insuficientes para a produção
da verdadeira piedade. Para endossar essa afirmação ele recorreu à autoridade das
―colunas‖ ministros da ―circuncisão‖ para mostrar que sua pregação estava afinada com
discurso ―oficial‖. O que purifica o corpo é o amor que defende e promove a vida. Na
mesma direção, Tiago exorta a comunidade destinatária de sua epístola à caridade
declarando que o cuidado com os pobres (viúvas e órfãos) é um dos dois sinais
relevantes da ―religião pura e imaculada para com Deus‖ (Tg 1.27).35 O amor tem
prioridade sobre qualquer preceito da religião.
1.5 O pobre na igreja cristã até o fim do século III
Por si só, a rápida expansão do jovem movimento cristão no seio da
megassociedade romana e mesmo fora das fronteiras orientais do dito
Império tem tudo para impressionar. A minúscula ―sinagoga
dissidente‖, iniciada na Galiléia com Jesus de Nazaré e abrigada no
casulo do judaísmo rabínico por 150 anos. Multiplicou-se em tempo
recorde. O movimento alcançou, já no século I, a Síria litorânea,
partindo de Antioquia; penetrou na Ásia Menor, com centro em Éfeso;
espalhou-se no delta do Nilo, com centro em Alexandria; e, finalmente
no Mediterrâneo ocidental, na Grécia e na Itália. No decorrer do
século II atravessou a Síria oriental e formou base em Edessa, na
margem direita do rio Eufrates; a partir de suas bases na Ásia menor
chegou às regiões da Capadócia e Armênia; atravessou igualmente a
áfrica do Norte, com base em Cartago; subiu no interior do Egito para
alem da sexta catarata do rio Nilo; e subindo – do outro lado do
mundo – o Rio Ródano, alcançou a Gália e Espanha. Tudo isso é
impressionante e suscita a pergunta: de onde provem tão
extraordinário desenvolvimento em tão pouco tempo? Qual o
segredo?36
Este levantamento e esta indagação de Hoornaert sobre espantoso crescimento
do cristianismo mesmo sob severa perseguição oficial e judaica sob as condições
35
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2.ed.São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. p.1579.
36
HOORNAERT, Eduardo. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 1996. p.81-94 .
29. 29
desfavoráveis da clandestinidade e da pobreza, levou-o a desconfiar da história oficial
da igreja que atribui esse crescimento aos milagres, ao martírio, à santidade e à vigorosa
evangelização.
Para melhor compreensão da resposta que esse pesquisador encontrou para sua
indagação vamos gastar um curto espaço na verificação do que ele encontrou como
realidade social do império. ―Para pelo menos 80% da população do imenso Império
romano, a vida é trabalho, sofrimento, violência...‖37 A vida dos escravos era
extremamente breve ―quase sempre inferior a 25 anos. Apenas 4% dos homens
chegavam a idade de cinqüenta anos, sendo menor ainda a porcentagem das mulheres,
em razão sobretudo dos perigos do parto‖.38
A quantidade de viúvas indigentes era assustadora; não podemos esquecer que
muitas delas eram mães de numerosos filhos pequenos. Grande também era a
quantidade de crianças rejeitadas e abandonadas nas ruas e nas lixeiras por serem
meninas ou por terem nascidas doentes ou deficientes ou terem ficado doentes após o
nascimento; pessoas ganhavam a vida recolhendo essas meninas para explorar na
prostituição ou para serem vendidas como escravas. Aqueles, pobres ou não, que
contraíam uma doença sem esperança de tratamento eram abandonadas nas praças para
morrerem. Estrangeiros vindos principalmente do Oriente perambulavam pelo império
em busca de alguma forma de ganho; quase todos iam para Roma, ou outra grande
cidade, formando uma superpopulação marginalizada. Estima-se a população de Roma
nessa época em torno de oitocentos mil a um milhão de habitantes. Cerca de 80% dessa
população vivia na miséria sem nenhuma condição digna de moradia, saúde e
alimentação.
Os serviços sanitários eram completamente inexistentes para essas famílias. Os
sacrifícios religiosos eram praticamente a única fonte de alimentação mais ou menos
decente, embora esporádica, para esse povo. Não havia cemitérios públicos, o que fazia
com que o cadáver de um pobre, escravo ou não, fosse jogado no ―lixão‖ da cidade.
Essa realidade se reproduzia em todo o território do império romano. A propósito, na
Ásia, o próprio apóstolo Paulo foi jogado no lixão de Listra ao ser dado por morto após
ser apedrejado pela multidão enfurecida; seus amigos o buscaram para prover-lhe uma
sepultura e verificaram que ele ainda respirava (At 4.19). Esse é um bom exemplo do
37
HOORNAERT, Eduardo. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 1996. p.81-94 .
38
Idem.
30. 30
fim que tinham os cadáveres dos sem famílias ou estrangeiros; se tivessem amigos
piedosos poderiam até ganhar um enterro. Os cristãos aprendem a aproveitar muito bem
essa brecha social como recurso de testemunho do amor de Jesus.
Por falar em brechas, vamos encontrar na brecha da legislação civil romana a
principal oportunidade de testemunho cristão e, consequentemente, crescimento;
exatamente a principal razão, na opinião de Hoornaert, do crescimento das comunidades
cristãs até o fim do terceiro século. Os colégios ou confraternitates eram previstas na
legislação romana como direito à associação autônoma:
A lei permitia que homens (sexo masculino) que exercessem a mesma
profissão ou venerassem o mesmo deus, fossem livres, libertos ou
escravos, se reunissem e formassem uma associação, chamada colégio
ou ainda confraternitas. Mesmo desconfiadas dessas livres
agremiações que reuniam muita gente e cujos objetivos não lhes eram
sempre claros , as autoridades romanas não as reprimiam legalmente.
Ou colégios ou confrarias (confraternitates) agregavam, por exemplo,
ferreiros adoradores de Hércules, ou comerciantes de roupas
adoradores de Mercúrio. As mais prestigiosas conseguiam a proteção
de algum mecenas, um magistrado ou senador que se dispusesse a
ajudá-las financeiramente.39
As mulheres não tinham acesso a esses clubes, por outro lado, escravos o
tinham. A principal finalidade deles era organizar banquetes e providenciar um funeral
digno para seus afiliados ―os colégios eram corpos fundamentalmente democráticos no
seio de uma sociedade patriarcal e piramidal‖.40
Por uma questão até de sobrevivência, os cristãos eram excelentes organizadores
e logo cedo identificaram nessas confrarias a brecha que precisavam para se
organizarem legalmente sem muita preocupação com eventuais perseguições oficiais.
Obviamente, eles não pouparam inovações para melhor atender a necessidade de
testemunho e convivência comunitária: aumentaram os assentos nos banquetes; criaram
confrarias femininas e acolheram em seus cemitérios pagãos e forasteiros. As famílias
cristãs eram hospitaleiras por excelência; colhiam em seu seio, forasteiros famintos,
sozinhos ou com suas famílias, em busca de alguma forma de sobrevivência e ajudava-
os a arrumar alguma colocação de trabalho e moradia e ainda acolhiam e adotavam
crianças rejeitadas ou doentes, inclusive adultos, abandonados nas ruas, tratando-os,
curando-os ou provendo-lhes conforto cristão enquanto não morriam. A hospitalidade
39
HOORNAERT, Eduardo. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 1996. p.81-94 .
40
Idem.
31. 31
era uma das virtudes mais importantes observadas em um eventual candidato ao
episcopado. A inclusão foi tão radical que até um coveiro poderia chegar a bispo, como
foi o caso de Calisto, escravo liberto, administrador de um cemitério em Roma no
século III.41
São Paulo recomenda que no primeiro dia da semana (domingo) se
ponha de lado, num jarro, as moedas que sobram do gasto semanal
planejado para a família. Essas moedas são para os pobres, as viúvas,
os órfãos, os doentes e aleijados mantidos pela comunidade (I Cor
16.2). O próprio Paulo já angaria dinheiro para levar aos pobres da
comunidade de Jerusalém, no a no 49. Na sua apologia (67.5-6)
Justino descreve em pormenores como esse gesto está sendo
organizado na comunidade de Roma em meados no século II. Na
Tradição Apostólica, de 218, menciona-se o ―pão dos pobres‖, ou
seja, as refeições especialmente organizadas para os pobres.
Tertuliano fala de um depositum pietatis (depósito da piedade, ou seja,
uma caixa comunitária ) nas comunidades de Cartago no início do
século III. Essas práticas devem ter permanecido durante séculos, pois
em meados do século IV, quando o imperador Juliano quer corrigir a
política de seu antecessor Constantino, protetor do cristianismo,
recomenda que as autoridades criem centros de assistência social e
hospedagem como um dique contra a avassaladora penetração do
cristianismo em meios populares.42
Devemos levar em conta que as comunidades cristãs saíram da clandestinidade
no ano 323 a.C.
Um grupo beneficiado de modo especial nos programas sociais era o das viúvas;
uma carta de Dionísio de Roma com data de 251 relata que a igreja sustentava ―mais de
1500 viúvas indigentes‖.43
Impressionantes são as informações sobre a caridade em favor dos escravos e
dos doentes em épocas de peste:
Um ―serviço social‖ altamente apreciado entre escravos e libertos
consiste no pagamento de um preço de resgate para pessoas presas e
em seguidas reduzidas á escravidão. O termo dado a esse resgate, e
que se mantém durante séculos, é ―redenção dos cativos‖ ou
simplesmente ―redenção‖. A manutenção de pessoas como escravas
nas mãos de quem os compra de ―bárbaros‘ é um costume tolerado
pelos juristas romanos, mesmo se tratando de cidadãos romanos. O
cristianismo não tolera esse abuso e as comunidades fazem o possível
para promover a redenção efetiva, o que lhes traz imensa simpatia por
parte de eventuais beneficiados (as).Um texto forte e inconfundível
neste sentido é o de Clemente romano, que escreve por volta do ano
100: ‗Conhecemos muitos entre nós que se entregam às cadeias (da
41
HOORNAERT, Eduardo. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 1996. p.81-94 .
42
Idem. .
43
Idem.
32. 32
escravidão) para libertar os outros. Não poucos se entregam como
escravos e, com o preço da venda, dão alimento aos outros‘. Sobre as
epidemias, geralmente provocadas por fome ―Eusébio relata que os
cristãos foram os únicos a visitar, remediar e sepultar as vítimas de
uma peste que eclodiu na cidade de Alexandria em 259, e na qual
muitos morreram. Naquela ocasião, diz Eusébio, as pessoas
costumavam deixar os doentes na rua com medo da contaminação,
mas os cristãos os carregavam para dentro de suas casas. O mesmo
fato, sempre segundo Eusébio, repetiu-se entre os anos 305 e 313,
quando a peste foi acompanhada de fome generalizada. Em casos
como esses, o comportamento dos cristãos ganha admiração geral.
Eusébio: Os fatos falam por si... Todos exaltam o Deus dos cristãos e
admitem que eles são os únicos verdadeiramente religiosos e
piedosos.44
De um modo geral, Hoornaert resume assim a intensa atividade social das
comunidades cristãs, não apenas em Roma, mas também nas maiores cidades do
império onde há mais registros históricos, oficiais ou não:
Defendemos aqui a tese de que o segredo do sucesso do cristianismo
no decorrer no século II muito tem a ver com a luta pela cidadania (...)
tomemos o caso das comunidades das grandes metrópoles nas
metrópoles como Alexandria, Roma ou Antioquia. Os estrangeiros
que chegavam em Roma, por exemplo, podiam contar com um
eficiente serviço de hospitalidade. As pessoas encontravam acolhida
na casa de um bispo cristão, hospedeiro por excelência. A mesa está
posta para os recém-chegados. Alimentos são levados para viúvas
necessitadas e órfãos. Em algumas comunidades há um serviço regular
de ajuda mutua para casos de urgência. As pessoas oferecem
donativos em gêneros alimentícios nos dias de jejum. Outro serviço
bem organizado é o do enterro de falecidos, não só os da comunidade
mas da vizinhança em geral. Compram-se terrenos para enterrar os
mortos. Quando alguém cai doente, pode contar com visitas regulares
e até, nos melhores casos, encontrar um lugar tranquilo para se
recuperar (...) há um serviço de visita aos presos, em certos casos, um
amparo psicológico para os que, desesperados, tentam o suicídio.
Assim a comunidade cristã local vira, no dizer de Hermas, um
―salgueiro‖ que protege muita gente, cristãos e pagãos, na amplitude
de sua sombra. Eis o segredo do sucesso do cristianismo.45
Desejo encerrar este ponto me servindo da conclusão da pesquisa de Eduardo
Hoornaert e com, com ela, encerro também esse tema desse período bastante difícil e
não menos rico da igreja cristã, um período encerrado com a ascensão da igreja cristã ao
trono imperial juntamente com Constantino no ano 323.
44
HOORNAERT, Eduardo. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 1996. p.81-94 .
45
Idem.
33. 33
O cristianismo não venceu pela pregação de seus apóstolos ou bispos,
nem pelo testemunho destemido de mártires, pela santidade de seus
heróis, por uma atuação persistente e corajosa de seus santos. Venceu,
isso sim, por uma atuação persistente e corajosa na base do edifício
social e político da sociedade. Constituiu-se uma ‗utopia que
funciona‘ no meio do submundo romano.Conseguiu para muitas
pessoas e muitos grupos uma cidadania real, embora limitada e
bastante modesta quanto aos resultados em termos de sociedade
global46.
Compreendemos até aqui que a partir do paradigma do ―reino de Deus‖
estabelecido pelo movimento de Jesus os cristãos ofereceram uma resposta totalmente
nova para as angústias das pessoas alcançadas pelo testemunho evangélico. A
comunidade cristã não se acanhou de caminhar na contramão de uma realidade
completamente hostil à sua proposta. Convenceu pelo testemunho das obras antes da
proclamação do discurso, provendo uma luz para uma imensa multidão carente
condenada à escuridão da desesperança, senão ao desespero, e de sentido para a vida.
As histórias dessas pessoas contadas por sucessivas gerações por todas as partes do
imenso império romano e fora dele conferiram credibilidade a uma religião que
começou na sinagoga dissidente da longínqua Jerusalém por causa de um Galileu morto
crucificado e proclamado como ressuscitado.
A lição desses pioneiros da cristandade continua a nos desafiar em meio à uma
realidade tão diferente em muitos aspectos mas em outros tão idêntica. Nossa sociedade
aguarda uma a resposta de uma comunidade cristã que se atreva a andar na sua
contramão e mostrar por meio da criatividade amorosa que Jesus Cristo é portador de
significado essencial para uma vida vazia e igualmente carente de significado
substancial.
Apesar das carências não se restringirem ao pobre, ele, todavia continua sendo a
maior vítima de nosso modo de vida urbano capitalista neoliberal globalizado que
trancafiou a todos nós na dependência do dinheiro mesmo para as coisas mais simples
do cotidiano. Por ele se mata, se trai, se vende e se negocia absolutamente tudo por
causa de sua capacidade de criar sentido para uma vida cujo fim em última instância é
sentir-se incluído. Ser incluído aqui é muito diferente de ser incluído no tempo que
acabamos de relatar. Aqui não se trata apenas de moradia, alimento, saúde e saneamento
46
HOORNAERT, Eduardo. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 1996. p.81-94 .
34. 34
básico, é também consumir muita futilidade. Pobre é aquele que não consome. Se não
consome está na marginalidade.
Frente ao que acabamos de relatar, nos causa muito desconforto ver que na
maior parte dos casos, o pobre não é bem vindo à igreja, pois ele acaba significando um
peso para ela carregar. A igreja mal consegue o bastante para manter a sua estrutura,
portanto, ela precisa priorizar a conversão de pessoas que possam reforçar seu caixa
para atender a demanda sempre crescente por mais dinheiro. No discurso, a caridade é
essencial na construção da espiritualidade da igreja e para o testemunho do amor de
Jesus Cristo, porém, a necessidade de mais dinheiro não dá tempo para se preocupar
com o maior dos testemunhos do cristão: o amor. O pobre continua sem ter quem o
defenda, pois, o pobre nunca é uma pessoa, é um grupo social que demanda uma grande
soma de dinheiro e de pessoas qualificadas para elaborar e executar um projeto social;
isso afaga satisfatoriamente bem a consciência de cada cristão que vai à igreja. Como a
pessoa nem o caixa de sua igreja têm essa soma financeira, nem ela nem a comunidade
se sentem constrangidos com a pobreza ao seu redor e mesmo na porta do templo. Na
maior parte das vezes, o máximo que se tem feito tem sido a distribuição de cestas
básicas para pessoas desconhecidas que moram num bairro distante. De um modo geral,
o pobre no sentido que acabei de abordar, não é bem-vindo às igrejas. Na melhor das
hipóteses, ele é aceito na comunidade de forma que se sinta razoavelmente acolhido.
35. 35
CAPÍTULO 2
O POBRE NA TEOLOGIA WESLEYANA
―Estou decidido a ser um cristão bíblico completo. Há alguém
disposto a seguir-me nesse caminho?‖ (John Wesley)47
2.1 A Inglaterra do Século XVIII
No ano de 1764 o escocês James Watt inventou a máquina a vapor, uma das
invenções que mais revolucionaram a indústria inglesa. As consequências dessa
magnífica invenção, por um lado, possibilitou a produção industrial em larga escala
tornando a Inglaterra o maior produtor e exportador de produtos industrializados e, por
outro lado, trouxe drásticas consequências sociais para as famílias pobres do país. Essa
tecnologia possibilitou a modernização total das máquinas industriais. Em 1767 foi
47
BARBOSA, Jose Carlos. Adoro a Sabedoria de Deus: Itinerário de João Wesley. Piracicaba,SP:
UNIMEP, 2002. p.194.
36. 36
inventado o tear de 16 fusos para substituir o tear doméstico manual de um fuso que, até
então, garantia a sobrevivência de centenas de famílias; por sua vez, esse tear foi, em
1785, aperfeiçoado para funcionar também a vapor. O mesmo ocorreu com a máquina
de fiar.
A razão para tanta modernização em espaço tão curto de tempo foi a redução do
preço da mão de obra e o aumento da produção, consequentemente, o aumento dos
lucros. Para funcionar essas máquinas era necessária grande quantidade de carvão que
era retirada do subsolo por um enorme batalhão de mineiros que trabalhavam e viviam
em condições miseráveis, tanto dentro da mina quanto fora dela. Outro grande batalhão
de trabalhadores em iguais condições vendia sua mão de obra para alimentar a indústria
de siderurgia extraindo o minério que alimentava a espetacular produção de ferro e aço
que dava suporte à indústria de máquinas de todo tipo, inclusive de locomotivas e
trilhos para elas rodarem. Essa dianteira tecnológica colocou a Inglaterra no topo do
mercado mundial, inclusive sobre o brasileiro que, por força de acordos comerciais, foi
proibido de produzir qualquer tipo de máquina e obrigado a produzir grande quantidade
de algodão e exportar para aquele país e, em contrapartida, a comprar dele todos os
tipos de produtos que ele produzia. Essa foi a ―Revolução Industrial‖ inglesa.
O que poucos sabem é que para ela ser bem sucedida ela teve que nutrir-se dos
―escravos industriais‖ os trabalhadores que, por falta de opção, tiveram que abandonar o
campo e vender sua mão-de-obra pelo preço que os industriais se dispunham a pagar em
razão da enorme quantidade de pessoas miseráveis no país. Era o capitalismo
assumindo o controle do mundo e estabelecendo uma nova escala de valores, reduzindo
o ser humano a mero produtor de lucros em favor daqueles que detém os ―meios de
produção‖.
2.2 John Wesley e o pobre
Ao ler a declaração de John Wesley acima citada, a primeira impressão que se
tem é que ele a fez imediatamente após a experiência do coração aquecido no dia 24 de
maio de 1738; entretanto, somos surpreendidos ao verificar que ele disse isto há um
ano e oito meses antes de seu falecimento e cinquenta e um anos após a experiência de
Aldersgate. Em um sermão baseado em Jeremias 8.22 ―Não há Bálsamo em Gileade?‖48
ele faz uma autocrítica a respeito de seu desempenho como cristão e como pregador e
48
BARBOSA, Jose Carlos. Adoro a Sabedoria de Deus: Itinerário de João Wesley. Piracicaba,SP:
UNIMEP, 2002. p.194
37. 37
líder espiritual frente à enorme demanda por mais serviço a favor dos pobres. Ele se
declara constrangido por não ter feito o suficiente ―Muitos irmãos nossos, amados de
Deus, não tem comida, roupas, nem onde recostar a cabeça... Estou desconcertado e não
sei o que fazer. Poderia ter feito muita coisa‖.49 Ele lamenta não ter sido mais enérgico
em suas exortações aos ―que acumulam dinheiro e não dão tudo que podem‖ 50 para
aliviar o sofrimento dos pobres da própria comunidade de fé; lembra que os cristãos da
igreja primitiva de Jerusalém conseguiu fazer isso, e garante que ― temos provas
suficientes de que, ainda hoje, isso pode ser feito‖51 para endossar essa afirmação
Wesley recorre ao exemplo do quakers e dos moravianos. Ele reafirma sua
incondicional decisão de não abrir mão da bíblia como regra suficiente de prática e
então afirma a sua decisão seguida pelo desafio que transcrevi acima. A ênfase desse
sermão é a responsabilidade do cristianismo em ―oferecer remédio à corrupção da
humanidade‖52 e o seu fracasso histórico em cumprir esse papel.
Salvo melhor juízo, John Wesley foi o líder cristão cuja liderança e testemunho
pessoal mais produziram resultados no contexto da realidade de seu tempo; mesmo
assim, ele se sentiu frustrado por não ter conseguido fazer mais. Apesar de seu
impressionante currículo, ele acreditava que poderia ter se esforçado um pouco mais, e
reafirmou sua escolha em favor do amor aos sofredores de sua geração. Esse
testemunho seguido pelo desafio de imitá-lo em sua escolha deve nos causar
desconforto na condição de cristãos, anônimos ou de líderes, clérigos ou leigos, dos
mesmos. A propósito, desconforto em favor do crescimento pessoal nunca deve ser
considerado um fardo por demais pesado. Vamos aprofundar um pouco nossa pesquisa
para vermos o que mais podemos aprender com o fundador do metodismo e como ele
pode nos desafiar hoje, 221 anos após esse sermão.
O diário de Wesley é uma fonte muito rica de informações sobre o seu
procedimento em relação à demanda diária por caridade, tanto em sua condição de
pessoa cristã quanto na de líder de uma grande comunidade igualmente cristã. Ele
registra no dia 15 de outubro de 1759, a sua reação ao saber da situação de penúria dos
―Mais de mil e cem‖ prisioneiros franceses. Ele relata o que viu:
49
BARBOSA, Jose Carlos. Adoro a Sabedoria de Deus: Itinerário de João Wesley. Piracicaba,SP:
UNIMEP, 2002. p.194
50
Idem.
51
Idem.
52
Idem.
38. 38
Estavam reunidos num pequeno espaço, sem cousa alguma em que
deitar, senão colchões de palha, e sem cobertores; para se cobrirem só
tinham alguns trapos, quer de dia quer de noite, portanto, morreram
como se fossem ovelhas atacadas de morrinha. Fiquei horrorizado.53
Naquele mesmo dia, após uma pregação à tarde,
Levantou-se uma coleta que rendeu dezoito libras, e no dia seguinte
chegou a vinte e quatro. Com esta quantia compramos roupa de cama,
cobertores, e pano, que foi convertido em camisas e calças;
compraram-se também algumas dúzias de meias, e tudo isto foi
distribuído entre aqueles mais necessitados. Logo depois a
congregação de Bristol mandou um grande número de colchões e
cobertores; e não demorou para chegar de Londres outras
contribuições; e ainda mais; vieram contribuições de várias partes do
reino. Portanto, creio que daqui em diante os soldados serão mais bem
servidos.54
Neste caso me chama a atenção a sua capacidade de aglutinar forças
convergentes para acudir uma emergência que requeria muita caridade. Parece que seu
sermão na tarde daquele dia ecoou veementemente por ―várias partes do reino‖
produzindo uma resposta não menos intensa.
Na condição de pessoa cristã comum, Wesley lidava com o cotidiano pobre com
misericórdia. Ele registra um fato pitoresco no mesmo diário no dia 05 de fevereiro de
1766. Ele foi abordado por um homem, aparentemente desconhecido, faminto e longe
de casa. Ele relata assim:
Um homem, que tinha sido defraudado de grande fortuna, me visitou;
ele estava sem pão. Desejava dar-lhe roupa e mandá-lo para sua terra,
mas eu não tinha o dinheiro suficiente. Contudo, pedi que voltasse
dentro de uma hora. Ele o fez. Mas antes de ele voltar, certo homem
de quem eu não esperava cousa alguma, me deu vinte e um xelins;
portanto, dei ordens para que o necessitado fosse vestido e
encaminhado para sua casa em Dublin.55
Esse procedimento dele nos soa hoje como uma inocência infantil, pois, se
déssemos ouvidos a todas as pessoas que nos abordam todos os dias contando uma
história parecida, nem todos os nossos recursos seriam suficientes; até certo ponto, nem
53
BUYERS, Paul Eugene. Trechos do Diário de João Wesley. São Paulo: Junta Geral de Educação
Cristã, 1965. p.108-112.
54
Ibid., p.109.
55
Ibid., p.109.
39. 39
é conveniente dar atenção a todos que nos fazem esse tipo de abordagem. Trataremos
desse tema no próximo capítulo.
O mesmo diário, no dia 22 de março de 1744, relata resumidamente uma
prestação de contas à Sociedade:
De contribuições e coletas arrecadamos a quantia de cento e setenta
Libras, importância que foi gasta em socorrer com roupas a mais de
trezentos e trinta pessoas; ficaram ainda trinta ou quarenta sem
auxílio, e também uma dívida pela roupa já distribuída. No dia
seguinte, sendo sexta-feira, levantamos uma coleta que rendeu cerca
de vinte e seis libras; tal tesouro, ao menos, não será atacado pela
ferrugem ou traça, nem pelos ladrões.56
No dia 10 de março de 1765, outras mobilizações são mencionadas em favor dos
tecelões desempregados; elas levantaram quarenta Libras, e uma coleta num culto da
Sociedade que levantou catorze Libras em favor dos necessitados da comunidade de fé.
Em 26 de setembro de 1783 ele menciona uma coleta de quarenta Libras para os irmãos
de uma comunidade. Nessa ocasião ―Depois de indagar, quais eram as pessoas mais
necessitadas, eu as visitei de casa em casa‖57 e no dia 04 de janeiro de 1785, portanto,
ao oitenta e três anos de idade, ele registra uma atitude, que poderíamos chamar de
radical, ao sair de casa em casa pedindo ajuda financeira para angariar duzentas libras
para compra de carvão e comida para os pobres da Sociedade ―agüentei bem até sábado
à tarde, quando caí de desinteira, que piorava de hora em hora‖. 58 Aqui vemos uma
disposição para fazer o bem que nos chega a ser constrangedora. Em 5 de novembro de
1771 ele descreve outro episódio que muito demonstra sua forma de interpretar as
mínimas oportunidades de fazer o bem:
Enquanto andava a pé, um pobre homem me alcançou; parecia estar
profundamente angustiado. Ele me disse que devia a sua senhoria
vinte xelins pelo aluguel da casa, e por causa dessa dívida fora
despejado; tinha procurado os seus parentes, mas estes não se
dispunham ajudá-lo. Quando eu lhe dei vinte e um xelins, ajoelhou-se
aos meus pés e orou por mim; então gritou: ‗Oh! Hoje terei uma casa,
terei uma casa para cobrir a minha cabeça‘. Talvez Deus respondesse
à oração daquele pobre homem pelo atraso do meu carro que atolou.59
56
BUYERS, Paul Eugene. Trechos do Diário de João Wesley. São Paulo: Junta Geral de Educação
Cristã, 1965. p.108.
57
Ibid., p.111.
58
Ibid., p.112.
59
Ibid., p.178.
40. 40
A pesquisa de Barbosa sobre as preocupações e as iniciativas de Wesley em
favor dos necessitados, relata iniciativas sociais interessantes para amenizar a pobreza
dos necessitados e dar-lhes uma oportunidade para construir uma vida mais digna. É
relatada a iniciativa de formação de um fundo de empréstimo financeiro aos pobres,
inclusive aberto a não metodistas, isso em 1747. A verba inicial (50 libras) foi coletada
por ele entre amigos de Londres. Nesse mesmo ano, os empréstimos beneficiaram mais
250 pessoas. A verba para iniciar o fundo foi levantada em Londres entre amigos de
Wesley que, juntos, contribuíram com cinquenta libras. Inicialmente, os empréstimos
eram de uma libra que deveria ser paga em, no máximo, três meses. O banco popular foi
tão bem sucedido que consta que em 1772 o valor emprestado havia subido a cinco
libras.60 Barbosa menciona também a profunda indignação de Wesley ao presenciar
episódios que ele chama de ―o mais vivo retrato da miséria‖61 que provoca nele muita
preocupação em oferecer respostas que possibilitasse mudanças duradouras ao invés de
projetos precários e provisórios de solidariedade. Também é mencionado um apelo à
Sociedade para que cada um contribuísse com um penny por semana a um fundo de
auxílio aos pobres e doentes e para que trouxessem também roupas para serem
repartidas entre os pobres; também estocou remédios em três principais casas de
pregação e, auxiliado por um cirurgião e um farmacêutico, organizou um serviço de
distribuição de remédios aos pobres instalando na Fundição uma clínica médica. Entre
outras medidas de serviço social Renders cita uma pequena indústria de tecelagem para
mulheres pobres desejosas de aprender esse ofício, instalada na Fundição nas horas
vagas daquele centro do metodismo em Londres. O algodão era pré-pago pela
Sociedade.62
2.3 A influência de Wesley na sociedade inglesa após sua
morte
Com a morte da geração de J. Wesley a, agora Igreja Metodista, iniciou, por um
lado, um período que veio a ser chamado de ―a era de mogno‖ em razão de sua
estabilidade por acomodação entre a elite e, por outro lado, de grande decadência em
60
BARBOSA, Jose Carlos Adoro a Sabedoria de Deus. Piracicaba, SP: UNIMEP, 2002. p.34.
61
Ibid., p.33.
62
RENDERS. Helmut.Andar como Cristo andou: A salvação social em John Wesley. São Bernardo do
Campo: Editeo, 2010. p.148.
41. 41
vigor evangélico; essa fase estendeu-se por toda a primeira metade do século 19,
criando uma situação que levou-a à sua primeira cisão, já em 1811, da qual originou-se
a ―Primitive Methodists‖ (Igreja Metodista Primitiva) como uma tentativa de resgatar o
metodismo wesleyano. Até o ano de 1932 quando ela voltou para o seio da igreja-mãe
ela seguiu quase fielmente o exemplo de Wesley espalhando vigorosamente um tipo de
santificação que ficou conhecido como ―santificação prática‖.
A Igreja Metodista Primitiva respondeu à sua época fornecendo uma grande
quantidade de pregadores leigos (cerca de 10% de seus membros homens e mulheres)
vigorosamente comprometidos com a situação social rural do sul da Inglaterra que
acabou, conforme pesquisa do historiador Reg Groves, influenciando o sindicalismo em
todo o país, muitas vezes, apesar da oposição das paróquias anglicanas. Segundo esse
historiador, ―Das capelas dos povoados brilhou uma luz na sujeira, no desamparo, no
analfabetismo, que serviu para iluminar as mentes e corações dos trabalhadores‖; 63 ―Nas
―capelas‖ o povo aprendeu o auto-respeito, o respeito diante de outras pessoas, o auto-
governo, a auto-confiança. Aprendeu a ler e escrever, falar, conversar e liderar
grupos‖64. O sociólogo marxista Eric Hosbsbawm chamou esse movimento de
―democracia das capelas‖ liderada pelos pregadores leigos da Primitive Methodists.
Alguns desses pregadores que se tornaram também líderes sindicais não podem ficar
ausentes da presente pesquisa.
Em 1833 Jorge Loveless, cansado dos acordos quebrados por parte dos
fazendeiros e, assessorado por sindicalistas de Londres, fundou a ―Sociedade de
Trabalhadores Rurais de Tolpudlle‖ (centro sul da Inglaterra) à qual agregaram cerca
de 40 trabalhadores logo nas primeiras semanas. No ano seguinte seis líderes desse
sindicado foram presos e conduzidos acorrentados a Dorchester. Depois de um
julgamento cuidadosamente elaborado e executado, eles foram deportados para a
Austrália; Lovelless foi para a Tasmânia. Após muita pressão popular, eles foram
repatriados em março de 1836.
Vamos ver mais de perto quem eram esses homens:
Jorge Lovelles era conhecido por sua eloquência como pregador
metodista, bem como por sua honestidade, nesse ofício, percorreu
incansavelmente a sua região sob sol ou chuva. Era casado e pai de 03
63
JAHREISS, Ulricch. Coletânia Nordestina Vida e Missão. Estudos sobre o metodismo. REMNE, 06,
1996. p. 84.
64
Idem.
42. 42
crianças. Ainda na prisão em Dorchester compôs um poema cantado com
musica da igreja, este se tornou o ―Hino de Liberdade‖ do Sindicalismo.
Levou mais de um ano para tomar conhecimento de sua libertação.
James Lovelless, irmão de Jorge, 25 anos, casado e pai de 02 crianças,
igualmente ardoroso pregador.
Tomas Stanfield, 44 anos, o mais velho de 06 irmãos, casado com uma
irmã dos Lovelless, 06 filhos, igualmente pregador.
João Stanfield, filho de Tomas, 22 anos, metodista ativo, não
necessariamente pregador.
James Bride, 20 anos, sem qualquer convicção cristã, por influência do
caráter de Tomas com quem trabalhou na Austrália como ―escravo‖ na
deportação, converteu-se após voltar à Inglaterra, casou-se com a filha de
Tomas e depois emigrou para o Canadá onde foi frutífero
superintendente de escola dominical.
James Hammett, 22 anos, casado, pai de uma pequena criança. Foi
deportado injustamente permanecendo calado por todo o processo de
julgamento, pois, fora identificado por engano no lugar de seu irmão
João, suportou calmamente os sofrimentos da deportação para proteger o
irmão.
Por meio de um ―fundo‖ do sindicato, todos eles receberam terras para lavrar.
Mais tarde, com exceção de James, todos emigraram com suas famílias para o Canadá
onde permaneceram como metodistas frutíferos. Lovelles construiu uma capela que
chamou de Siloa: água que cura. João foi eleito prefeito de sua cidade. Estes homens
ficaram na história conhecidos como os ―Mártires de Tolpudlle‖ e a memória deles está
preservada pelo museu que leva este nome.
Conforme Ulrich, a visão dos Mártires de Tolpudlle ―Que o ser humano seja visto
na sua totalidade, e que, conforme a vontade de Deus, seja procurado o bem-estar de
todos e todas, na alma, no corpo e o espírito‖ continuou inspirando as próximas
gerações que continuaram a mesma luta sindical ao mesmo tempo que exerceram suas
funções de pregadores leigos. Alguns deles, igualmente, merecem ser mencionados: