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CARTA A
                                           TITO
                               COMENTÁRIO ESPERANÇA
                                                              autor



                                                      Hans Bürki


                                    Editora Evangélica Esperança

Copyright © 2007, Editora Evangélica Esperança
Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela:
Editora Evangélica Esperança
Rua Aviador Vicente Wolski, 353
82510-420 Curitiba-PR
E-mail: eee@esperanca-editora.com.br
Internet: www.esperanca-editora.com.br
Editora afiliada à ASEC e a CBL
Título do original em alemão
Der zweite Brief des Paulus an Timotheus, die Brief an Titus und an Philemon
Copyright © 1975 R. Brockhaus Verlag

                                   Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)
                                           (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
       Bürki, Hans
       Cartas aos Tessalonicenses, Timóteo, Tito e Filemom / Werner de Boor, Hans Bürki / tradução Werner Fuchs --
       Curitiba, PR : Editora Evangélica Esperança, 2007.
       Título original: Der Briefe des Paulus an die Thessalonicher; Der erste Brief des Paulus an Thimotheus; Der
       zweite Brief des Paulus an Thimotheus, die Briefe an Titus und an Philemon.
       ISBN 978-85-86249-97-6 Capa dura
       ISBN      978-85-86249-98-3        Capa dura
       1. Bíblia. N.T. Crítica e interpretação
       I. Título.
       06-2419 CDD-225.6
                                                Índice para catálogo sistemático:
                                         1. Novo Testamento : Interpretação e crítica 225.6
É proibida a reprodução total ou parcial sem permissão escrita dos editores.
O texto bíblico utilizado, com a devida autorização, é a versão Almeida Revista e Atualizada ( RA) 2ª edição, da Sociedade Bíblica
do Brasil, São Paulo, 1993.
Sumário
   ORIENTAÇÕES PARA O USUÁRIO DA SÉRIE DE COMENTÁRIOS
   ÍNDICE DE ABREVIATURAS
       Questões Introdutórias
       O proêmio da carta – Tt 1.1-4
        1. Remetente – Tt 1.1a
        2. Fundamento e alvo do serviço apostólico (primeiro hino) – Tt 1.1b-3
        3. Destinatário – Tt 1.4a
        4. Saudação – Tt 1.4 b
       O Texto da carta – Tt 1.5-3.11
        I. Os verdadeiros servos da igreja e sua luta – Tt 1.5-16
          A. O servo como exemplo da igreja – Tt 1.5-9
            1. Toda igreja precisa de presbíteros – Tt 1.5
            2. A vida pessoal dos presbíteros e líderes – Tt 1.6-8
            3. Seu serviço à palavra – Tt 1.9
          B. A luta contra os hereges – Tt 1.10-16
            1. Deterioração no povo e na igreja – Tt 1.10-12
            2. Ordenar um basta à influência dos falsos mestres – Tt 1.13-16
        II. A educação da igreja por meio da graça – Tt 2.1-15
          A. Exortação para uma conduta digna – Tt 2.1-10
            1. Homens e mulheres idosos como exemplos – Tt 2.1-3
            2. O comportamento das mulheres jovens – Tt 2.4s
            3. Tito como exemplo dos homens jovens – Tt 2.6-8
            4. O testemunho dos escravos – Tt 2.9s
          B. Jesus é a graça salvífica de Deus (2º hino) – Tt 2.11-15
        III. Conseqüências práticas da comunhão na fé – Tt 3.1-11
          A. A relação com o Estado e a Sociedade – Tt 3.1s
          B. Viver da misericórdia de Deus (3º hino) – Tt 3.3-7
            1. O passado da igreja – Tt 3.3
            2. A obra do renascimento no Espírito – Tt 3.4-7
          C. Novas exortações – Tt 3.8-11
            1. Fé e obras formam uma unidade – Tt 3.8
            2. Advertência contra brigas e falsas doutrinas – Tt 3.9-11
       O final da carta – Tt 3.12-15
        1. Incumbências específicas – Tt 3.12-14
        2. Saudações e voto de bênção – Tt 3.15
   BIBLIOGRAFIA

                                                 ORIENTAÇÕES
                                    PARA O USUÁRIO DA SÉRIE DE COMENTÁRIOS

Com referência ao texto bíblico:
     O texto de Tito está impresso em negrito. Repetições do trecho que está sendo tratado também estão impressas em
  negrito. O itálico só foi usado para esclarecer dando ênfase.

Com referência aos textos paralelos:
     A citação abundante de textos bíblicos paralelos é intencional. Para o seu registro foi reservada uma coluna à
  margem.

Com referência aos manuscritos:
     Para as variantes mais importantes do texto, geralmente identificadas nas notas,foram usados os sinais abaixo, que
  carecem de explicação:
TM       O texto hebraico do Antigo Testamento (o assim-chamado “Texto Massorético”). A transmissão exata do texto
             do Antigo Testamento era muito importante para os estudiosos judaicos. A partir do século II ela tornou-se
             uma ciência específica nas assim-chamadas “escolas massoréticas” (massora = transmissão).
             Originalmente o texto hebraico consistia só de consoantes; a partir do século VI os massoretas
             acrescentaram sinais vocálicos na forma de pontos e traços debaixo da palavra.

     Manuscritos importantes do texto massorético:
     Manuscrito: redigido em: pela escola de:
     Códice do Cairo (C) 895 Moisés ben Asher
     Códice da sinagoga de Aleppo depois de 900          Moisés ben Asher
     (provavelmente destruído por um incêndio)
     Códice de São Petersburgo 1008 Moisés ben Asher
     Códice nº 3 de Erfurt século XI Ben Naftali
     Códice de Reuchlin 1105 Ben Naftali

Qumran        Os textos de Qumran. Os manuscritos encontrados em Qumran, em sua maioria, datam de antes de Cristo,
             portanto, são mais ou menos 1.000 anos mais antigos que os mencionados acima. Não existem entre eles
             textos completos do AT. Manuscritos importantes são:
     •    O texto de Isaías
     •    O comentário de Habacuque

Sam       O Pentateuco samaritano. Os samaritanos preservaram os cinco livros da lei, em hebraico antigo. Seus
             manuscritos remontam a um texto muito antigo.

Targum         A tradução oral do texto hebraico da Bíblia para o aramaico, no culto na sinagoga (dado que muitos judeus
               já não entendiam mais hebraico), levou no século III ao registro escrito no assim-chamado Targum (=
               tradução). Estas traduções são, muitas vezes, bastante livres e precisam ser usadas com cuidado.

LXX        A tradução mais antiga do AT para o grego é chamada de “Septuaginta” (LXX = setenta), por causa da história
              tradicional da sua origem. Diz a história que ela foi traduzida por 72 estudiosos judeus por ordem do rei
              Ptolomeu Filadelfo, em 200 a.C., em Alexandria. A LXX é uma coletânea de traduções. Os trechos mais
              antigos, que incluem o Pentateuco, datam do século III a.C., provavelmente do Egito. Como esta tradução
              remonta a um texto hebraico anterior ao dos massoretas, ela é um auxílio importante para todos os
              trabalhos no texto do AT.

Outras      Ocasionalmente recorre-se a outras traduções do AT. Estas têm menos valor para a pesquisa de texto, por
              serem ou traduções do grego (provavelmente da LXX), ou pelo menos fortemente influenciadas por ela (o
              que é o caso da Vulgata):
     •    Latina antiga por volta do ano 150
     •    Vulgata (tradução latina de Jerônimo) a partir do ano 390
     •    Copta séculos III-IV
     •    Etíope século IV

                                                 ÍNDICE DE ABREVIATURAS

                                                    I. Abreviaturas gerais
AT   Antigo Testamento
cf  confira
col  coluna
gr  Grego
hbr  Hebraico
km   Quilômetros
lat Latim
LXX   Septuaginta
NT   Novo Testamento
opr  Observações preliminares
par Texto paralelo
p. ex.    por exemplo
pág. página(s)
qi     Questões introdutórias
TM      Texto massorético
v versículo(s)

                                                II. Abreviaturas de livros
Bl-De  Grammatik des ntst Griechisch, 9ª edição, 1954. Citado pelo número do parágrafo
CE   Comentário Esperança
Ki-ThW Kittel: Theologisches Wörterbuch
NTD Das Neue Testament Deutsch
Radm   Neutestl. Grammatik, 1925, 2ª edição, Rademacher
St-B Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, vol. I-IV, H. L. Strack, P. Billerbeck
W-B Griechisch-deutsches Wörterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der frühchristlichen Literatur, Walter
           Bauer, editado por Kurt e Barbara Aland

                                     III. Abreviaturas das versões bíblicas usadas
   O texto adotado neste comentário é a tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil, 2ª ed.
(RA), SBB, São Paulo, 1997. Quando se fez uso de outras versões, elas são assim identificadas:
BLH    Bíblia na Linguagem de Hoje (1998)
BJ    Bíblia de Jerusalém (1987)
BV    Bíblia Viva (1981)
NVI    Nova Versão Internacional (1994)
RC    Almeida, Revista e Corrigida (1998)
TEB    Tradução Ecumênica da Bíblia (1995)
VFL    Versão Fácil de Ler (1999)

                                          IV. Abreviaturas dos livros da Bíblia
                                                   ANTIGO TESTAMENTO
Gn Gênesis
Êx Êxodo
Lv Levítico
Nm Números
Dt Deuteronômio
Js Josué
Jz Juízes
Rt Rute
1Sm 1Samuel
2Sm 2Samuel
1Rs 1Reis
2Rs 2Reis
1Cr 1Crônicas
2Cr 2Crônicas
Ed Esdras
Ne Neemias
Et Ester
Jó Jó
Sl Salmos
Pv Provérbios
Ec Eclesiastes
Ct Cântico dos Cânticos
Is Isaías
Jr Jeremias
Lm      Lamentações de Jeremias
Ez     Ezequiel
Dn      Daniel
Os      Oséias
Jl    Joel
Am       Amós
Ob      Obadias
Jn     Jonas
Mq      Miquéias
Na      Naum
Hc      Habacuque
Sf     Sofonias
Ag      Ageu
Zc     Zacarias
Ml      Malaquias
                                                       NOVO TESTAMENTO
Mt     Mateus
Mc     Marcos
Lc    Lucas
Jo    João
At    Atos
Rm      Romanos
1Co     1Coríntios
2Co     2Coríntios
Gl    Gálatas
Ef    Efésios
Fp    Filipenses
Cl    Colossenses
1Te     1Tessalonicenses
2Te     2Tessalonicenses
1Tm      1Timóteo
2Tm      2Timóteo
Tt    Tito
Fm     Filemom
Hb     Hebreus
Tg     Tiago
1Pe     1Pedro
2Pe     2Pedro
1Jo    1João
2Jo    2João
3Jo    3João
Jd    Judas
Ap     Apocalipse

                                                 OUTRAS ABREVIATURAS
   O final do livro contém indicações de literatura.
(A 25)    Apêndice (sempre com número)
                  Traduções da Bíblia (sempre entre parênteses, quando não especificada, tradução própria ou Revista de Almeida
(A) L. Albrecht
(E) Elberfeld
(J)   Bíblia de Jerusalém
(NVI)    Nova Versão Internacional
(TEB) Tradução Ecumênica Brasileira (Loyola)
(W)    U. Wilckens
(QI 31) Questões introdutórias (sempre com número, referente ao respectivo item)
Past   cartas pastorais
ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche
ZNW     Zeitschrift für neutestamentliche Wissenschaft und die Kunde der älteren Kirche
                 [ver: Novo Dicionário Internacional de Teologia do NT (ed. Gordon Chown), Vida Nova.]




           QUESTÕES INTRODUTÓRIAS
    1) As considerações válidas para todas as três cartas pastorais (past) foram apresentadas nas Questões Introdutórias
prévias ao comentário de 1Tm. A seguir acrescentam-se apenas as circunstâncias especiais da carta a Tito.
    Se for verdade que um falsário (pseudo-Paulo) “tenha aceitado com cega credulidade” os dados de Atos dos
Apóstolos, será preciso indagar por que ele nesse caso teria inventado ainda uma carta a Tito, cujo nome nem mesmo
é citado em At. E por que um pseudo-Paulo introduziria a ilha de Creta, que não consta em lugar algum dos planos e
relatos de viagem de Paulo? C. Maurer (uma variante textual elucida a história do surgimento das cartas pastorais; in:
ThZ, ano 3, 1947, p. 312s) tenta responder a isso desta forma: “Onde permaneceu Tito desde o concílio dos apóstolos,
depois do qual na verdade já se passaram diversos anos? Ninguém sabe. Onde nosso autor o deixaria esperando até
que o chamado de Paulo o alcançasse? Com certeza o melhor seria em uma região da qual se sabe o menos possível e
à qual ninguém se dirige tão rapidamente a fim de conferir as informações. Essa é precisamente (!) a ilha de Creta, que
para os contemporâneos da época era a terra dos ciganos, mentirosos, animais ferozes e ventres preguiçosos (cf. Tt
1.12s)! Creta não se situava mais no mundo com o qual os cristãos daquela época conviviam.” Em uma nota de rodapé
Maurer menciona que exceto em At 2.11; 27.7,12s,21;Tt 1.5,12 Creta não é citada em nenhum outro texto da literatura
cristã primitiva. E como um pseudo-Paulo explicaria que já não existem igrejas cristãs em Creta, depois que Paulo e
Tito supostamente exerceram ali a missão? Ele inventa os insultos aos cretenses por meio do apóstolo, pelo que se
pretende tornar compreensível quanto teriam resistido ao evangelho.
    Outro exegeta opina que em 1Tm o pseudo-Paulo teria pressuposto uma igreja solida-mente organizada, para poder
expor os deveres de um dirigente da igreja. Na carta a Tito ele teria inventado uma situação em que ainda não havia
igrejas consolidadas, para que pudesse narrar de modo palpável as tarefas de um missionário. Ainda outro
comentarista defende a idéia de que o pseudo-Paulo teria a intenção de glorificar a Paulo, inflacionando o número das
igrejas fundadas por ele com aquelas da ilha de Creta. Chipre já teria sido reivindicada por Barnabé.
    Contemplemos essas tentativas em detalhe, e veremos a que ponto somos levados quando postulamos de antemão
que as explicações dadas pelo próprio texto da carta são camuflagem, invenção, construção.
    2) Às tentativas de explicação acima referidas e outras, que têm como premissa um pseudo-Paulo, cabe responder o
seguinte: a ilha Creta, de 260 km de comprimento, não apenas era muito conhecida na Antigüidade, mas além do NT
também foi mencionada no AT como terra de origem dos filisteus, de nome Caftor (Dt 2.23; Jr 47.4; Am 9.7).
    A passagem de At 2.11 possui grande relevância, porque atesta que Lucas sabe da existência de judeus em Creta
que presenciaram o milagre de Pentecostes em Jerusalém. E com certeza é por isso que Dibelius chama atenção para o
fato de que Lucas também teria mencionado a evangelização de Creta por meio de Paulo e Tito se tivesse acontecido
antes de 63 (fechamento de At) (p. 115). Contudo é evidente que a história da presença de judeus de todos os países
vizinhos não apenas visa dizer que eles ouviram os apóstolos falarem em seus próprios idiomas, mas que aqueles que
passaram a crer em Jesus como o Messias disseminaram o evangelho nos países dos quais vieram (cf. At 2.12 com
2.37,41). Entre os três mil acrescentados à igreja de Jesus no Pentecostes com certeza também havia pessoas dos
países e idiomas relacionados em At 2.9-11. Por isso é possível que muito antes da visita do apóstolo surgissem em
Creta pequenas células domésticas de discípulos de Jesus: contudo a influência judaísta poderia ter partido de cristãos
judeus insuficientemente instruídos, o que mais tarde pode ter dado origem às doutrinas errôneas (Tt 3.9; 1.14!).
    Também a segunda menção da ilha em At 27.7,21 merece uma análise mais detida. Creta situa-se em um ponto de
cruzamento entre Ásia, África e Europa. A palavra “sincretismo” vem dos cretenses. Em Creta cada uma das
numerosas cidades queria ser o mais autônoma possível em relação a todas as demais. Somente quando estava em jogo
a defesa contra um inimigo comum, os cretenses, que preferiam a independência, se uniam, tornando-se assim syn-
cretenses (syn-cretismo). Isso, porém, também podia ser entendido de forma figurada, a saber, que nessa ilha
confluíam toda sorte de cultos, religiões, filosofias e linhas de pensamento.
    Os numerosos portos de boa qualidade ofereciam uma bem-vinda proteção também pa-ra paradas mais longas no
inverno: por exemplo, certa feita Paulo havia sugerido à tripulação do navio que permanecessem em Creta, até que as
tempestades passassem (At 27.21). Evidentemente, por causa das numerosas viagens, ele entendia do assunto! Durante
os longos meses de inverno, em que toda a navegação estava paralisada, evangelistas itinerantes tinham excelente
oportunidade de entregar sua mensagem. A ilha não era tão desconhecida quanto Maurer expõe nem para os judeus
nem para os cristãos. Além do mais, o pseudo-Paulo introduziria não somente Creta como novidade no programa
missionário de Paulo, mas também outras regiões geográficas que até o momento ainda não haviam sido mencionadas
no NT e que de forma alguma eram necessárias para a credibilidade das past, podendo até mesmo ameaçá-la: Gália
(2Tm 4.10), Dalmácia, para onde Tito viaja a partir de Roma (2Tm 4.10), e Nicópolis, onde Paulo planeja passar o
inverno (Tt 3.12; cf. a prática paulina da hibernação em 1Co 16.6).
    Mais plausível é de fato considerar esses novos nomes e regiões geográficas (inclusive a Espanha) como as novas
etapas de viagem que Paulo pretendia alcançar depois de libertado da prisão, conforme sua esperança, seus planos e
seu princípio de, na medida do possível, explorar territórios novos em que o nome de Jesus ainda ou praticamente não
tivesse sido proclamado (Rm 15.19-23; 2Co 10.16).
    Justamente a epístola a Tito é escrita de forma tão objetiva, sóbria e sucinta (como uma espécie de síntese de 1Tm)
que dela não se pode depreender nem uma glorificação do apóstolo nem uma tentativa de aumentar o número de
igrejas fundadas por ele. Em 2Tm 4.7 Paulo não arrola quantas ou quais igrejas fundou, algo que ele sem dúvida faz
em 2Co 11.23-33. A situação da igreja em Creta assinala uma duração mais breve e quantidade menor de igrejas de
Jesus consolidadas. Contudo inventar uma situação dessas não bastaria para justificar a redação da carta, já que para
isso ela possui excessiva semelhança com 1Tm. A apresentação mais concisa, porém, aponta para uma conjuntura
diferente: um colaborador mais independente e autônomo, ao qual Paulo precisa comunicar de forma resumida e
praticamente impessoal apenas as coisas mais importantes, que pouco antes havia escrito de forma mais
pormenorizada e pastoralmente cuidadosa a Timóteo. Aquilo que outras cartas paulinas contam a respeito de Tito
combina muito bem com a peculiaridade desta carta dirigida a ele. Não há necessidade de construir uma explicação.
    3) Quem é Tito? O nome Tito é amplamente difundido na Antigüidade. Há um cônsul romano conhecido por esse
nome. Tito é não-judeu, ou seja, “grego”, o que não quer dizer que seja oriundo da Grécia (Gl 2.3).
    Alguns comentaristas conjeturam que ele nasceu em Antioquia. Como Timóteo, também Tito foi conduzido até
Jesus pela proclamação do apóstolo. Por isso ele o chama de “autêntico filho” na fé (Tt 1.4; 1Tm 1.2), sendo que
Timóteo ainda é designado de “filho amado” (2Tm 1.2). Chama atenção que, diferentemente de Timóteo, Tito não
recebe títulos especiais. Paulo escreve sobre Tito: “Para mim Tito é companheiro (parceiro, cf. Fm 17!), para vós meu
colaborador, todos, porém, são irmãos, apóstolos das igrejas, um brilho de Cristo” (2Co 8.23). A Timóteo, no entanto,
ele chama de diácono (2Tm 4.5; cf. 1Tm 4.6!; 2Tm 2.24; Rm 11.13; 1Co 3.5; 2Co 3.6; 4.1; 5.18; 6.3s), evangelista
(2Tm 4.5), colaborador de Deus no evangelho (1Ts 3.2), homem de Deus (1Tm 6.11; 2Tm 3.17). Será que Timóteo
tinha necessidade dessas caracterizações para seu fortalecimento em função de sua atribulação, ou seriam elas
expressão de um singular reconhecimento por parte do apóstolo? Talvez ambas as possibilidades sejam reais.
    Também Tito goza de alta consideração por parte de Paulo (2Co 8.16-23). Ele já era colaborador do apóstolo antes
de Timóteo, acompanhando-o com Barnabé ao concílio dos apóstolos (Gl 2.1). Se por um lado Paulo realiza a
circuncisão de Timóteo para evitar escândalo desnecessário (At 16.3), por outro lado o apóstolo se nega
terminantemente a permitir a circuncisão de Tito (Gl 2.3). Isso pode ser devido a diversas circunstâncias: no caso de
Timóteo era uma questão da prática missionária (1Co 9.20), no caso de Tito estava em jogo uma controvérsia
doutrinária fundamental sobre aquilo que é necessário à salvação e o que não é.
    Tito era um homem de grande autonomia. Paulo posicionava-se diante dele mais como alguém que pede e menos
como alguém que emite orientações e ordens: “Mas graças a Deus, que pôs no coração de Tito a mesma solicitude por
amor de vós, porque atendeu ao nosso pedido (!)… partiu voluntariamente até vós…” (2Co 8.16s).
    Quando Timóteo, sensível e certamente mais jovem, não foi capaz de cumprir sua incumbência em Corinto,
interveio Tito, estável e zeloso. Com angústia Paulo aguardava o desfecho das negociações, que na seqüência foram
coroadas de pleno êxito (2Co 2.13; 7.6,13s). Os coríntios não receberam a Tito com desprezo (esse risco existia em
relação a Timóteo: 1Co 16.10s), mas pelo contrário, com temor e tremor! (2Co 7.15). Mas Tito não se mostrou duro
ou autoritário. Seu coração era propício aos coríntios. Somente assim ele conseguia atuar como mediador e pacificador
entre Paulo e a igreja.
    Paulo não precisa exortá-lo, como a Timóteo, a ser delicado para com os idosos (cf. Tt 2.2 com 1Tm 5.1!), nem
escrever que, como servo do Senhor, deve ser magnânimo diante dos hereges. Pelo contrário, cabe a Tito exortar as
igrejas para que usem de mansidão para com todos (cf. 2Tm 2.23s com Tt 3.2). Tito, mais equilibrado em seu íntimo,
com certeza pode se apresentar com serenidade diante de outros, solucionando assim confusões humanas muito
complicadas. Visto que provavelmente se portava com a mesma determinação de Apolo, ad-mirado em Corinto, a
igreja estava disposta a atendê-lo “com temor e tremor”, mais do que a Timóteo, e até mesmo o próprio Paulo, que
acerca de si escreve que também esteve entre eles “com temor e tremor” (1Co 2.3). Ademais, tampouco Apolo é
caracterizado por Paulo com títulos adicionais. Como Tito, é citado apenas pelo nome (1Co 1.12; 3.5s,22; 4.6) ou
como irmão (1Co 16.12). O simples som do nome permite concluir que ambos atuavam com grande autonomia como
apóstolos (cf. At 14.4,14; Rm 16.7 e QI 12 [antes do comentário a 1Tm]), sendo reconhecidos como tais.
    Contudo Tito permanece (mais que Apolo) dependente das instruções do apóstolo. Ainda que pedindo, Paulo o
compromete com algumas incumbências (cf. Tt 1.5; 3.12). Encarrega-o de organizar em Corinto a coleta em favor de
Jerusalém, o que constituía uma parte essencial da tarefa missionária a que Paulo estava submetido (cf. Rm 1.5; 15.15;
1Co 1.4; Rm 3.24; 5.20; 15.26; 1Co 16.1-4; 2Co 8.1-6,16,23; 12.18).
Acerca da viagem conjunta de Paulo e Tito para Creta obtemos somente a informação de que Paulo o deixou lá
para que, como negociador e administrador, levasse adiante e aprofundasse a obra iniciada (cf. Tt 1.5 com 2Co 8.6: o
que iniciou anteriormente será agora concluído por ele).
   A tradição da igreja noticia que Tito teria se tornado bispo, permanecendo solteiro e falecendo aos 94 anos de
idade.




                                  COMENTÁRIO
                                         O PROÊMIO DA CARTA – TT 1.1-4
       1 – Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de
            Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade,
       2 – na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir pro-meteu antes dos tempos
            eternos
       3 – e, em tempos devidos, manifestou a sua palavra mediante a pregação que me foi confiada
            por mandato de Deus, nosso Salvador,
       4 – a Tito, verdadeiro filho, segundo a fé comum, graça e paz, da parte de Deus Pai e de Cristo
            Jesus, nosso Salvador.

                                             1. Remetente – Tt 1.1a
          O cabeçalho da carta do escrito a Tito é mais longo que o de 1Tm e 2Tm e que o de todas as
       demais cartas de Paulo, exceto a carta aos Romanos. Os v. 1-3 trazem, em palavras concisas, a mais
       completa descrição do serviço apostólico, como Paulo o compreendia e praticava. O estilo da
       apresentação é praticamente o de um hino. Paulo começa com um louvor ao Deus eterno que chama
       pessoas mortais para seu serviço. Na explicação subseqüente analisaremos, pela ordem, cada uma das
       expressões dessa confissão apostólica:
   1   Paulo, servo de Deus: cf. Tg 1.1; única ocorrência em Paulo; de resto ele se intitula “servo do
       Messias”: Rm 1.1; Fp 1.1; Gl 1.10. O título “servo de Deus” é antigo, sendo usado somente para os
       profetas, para Abraão, Moisés, Davi: 2Sm 7.5; Sl 105.42; Dn 9.11. Por meio desse título (incomum
       para o NT) Paulo se posiciona ao lado dos patriarcas e profetas. Provavelmente ele o faz em vista dos
       cristãos judeus hereges (v. 10).
          Apóstolo do Messias Jesus: cf. 1Tm 1.1;2Tm 1.1! Esse título explica em que sentido Paulo é
       servo de Deus, a saber, como emissário de Jesus, o Messias.

                  2. Fundamento e alvo do serviço apostólico (primeiro hino) – Tt 1.1b-3
           Em consonância com a fé: o serviço do apóstolo está fundamentado naquilo que Deus fez e faz
       continuamente, razão pela qual a atuação de seu servo também está em correlação com aquilo que os
       discípulos do Senhor crêem e são. Porque eles mesmos não têm sua origem em Paulo, mas em Deus.
       O serviço do apóstolo é apenas realização e selo daquilo que Deus efetua. Aqui a fé deve ser
       entendida como “ser crente” (como em 1Tm 4.1; 2Tm 3.8) e não como doutrina da fé. Trata-se da fé
       pessoal dos eleitos de Deus. 2Tm 2.10 destaca Deus como aquele que elege. Como “servo de Deus”,
       “eleito” é título de honra para Israel (1Cr 16.13; Sl 105.6,43). No NT somente Paulo confere esse
       título aos membros da igreja (Rm 16.13; 8.33; Cl 3.12).
           Conhecimento da verdade: cf. 1Tm 2.4; 4.3; 2Tm 2.25; 3.7! Não está em jogo um conhecimento
       da verdade em si, mas um conhecimento que seja condizente com a beatitude! Aqui a beatitude
       contrasta com o v. 10. Quando a verdade salvadora de Deus não conduz à devoção, ela errou seu
       alvo. Está em jogo a verdadeira vida dos fiéis. O que não está fundamentado na verdade nem
       determinado por ela não é vida verdadeira. A verdade forma uma unidade com a vida, assim como a
       fé forma uma unidade com as obras.
   2   Com base na esperança da vida eterna: como em 2Tm 1.1, deve ser relacionado com o apóstolo e
       não com a afirmação diretamente anterior. Seu serviço tem cunho escatológico (de fim dos tempos):
Rm 4.18; 5.2; 8.20; 1Co 9.10; 15.30-34; 1Tm 4.10; 2Co 4.17. Por isso importa agarrar desde já a
     vida eterna (1Tm 1.16; 4.8; 6.12; 2Tm 1.1), porque a esperança pelo que ainda não se vê já está
     presente no Ressuscitado e na sua mensagem salvadora. Assim, portanto, a vida eterna dos ouvintes
     também deve estar subentendida como alvo da missão apostólica; cf. Tt 3.7; 1Tm 1.16; 2Tm 2.10.
     Contudo a vida eterna continuaria sendo um desejo infundado e até mesmo puro devaneio sem o
     Deus eterno que não mente (apseudes), literalmente: livre de falsidade. Contrasta com o v. 12; cf.
     também 1Tm 6.20: pseudognosis = falso conhecimento! Deus é verdadeiro e fiel; cf. 2Tm 2.13; Rm
     3.4; 11.29; Lv 23.19.
        Prometido há tempos eternos (chronoi aionioi): expressa que Deus prometeu a salvação
     segundo seus eternos desígnios; cf. At 26.6: a esperança pela promessa recebida; 2Tm 1.1; 1Tm 4.8;
     Rm 4.13s,16,20. O que Deus prometeu ele é capaz de cumprir e também há de cumprir (Rm 4.21).
3    Agora ele revelou sua palavra em tempo hábil, determinado pessoalmente por ele: o desígnio
     eterno foi revelado na plenitude do tempo. E precisamente essa palavra de Deus é reproduzida por
     meio da proclamação, que me foi confiada de acordo com a incumbência de Deus, nosso
     Salvador.
        Nos v. 1-3 Paulo descreve origem, peculiaridade, conteúdo e alvo de seu serviço apostólico:
        1) Deus, que promete e deseja a salvação redentora para todas as pessoas, é a única origem desse
     serviço da salvação. Paulo evangeliza por causa de Deus e com vistas a ele, e não por causa dos
     humanos nem por causa de sua saudade, miséria e perdição. Justamente por isso, na verdade, ele
     evangeliza para os humanos, porque visa conquistá-los unicamente a partir da misericórdia divina,
     que age também nele.
        2) “Apóstolo” é um conceito corrente em todo mundo antigo, mas o conceito de que “ser
     apóstolo” é um serviço, é uma novidade completa. Deus deseja fazer com que por meio do serviço
     humilde de seu mensageiro a boa nova, o evangelho de Jesus, seja proclamada a todos.
        3) O conteúdo da proclamação é Jesus, o Redentor. Ele é a palavra da salvação, da graça,, da vida,
     reconciliação, da verdade, em suma: ele é a palavra de Deus aos seres humanos.
        4) O alvo: por meio da proclamação, e quando a ouvimos como palavra de Deus, ele desperta a fé
     salvadora.
        É assim que se configura a descrição do serviço apostólico “em consonância com a fé dos eleitos
     de Deus”. Essa límpida passagem jamais deve ser esquecida na interpretação das past.

                                       3. Destinatário – Tt 1.4a
4    A Tito, meu autêntico filho segundo a fé em comum. Tito abraçou a fé em Jesus por meio da
     proclamação do apóstolo, representando um fruto real do serviço apostólico. Autêntico também pode
     ser a designação de um companheiro de luta na fé, desde que seja aprovado.
        O relacionamento do apóstolo com Timóteo, o “filho amado”, certa-mente era mais íntimo, mas
     Tito também está bem próximo dele. Tanto mais surpreendente é que um colaborador tão próximo e
     íntimo de Paulo não seja mencionado em nenhuma passagem de At.
        Sobre a fé em comum apóia-se o relacionamento espiritual entre pai e filho. Chama atenção a
     diferença em relação a 1Tm 1.2, onde simplesmente se lê: meu autêntico filho na fé. Será que a
     ênfase do que há em comum permite inferir uma maior independência de Tito, ou será que a intenção
     é enfatizar a posição comum de todos os que crêem (cf. 1b: em consonância com a fé dos eleitos)?
     Tito representou o apóstolo com sucesso em uma questão complicada na igreja de Corinto, enquanto
     Timóteo praticamente teve de ser protegido dos coríntios.
        Em outras ocasiões Paulo também escreve da “fé em comum”, compartilhada com todos os
     discípulos de Jesus; com todos eles participa da “salvação conjunta”. Entendida nesse sentido, a
     catolicidade, i. é, a validade geral ou participação geral na fé, representa uma preocupação central da
     Bíblia.

                                         4. Saudação – Tt 1.4b
4b    Graça e paz de Deus, o Pai, e do Messias Jesus, nosso Redentor. O mesmo voto de bênção de
     Rm; Cl; Ef; Fp; 2Ts; porém diferente de 1Tm e 2Tm, onde consta: graça, misericórdia, paz. Na
     verdade as past são semelhantes no linguajar, estilo e ensejo, mas diferenciam-se entre si pela
variação de expressões, uma característica geralmente encontrada em Paulo. Somente Tt traz a dupla
saudação de bênçãos, somente 2Tm traz gratidão e oração nas frases iniciais.
   A saudação de bênção não somente se encontra no culto a Deus ou nas cartas do NT, mas
igualmente nas saudações e correspondências do dia-a-dia, embora não tivesse nenhuma conotação
artificial.


                               O TEXTO DA CARTA – TT 1.5-3.11
                  I. Os verdadeiros servos da igreja e sua luta – Tt 1.5-16

                       A. O servo como exemplo da igreja – Tt 1.5-9

                       1. Toda igreja precisa de presbíteros – Tt 1.5
5 – Por esta causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem as coisas restantes, bem
    como, em cada cidade, constituísses presbíteros, conforme te prescrevi.

   Dessa frase pode-se concluir que Paulo e Tito evangelizaram juntos em Creta. Judeus de Creta
estiveram em Jerusalém por ocasião do Pentecostes. Não se pode descartar que alguns deles
aceitaram a fé em Jesus, o Messias, retornando a Creta como primícias da fé. Tais primeiros contatos
podem ter aberto o caminho para uma posterior viagem missionária. O motivo direto da carta são os
dois colaboradores mencionados em Tt 3.13, que viajam até Creta, entregando a missiva a Tito.
   Na época da redação Paulo está livre (Tt 3.12). A situação é semelhante à de 1Tm: Timóteo deve
organizar o necessário em Éfeso, e Tito em Creta. Tanto em 1Tm quanto em Tt a instrução oral é
seguida por confirmação e complementação escritas, um procedimento que não é incomum para
Paulo.
   Tito também deixará a ilha. Por isso é necessário que as instruções sejam entregues por escrito às
mãos dos irmãos colaboradores e co-dirigentes em Creta. Em 1Tm já se pressupõem formas e
serviços eclesiais mais sólidos, em Creta parece existir um estágio anterior de constituição da igreja.
   As coisas faltantes são aquilo que ainda falta para o desenvolvimento de uma igreja plenamente
emancipada. O que Paulo deixou inconcluso é confiado a Tito para que este cuide da evolução
posterior. O que Deus começou ele pretende levar à maturidade. Aqui não se tem em vista apenas um
aperfeiçoamento em termos de organização! Já em 1Ts 3.10 Paulo escreve que deseja dirimir as
falhas que ainda estão ligadas à fé. As igrejas devem chegar à aprovação na fé.
   Tito recebe particularmente a incumbência de instituir presbíteros em cada cidade.
Aparentemente a fé em Jesus se expandiu primeiramente nas cidades, ou as igrejas cresceram mais
rapidamente nelas, de modo que se tornasse necessária a instalação de presbíteros. As aldeias e
localidades das redondezas eram evangelizadas a partir das cidades. Em todos os lugares a instalação
de servos para a igreja aconteceu com a participação dos membros da igreja. At 14.23 informa que
Paulo e Barnabé retornaram a três cidades em que se haviam formado igrejas durante a primeira
migração evangelizadora. Somente agora, na segunda estadia, elegem presbíteros em cada igreja,
recomendando-os em conjunto com a igreja ao Senhor, mediante oração e jejum. A evangelização
em Creta pode ter ocorrido de forma similar. Primeiramente Paulo e Tito viajaram em conjunto pela
ilha, anunciando o evangelho de Jesus. Em uma segunda visita, pouco tempo depois, Tito (ele
permaneceu na ilha, enquanto Paulo seguiu viagem) deve confirmar, em e com as jovens igrejas,
presbíteros que se evidenciaram como agraciados e aprovados por Deus em vista de seu serviço aos
fiéis.
   Em todas as igrejas surgidas da atividade missionária de Paulo havia serviços eclesiais
organizados desde o princípio, tão logo um grupo sólido de discípulos estivesse de fato formado. O
NT não dá notícia de nenhuma igreja sem liderança. O estilo de liderança pode se configurar de
formas muito distintas, porém nunca na forma de uma posição especial excludente ou de uma
reivindicação legal consolidada.

                    2. A vida pessoal dos presbíteros e líderes – Tt 1.6-8
6 – alguém que seja irrepreensível, marido de uma só mulher, que tenha filhos crentes que não
        são acusados de dissolução, nem são insubordinados.
    7 – Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como despenseiro de Deus, não
        arrogante, não irascível, não dado ao vinho, nem violento, nem cobiçoso de torpe ganância;
    8 – antes, hospitaleiro, amigo do bem, sóbrio, justo, piedoso, que tenha domínio de si.

6   Quando alguém for irrepreensível: repetido no v. 7. Em 1Tm 3.10 é condição para o diácono,
    valendo portanto para qualquer categoria de servidor, assim como em 1Co 1.8; Cl 1.22. Em 1Tm 3.2
    não consta a mesma palavra, mas vigora o mesmo sentido.
        Marido de uma só mulher, com filhos crentes que não são acusados de negligentes nem
    insubordinados. Em 1Tm 3.4 se espera que os pais sejam capazes de manter os filhos obedientes.
    Será que a palavra sobre os filhos crentes pressupõe um tempo excessivamente longo de
    desenvolvimento da igreja em Creta? Não, mas ela mostra que os presbíteros de fato eram pais de
    família amadurecidos em idade, que em parte já tinham filhos adultos. Quando os filhos em uma casa
    são obedientes e crentes, pode-se concluir que o pai também é apto para presidir a família eclesial.
        Negligência (Vulgata: luxuria); como em Ef 5.18; 1Pe 4.4. Lc 15.13: o mesmo termo como
    adjetivo: viver de forma relaxada, desorganizada, esbanjadora! Pano de fundo no AT: Pv 28.7.
    Insubordinado também pode ser traduzido por desobediente, rebelde. A convivência em família era
    de significado essencial para a expansão e o aprofundamento da fé, porque as igrejas ainda eram
    quase que exclusivamente comunidades domiciliares, e porque o entorno muitas vezes hostil
    observava com atenção máxima o que acontecia nesses lares.
7   O presidente deve ser irrepreensível como administrador de Deus: O presidente é um dos
    presbíteros e vem das fileiras deles, por isso é repetida para ele a característica decisiva: que seja
    irrepreensível! O singular não exclui a possibilidade de que houvesse vários presidentes em uma
    cidade, especialmente quando se formavam várias igrejas caseiras na mesma localidade. Ao contrário
    de 1Tm, não se mencionam aqui diáconos. Não se trata de listar todos os serviços na igreja e muito
    menos de instituir um cargo de bispo monárquico, nem de providenciar o ordenamento jurídico de
    cargos.
        A prestação de serviços na administração de Deus acontece pela fé. Cada administrador presta
    contas do que faz e deixa de fazer. Na seqüência são arrolados cinco vícios que o presidente deve
    evitar (v. 7), e depois ocorrem seis exigências, imprescindíveis para sua contribuição na edificação da
    igreja.
        Não autocrático: usurpador, sem escrúpulos, caprichoso, teimoso. Um bom líder não imporá a si
    mesmo, não tentará avançar solitariamente e sem os irmãos co-responsáveis. O dirigente seja servo
    de todos, não seu comandante e senhor.
        Não irascível: faz parte de autocrático. Quem considera a si mesmo capaz de tudo ou confia
    demais em si rapidamente perde a paciência com outros. Um valentão em breve se torna solitário,
    alguém que tem apenas seguidores submissos, mas não irmãos co-responsáveis.
        Não dado ao vinho, não briguento, não ganancioso: Houve tentativas de explicar essas
    condições, de conotação óbvia, com os primórdios da missão e o baixo nível do entorno gentílico.
    Contudo demandas morais que parecem elementares não são cumpridas de forma óbvia. Quando as
    exigências básicas (aquilo que é fundamental e elementar) são apenas pressupostas, e não são
    constantemente propostas, examinadas e exercitadas, todo avanço permanece incerto e pode levar à
    auto-ilusão.
8   Hospitaleiro, amigo do bem (philoxenos, philagathos): ser hospitaleiro é um exemplo para muitos
    de como se pode praticar a disposição para o bem. Essa amabilidade se contrapõe à atitude
    autocrática (v. 7): ao invés de fechada e preconcebida, a pessoa seja aberta para outros, visando o
    melhor deles. Um amigo do bem está “aliado ao bem maior do próximo”. Dessa maneira é capaz de
    desenrolar questões complicadas, apaziguar brigas, sendo sábio e sensato nesse procedimento.
    “Sensato” também é usado em 1Tm 3.2 para o presidente, em Tt 2.2,5-6, porém, para todos os
    membros da igreja, jovens e velhos, homens e mulheres!
        Justo e santo formam uma unidade, porque justiça não é mera virtude humana, ela vem da
    santidade de Deus. Cf. Ef 4.24: o novo ser humano em justiça e santidade sinceras. Paulo emprega a
    mesma combinação de palavras para caracterizar seu próprio comportamento como evangelista e
    servo das igrejas: “Procedemos de modo piedoso, justo e irrepreensível em relação a vós” (1Ts 2.10).
Abstêmio (egkrates, ocorrência única no NT); controlado, disciplinado. Consta como substantivo
     em Gl 5.23, disciplina como fruto do Espírito, cf. 2Tm 1.7! Também em At 24.25 a abstinência está
     associada à justiça. O novo ser humano despertou para a vida verdadeira, para amizade com tudo que
     é bom, pronto para servir à igreja.

                                    3. Seu serviço à palavra – Tt 1.9
     9 – (Uma pessoa) apegada à palavra fiel, que é segundo a (sã) doutrina, de modo que tenha
          poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem.

9    Apegar-se: como em 1Ts 5.14 cuidar dos pobres, preocupar-se com eles, incomodar-se. Aderir a
     uma causa ou a alguém: Mt 6.24; Pv 3.18; Jr 2.8. Perseverar na palavra é premissa para toda
     exortação e confrontação.
        Como se relacionam a doutrina e a palavra? A confiável palavra do Senhor forma o fundamento
     para todos os ensinamentos. A melhor explicação para esse nexo é dada pelo próprio Paulo, em 2Ts
     2.15: “Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja
     por palavra, seja por epístola nossa.” A palavra confiável designa a totalidade da tradição, mas, para
     que possa ser preservada, precisa ser ensinada, oralmente e por escrito. Já no tempo de 2Ts a tradição
     escrita tinha de ser protegida contra falsificações. Nas past a distinção entre doutrina confiável e falsa
     se tornou mais premente. Em consonância, a tradição escrita assumiu formas mais sólidas. Quando o
     servo da palavra persevera nessa palavra, ele é capaz de exortar (dynatos), literalmente: estar
     autorizado, obter plenos poderes, como em 2Tm 1.12! A autorização para o serviço não é assegurada
     por meio de uma instância exterior, nem pelo ato de uma “instalação no cargo”! Somente estará
     autorizado a partir da palavra de Deus aquele que confia nessa palavra e lhe obedece.
        O Espírito Santo autoriza o mensageiro. Receber, preservar e transmitir a palavra inspirada pelo
     Espírito Santo só é viável na força do mesmo Espírito. Só o Espírito faz com que a palavra e a
     conduta sejam vivas, i. é, capazes de desenvolver eficácia.
        Exortar com base na reta doutrina: Uma comparação com 1Tm 5.1; 6.2; Tt 2.6,15 mostra que
     “exortar” deve ser entendido aqui no sentido de “exercer o cuidado pastoral”. É verdade que na
     proclamação também é possível exortar de forma genérica, mas o alvo de toda exortação não deixa
     de ser a situação concreta: visa-se interpelar um indivíduo, determinada família ou grupo com a
     palavra de Deus.
        Argüir os contraditores: o mesmo verbo de Mt 18.15. Cf. 1Tm 5.20; 2Tm 4.2!
        A tarefa de Tito está claramente delineada, mas “nada nos foi dito sobre um magistério doutrinário
     específico” (Holtz). Nem todos os presbíteros são presidentes, nem todos os presidentes possuem o
     dom de ensinar (que é diferente do dom de exortar). Contudo a instrução sempre está presente, até
     mesmo na atividade de aconselhamento, quando de fato visa alicerçar cada pessoa sobre a palavra e
     direcioná-la para o Senhor, porque esse é o sentido de toda a exortação e correção.

                                B. A luta contra os hereges – Tt 1.10-16

                           1. Deterioração no povo e na igreja – Tt 1.10-12
     10 – Porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e enganadores, especialmente
         os da circuncisão.
     11 – É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não
         devem, por torpe ganância.
     12 – Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras
         terríveis, ventres preguiçosos.

10    As jovens igrejas dos discípulos de Jesus não podem viver fora das circunstâncias da sociedade,
     pelo contrário, devem brilhar como uma luz nas trevas em meio à população da ilha de Creta, da
     qual, afinal, eles mesmos são oriundos, e atuar como sal contra a deterioração da realidade social.
     Mas o espírito da insubordinação e insolência ainda ou já (novamente) atua nas próprias fileiras,
     porque muitos são insubordinados, palradores frívolos e enganadores. Os rebeldes não querem
     se enquadrar no todo, resistem à sã doutrina, trazendo sua própria sabedoria sedutora, porém vazia. Já
     acerca dos filhos de presbíteros se afirmou que não devem ser insubmissos - justamente eles podem
ser facilmente seduzidos pelos ilusores quando o pai não é capaz de dar um basta, com verdadeira
   autoridade, ao curso descontrolado na própria casa e na igreja domiciliar.
       Os da circuncisão são mestres cristãos judeus. Com certeza não são mestres judaicos, porque eles
   não ensinariam nas igrejas de Jesus. O princípio de 1Co 5.11-13 vigora também nas past: a igreja não
   é incumbida de julgar os que estão do lado de fora, mas ela deve cuidar do acerto das coisas em seu
   próprio meio. Não se trata aqui de uma condenação geral “dos judeus”. Na realidade nem mesmo se
   fala exclusivamente de cristãos judeus. Também outros hereges estão agindo, sendo que “os da
   circuncisão” são os mais influentes.
11 É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo casas inteiras. Os mestres citados no v. 10
   circulam nas igrejas. Não se ordena sua expulsão, mas apenas que sejam impedidos de ensinar. Não é
   dito como devem ser calados. Existe a ordem direta que exige o silêncio, aqui, porém, o contexto
   leva a imaginar uma correção persuasiva que leva ao reconhecimento e por isso ao fim dos meros
   palavreados vãos. Ao contrário de 2Tm 3.6 a ação dessas pessoas não acontece secretamente, mas de
   modo impertinente e ruidoso. Como famílias e igrejas em geral ainda viviam sob o mesmo teto,
   podia facilmente acontecer a deturpação de casas inteiras, com filhos se opondo aos pais, e o pai se
   opondo à mãe, cada qual ainda justificando sua conduta pela religião.
       Os falsos profetas ensinam o que não devem, vendendo suas mentiras e feitiçarias por torpe
   ganância.
12 “Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos.” O dito é atribuído ao
   sacerdote cretense Epimênides (séc. VI a.C.) e era amplamente difundido na Antigüidade. O que esse
   homem dissera muitos séculos antes continua válido na época em que surgem as igrejas de Jesus.
   Logo seu conterrâneo é um profeta. Isso é irônico: “Esse testemunho é verdadeiro” (v. 13). Como
   Paulo poderia acolher um veredicto tão sumário, e ainda reforçá-lo? Se essas frases constassem de
   um relato de viagem sobre Creta, elas estariam deslocadas, porque não descrevem, mas desvendam e
   acusam. Aqui, porém, a reprimenda e correção proféticas constituem o pano de fundo determinante.
   Somos lembrados aqui dos ais de Jesus sobre os fariseus. Obviamente essas frases seriam indelicadas
   e incompreensíveis se fossem mera afirmação, mera expressão de agressão pessoal ou coletiva contra
   pessoas de pensamento divergente.
       Só quem luta e sofre na entrega total em favor de pessoas, como fizeram Jesus, os profetas e
   apóstolos, pode desnudar sem papas na língua tudo o que é podre e falso, para despertar um
   indivíduo, um grupo, uma igreja ou todo um povo, chamando-os ao arrependimento. Paulo escreve
   “chorando acerca dos inimigos da cruz (não são seus inimigos pessoais)…, cujo deus é o ventre”, e
   Jesus chora sobre os habitantes de Jerusalém, que apedrejaram os profetas e também matarão a ele.
   Jeremias chora pelo orgulho de seu povo exclamando: “Tenho visto as tuas abominações sobre os
   outeiros e no campo, a saber, os teus adultérios, os teus rinchos e a luxúria da tua prostituição. Ai de
   ti, Jerusalém!” Essas seguramente não são palavras lisonjeiras, mas tampouco podem ser
   consideradas ofensivas, valendo o mesmo para a citação mencionada aqui por Paulo, que visa
   confirmá-lo por experiência própria.

                 2. Ordenar um basta à influência dos falsos mestres – Tt 1.13-16
     13 – Tal testemunho é exato. Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sadios na fé
     14 – e não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da
         verdade.
     15 – Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes, nada é
         puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas.
     16 – No tocante a Deus, professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por isso
         que são abomináveis, desobedientes e reprovados para toda boa obra.

13     Esse testemunho é verdadeiro. Não se trata de uma crítica geral à sociedade; pelo contrário, o
     foco é a condição interna da igreja. Quando predominam condições tão deturpadas é preciso argüir
     severamente. Para isso é preciso ter determinação total. As exortações, constantemente repetidas, do
     apóstolo para Timóteo e Tito não são supérfluas. Se os dois exercerem com determinação seu
     serviço, terão de enfrentar desprezo e até mesmo perseguição.
Para que convalesçam na fé: essa lúcida colocação do alvo ao mesmo verbaliza o diagnóstico:
   estão enfermos em sua orientação básica mais íntima, a saber, na fé. Por isso superstição e dissolução
   moral se alastram como um tumor. Se Tito não perseverar na palavra confiável da sã doutrina, ele
   mesmo também poderá ser contagiado. Mas, se enfrentar com toda a determinação a confusão por
   meio da palavra da verdade, isso redundará para os hereges em convalescença na fé. O alvo não é
   expulsá-los ou estigmatizá-los, mas curá-los!
14 Não se ocupem com fábulas judaicas: é a única vez no NT em que aparece o termo “judaico”.
   Como em 1Tm 1.4 (!) deve-se ter em mente lendas e genealogias ou catálogos de gerações.
      Mandamentos humanos: preceitos de cunho ritual como em Cl 2.22,21. Aquilo que é preciso
   cumprir para estar em ordem perante Deus (v. 15). Os evangelhos chamam esses mandamentos de
   “tradição dos antigos”. Quem institui e ensina mandamentos próprios põe de lado os mandamentos
   de Deus, distancia-se da verdade: distanciar-se da fé, do evangelho, como em 2Tm 4.4!
15 Aos puros tudo é puro; aos impuros e descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a
   consciência deles são impuras. Paulo fornece uma resposta orientadora para um conflito concreto, a
   qual remonta a uma palavra do Senhor, e que ele já expôs em outra ocasião: prescrições e ações de
   purificação exterior (como costumes e hábitos de cunho religioso) não podem apresentar um ser
   humano como puro diante de Deus, nem seu não-cumprimento torna alguém impuro. A decisão sobre
   puro e impuro é tomada única e exclusivamente com base no coração humano. É óbvio que a
   circunstância de que essa verdade vem sendo questionada com tanta persistência constitui
   precisamente uma exteriorização desse coração dilacerado em si mesmo, que não quer aceitar como
   verdadeira a única maneira pela qual pode acontecer a purificação: quando Deus purifica esse
   coração!
      Os impuros e descrentes estão marcados na consciência, com sua razão confusa confundem a
   outros. São descrentes porque não confiam (mais) no Senhor ressuscitado e vivo, que é o fim da lei, e
   o único que purifica a consciência de obras mortas. Quando estiver manchada a consciência que
   avalia as próprias idéias, palavras e ações, também a razão será corrompida, por não ter mais medida
   para diferenciar entre verdade e mentira, entre bem e mal.
16 Asseveram conhecer a Deus, porém pelas obras o negam; são abominação para Deus, porque
   não lhe obedecem e são incapazes para qualquer boa obra. O conflito com falsas doutrinas e seus
   representantes sempre leva a uma grave aflição e tribulação, porque cada pessoa tenta justificar
   moralmente sua convicção e seu agir, dando-lhe a aparência de honradez. Aqueles que afirmam
   conhecer a Deus tentam, portanto, parecer religiosos. De modo algum são “ateus”. Pelo contrário,
   podem assegurar que representam uma religiosidade melhor, mais autêntica. São iguais àqueles que
   ostentam uma forma de beatitude, mas na realidade só olham para si mesmos. Uma vez que não
   conhecem (negam) a força da verdadeira devoção, negam o verdadeiro Deus também no agir. Pelos
   frutos torna-se explícito quem são. Mas evidentemente não se pode emitir um veredicto espiritual
   com a facilidade e rapidez que muitas vezes seria desejável. Também as doutrinas são obras, que
   coincidem com o testemunho dos lábios ou não.
      São abominação para Deus. Abominação é o que repugna a Deus. Em Rm 2.22 ocorre o verbo
   correspondente: “Abominas os ídolos e lhes roubas os templos” (também aqui a contradição entre
   testemunho e ação). Animais impuros deviam ser considerados abominação. É essa a possível alusão
   dessa palavra, provavelmente porque o v. 14 também contém preceitos sobre alimentos puros e
   impuros. Que ironia! Com vossos preceitos de purificação e mandamentos visais precaver-vos de
   abominações, para serdes aceitáveis perante Deus, e nisso vos tornastes pessoalmente uma
   abominação para Deus.
      Porque não lhe obedecem, mas se guiam por suas próprias leis e lhe submetem outros. Por isso
   são imprestáveis, reprovados, incapazes.
      Paulo, que cuida e luta para que ele mesmo não se torne imprestável, depois de ter anunciado o
   evangelho a outros e se confessou do lado de Deus, conclama agora também com a máxima
   determinação seu filho Tito, para que não se torne imprestável, mas que nesse esforço recupere os
   renegados para que convalesçam na fé.
      “Pelos frutos os conhecereis”, – por mais difícil que seja a aplicação dessa palavra para cada caso,
   ela não deixa de ser um parâmetro para diferenciar entre heresia e são doutrina. A pergunta decisiva
   é: como são as obras? Será que estão em consonância com o testemunho da fé, como corresponde à
   sã doutrina do evangelho?
II. A educação da igreja por meio da graça – Tt 2.1-15

                        A. Exortação para uma conduta digna – Tt 2.1-10

                     1. Homens e mulheres idosos como exemplos – Tt 2.1-3
    1 –Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina.
    2 – Quanto aos homens idosos, que sejam temperantes, respeitáveis, sen-satos, sadios na fé, no
        amor e na constância.
    3 – Quanto às mulheres idosas, semelhantemente, que sejam sérias em seu proceder, não
        caluniadoras, não escravizadas a muito vinho; sejam mestras do bem,

       Os hereges e seus grupos não devem ser difamados nem desprezados. O alvo da argüição profética
    é “convalesçam na fé” (Tt 1.13). O mesmo vale para exortações à igreja em geral e particularmente
    aos idosos em seu meio (Tt 2.2). Ao invés de negar a fé em Deus através do agir, devem professá-la
    por meio da conduta (Tt 2.1-10). Nas past os “catálogos para vida doméstica” não são subdivididos
    em “segmentos” (homem-mulher, pais-filhos, senhores-escravos) como nas demais cartas de Paulo,
    mas pelas diferenças de idade e gênero. Ambas as listagens têm em comum a ênfase na família, o que
    se expressa com mais nitidez em Tt do que em 1Tm. O cerne da família, assim como da igreja,
    consiste na afetuosa harmonia de marido e mulher “no Senhor”. Os v. 1-10 mostram o que essa
    unidade na concordância mútua significa na prática, como ela pode ser favorecida, e como é possível
    evitar a ruptura entre idoso e jovem, homens e mulheres. Depois disso, volta a ser apresentado um
    hino como bloco de proclamação (Tt 2.11-14). O v. 15 encerra essa seção da carta (Tt 1.10-2.14).
    Novamente é acrescentada uma passagem de exortação, agora referente à conduta da igreja perante
    sociedade e autoridade (Tt 3.1s), ao que se conecta mais um bloco de proclamação (Tt 3.3-7). Os dois
    trechos de proclamação são “como colunas de ponte que sus-tentam toda a série de exortações”
    (Brandt, p. 95).
       Se os blocos de exortação e proclamação não forem nitidamente sepa-rados, o comentarista cai na
    tentação de transformar em lei geral aquilo que tinha a intenção de uma aplicação muito prática do
    evangelho a uma situação bem específica.
       Doutrina e vivência não são a mesma coisa, contudo importa harmonizar ambas nos desafios
    constantemente renovados do cotidiano. A seção anterior de Tt expôs como e por que ensino e
    vivência muitas vezes se dissociam. Tt 2.1-10 fornece instruções de como ambas convergem e
    crescem de maneira saudável.
1   Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina. Conecta-se com Tt 1.13 e desenvolve a dupla
    incumbência citada em Tt 1.9: argüir os que se contrapõem (Tt 1.10-16) e exortar a todos (Tt 2.1-10).
    Tu, porém, fala com autoridade (Tt 2.15), contrastando com os vãos discursadores que ensinam o que
    não convém (Tt 1.10s). O que contradiz a sã doutrina deve ser coibido, o que lhe corresponde deve
    ser favorecido. Pessoas convalescerão e amadurecerão quando aprenderem a reconhecer e praticar a
    vontade de Deus. Adoecerão na fé quando agirem ignorando as orientações de Deus, e igualmente
    quando mesmo conhecendo a vontade de Deus não a cumprirem.
2   (Fala, pois,) que homens idosos (o presidente vem do grupo dos ho-mens idosos, razão pela qual
    também tem as mesmas fraquezas que eles) devem ser sóbrios: ser alertas, contentar-se, ser
    comedidos, o contrário de Tt 1.12; cf. 1Tm 3.2! Honrados: 1Tm 3.4,8,11. Sensatos: 1.8; 1Tm 3.2.
    Essas três qualidades apontam a um ponto comum: a tranqüila serenidade do homem maduro, no
    qual a palavra e a conduta, a convicção e a ação entraram em consonância.
       Sadios na fé, no amor e na constância: 1Tm 6.11; 2Tm 3.10! As três cartas pastorais (past) têm
    como preocupação fundamental que as igrejas se tornem saudáveis, maduras, emancipadas na fé.
    Nisso as pessoas idosas devem precedê-las como exemplos. A tríade de fé, amor, esperança sintetiza
    o mais íntimo cerne daquilo que o evangelho significa. Isso não tem nada a ver com
    “aburguesamento”, porque essa maturidade na fé é devoção gerada pelo Espírito, e não está
    direcionada para uma hábil adaptação ao mundo, mas para a glória de Deus.
3   Mulheres idosas (presbytis) semelhantemente: cabe dizer a elas o mes-mo que foi dito aos homens
    idosos, apenas enfatizando de forma correlata a sua condição feminina.
Na atitude dignas: a atitude abarca todo o ser, a unidade da consti-tuição interior e da aparência
    exterior. Dignamente (hieroprepes), a rigor: apropriado ao que é santo. Wohlenberg traduz: “As
    mulheres idosas, seme-lhantemente, como convém aos que estão no serviço sagrado, disciplinadas,
    dignas, refletindo a santidade de Deus.” Talvez resida aqui uma alusão a Ana, cujo ser inteiro estava
    voltado para Deus. Então poderíamos tra-duzir “sacerdotalmente”, e então ficaria claro que tanto aqui
    como em todas as passagens das past continua pressuposto o sacerdócio real de todos os crentes,
    porque na verdade não se fala especificamente de um serviço das viúvas, mas de mulheres idosas em
    geral. Entre elas, porém, é bem possível que, da mesma forma que entre os homens idosos, algumas
    tenham exercido um serviço de presbíteras. No aspecto básico esse tipo de serviço sem dúvida existe
    (como, entre outras coisas, também demonstra o final do versículo). Contudo para desdobrá-lo
    certamente havia necessidade de mais tempo, porque eram grandes os preconceitos sociais.
       Não caluniadoras: como em 1Tm 3.11; 2Tm 3.8. Poderíamos indagar por que não são listadas
    características negativas no caso dos homens idosos. No entanto, elas já foram mencionadas em Tt
    1.6s! Tt 2.2 abarca todos os homens idosos, enquanto Tt 1.6s se dirige em particular aos presbíteros e
    líderes do grupo dos idosos.
       Não viciadas no consumo do vinho: cf. Tt 1.7 = não dado ao vinho; 1Tm 3.8: dirigido a
    diáconos! Chama atenção que aqui se fale do vício de bebida entre mulheres. Em contextos
    moralmente decaídos até mesmo as mulheres perdem a sobriedade, tornando-se escravas de toda
    sorte de formas de prazer. Viciadas: como em Gl 4.3; Rm 6.18,22. Estar submisso a poderes naturais
    do mundo, a pecados, ser escravo deles.
       Mestras do bem (kalodidaskalos) também pode significar: boas profes-soras em palavra e
    exemplo. Ou seja, uma presbítera que ensina! Também Brandt (p. 97) pensa em uma alusão a um
    presbiterato feminino. Prisca poderia ser considerada uma presbítera. Comparem-se também as
    exposições acerca do serviço das viúvas na igreja de Éfeso.
       Que estimulam à sensatez. O alvo principal de seu magistério é a sen-satez, nada diferente
    daquilo que também Tito deve ensinar. O objeto de sua instrução não é citado! A construção da frase
    é igual a Tt 2.2,6,9: os homens idosos devem ser disciplinados; as mulheres idosas igualmente se-jam
    pessoas que, como boas mestras, produzem a disciplina. A atividade de magistério das mulheres
    idosas está formulada de forma genérica, e não restrita, p. ex., à instrução de mulheres jovens. Por
    meio de seu ensino e sua conduta elas devem estimular a sensatez na igreja. Naturalmente isso deve
    impressionar particularmente as mulheres jovens, quando as irmãs mais ve-lhas dão um bom
    exemplo.

                        2. O comportamento das mulheres jovens – Tt 2.4s
    4 – (Dize que) instruam as jovens recém-casadas a amarem ao marido e a seus filhos,
    5 – a serem sensatas, honestas, boas donas de casa, bondosas, sujeitas ao marido, para que a
         palavra de Deus não seja difamada.

4   Amar ao marido (philandros): na exortação Tito também se deve dirigir às mulheres jovens, assim
    como Timóteo. É muito bom-vindo quando mulheres mais idosas podem realizar o serviço de
    exortação, mas tentar inferir disso uma lei segundo a qual somente mulheres mais idosas poderiam
    instruir as irmãs mais novas, ou mulheres só pudessem ensinar entre mulheres (e crianças) não está
    de acordo com os escritos do NT. Ademais a exortação como tal não deve ser entendida como lei:
    isso se evidencia justamente também no fato de que para as igrejas em Creta as mulheres são
    exortadas a amar os maridos, enquanto no caso da igreja em Éfeso essa mesma exclamação se dirige
    aos homens. Lá a correspondência no amor é pressuposta nas mulheres, aqui, porém, isso não é tão
    óbvio porque a realidade social é outra. A harmonia entre homem e mulher somente é viável quando
    seu amor for recíproco; e, de acordo com as circunstâncias exteriores e as etapas da vida (às mulheres
    idosas não está sendo dito nada em relação a seu comportamento frente aos maridos!), importa
    estimular ao amor ora o homem, ora a mulher.
       Amar os filhos (philoteknos): amorosas com os filhos. À primeira vista também isso parece ser
    uma obviedade, mas está em concordância com o que foi dito até aqui sobre a realidade social em
    Creta e na igreja. Em 1Tm 2.15 trata-se provavelmente de mães que negligenciavam os filhos por
    razões religiosas. Aqui em Tt 2.4 parece que o verdadeiro amor materno para com os filhos ainda não
    despertou nelas.
5   Sensatas: no v. 2 isso é esperado de homens idosos, no v. 4 mencionado como atitude básica para a
    atividade letiva das mulheres idosas.
       Castas (hagnos): originalmente referente à pureza cultual, depois trans-ferido para o
    comportamento ético, mas continua tendo relação com a religiosidade, cf. v. 3: na atitude, dignas
    como mulheres santas que prestam serviços sagrados. Aqui se tem em mente especialmente a pureza
    moral no matrimônio. Ser sensato (comedido) e casto são características que formam uma unidade.
    Em 1Tm 2.9 a castidade está associada ao senso de pudor. É difícil ouvir esses termos com o som e a
    conotação límpidos que os ca-racterizam desde Jesus: à luz da alegria pela libertação dos gêneros
    para a verdadeira humanidade. Não pudicícia e frieza, mas cálida desinibição e cordialidade emanam
    dessas palavras.
       Dedicadas ao lar (oikourgous, de oikos = casa): contrasta com aqueles que abandonam sua casa à
    destruição por heresias. Em nossos ouvidos também essa palavra dificilmente consegue ser liberta da
    estreita e constrangedora atitude pequeno-burguesa, com a qual foi cercada justamente também por
    maridos legalistas e ciosos de sua dominação (uma atitude supostamente fundamentada na Bíblia).
    Saber conduzir e organizar um lar não é uma obra monótona e anticriativa, mas uma tarefa realmente
    humana, desde que não se pense ser necessário prescrever às mulheres como devem entender a
    “dedicação ao lar”, e desde que não se derive disso uma lei que sirva para banir a mulher para o lar,
    incriminando ou condenando todas as atividades fora da casa. Deveríamos ler com mais atenção o
    “elogio à dona de casa laboriosa” em Pv 31.10-31, para notar como a autoconsciência, a múltipla
    atividade e a responsabilidade daquela dona de casa têm pouquíssimo a ver com o estreito e isolado
    modo de vida que muitas esposas hoje em dia, que passam os dias solitários com um ou dois filhos
    em um pequeno apartamento. A ela ainda cabia estabelecer o trabalho diário de suas (!) empregadas,
    e quando pretendia comprar um campo ou uma vinha com seu próprio dinheiro, fechava um negócio!
    Com madura superioridade ela sorria em direção do dia seguinte e supervisionava todos os afazeres
    em sua casa.
       Bondosas: assinala o que importa acima de tudo, a saber, que a dedicação da mulher ao lar tenha
    um espaço de livre desenvolvimento, por meio do qual a bondade dela beneficie a todos, com os
    quais ela se relaciona. Quando se inviabiliza ou poda artificialmente a organização própria da mulher
    quanto a seu espaço de atuação, o espírito definha, depressões e isolamento magoado substituem uma
    alegre atitude básica da vida, capaz de emanar bondade.
       Submissas aos maridos: como em Ef 5.21s; Cl 3.18; cf. 1Tm 2.12 e o apêndice específico a
    respeito! Não se trata de uma dócil rendição a tudo que o marido exige! Ela administrará o lar com
    bondade e em concordância com a vontade do marido, não sem ele nem contra ele. A liberdade e
    igualdade da mulher não contradizem a subordinação ao marido, desde que essa subordinação possa
    acontecer de forma espontânea e não segundo as concepções das fantasias masculinas de
    superioridade, nem de sua cobiça por dominação. Aliás, a parceria de homem e mulher assumirá
    configurações diversas em épocas diferentes (também dentro do mesmo matrimônio), bem como em
    situações sociais mudadas. A subordinação não é uma nova lei instituída pelo NT em lugar de leis
    anteriores. A única “lei constitucional” é o amor, e isso significa: reciprocidade em tudo, inclusive na
    subordinação [Ef 5.21]. Em decorrência, o relacionamento entre marido e mulher será marcado ora
    de forma mais patriarcal (responsabilidade principal do marido), ora como parceria (responsabilidade
    mútua e disposição de servir um ao outro de acordo com os dons que cada qual recebeu). A novidade
    que Jesus introduziu no relacionamento entre os gêneros não é de forma alguma uma confirmação ou
    um reforço do predomínio masculino, mas uma restauração da reciprocidade original. É expressão
    daquele amor divino, que tomou forma humana em Jesus, que marido e mulher ajam de acordo com
    o aconselhamento e acordo mútuos.
       Uma vez superada a tradicional concepção errônea de um caráter lega-lista e discriminatório da
    subordinação da mulher, poderá florescer uma nova compreensão para seu verdadeiro sentido: a
    superioridade natural da mulher nas principais áreas da vida, sua maneira natural de se posicionar no
    centro das questões da vida facilmente poderia levá-la à soberba diante do marido quando ela
    experimenta a plena libertação de toda a tutela por meio de Jesus. Essa poderia ter sido uma tentação
    peculiar para as mulheres nas primeiras igrejas.
       Para que a palavra não seja difamada: Não apenas a subordinação ao marido, mas tudo o que
    foi dito até aqui, propicia à igreja e ao entorno um ensino prático visível da libertação por intermédio
    do evangelho na vida daqueles que seguem a Jesus.
3. Tito como exemplo dos homens jovens – Tt 2.6-8
    6 – Quanto aos moços, de igual modo, exorta-os para que, em todas as coisas, sejam criteriosos.
    7 – Torna-te, pessoalmente, padrão de boas obras. No ensino, mostra integridade, reverência,
    8 – linguagem sadia e irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo
         indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito.

        De igual modo exorta os homens jovens a ser sensatos: somente agora aparece o predicado da
    lista toda: exorta! Essa também deve ter sido a intenção do v. 2: exorta os homens idosos. Toda vez
    que ocorre nas past o termo “sensato” é necessário lembrar-se de que a palavra na verdade cita uma
    das principais virtudes helenistas, mas que carece da humildade. Autocontrole é o que o marido faz
    consigo mesmo! Nas past, porém, a autodisciplina sempre é disciplina do Espírito Santo, é dádiva
    dele, realização dele. Como, no entanto, se concretiza a sensatez recebida? Quem se apega ao teor da
    palavra no poder do Espírito, quem atiça a dádiva do Espírito para mantê-lo um braseiro sempre
    vivo, quem permanece na palavra, quem invoca o Senhor em comunhão com outros, quem foge das
    paixões da mocidade e corre atrás da justiça, quem se exercita na devoção, neste o Espírito faz
    amadurecer o fruto de uma vida disciplinada. Aos homens jovens é preciso dizer a mesma coisa que
    às jovens mulheres: sejam sensatos! Constantemente percebemos: a partir dessas listagens não é
    possível deduzir quaisquer diferenças rígidas entre os gêneros.
        Os dois versículos seguintes são dirigidos a Tito. Como ele mesmo deve ser considerado homem
    jovem, o que é dito a ele também vale para seus parceiros da mesma faixa etária.
7   Oferecendo-te pessoalmente como exemplo de boas obras. Exorta através do teu exemplo! Em
    todas as qualidades enumeradas, em todos os encontros com jovens e idosos, com homens e
    mulheres. Em tudo estás sendo exigido completa e integralmente. Contudo, isso não seria uma
    sobrecarga? Essa exortação não deve ser entendida de maneira moralista e legalista. Pelo contrário, à
    imagem distorcida dos hereges deve ser contraposto o exemplo de um mestre saudável, porque o
    poder de imagens negativas somente pode ser superado por imagens poderosas melhores. Não são
    construídas posições de poder eclesiástico, mas uma pessoa é apresentada: oferece-te pessoal-
    mente! Propicia a todos a possibilidade de notarem em ti o que Deus realiza em um ser humano. A
    idéia não pode ser que Tito se apresente como herói de virtudes com uma auréola de santo! Para ele
    vale o mesmo que para todos os seus irmãos: “Também nós éramos néscios… servindo a toda sorte
    de paixões e prazeres” (Tt 3.3). A mesma natureza velha continua ainda em Tito e sempre se
    concretizará quando ele não permanecer na obediência e na fé da nova vida: a graça de Deus nos
    educa (inclusive Paulo e Tito), para que reneguemos a descrença e as paixões terrenas e pratiquemos
    a vida verdadeira (Tt 2.12)!
        Na doutrina não-deturpação: o exemplo de boas obras ilumine a doutrina, o preceito seja
    precedido pelo exemplo. Na maneira pela qual apresenta a doutrina e a si mesmo, seja ele límpido,
    transparente, puro em suas opiniões, sem visar lucro. O melhor comentário é dado por 2Co 4.2, bem
    como a simultânea confirmação de que aqui existe o mesmo tom fundamental da exortação: “Nós
    (como servos do Senhor) renunciamos às coisas clandestinas de que é preciso se envergonhar, não
    andando ardilosamente, nem deturpando a palavra de Deus, pelo contrário recomendando-nos diante
    de Deus a toda consciência humana pelo fato de revelarmos a verdade.”
        Com reverente seriedade: como em 1Tm 3.8,11. O serviço à palavra não tolera brincadeiras
    frívolas nem subserviência a humanos. Procede em concordância com o que advogas. Não
    transformes o precioso tesouro em mercadoria barata pela maneira com que o ofereces e ofereces a ti
    mesmo.
8   (Oferecendo, cf. v. 7) um falar sadio, irrepreensível. A sã doutrina também requer ser apresentada
    de maneira sadia. Nem o ilustrado descompromisso (retórica), nem a impertinência incompreensível,
    nem o linguajar religioso particularmente devoto fazem justiça à verdadeira singeleza do evangelho.
    Teu falar, no diálogo individual e na proclamação, bem como na refutação dos falsos mestres, seja
    expressão de tua vivência na palavra de Deus. Não tentes impressionar com palavras, proclama de
    forma sóbria e humanamente sadia, e o resultado não tardará.
        Para que o adversário seja envergonhado, porque não poderá dizer nada de negativo sobre
    nós: pode se tratar de pessoas discordantes e críticas dentro e fora das igrejas. A respectiva conclusão
    de Tt 2.5,8-10 sempre expressa a mesma coisa: não dar motivo de blasfêmia e crítica depreciadora.
Ser envergonhado: o sentido original é voltar as costas, depois: modificar-se, posicionar-se de
    outra maneira, demonstrar favor; finalmente: ter medo e respeito, como em Hb 12.9. Aqueles que são
    envergonhados podem ser conquistados, podem chegar perante Deus ao reconhecimento e à
    conversão de seu agir.

                              4. O testemunho dos escravos – Tt 2.9s
    9 – Quanto aos servos, que sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe motivo de
        satisfação; não sejam respondões,
    10 – não furtem; pelo contrário, dêem prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em todas
        as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador.

       Quanto à questão do escravismo: 1Tm 6.1s e carta a Filemom!
9 Ao contrário de Ef 6.9 e Cl 4.1, os proprietários não estão incluídos nesta exortação. Seria porque
   talvez ainda não existissem nas igrejas – ao contrário de Éfeso? É questionável que a exortação seja
   reforçada, como pensam alguns comentaristas. Em tudo pode ter o sentido de completo, indiviso, de
   coração, não apenas na aparência. Os pais da igreja sempre enfatizavam com cuidado que a
   obediência dos escravos somente poderia valer para ações lícitas.
       Dar motivo de satisfação (euarestos): ser agradável; com exceção de Hb 13.21, usado apenas por
   Paulo, mais precisamente voltado para Deus, que se agrada de algo: Rm 12.1; 14.18; 2Co 5.4; Fp
   4.18. Será que aqui os pequenos senhores aparecem sob o reflexo da glória de Deus, diante do qual o
   primeiro propósito do ser humano deve ser agradá-lo? Dificilmente poderemos notar aqui uma
   diferença em relação a Ef 6.7: “servir de bom grado”, por isso se responderá negativamente a
   questão.
       Não contradizer (antilegein); já em Tt 1.9 como substantivo: os contradizentes. Lutero: “não
   latindo de volta”. Trata-se da resposta discordante vinda de um coração irritado. O problema das
   diferenças de classe se expressa de forma subjacente nessa tentação dos escravos. Algo análogo vale
   para as penosas tensões entre os gêneros que somente serão suportadas e superadas pelo amor:
   quando o marido ama a esposa, ele não a provocará a contradizê-lo, quando uma mulher ama o
   marido (Tt 2.4), ela não o contradirá nem terá necessidade de ter a última palavra. O amor é o motivo
   decisivo e a força motriz para a conduta agradável, inclusive no relacionamento entre escravos e
   patrões. O grande equívoco da insistência legalista na subordinação da mulher evidencia-se aqui
   justamente pela comparação com os escravos, dos quais se espera que se subordinem aos patrões:
   não por último pelo poder transformador do evangelho foi anulado o escravismo, e com isso a
   subordinação escrava! Para as mulheres, porém, ela seria uma ordem permanente?
10 Nada furtando (apenas também em At 5.2s!), sonegar, desviar. O escravo Onésimo havia sido
   desonesto, e quando foi descoberto, fugiu de seu senhor.
       Em tudo dando provas de boa fidelidade. A fidelidade seja boa! (pistis agathe). Boa aparece
   enfaticamente no final, não devendo, portanto, ser traduzido de forma atenuada. Trata-se do bem
   vigente aos olhos de Deus, são as boas obras, para as quais ele nos preparou.
       A fim de ornarem a doutrina de Deus, nosso Salvador, em tudo. A doutrina de Deus: genitivo
   de autoria. A doutrina vem de Deus. Ele mesmo é quem proclama, ensina, educa (v. 11). Seu ensino
   visa conduzir, em todos que o ouvem, à beleza da verdadeira vida humana. A fidelidade de coração
   do ser humano como um todo caracteriza o servo bom. Sem a ação do Deus Salvador o conserto do
   ser humano não será uma restauração verdadeira.
       “A doutrina” é o termo básico para o começo (v. 1), o meio (v. 7) e o fim (v. 10) da seção de
   exortação prática. Essa sã doutrina, que mantém a fé saudável, sóbria e ativa nas obras, é
   desenvolvida na seqüência. No Salvador culmina o chamado exortativo, fazendo a transição para a
   exaltação precisamente dessa graça redentora e educadora de Deus (Tt 2.11-14).

                                B. Jesus é a graça salvífica de Deus
                                       (2º hino) – Tt 2.11-15
    11 – Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens,
    12 – educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mun-danas, vivamos, no
        presente século, sensata, justa e piedosamente,
13 – aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nos-so grande Deus e
        Salvador Cristo Jesus,
    14 – o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda ini-qüidade e purificar, para
        si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras.
    15 – Dize estas coisas; exorta e repreende também com toda a autoridade. Ninguém te
        despreze.

      O presente hino exalta a graça de Deus, manifesta no passado (v. 11), que educa os discípulos de
   Jesus no presente (v. 12), cuja revelação plena é aguardada no futuro (v. 13), cujo alicerce e força são
   o amor do Redentor, que purifica seu povo e o leva a viver com zelo sagrado (v. 14).
11 Manifesta: consta bem no começo, enfatizando o súbito, inesperado, surpreendente. No NT a
   forma passiva do verbo (epiphanein) aparece somente aqui e em Tt 3.4. O substantivo (epiphaneia),
   aparição, é típico para as past, contudo seu uso antigo em 2Ts 2.8 revela que a palavra, muito
   freqüente no culto ao imperador e usada para divindades helenistas, com certeza não sofre uma
   definição literal a partir desse contexto, ainda mais que no mínimo precisa ser levado em conta
   também o nexo com o AT.
      A graça de Deus (charis): graça é a palavra predileta do apóstolo. Por graça ele foi salvo, por
   graça ele se tornou o que é, por graça acontece sua atuação. Graça é dádiva imerecida de Deus,
   expressão de sua misericórdia, sua benevolência, seu favor e sua benignidade. Deus não é
   condescendente como as majestades megalomaníacas deste mundo, que em determinadas ocasiões
   gostam de demonstrar ao povo ou a indivíduos um favor especial. A condescendência de Deus não
   acontece para “proveito próprio”, mas totalmente por amor, um amor que se derrama em uma ação
   de misericórdia: em Jesus a graça de Deus se realizou visível e palpavelmente para as pessoas.
   Através de Jesus sabemos que a misericordiosa condescendência de Deus não rebaixa o ser humano,
   porque Deus humilha a si mesmo, a fim de exaltar o ser humano de sua baixeza culposa. O hino é
   perpassado de admiração e de júbilo pelo fato de, que em Jesus, a salutar misericórdia divina
   despontou como um sol sobre o mundo escurecido pelas sombras da morte.
      Salvadora (soterios); única ocorrência no NT como adjetivo. Como salutaris, em latim,
   expressando o modo de ação da graça: com potência salvadora, poderosa para resgatar. Graça não é
   um ceder frágil, não é demonstração fraca de benevolência, mas é o poder divino de amor.
      Para todos os humanos: o Redentor se entregou por todos. A graça de Deus deseja que todos
   cheguem à salvação. A oferta universal da salvação se expressa aqui de forma irrestrita, como sempre
   em Paulo. Todos precisam da redenção. No entanto, ela também é acessível a todos: a homens e
   mulheres, a idosos e jovens, a escravos e senhores, a judeus e gregos.
      Quem crê deve sempre lembrar que a graça de Deus vale para todos e tenta alcançar a todos. E
   isso deve acontecer pelo testemunho de vida da igreja de Jesus. No meio dela a graça de Deus visa
   brilhar com tanta realidade, perdoando, curando, consertando e sobretudo educando para a plena
   humanidade conforme a imagem de Jesus, que todo o mundo possa reconhecer a forma com que essa
   graça se realiza naqueles que se abrem para ela.
      Entre os v. 11 e 12 existe uma enorme tensão, que não pode ser eliminada pela compreensão nem
   pelo sentimento humanos. A graça está aí para todos os homens, e ela nos educa. “Nos” refere-se a
   todos os que aceitam o chamado à salvação e se deixam purificar por Jesus para serem povo da
   propriedade dele. Para todos – para nós! Somente na perspectiva dessa diferenciação torna-se nítida a
   premência profética de todas as exortações prévias e subseqüentes. Deus quer um povo de sua
   propriedade que colabora com zelo na salvação do mundo, iniciada pelo Redentor no momento em
   que apagou o pecado do mundo com seu amor expiatório. Também aqui constatamos a mais direta
   relação com o AT! Deus deseja propiciar sua graça a todo mundo por meio de seu povo, que ele
   redimiu e educa.
12 Ela nos educa (paideuein, gerúndio): educar, disciplinar, castigar, corrigir, instruir. O substantivo
   paideia está contido em “pedagogia”. A ênfase da frase recai nesse verbo. Afirmou-se que nas past
   essa palavra teria sofrido uma alteração de significado, que ela seria apenas instrutiva, e não mais
   entendida como disciplinadora, corretora, punitiva, como nos demais escritos do NT. Contudo 1Tm
   1.20 possui nitidamente o sentido de punição, disciplina, bem como 2Tm 2.25. Em 2Tm 3.16 a
   “educação para a justiça” é descrição sumária de um acontecimento integral que abrange a argüição
   (do pecado) e a restauração (no arrependimento). Também Tito deve argüir e educar com rigor e
determinação. Educação possui dois lados: exortar e encorajar, confrontar e levar ao bom caminho,
disciplinar e atrair, ser exemplo e andar com a pessoa, conduzir e liberar. Ambos os lados estão
interligados em Tt 2.1-10 e 2.11-14. Também a graça não existe sem disciplina, mas ela é de natureza
diferente, sim, contrasta com o duro preceptor da lei, porque “não estais sob a lei, mas sob a graça”.
   Ela nos educa para que… reneguemos: o primeiro alvo da educação na graça é que aprendamos
a renegar! Essa não é uma instrução formal ou frouxa, mas conseqüente e decisiva. Renegar
significa renunciar, abdicar, ser capaz de dizer não. O tempo verbal (particípio do aoristo) poderia ser
vertido literalmente para: depois de termos decididamente rompido com o pecado no passado,
prosseguindo agora nessa abdicação; confirmar, por meio do comportamento atual, a abdicação já
realizada. A lei induz o ser humano a dizer “não” precipitadamente, por medo da punição, sem que
de fato es-teja convicto no coração da necessidade desse não. A graça tem o poder de realmente
convencer do pecado. A paciência de Deus pode conduzir à contrição e ao arrependimento
verdadeiros, porque à luz do amor se torna nítido que o pecado nunca vale a pena, nunca traz o
enriquecimento esperado, e que, pelo contrário, sob a influência da graça a negativa é reconhecida e
viabilizada não apenas como necessária, mas como algo que serve para nosso bem máximo. Quando
um ser humano se torna capaz de dizer não de todo o coração, isso não é nada menos que um milagre
da graça.
   A incredulidade (asebeia) contrapõe-se à verdadeira veneração de Deus, à beatitude, devoção
(eusebeia), mencionada no mesmo versículo. A palavra aponta para o passado, para uma vida sem e
contra Deus. Se a incredulidade fosse renegada definitivamente, não seria preciso exortar, as cartas
apostólicas não seriam necessárias, a graça de Deus não precisaria disciplinar nem educar. Tão certo
como precisa acontecer uma ruptura com o passado, é também que a linha divisória passa entre
incredulidade e beatitude, não apenas entre passado e presente, entre igreja e sociedade, entre cristão
e mundo. Ela atravessa também o cerne do próprio coração, porque todo agir autocrático e egoísta é
incredulidade (Tt 1.16!). A graça instrui, exorta e fortalece, para que reneguemos constantemente a
incredulidade do próprio coração. A profundidade na qual está arraigada essa alienação de Deus pode
ser notada na sofreguidão mundana que sempre eclode diante de uma falta de prazer em Deus
(beatitude).
   As paixões mundanas: “mundano” torna a aparecer ainda em Hb 9.1, com o sentido de “terreno”.
Aqui o termo pode ter uma conotação muito for-te no sentido de “desejos diabólicos”. O brilho e a
voracidade sedutores da sensualidade desprendida de Deus e desenfreada não eram nada estranhos
para as igrejas dos primórdios. Novamente importa ouvir e distinguir bem: a alegria pela criação e
pelas criaturas de Deus, a gratidão por alimento, bebida e sexualidade não devem ser confundidas
com avidez viciada que corrompe o ser humano.
   Tudo o que excita as paixões e arrasta o ser humano para longe de si mesmo está em contradição
com uma vida sensata na justiça, motivo pelo qual deve ser resolutamente rejeitado, renegado. “Foge
das paixões (da mocidade)!” Como isso aconteceria realmente, se não por graça? Como o coração
cobiçoso conseguiria não desejar os desejos por si mesmo? As variações do vício são absolutamente
ilimitadas, das formas mais grosseiras e flagrantes às mais refinadas e ocultas. Quando as paixões
mundanas não são renegadas, a graça se torna barata, a pessoa se evade da escola dela. Muitos
métodos de evangelização e missão se mostram não bíblicos quando falam apenas da fé no Salvador
dos pecadores, mas não igualmente da abdicação ao pecado. No entanto torna a espreitar também
aqui o perigo de um empenho legalista. Nenhum dos caminhos que se franqueiam ao mero esforço
humano de superação das paixões mundanas conduz ao alvo:
   1) Não resistindo aos desejos, porém negando que eles de fato existam. São explicados como
expressão da alegria de viver, como vontade de viver, como impulso justificado ou necessidade
natural.
   2) Represando as paixões, eliminando suas piores excrescências. O ser humano empreende a luta
contra si mesmo. Pessoas religiosas investirão adicionalmente em oração e meditação, exercícios de
confissão e penitência. Contudo as paixões tão-somente mudarão de aspecto e retornarão pelas portas
dos fundos ou por pensamentos escusos nos lugares mais inesperados e horas mais indesejadas. O
fim do caminho ascético é o ser humano que não pratica o bem que deseja, mas realiza o mal que
odeia.
   Sob a influência da graça educadora de Deus as paixões mundanas não são negadas, mas
renegadas, porque o Redentor liberta delas e purifica o co-ração da natureza iníqua (v. 14). Quantas
vezes podemos chegar e receber perdão para recomeçar? A graça de Deus é tão ilimitada como seu
   perdão. O limite passa dentro de nós, não dele. O medo que se levanta em nós não é fruto da graça.
   Quando o coração não se deixa exortar nem conduzir ao arrependimento verdadeiro, ele continuará
   correndo sobre os velhos trilhos, e a abdicação original – e será que foi autêntica? – permanece sem
   renovação e aprofundamento. Sob um manto devoto alastra-se, então, a velha natureza. Sem a
   exortação fraterna recíproca os limites são alcançados mais depressa do que se supõe
   superficialmente: confissão apenas da boca para fora e prática real da vida se dissociam,
   contradizem-se.
      “Todo „avanço‟ na vida cristã é um retorno à graça e uma prece por que ela realize sua obra”
   (Brandt, p. 100). A graça jamais nos dirá um não, mas ela nos conduzirá implacavelmente a dizermos
   não à nossa vida sem Deus e às paixões dela resultantes. O alvo de todo o trecho é: vida santa na
   atualidade! Quem renega, não será prejudicado na vida. Ele somente encontrará a vida plena, ele
   viverá de maneira sensata, justa e em beatitude na era presente.
      Sensato: como “doutrina”, está totalmente entrelaçado com o bloco anterior. A sensatez é o alvo
   da educação da graça: é a límpida sobriedade e vigilância que resulta da negação dos desejos secretos
   e do perdão obtido. Na sensatez não poderá prevalecer a auto-ilusão nebulosa. Vigilância total na
   atualidade para a vida de hoje, total plenitude de expectativa (v. 14), isso não é o produto final da
   autodisciplina, mas efeito da graça, a única que viabiliza a responsabilidade pessoal sensata e que
   propicia a tudo um novo objetivo.
      Justo: o sentido da palavra não deve ser dissociado do contexto. Aqueles que foram declarados
   justos são educados por graça para serem justos (para uma vida justa). 1Ts 2.10 mostra a que se
   refere “justo”, como o termo visa ser entendido: “Vós e (o próprio) Deus sois testemunhas do modo
   por que piedosa, justa e irrepreensivelmente procedemos em relação a vós que credes.” Vida santa é
   diferente de dever e responsabilidade burgueses! A terrível injustiça no mundo tem raiz nas paixões
   mundanas que extraem sua força motriz da incredulidade. A injustiça não poderá ser dominada se as
   paixões destrutivas não forem atacadas e despidas radicalmente, até as raízes, no poder da graça
   salvadora.
      Em beatitude: a devoção acompanhada da justiça e vivenciada com sóbria vigilância diante das
   paixões próprias e alheias é uma força de cunho peculiar. Não se apresenta com força ostensiva, sua
   eficácia não é impositiva. Ela é quase óbvia. Apesar disso ela desperta resistência. Não pode ser
   ignorada, deixada de lado. Essa devoção existe “em Cristo”. Nisso reside seu fundamento e sua
   eficácia. O alvo da educação da graça é uma espiritualidade que, direcionada integralmente para
   Deus, vive e age no meio deste mundo, mas de forma alguma no sentido de tentar demonstrar sua
   característica “mundana” pelo expediente de, na medida do possível, tentar ser igual (ou não-igual!)
   também a todos os demais. A motivação determinante para essa espiritualidade não é
   reconhecimento ou rejeição, mas a graça de Deus permanentemente eficaz.
      Na era presente: Aqui é decisivo que a graça educa para uma vida no mundo atual e ao mesmo
   tempo mantém acesa a tensão afetuosa e expectante pelo mundo vindouro. As past não deram uma
   guinada para instalar-se aqui de forma mundana. Sua natureza “mundana” permanece determinada
   pelo mundo vindouro.
      A tradução de Wilckens expressa bem essa tensão básica: “Ela nos educa a renegar a
   incredulidade e todas as concupiscências mundanas e a viver de maneira disciplinada, justa e devota,
   enquanto durar a presente era, porque nossa expectativa se dirige à aparição aguardada e
   beatificadora…”
13 Aguardando nós a beatificadora esperança, a saber, a manifestação da glória do nosso grande
   Deus e Salvador Cristo Jesus: gerúndio como “educando”. Um estado duradouro que expressa a
   posição escatológica, o direcionamento para o fim dos tempos. Renegar, viver, aguardar, esses três
   verbos determinam o trecho, abarcando passado, presente e futuro. Sim, expressam uma
   intensificação do abdicar ao afirmar e à expectativa. O mesmo vale para: sensata, justa, devotamente.
   Quem está ébrio de paixões não esperará, porque não está acordado, mas dorme. Tornado sóbrio do
   sono do passado, desperto pela expectativa beatificadora do que há de vir, um discípulo do Senhor
   Jesus realmente poderá viver com “presença de Espírito” e manter sua luz acesa: “Cingido esteja o
   vosso corpo, e acesas, as vossas candeias. Sede vós (ao contrário dos outros, que dormem)
   semelhantes a ho-mens que esperam (ansiosamente) pelo seu senhor”.
A beatificadora esperança, a saber a manifestação: beatitude como em 1Tm 1.11; 6.15.
Somente quem tem esperança é alguém que aguarda, vive no tempo entre a manifestação da graça em
humildade (v. 11) e a aparição em glória (v. 13). Pelo fato de que a graça conduz pela vida
perdoando e educando, a atuação dela gera uma esperança que anima e beatifica. A manifestação do
Senhor em glória é a essência e o auge da expectativa escatológica que anima o orador a dizer:
Venha o teu reino… tua é a glória. A santa vontade divina de amor alcançará seu cumprimento pleno
para toda a criação na aparição do Redentor.
   Nosso grande Deus e Redentor Jesus Cristo: Deus, que veio na realidade modesta do ser
humano Jesus, está presente desde já como Exaltado, para os que passam a amar sua aparição, por
meio do Espírito, da palavra e da ceia. Por já serem atingidos e movidos pela proximidade dele,
esperam por sua manifestação em glória. Eles não constróem para si um consolo no além por causa
de um sentimento de vazio e miséria. Não sonham com um maravilhoso mundo ideal como
compensação para a aflição e angústia. Não unificaram suas fantasias de endeusamento em um ser
humano comum, segundo os moldes do culto ao imperador. Por experimentarem desde já
diariamente seu amor redentor, purificador e por isso beatificador, por meio da reiterada
demonstração de clemência, por isso aguardam o cumprimento pleno daquilo que já começou. Sua
esperança não é substituição de algo inexistente, mas certeza da pessoa que já lhes foi presenteada.
   O que nos cabe dizer diante do alegado “endeusamento do ser humano Jesus”? Como se deve
interpretar grande Deus e Redentor? Será que aqui ocorre uma justaposição: a grande majestade (e
o poder) de Deus e a salvação do Redentor Jesus Cristo? Segundo essa visão a magnitude de Deus se
manifestaria cabalmente na aparição do Messias.
   Contudo o texto sugere que aqui se deve ver somente uma única pessoa, a saber, Jesus, o Messias
que se manifesta com glória. A estrutura da carta possui um peso decisivo: cada capítulo cita duas
vezes o Redentor, mais precisamente referindo o termo uma vez a Deus e outra vez ao Messias: Deus
(Tt 1.3); o Messias (Tt 1.4); Deus (Tt 2.10); o Messias (Tt 2.13!); Deus (Tt 3.4); o Messias (Tt 3.6).
   A expressão nosso Deus é citado somente uma vez, uma expressão de confiança e pertencimento
pessoal. Ele é o Senhor Exaltado, cuja divindade será manifestada na parusia. Em 2Pe 1.16 é a
palavra “magnitude” (majestade) que está indubitavelmente relacionada com “nosso Senhor Jesus, o
Messias”. Na literatura profana os dois títulos “Deus e Redentor” tampouco são usados para duas
pessoas diferentes, mas para o mesmo soberano secular.
   A glória em que o Messias se manifesta é sua própria realidade divina, ele há de se “assentar sobre
o trono de sua glória”. A divina doxa (glória) não apenas é manifesta através dele, mas nele, “para
que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai”.
   Seriam, portanto, os escritos do NT testemunhos de um “endeusamento do fundador” por seus
seguidores, demonstrável pela “sociologia do conhecimento”? Fazendo-o, exaltariam como divinos
também a doutrina dele e a si mesmos? Pela confissão de que Jesus seria verdadeiro ser humano e
verdadeiro Deus a fé visa expressar que Jesus era totalmente humano no agir e no sentir, no conhecer
e querer, porém em última análise perpassado por uma autoconsciência que não vem do humano, mas
é absoluta e divina. Com sua reivindicação Jesus não apenas se coloca ao lado de Moisés, mas acima
dele. Jesus apresentou-se com uma reivindicação e autoconsciência que excedem medidas humanas.
Simultaneamente Jesus cresceu como ser humano no conhecimento de si mesmo, assim como
também os discípulos podiam e precisavam crescer em sua compreensão da fé. A verdadeira
existência humana e a autoconsciência original de Jesus nunca são dissimuladas nos evangelhos.
Jesus não é um hermafrodita homem-deus!
   Por isso erram o alvo as objeções e as diferentes teorias de endeusamento. De acordo com os
evangelhos não há dúvidas acerca da humanidade plena de Jesus, seu pensar, sentir, seu mundo
imaginário. Contudo sua identidade própria é diferente e única, é de caráter divino.
   Tanto os apóstolos como também Jesus sabiam o que significa ser endeusado por pessoas! Os
apóstolos retiravam-se diante do impulso de serem idolatrados pelas pessoas, porque, afinal, não
eram deuses. Jesus não se deixou transformar em divino rei do pão, nem comprovou sua procedência
por meio de milagres, nem se deixou levar a demonstrar sua origem divina ao tentador (“Se és Filho
de Deus…”), justamente porque em sua auto-consciência divina não tinha necessidade disso.
   A divindade do Redentor será manifesta quando ele aparecer em glória. Essa esperança não
impele, por impulso e sonho, para um mundo substituto irreal, mas torna as pessoas alertas e capazes
para uma vida plena na era presente.
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  • 1. CARTA A TITO COMENTÁRIO ESPERANÇA autor Hans Bürki Editora Evangélica Esperança Copyright © 2007, Editora Evangélica Esperança Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela: Editora Evangélica Esperança Rua Aviador Vicente Wolski, 353 82510-420 Curitiba-PR E-mail: eee@esperanca-editora.com.br Internet: www.esperanca-editora.com.br Editora afiliada à ASEC e a CBL Título do original em alemão Der zweite Brief des Paulus an Timotheus, die Brief an Titus und an Philemon Copyright © 1975 R. Brockhaus Verlag Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bürki, Hans Cartas aos Tessalonicenses, Timóteo, Tito e Filemom / Werner de Boor, Hans Bürki / tradução Werner Fuchs -- Curitiba, PR : Editora Evangélica Esperança, 2007. Título original: Der Briefe des Paulus an die Thessalonicher; Der erste Brief des Paulus an Thimotheus; Der zweite Brief des Paulus an Thimotheus, die Briefe an Titus und an Philemon. ISBN 978-85-86249-97-6 Capa dura ISBN 978-85-86249-98-3 Capa dura 1. Bíblia. N.T. Crítica e interpretação I. Título. 06-2419 CDD-225.6 Índice para catálogo sistemático: 1. Novo Testamento : Interpretação e crítica 225.6 É proibida a reprodução total ou parcial sem permissão escrita dos editores. O texto bíblico utilizado, com a devida autorização, é a versão Almeida Revista e Atualizada ( RA) 2ª edição, da Sociedade Bíblica do Brasil, São Paulo, 1993.
  • 2. Sumário ORIENTAÇÕES PARA O USUÁRIO DA SÉRIE DE COMENTÁRIOS ÍNDICE DE ABREVIATURAS Questões Introdutórias O proêmio da carta – Tt 1.1-4 1. Remetente – Tt 1.1a 2. Fundamento e alvo do serviço apostólico (primeiro hino) – Tt 1.1b-3 3. Destinatário – Tt 1.4a 4. Saudação – Tt 1.4 b O Texto da carta – Tt 1.5-3.11 I. Os verdadeiros servos da igreja e sua luta – Tt 1.5-16 A. O servo como exemplo da igreja – Tt 1.5-9 1. Toda igreja precisa de presbíteros – Tt 1.5 2. A vida pessoal dos presbíteros e líderes – Tt 1.6-8 3. Seu serviço à palavra – Tt 1.9 B. A luta contra os hereges – Tt 1.10-16 1. Deterioração no povo e na igreja – Tt 1.10-12 2. Ordenar um basta à influência dos falsos mestres – Tt 1.13-16 II. A educação da igreja por meio da graça – Tt 2.1-15 A. Exortação para uma conduta digna – Tt 2.1-10 1. Homens e mulheres idosos como exemplos – Tt 2.1-3 2. O comportamento das mulheres jovens – Tt 2.4s 3. Tito como exemplo dos homens jovens – Tt 2.6-8 4. O testemunho dos escravos – Tt 2.9s B. Jesus é a graça salvífica de Deus (2º hino) – Tt 2.11-15 III. Conseqüências práticas da comunhão na fé – Tt 3.1-11 A. A relação com o Estado e a Sociedade – Tt 3.1s B. Viver da misericórdia de Deus (3º hino) – Tt 3.3-7 1. O passado da igreja – Tt 3.3 2. A obra do renascimento no Espírito – Tt 3.4-7 C. Novas exortações – Tt 3.8-11 1. Fé e obras formam uma unidade – Tt 3.8 2. Advertência contra brigas e falsas doutrinas – Tt 3.9-11 O final da carta – Tt 3.12-15 1. Incumbências específicas – Tt 3.12-14 2. Saudações e voto de bênção – Tt 3.15 BIBLIOGRAFIA ORIENTAÇÕES PARA O USUÁRIO DA SÉRIE DE COMENTÁRIOS Com referência ao texto bíblico: O texto de Tito está impresso em negrito. Repetições do trecho que está sendo tratado também estão impressas em negrito. O itálico só foi usado para esclarecer dando ênfase. Com referência aos textos paralelos: A citação abundante de textos bíblicos paralelos é intencional. Para o seu registro foi reservada uma coluna à margem. Com referência aos manuscritos: Para as variantes mais importantes do texto, geralmente identificadas nas notas,foram usados os sinais abaixo, que carecem de explicação:
  • 3. TM O texto hebraico do Antigo Testamento (o assim-chamado “Texto Massorético”). A transmissão exata do texto do Antigo Testamento era muito importante para os estudiosos judaicos. A partir do século II ela tornou-se uma ciência específica nas assim-chamadas “escolas massoréticas” (massora = transmissão). Originalmente o texto hebraico consistia só de consoantes; a partir do século VI os massoretas acrescentaram sinais vocálicos na forma de pontos e traços debaixo da palavra. Manuscritos importantes do texto massorético: Manuscrito: redigido em: pela escola de: Códice do Cairo (C) 895 Moisés ben Asher Códice da sinagoga de Aleppo depois de 900 Moisés ben Asher (provavelmente destruído por um incêndio) Códice de São Petersburgo 1008 Moisés ben Asher Códice nº 3 de Erfurt século XI Ben Naftali Códice de Reuchlin 1105 Ben Naftali Qumran Os textos de Qumran. Os manuscritos encontrados em Qumran, em sua maioria, datam de antes de Cristo, portanto, são mais ou menos 1.000 anos mais antigos que os mencionados acima. Não existem entre eles textos completos do AT. Manuscritos importantes são: • O texto de Isaías • O comentário de Habacuque Sam O Pentateuco samaritano. Os samaritanos preservaram os cinco livros da lei, em hebraico antigo. Seus manuscritos remontam a um texto muito antigo. Targum A tradução oral do texto hebraico da Bíblia para o aramaico, no culto na sinagoga (dado que muitos judeus já não entendiam mais hebraico), levou no século III ao registro escrito no assim-chamado Targum (= tradução). Estas traduções são, muitas vezes, bastante livres e precisam ser usadas com cuidado. LXX A tradução mais antiga do AT para o grego é chamada de “Septuaginta” (LXX = setenta), por causa da história tradicional da sua origem. Diz a história que ela foi traduzida por 72 estudiosos judeus por ordem do rei Ptolomeu Filadelfo, em 200 a.C., em Alexandria. A LXX é uma coletânea de traduções. Os trechos mais antigos, que incluem o Pentateuco, datam do século III a.C., provavelmente do Egito. Como esta tradução remonta a um texto hebraico anterior ao dos massoretas, ela é um auxílio importante para todos os trabalhos no texto do AT. Outras Ocasionalmente recorre-se a outras traduções do AT. Estas têm menos valor para a pesquisa de texto, por serem ou traduções do grego (provavelmente da LXX), ou pelo menos fortemente influenciadas por ela (o que é o caso da Vulgata): • Latina antiga por volta do ano 150 • Vulgata (tradução latina de Jerônimo) a partir do ano 390 • Copta séculos III-IV • Etíope século IV ÍNDICE DE ABREVIATURAS I. Abreviaturas gerais AT Antigo Testamento cf confira col coluna gr Grego hbr Hebraico km Quilômetros lat Latim LXX Septuaginta NT Novo Testamento opr Observações preliminares
  • 4. par Texto paralelo p. ex. por exemplo pág. página(s) qi Questões introdutórias TM Texto massorético v versículo(s) II. Abreviaturas de livros Bl-De Grammatik des ntst Griechisch, 9ª edição, 1954. Citado pelo número do parágrafo CE Comentário Esperança Ki-ThW Kittel: Theologisches Wörterbuch NTD Das Neue Testament Deutsch Radm Neutestl. Grammatik, 1925, 2ª edição, Rademacher St-B Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, vol. I-IV, H. L. Strack, P. Billerbeck W-B Griechisch-deutsches Wörterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der frühchristlichen Literatur, Walter Bauer, editado por Kurt e Barbara Aland III. Abreviaturas das versões bíblicas usadas O texto adotado neste comentário é a tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil, 2ª ed. (RA), SBB, São Paulo, 1997. Quando se fez uso de outras versões, elas são assim identificadas: BLH Bíblia na Linguagem de Hoje (1998) BJ Bíblia de Jerusalém (1987) BV Bíblia Viva (1981) NVI Nova Versão Internacional (1994) RC Almeida, Revista e Corrigida (1998) TEB Tradução Ecumênica da Bíblia (1995) VFL Versão Fácil de Ler (1999) IV. Abreviaturas dos livros da Bíblia ANTIGO TESTAMENTO Gn Gênesis Êx Êxodo Lv Levítico Nm Números Dt Deuteronômio Js Josué Jz Juízes Rt Rute 1Sm 1Samuel 2Sm 2Samuel 1Rs 1Reis 2Rs 2Reis 1Cr 1Crônicas 2Cr 2Crônicas Ed Esdras Ne Neemias Et Ester Jó Jó Sl Salmos Pv Provérbios Ec Eclesiastes Ct Cântico dos Cânticos Is Isaías Jr Jeremias
  • 5. Lm Lamentações de Jeremias Ez Ezequiel Dn Daniel Os Oséias Jl Joel Am Amós Ob Obadias Jn Jonas Mq Miquéias Na Naum Hc Habacuque Sf Sofonias Ag Ageu Zc Zacarias Ml Malaquias NOVO TESTAMENTO Mt Mateus Mc Marcos Lc Lucas Jo João At Atos Rm Romanos 1Co 1Coríntios 2Co 2Coríntios Gl Gálatas Ef Efésios Fp Filipenses Cl Colossenses 1Te 1Tessalonicenses 2Te 2Tessalonicenses 1Tm 1Timóteo 2Tm 2Timóteo Tt Tito Fm Filemom Hb Hebreus Tg Tiago 1Pe 1Pedro 2Pe 2Pedro 1Jo 1João 2Jo 2João 3Jo 3João Jd Judas Ap Apocalipse OUTRAS ABREVIATURAS O final do livro contém indicações de literatura. (A 25) Apêndice (sempre com número) Traduções da Bíblia (sempre entre parênteses, quando não especificada, tradução própria ou Revista de Almeida (A) L. Albrecht (E) Elberfeld (J) Bíblia de Jerusalém (NVI) Nova Versão Internacional (TEB) Tradução Ecumênica Brasileira (Loyola) (W) U. Wilckens
  • 6. (QI 31) Questões introdutórias (sempre com número, referente ao respectivo item) Past cartas pastorais ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche ZNW Zeitschrift für neutestamentliche Wissenschaft und die Kunde der älteren Kirche [ver: Novo Dicionário Internacional de Teologia do NT (ed. Gordon Chown), Vida Nova.] QUESTÕES INTRODUTÓRIAS 1) As considerações válidas para todas as três cartas pastorais (past) foram apresentadas nas Questões Introdutórias prévias ao comentário de 1Tm. A seguir acrescentam-se apenas as circunstâncias especiais da carta a Tito. Se for verdade que um falsário (pseudo-Paulo) “tenha aceitado com cega credulidade” os dados de Atos dos Apóstolos, será preciso indagar por que ele nesse caso teria inventado ainda uma carta a Tito, cujo nome nem mesmo é citado em At. E por que um pseudo-Paulo introduziria a ilha de Creta, que não consta em lugar algum dos planos e relatos de viagem de Paulo? C. Maurer (uma variante textual elucida a história do surgimento das cartas pastorais; in: ThZ, ano 3, 1947, p. 312s) tenta responder a isso desta forma: “Onde permaneceu Tito desde o concílio dos apóstolos, depois do qual na verdade já se passaram diversos anos? Ninguém sabe. Onde nosso autor o deixaria esperando até que o chamado de Paulo o alcançasse? Com certeza o melhor seria em uma região da qual se sabe o menos possível e à qual ninguém se dirige tão rapidamente a fim de conferir as informações. Essa é precisamente (!) a ilha de Creta, que para os contemporâneos da época era a terra dos ciganos, mentirosos, animais ferozes e ventres preguiçosos (cf. Tt 1.12s)! Creta não se situava mais no mundo com o qual os cristãos daquela época conviviam.” Em uma nota de rodapé Maurer menciona que exceto em At 2.11; 27.7,12s,21;Tt 1.5,12 Creta não é citada em nenhum outro texto da literatura cristã primitiva. E como um pseudo-Paulo explicaria que já não existem igrejas cristãs em Creta, depois que Paulo e Tito supostamente exerceram ali a missão? Ele inventa os insultos aos cretenses por meio do apóstolo, pelo que se pretende tornar compreensível quanto teriam resistido ao evangelho. Outro exegeta opina que em 1Tm o pseudo-Paulo teria pressuposto uma igreja solida-mente organizada, para poder expor os deveres de um dirigente da igreja. Na carta a Tito ele teria inventado uma situação em que ainda não havia igrejas consolidadas, para que pudesse narrar de modo palpável as tarefas de um missionário. Ainda outro comentarista defende a idéia de que o pseudo-Paulo teria a intenção de glorificar a Paulo, inflacionando o número das igrejas fundadas por ele com aquelas da ilha de Creta. Chipre já teria sido reivindicada por Barnabé. Contemplemos essas tentativas em detalhe, e veremos a que ponto somos levados quando postulamos de antemão que as explicações dadas pelo próprio texto da carta são camuflagem, invenção, construção. 2) Às tentativas de explicação acima referidas e outras, que têm como premissa um pseudo-Paulo, cabe responder o seguinte: a ilha Creta, de 260 km de comprimento, não apenas era muito conhecida na Antigüidade, mas além do NT também foi mencionada no AT como terra de origem dos filisteus, de nome Caftor (Dt 2.23; Jr 47.4; Am 9.7). A passagem de At 2.11 possui grande relevância, porque atesta que Lucas sabe da existência de judeus em Creta que presenciaram o milagre de Pentecostes em Jerusalém. E com certeza é por isso que Dibelius chama atenção para o fato de que Lucas também teria mencionado a evangelização de Creta por meio de Paulo e Tito se tivesse acontecido antes de 63 (fechamento de At) (p. 115). Contudo é evidente que a história da presença de judeus de todos os países vizinhos não apenas visa dizer que eles ouviram os apóstolos falarem em seus próprios idiomas, mas que aqueles que passaram a crer em Jesus como o Messias disseminaram o evangelho nos países dos quais vieram (cf. At 2.12 com 2.37,41). Entre os três mil acrescentados à igreja de Jesus no Pentecostes com certeza também havia pessoas dos países e idiomas relacionados em At 2.9-11. Por isso é possível que muito antes da visita do apóstolo surgissem em Creta pequenas células domésticas de discípulos de Jesus: contudo a influência judaísta poderia ter partido de cristãos judeus insuficientemente instruídos, o que mais tarde pode ter dado origem às doutrinas errôneas (Tt 3.9; 1.14!). Também a segunda menção da ilha em At 27.7,21 merece uma análise mais detida. Creta situa-se em um ponto de cruzamento entre Ásia, África e Europa. A palavra “sincretismo” vem dos cretenses. Em Creta cada uma das numerosas cidades queria ser o mais autônoma possível em relação a todas as demais. Somente quando estava em jogo a defesa contra um inimigo comum, os cretenses, que preferiam a independência, se uniam, tornando-se assim syn- cretenses (syn-cretismo). Isso, porém, também podia ser entendido de forma figurada, a saber, que nessa ilha confluíam toda sorte de cultos, religiões, filosofias e linhas de pensamento. Os numerosos portos de boa qualidade ofereciam uma bem-vinda proteção também pa-ra paradas mais longas no inverno: por exemplo, certa feita Paulo havia sugerido à tripulação do navio que permanecessem em Creta, até que as tempestades passassem (At 27.21). Evidentemente, por causa das numerosas viagens, ele entendia do assunto! Durante os longos meses de inverno, em que toda a navegação estava paralisada, evangelistas itinerantes tinham excelente oportunidade de entregar sua mensagem. A ilha não era tão desconhecida quanto Maurer expõe nem para os judeus nem para os cristãos. Além do mais, o pseudo-Paulo introduziria não somente Creta como novidade no programa
  • 7. missionário de Paulo, mas também outras regiões geográficas que até o momento ainda não haviam sido mencionadas no NT e que de forma alguma eram necessárias para a credibilidade das past, podendo até mesmo ameaçá-la: Gália (2Tm 4.10), Dalmácia, para onde Tito viaja a partir de Roma (2Tm 4.10), e Nicópolis, onde Paulo planeja passar o inverno (Tt 3.12; cf. a prática paulina da hibernação em 1Co 16.6). Mais plausível é de fato considerar esses novos nomes e regiões geográficas (inclusive a Espanha) como as novas etapas de viagem que Paulo pretendia alcançar depois de libertado da prisão, conforme sua esperança, seus planos e seu princípio de, na medida do possível, explorar territórios novos em que o nome de Jesus ainda ou praticamente não tivesse sido proclamado (Rm 15.19-23; 2Co 10.16). Justamente a epístola a Tito é escrita de forma tão objetiva, sóbria e sucinta (como uma espécie de síntese de 1Tm) que dela não se pode depreender nem uma glorificação do apóstolo nem uma tentativa de aumentar o número de igrejas fundadas por ele. Em 2Tm 4.7 Paulo não arrola quantas ou quais igrejas fundou, algo que ele sem dúvida faz em 2Co 11.23-33. A situação da igreja em Creta assinala uma duração mais breve e quantidade menor de igrejas de Jesus consolidadas. Contudo inventar uma situação dessas não bastaria para justificar a redação da carta, já que para isso ela possui excessiva semelhança com 1Tm. A apresentação mais concisa, porém, aponta para uma conjuntura diferente: um colaborador mais independente e autônomo, ao qual Paulo precisa comunicar de forma resumida e praticamente impessoal apenas as coisas mais importantes, que pouco antes havia escrito de forma mais pormenorizada e pastoralmente cuidadosa a Timóteo. Aquilo que outras cartas paulinas contam a respeito de Tito combina muito bem com a peculiaridade desta carta dirigida a ele. Não há necessidade de construir uma explicação. 3) Quem é Tito? O nome Tito é amplamente difundido na Antigüidade. Há um cônsul romano conhecido por esse nome. Tito é não-judeu, ou seja, “grego”, o que não quer dizer que seja oriundo da Grécia (Gl 2.3). Alguns comentaristas conjeturam que ele nasceu em Antioquia. Como Timóteo, também Tito foi conduzido até Jesus pela proclamação do apóstolo. Por isso ele o chama de “autêntico filho” na fé (Tt 1.4; 1Tm 1.2), sendo que Timóteo ainda é designado de “filho amado” (2Tm 1.2). Chama atenção que, diferentemente de Timóteo, Tito não recebe títulos especiais. Paulo escreve sobre Tito: “Para mim Tito é companheiro (parceiro, cf. Fm 17!), para vós meu colaborador, todos, porém, são irmãos, apóstolos das igrejas, um brilho de Cristo” (2Co 8.23). A Timóteo, no entanto, ele chama de diácono (2Tm 4.5; cf. 1Tm 4.6!; 2Tm 2.24; Rm 11.13; 1Co 3.5; 2Co 3.6; 4.1; 5.18; 6.3s), evangelista (2Tm 4.5), colaborador de Deus no evangelho (1Ts 3.2), homem de Deus (1Tm 6.11; 2Tm 3.17). Será que Timóteo tinha necessidade dessas caracterizações para seu fortalecimento em função de sua atribulação, ou seriam elas expressão de um singular reconhecimento por parte do apóstolo? Talvez ambas as possibilidades sejam reais. Também Tito goza de alta consideração por parte de Paulo (2Co 8.16-23). Ele já era colaborador do apóstolo antes de Timóteo, acompanhando-o com Barnabé ao concílio dos apóstolos (Gl 2.1). Se por um lado Paulo realiza a circuncisão de Timóteo para evitar escândalo desnecessário (At 16.3), por outro lado o apóstolo se nega terminantemente a permitir a circuncisão de Tito (Gl 2.3). Isso pode ser devido a diversas circunstâncias: no caso de Timóteo era uma questão da prática missionária (1Co 9.20), no caso de Tito estava em jogo uma controvérsia doutrinária fundamental sobre aquilo que é necessário à salvação e o que não é. Tito era um homem de grande autonomia. Paulo posicionava-se diante dele mais como alguém que pede e menos como alguém que emite orientações e ordens: “Mas graças a Deus, que pôs no coração de Tito a mesma solicitude por amor de vós, porque atendeu ao nosso pedido (!)… partiu voluntariamente até vós…” (2Co 8.16s). Quando Timóteo, sensível e certamente mais jovem, não foi capaz de cumprir sua incumbência em Corinto, interveio Tito, estável e zeloso. Com angústia Paulo aguardava o desfecho das negociações, que na seqüência foram coroadas de pleno êxito (2Co 2.13; 7.6,13s). Os coríntios não receberam a Tito com desprezo (esse risco existia em relação a Timóteo: 1Co 16.10s), mas pelo contrário, com temor e tremor! (2Co 7.15). Mas Tito não se mostrou duro ou autoritário. Seu coração era propício aos coríntios. Somente assim ele conseguia atuar como mediador e pacificador entre Paulo e a igreja. Paulo não precisa exortá-lo, como a Timóteo, a ser delicado para com os idosos (cf. Tt 2.2 com 1Tm 5.1!), nem escrever que, como servo do Senhor, deve ser magnânimo diante dos hereges. Pelo contrário, cabe a Tito exortar as igrejas para que usem de mansidão para com todos (cf. 2Tm 2.23s com Tt 3.2). Tito, mais equilibrado em seu íntimo, com certeza pode se apresentar com serenidade diante de outros, solucionando assim confusões humanas muito complicadas. Visto que provavelmente se portava com a mesma determinação de Apolo, ad-mirado em Corinto, a igreja estava disposta a atendê-lo “com temor e tremor”, mais do que a Timóteo, e até mesmo o próprio Paulo, que acerca de si escreve que também esteve entre eles “com temor e tremor” (1Co 2.3). Ademais, tampouco Apolo é caracterizado por Paulo com títulos adicionais. Como Tito, é citado apenas pelo nome (1Co 1.12; 3.5s,22; 4.6) ou como irmão (1Co 16.12). O simples som do nome permite concluir que ambos atuavam com grande autonomia como apóstolos (cf. At 14.4,14; Rm 16.7 e QI 12 [antes do comentário a 1Tm]), sendo reconhecidos como tais. Contudo Tito permanece (mais que Apolo) dependente das instruções do apóstolo. Ainda que pedindo, Paulo o compromete com algumas incumbências (cf. Tt 1.5; 3.12). Encarrega-o de organizar em Corinto a coleta em favor de Jerusalém, o que constituía uma parte essencial da tarefa missionária a que Paulo estava submetido (cf. Rm 1.5; 15.15; 1Co 1.4; Rm 3.24; 5.20; 15.26; 1Co 16.1-4; 2Co 8.1-6,16,23; 12.18).
  • 8. Acerca da viagem conjunta de Paulo e Tito para Creta obtemos somente a informação de que Paulo o deixou lá para que, como negociador e administrador, levasse adiante e aprofundasse a obra iniciada (cf. Tt 1.5 com 2Co 8.6: o que iniciou anteriormente será agora concluído por ele). A tradição da igreja noticia que Tito teria se tornado bispo, permanecendo solteiro e falecendo aos 94 anos de idade. COMENTÁRIO O PROÊMIO DA CARTA – TT 1.1-4 1 – Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade, 2 – na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir pro-meteu antes dos tempos eternos 3 – e, em tempos devidos, manifestou a sua palavra mediante a pregação que me foi confiada por mandato de Deus, nosso Salvador, 4 – a Tito, verdadeiro filho, segundo a fé comum, graça e paz, da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Salvador. 1. Remetente – Tt 1.1a O cabeçalho da carta do escrito a Tito é mais longo que o de 1Tm e 2Tm e que o de todas as demais cartas de Paulo, exceto a carta aos Romanos. Os v. 1-3 trazem, em palavras concisas, a mais completa descrição do serviço apostólico, como Paulo o compreendia e praticava. O estilo da apresentação é praticamente o de um hino. Paulo começa com um louvor ao Deus eterno que chama pessoas mortais para seu serviço. Na explicação subseqüente analisaremos, pela ordem, cada uma das expressões dessa confissão apostólica: 1 Paulo, servo de Deus: cf. Tg 1.1; única ocorrência em Paulo; de resto ele se intitula “servo do Messias”: Rm 1.1; Fp 1.1; Gl 1.10. O título “servo de Deus” é antigo, sendo usado somente para os profetas, para Abraão, Moisés, Davi: 2Sm 7.5; Sl 105.42; Dn 9.11. Por meio desse título (incomum para o NT) Paulo se posiciona ao lado dos patriarcas e profetas. Provavelmente ele o faz em vista dos cristãos judeus hereges (v. 10). Apóstolo do Messias Jesus: cf. 1Tm 1.1;2Tm 1.1! Esse título explica em que sentido Paulo é servo de Deus, a saber, como emissário de Jesus, o Messias. 2. Fundamento e alvo do serviço apostólico (primeiro hino) – Tt 1.1b-3 Em consonância com a fé: o serviço do apóstolo está fundamentado naquilo que Deus fez e faz continuamente, razão pela qual a atuação de seu servo também está em correlação com aquilo que os discípulos do Senhor crêem e são. Porque eles mesmos não têm sua origem em Paulo, mas em Deus. O serviço do apóstolo é apenas realização e selo daquilo que Deus efetua. Aqui a fé deve ser entendida como “ser crente” (como em 1Tm 4.1; 2Tm 3.8) e não como doutrina da fé. Trata-se da fé pessoal dos eleitos de Deus. 2Tm 2.10 destaca Deus como aquele que elege. Como “servo de Deus”, “eleito” é título de honra para Israel (1Cr 16.13; Sl 105.6,43). No NT somente Paulo confere esse título aos membros da igreja (Rm 16.13; 8.33; Cl 3.12). Conhecimento da verdade: cf. 1Tm 2.4; 4.3; 2Tm 2.25; 3.7! Não está em jogo um conhecimento da verdade em si, mas um conhecimento que seja condizente com a beatitude! Aqui a beatitude contrasta com o v. 10. Quando a verdade salvadora de Deus não conduz à devoção, ela errou seu alvo. Está em jogo a verdadeira vida dos fiéis. O que não está fundamentado na verdade nem determinado por ela não é vida verdadeira. A verdade forma uma unidade com a vida, assim como a fé forma uma unidade com as obras. 2 Com base na esperança da vida eterna: como em 2Tm 1.1, deve ser relacionado com o apóstolo e não com a afirmação diretamente anterior. Seu serviço tem cunho escatológico (de fim dos tempos):
  • 9. Rm 4.18; 5.2; 8.20; 1Co 9.10; 15.30-34; 1Tm 4.10; 2Co 4.17. Por isso importa agarrar desde já a vida eterna (1Tm 1.16; 4.8; 6.12; 2Tm 1.1), porque a esperança pelo que ainda não se vê já está presente no Ressuscitado e na sua mensagem salvadora. Assim, portanto, a vida eterna dos ouvintes também deve estar subentendida como alvo da missão apostólica; cf. Tt 3.7; 1Tm 1.16; 2Tm 2.10. Contudo a vida eterna continuaria sendo um desejo infundado e até mesmo puro devaneio sem o Deus eterno que não mente (apseudes), literalmente: livre de falsidade. Contrasta com o v. 12; cf. também 1Tm 6.20: pseudognosis = falso conhecimento! Deus é verdadeiro e fiel; cf. 2Tm 2.13; Rm 3.4; 11.29; Lv 23.19. Prometido há tempos eternos (chronoi aionioi): expressa que Deus prometeu a salvação segundo seus eternos desígnios; cf. At 26.6: a esperança pela promessa recebida; 2Tm 1.1; 1Tm 4.8; Rm 4.13s,16,20. O que Deus prometeu ele é capaz de cumprir e também há de cumprir (Rm 4.21). 3 Agora ele revelou sua palavra em tempo hábil, determinado pessoalmente por ele: o desígnio eterno foi revelado na plenitude do tempo. E precisamente essa palavra de Deus é reproduzida por meio da proclamação, que me foi confiada de acordo com a incumbência de Deus, nosso Salvador. Nos v. 1-3 Paulo descreve origem, peculiaridade, conteúdo e alvo de seu serviço apostólico: 1) Deus, que promete e deseja a salvação redentora para todas as pessoas, é a única origem desse serviço da salvação. Paulo evangeliza por causa de Deus e com vistas a ele, e não por causa dos humanos nem por causa de sua saudade, miséria e perdição. Justamente por isso, na verdade, ele evangeliza para os humanos, porque visa conquistá-los unicamente a partir da misericórdia divina, que age também nele. 2) “Apóstolo” é um conceito corrente em todo mundo antigo, mas o conceito de que “ser apóstolo” é um serviço, é uma novidade completa. Deus deseja fazer com que por meio do serviço humilde de seu mensageiro a boa nova, o evangelho de Jesus, seja proclamada a todos. 3) O conteúdo da proclamação é Jesus, o Redentor. Ele é a palavra da salvação, da graça,, da vida, reconciliação, da verdade, em suma: ele é a palavra de Deus aos seres humanos. 4) O alvo: por meio da proclamação, e quando a ouvimos como palavra de Deus, ele desperta a fé salvadora. É assim que se configura a descrição do serviço apostólico “em consonância com a fé dos eleitos de Deus”. Essa límpida passagem jamais deve ser esquecida na interpretação das past. 3. Destinatário – Tt 1.4a 4 A Tito, meu autêntico filho segundo a fé em comum. Tito abraçou a fé em Jesus por meio da proclamação do apóstolo, representando um fruto real do serviço apostólico. Autêntico também pode ser a designação de um companheiro de luta na fé, desde que seja aprovado. O relacionamento do apóstolo com Timóteo, o “filho amado”, certa-mente era mais íntimo, mas Tito também está bem próximo dele. Tanto mais surpreendente é que um colaborador tão próximo e íntimo de Paulo não seja mencionado em nenhuma passagem de At. Sobre a fé em comum apóia-se o relacionamento espiritual entre pai e filho. Chama atenção a diferença em relação a 1Tm 1.2, onde simplesmente se lê: meu autêntico filho na fé. Será que a ênfase do que há em comum permite inferir uma maior independência de Tito, ou será que a intenção é enfatizar a posição comum de todos os que crêem (cf. 1b: em consonância com a fé dos eleitos)? Tito representou o apóstolo com sucesso em uma questão complicada na igreja de Corinto, enquanto Timóteo praticamente teve de ser protegido dos coríntios. Em outras ocasiões Paulo também escreve da “fé em comum”, compartilhada com todos os discípulos de Jesus; com todos eles participa da “salvação conjunta”. Entendida nesse sentido, a catolicidade, i. é, a validade geral ou participação geral na fé, representa uma preocupação central da Bíblia. 4. Saudação – Tt 1.4b 4b Graça e paz de Deus, o Pai, e do Messias Jesus, nosso Redentor. O mesmo voto de bênção de Rm; Cl; Ef; Fp; 2Ts; porém diferente de 1Tm e 2Tm, onde consta: graça, misericórdia, paz. Na verdade as past são semelhantes no linguajar, estilo e ensejo, mas diferenciam-se entre si pela
  • 10. variação de expressões, uma característica geralmente encontrada em Paulo. Somente Tt traz a dupla saudação de bênçãos, somente 2Tm traz gratidão e oração nas frases iniciais. A saudação de bênção não somente se encontra no culto a Deus ou nas cartas do NT, mas igualmente nas saudações e correspondências do dia-a-dia, embora não tivesse nenhuma conotação artificial. O TEXTO DA CARTA – TT 1.5-3.11 I. Os verdadeiros servos da igreja e sua luta – Tt 1.5-16 A. O servo como exemplo da igreja – Tt 1.5-9 1. Toda igreja precisa de presbíteros – Tt 1.5 5 – Por esta causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem as coisas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses presbíteros, conforme te prescrevi. Dessa frase pode-se concluir que Paulo e Tito evangelizaram juntos em Creta. Judeus de Creta estiveram em Jerusalém por ocasião do Pentecostes. Não se pode descartar que alguns deles aceitaram a fé em Jesus, o Messias, retornando a Creta como primícias da fé. Tais primeiros contatos podem ter aberto o caminho para uma posterior viagem missionária. O motivo direto da carta são os dois colaboradores mencionados em Tt 3.13, que viajam até Creta, entregando a missiva a Tito. Na época da redação Paulo está livre (Tt 3.12). A situação é semelhante à de 1Tm: Timóteo deve organizar o necessário em Éfeso, e Tito em Creta. Tanto em 1Tm quanto em Tt a instrução oral é seguida por confirmação e complementação escritas, um procedimento que não é incomum para Paulo. Tito também deixará a ilha. Por isso é necessário que as instruções sejam entregues por escrito às mãos dos irmãos colaboradores e co-dirigentes em Creta. Em 1Tm já se pressupõem formas e serviços eclesiais mais sólidos, em Creta parece existir um estágio anterior de constituição da igreja. As coisas faltantes são aquilo que ainda falta para o desenvolvimento de uma igreja plenamente emancipada. O que Paulo deixou inconcluso é confiado a Tito para que este cuide da evolução posterior. O que Deus começou ele pretende levar à maturidade. Aqui não se tem em vista apenas um aperfeiçoamento em termos de organização! Já em 1Ts 3.10 Paulo escreve que deseja dirimir as falhas que ainda estão ligadas à fé. As igrejas devem chegar à aprovação na fé. Tito recebe particularmente a incumbência de instituir presbíteros em cada cidade. Aparentemente a fé em Jesus se expandiu primeiramente nas cidades, ou as igrejas cresceram mais rapidamente nelas, de modo que se tornasse necessária a instalação de presbíteros. As aldeias e localidades das redondezas eram evangelizadas a partir das cidades. Em todos os lugares a instalação de servos para a igreja aconteceu com a participação dos membros da igreja. At 14.23 informa que Paulo e Barnabé retornaram a três cidades em que se haviam formado igrejas durante a primeira migração evangelizadora. Somente agora, na segunda estadia, elegem presbíteros em cada igreja, recomendando-os em conjunto com a igreja ao Senhor, mediante oração e jejum. A evangelização em Creta pode ter ocorrido de forma similar. Primeiramente Paulo e Tito viajaram em conjunto pela ilha, anunciando o evangelho de Jesus. Em uma segunda visita, pouco tempo depois, Tito (ele permaneceu na ilha, enquanto Paulo seguiu viagem) deve confirmar, em e com as jovens igrejas, presbíteros que se evidenciaram como agraciados e aprovados por Deus em vista de seu serviço aos fiéis. Em todas as igrejas surgidas da atividade missionária de Paulo havia serviços eclesiais organizados desde o princípio, tão logo um grupo sólido de discípulos estivesse de fato formado. O NT não dá notícia de nenhuma igreja sem liderança. O estilo de liderança pode se configurar de formas muito distintas, porém nunca na forma de uma posição especial excludente ou de uma reivindicação legal consolidada. 2. A vida pessoal dos presbíteros e líderes – Tt 1.6-8
  • 11. 6 – alguém que seja irrepreensível, marido de uma só mulher, que tenha filhos crentes que não são acusados de dissolução, nem são insubordinados. 7 – Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como despenseiro de Deus, não arrogante, não irascível, não dado ao vinho, nem violento, nem cobiçoso de torpe ganância; 8 – antes, hospitaleiro, amigo do bem, sóbrio, justo, piedoso, que tenha domínio de si. 6 Quando alguém for irrepreensível: repetido no v. 7. Em 1Tm 3.10 é condição para o diácono, valendo portanto para qualquer categoria de servidor, assim como em 1Co 1.8; Cl 1.22. Em 1Tm 3.2 não consta a mesma palavra, mas vigora o mesmo sentido. Marido de uma só mulher, com filhos crentes que não são acusados de negligentes nem insubordinados. Em 1Tm 3.4 se espera que os pais sejam capazes de manter os filhos obedientes. Será que a palavra sobre os filhos crentes pressupõe um tempo excessivamente longo de desenvolvimento da igreja em Creta? Não, mas ela mostra que os presbíteros de fato eram pais de família amadurecidos em idade, que em parte já tinham filhos adultos. Quando os filhos em uma casa são obedientes e crentes, pode-se concluir que o pai também é apto para presidir a família eclesial. Negligência (Vulgata: luxuria); como em Ef 5.18; 1Pe 4.4. Lc 15.13: o mesmo termo como adjetivo: viver de forma relaxada, desorganizada, esbanjadora! Pano de fundo no AT: Pv 28.7. Insubordinado também pode ser traduzido por desobediente, rebelde. A convivência em família era de significado essencial para a expansão e o aprofundamento da fé, porque as igrejas ainda eram quase que exclusivamente comunidades domiciliares, e porque o entorno muitas vezes hostil observava com atenção máxima o que acontecia nesses lares. 7 O presidente deve ser irrepreensível como administrador de Deus: O presidente é um dos presbíteros e vem das fileiras deles, por isso é repetida para ele a característica decisiva: que seja irrepreensível! O singular não exclui a possibilidade de que houvesse vários presidentes em uma cidade, especialmente quando se formavam várias igrejas caseiras na mesma localidade. Ao contrário de 1Tm, não se mencionam aqui diáconos. Não se trata de listar todos os serviços na igreja e muito menos de instituir um cargo de bispo monárquico, nem de providenciar o ordenamento jurídico de cargos. A prestação de serviços na administração de Deus acontece pela fé. Cada administrador presta contas do que faz e deixa de fazer. Na seqüência são arrolados cinco vícios que o presidente deve evitar (v. 7), e depois ocorrem seis exigências, imprescindíveis para sua contribuição na edificação da igreja. Não autocrático: usurpador, sem escrúpulos, caprichoso, teimoso. Um bom líder não imporá a si mesmo, não tentará avançar solitariamente e sem os irmãos co-responsáveis. O dirigente seja servo de todos, não seu comandante e senhor. Não irascível: faz parte de autocrático. Quem considera a si mesmo capaz de tudo ou confia demais em si rapidamente perde a paciência com outros. Um valentão em breve se torna solitário, alguém que tem apenas seguidores submissos, mas não irmãos co-responsáveis. Não dado ao vinho, não briguento, não ganancioso: Houve tentativas de explicar essas condições, de conotação óbvia, com os primórdios da missão e o baixo nível do entorno gentílico. Contudo demandas morais que parecem elementares não são cumpridas de forma óbvia. Quando as exigências básicas (aquilo que é fundamental e elementar) são apenas pressupostas, e não são constantemente propostas, examinadas e exercitadas, todo avanço permanece incerto e pode levar à auto-ilusão. 8 Hospitaleiro, amigo do bem (philoxenos, philagathos): ser hospitaleiro é um exemplo para muitos de como se pode praticar a disposição para o bem. Essa amabilidade se contrapõe à atitude autocrática (v. 7): ao invés de fechada e preconcebida, a pessoa seja aberta para outros, visando o melhor deles. Um amigo do bem está “aliado ao bem maior do próximo”. Dessa maneira é capaz de desenrolar questões complicadas, apaziguar brigas, sendo sábio e sensato nesse procedimento. “Sensato” também é usado em 1Tm 3.2 para o presidente, em Tt 2.2,5-6, porém, para todos os membros da igreja, jovens e velhos, homens e mulheres! Justo e santo formam uma unidade, porque justiça não é mera virtude humana, ela vem da santidade de Deus. Cf. Ef 4.24: o novo ser humano em justiça e santidade sinceras. Paulo emprega a mesma combinação de palavras para caracterizar seu próprio comportamento como evangelista e servo das igrejas: “Procedemos de modo piedoso, justo e irrepreensível em relação a vós” (1Ts 2.10).
  • 12. Abstêmio (egkrates, ocorrência única no NT); controlado, disciplinado. Consta como substantivo em Gl 5.23, disciplina como fruto do Espírito, cf. 2Tm 1.7! Também em At 24.25 a abstinência está associada à justiça. O novo ser humano despertou para a vida verdadeira, para amizade com tudo que é bom, pronto para servir à igreja. 3. Seu serviço à palavra – Tt 1.9 9 – (Uma pessoa) apegada à palavra fiel, que é segundo a (sã) doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem. 9 Apegar-se: como em 1Ts 5.14 cuidar dos pobres, preocupar-se com eles, incomodar-se. Aderir a uma causa ou a alguém: Mt 6.24; Pv 3.18; Jr 2.8. Perseverar na palavra é premissa para toda exortação e confrontação. Como se relacionam a doutrina e a palavra? A confiável palavra do Senhor forma o fundamento para todos os ensinamentos. A melhor explicação para esse nexo é dada pelo próprio Paulo, em 2Ts 2.15: “Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa.” A palavra confiável designa a totalidade da tradição, mas, para que possa ser preservada, precisa ser ensinada, oralmente e por escrito. Já no tempo de 2Ts a tradição escrita tinha de ser protegida contra falsificações. Nas past a distinção entre doutrina confiável e falsa se tornou mais premente. Em consonância, a tradição escrita assumiu formas mais sólidas. Quando o servo da palavra persevera nessa palavra, ele é capaz de exortar (dynatos), literalmente: estar autorizado, obter plenos poderes, como em 2Tm 1.12! A autorização para o serviço não é assegurada por meio de uma instância exterior, nem pelo ato de uma “instalação no cargo”! Somente estará autorizado a partir da palavra de Deus aquele que confia nessa palavra e lhe obedece. O Espírito Santo autoriza o mensageiro. Receber, preservar e transmitir a palavra inspirada pelo Espírito Santo só é viável na força do mesmo Espírito. Só o Espírito faz com que a palavra e a conduta sejam vivas, i. é, capazes de desenvolver eficácia. Exortar com base na reta doutrina: Uma comparação com 1Tm 5.1; 6.2; Tt 2.6,15 mostra que “exortar” deve ser entendido aqui no sentido de “exercer o cuidado pastoral”. É verdade que na proclamação também é possível exortar de forma genérica, mas o alvo de toda exortação não deixa de ser a situação concreta: visa-se interpelar um indivíduo, determinada família ou grupo com a palavra de Deus. Argüir os contraditores: o mesmo verbo de Mt 18.15. Cf. 1Tm 5.20; 2Tm 4.2! A tarefa de Tito está claramente delineada, mas “nada nos foi dito sobre um magistério doutrinário específico” (Holtz). Nem todos os presbíteros são presidentes, nem todos os presidentes possuem o dom de ensinar (que é diferente do dom de exortar). Contudo a instrução sempre está presente, até mesmo na atividade de aconselhamento, quando de fato visa alicerçar cada pessoa sobre a palavra e direcioná-la para o Senhor, porque esse é o sentido de toda a exortação e correção. B. A luta contra os hereges – Tt 1.10-16 1. Deterioração no povo e na igreja – Tt 1.10-12 10 – Porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e enganadores, especialmente os da circuncisão. 11 – É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não devem, por torpe ganância. 12 – Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos. 10 As jovens igrejas dos discípulos de Jesus não podem viver fora das circunstâncias da sociedade, pelo contrário, devem brilhar como uma luz nas trevas em meio à população da ilha de Creta, da qual, afinal, eles mesmos são oriundos, e atuar como sal contra a deterioração da realidade social. Mas o espírito da insubordinação e insolência ainda ou já (novamente) atua nas próprias fileiras, porque muitos são insubordinados, palradores frívolos e enganadores. Os rebeldes não querem se enquadrar no todo, resistem à sã doutrina, trazendo sua própria sabedoria sedutora, porém vazia. Já acerca dos filhos de presbíteros se afirmou que não devem ser insubmissos - justamente eles podem
  • 13. ser facilmente seduzidos pelos ilusores quando o pai não é capaz de dar um basta, com verdadeira autoridade, ao curso descontrolado na própria casa e na igreja domiciliar. Os da circuncisão são mestres cristãos judeus. Com certeza não são mestres judaicos, porque eles não ensinariam nas igrejas de Jesus. O princípio de 1Co 5.11-13 vigora também nas past: a igreja não é incumbida de julgar os que estão do lado de fora, mas ela deve cuidar do acerto das coisas em seu próprio meio. Não se trata aqui de uma condenação geral “dos judeus”. Na realidade nem mesmo se fala exclusivamente de cristãos judeus. Também outros hereges estão agindo, sendo que “os da circuncisão” são os mais influentes. 11 É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo casas inteiras. Os mestres citados no v. 10 circulam nas igrejas. Não se ordena sua expulsão, mas apenas que sejam impedidos de ensinar. Não é dito como devem ser calados. Existe a ordem direta que exige o silêncio, aqui, porém, o contexto leva a imaginar uma correção persuasiva que leva ao reconhecimento e por isso ao fim dos meros palavreados vãos. Ao contrário de 2Tm 3.6 a ação dessas pessoas não acontece secretamente, mas de modo impertinente e ruidoso. Como famílias e igrejas em geral ainda viviam sob o mesmo teto, podia facilmente acontecer a deturpação de casas inteiras, com filhos se opondo aos pais, e o pai se opondo à mãe, cada qual ainda justificando sua conduta pela religião. Os falsos profetas ensinam o que não devem, vendendo suas mentiras e feitiçarias por torpe ganância. 12 “Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos.” O dito é atribuído ao sacerdote cretense Epimênides (séc. VI a.C.) e era amplamente difundido na Antigüidade. O que esse homem dissera muitos séculos antes continua válido na época em que surgem as igrejas de Jesus. Logo seu conterrâneo é um profeta. Isso é irônico: “Esse testemunho é verdadeiro” (v. 13). Como Paulo poderia acolher um veredicto tão sumário, e ainda reforçá-lo? Se essas frases constassem de um relato de viagem sobre Creta, elas estariam deslocadas, porque não descrevem, mas desvendam e acusam. Aqui, porém, a reprimenda e correção proféticas constituem o pano de fundo determinante. Somos lembrados aqui dos ais de Jesus sobre os fariseus. Obviamente essas frases seriam indelicadas e incompreensíveis se fossem mera afirmação, mera expressão de agressão pessoal ou coletiva contra pessoas de pensamento divergente. Só quem luta e sofre na entrega total em favor de pessoas, como fizeram Jesus, os profetas e apóstolos, pode desnudar sem papas na língua tudo o que é podre e falso, para despertar um indivíduo, um grupo, uma igreja ou todo um povo, chamando-os ao arrependimento. Paulo escreve “chorando acerca dos inimigos da cruz (não são seus inimigos pessoais)…, cujo deus é o ventre”, e Jesus chora sobre os habitantes de Jerusalém, que apedrejaram os profetas e também matarão a ele. Jeremias chora pelo orgulho de seu povo exclamando: “Tenho visto as tuas abominações sobre os outeiros e no campo, a saber, os teus adultérios, os teus rinchos e a luxúria da tua prostituição. Ai de ti, Jerusalém!” Essas seguramente não são palavras lisonjeiras, mas tampouco podem ser consideradas ofensivas, valendo o mesmo para a citação mencionada aqui por Paulo, que visa confirmá-lo por experiência própria. 2. Ordenar um basta à influência dos falsos mestres – Tt 1.13-16 13 – Tal testemunho é exato. Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sadios na fé 14 – e não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da verdade. 15 – Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas. 16 – No tocante a Deus, professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são abomináveis, desobedientes e reprovados para toda boa obra. 13 Esse testemunho é verdadeiro. Não se trata de uma crítica geral à sociedade; pelo contrário, o foco é a condição interna da igreja. Quando predominam condições tão deturpadas é preciso argüir severamente. Para isso é preciso ter determinação total. As exortações, constantemente repetidas, do apóstolo para Timóteo e Tito não são supérfluas. Se os dois exercerem com determinação seu serviço, terão de enfrentar desprezo e até mesmo perseguição.
  • 14. Para que convalesçam na fé: essa lúcida colocação do alvo ao mesmo verbaliza o diagnóstico: estão enfermos em sua orientação básica mais íntima, a saber, na fé. Por isso superstição e dissolução moral se alastram como um tumor. Se Tito não perseverar na palavra confiável da sã doutrina, ele mesmo também poderá ser contagiado. Mas, se enfrentar com toda a determinação a confusão por meio da palavra da verdade, isso redundará para os hereges em convalescença na fé. O alvo não é expulsá-los ou estigmatizá-los, mas curá-los! 14 Não se ocupem com fábulas judaicas: é a única vez no NT em que aparece o termo “judaico”. Como em 1Tm 1.4 (!) deve-se ter em mente lendas e genealogias ou catálogos de gerações. Mandamentos humanos: preceitos de cunho ritual como em Cl 2.22,21. Aquilo que é preciso cumprir para estar em ordem perante Deus (v. 15). Os evangelhos chamam esses mandamentos de “tradição dos antigos”. Quem institui e ensina mandamentos próprios põe de lado os mandamentos de Deus, distancia-se da verdade: distanciar-se da fé, do evangelho, como em 2Tm 4.4! 15 Aos puros tudo é puro; aos impuros e descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles são impuras. Paulo fornece uma resposta orientadora para um conflito concreto, a qual remonta a uma palavra do Senhor, e que ele já expôs em outra ocasião: prescrições e ações de purificação exterior (como costumes e hábitos de cunho religioso) não podem apresentar um ser humano como puro diante de Deus, nem seu não-cumprimento torna alguém impuro. A decisão sobre puro e impuro é tomada única e exclusivamente com base no coração humano. É óbvio que a circunstância de que essa verdade vem sendo questionada com tanta persistência constitui precisamente uma exteriorização desse coração dilacerado em si mesmo, que não quer aceitar como verdadeira a única maneira pela qual pode acontecer a purificação: quando Deus purifica esse coração! Os impuros e descrentes estão marcados na consciência, com sua razão confusa confundem a outros. São descrentes porque não confiam (mais) no Senhor ressuscitado e vivo, que é o fim da lei, e o único que purifica a consciência de obras mortas. Quando estiver manchada a consciência que avalia as próprias idéias, palavras e ações, também a razão será corrompida, por não ter mais medida para diferenciar entre verdade e mentira, entre bem e mal. 16 Asseveram conhecer a Deus, porém pelas obras o negam; são abominação para Deus, porque não lhe obedecem e são incapazes para qualquer boa obra. O conflito com falsas doutrinas e seus representantes sempre leva a uma grave aflição e tribulação, porque cada pessoa tenta justificar moralmente sua convicção e seu agir, dando-lhe a aparência de honradez. Aqueles que afirmam conhecer a Deus tentam, portanto, parecer religiosos. De modo algum são “ateus”. Pelo contrário, podem assegurar que representam uma religiosidade melhor, mais autêntica. São iguais àqueles que ostentam uma forma de beatitude, mas na realidade só olham para si mesmos. Uma vez que não conhecem (negam) a força da verdadeira devoção, negam o verdadeiro Deus também no agir. Pelos frutos torna-se explícito quem são. Mas evidentemente não se pode emitir um veredicto espiritual com a facilidade e rapidez que muitas vezes seria desejável. Também as doutrinas são obras, que coincidem com o testemunho dos lábios ou não. São abominação para Deus. Abominação é o que repugna a Deus. Em Rm 2.22 ocorre o verbo correspondente: “Abominas os ídolos e lhes roubas os templos” (também aqui a contradição entre testemunho e ação). Animais impuros deviam ser considerados abominação. É essa a possível alusão dessa palavra, provavelmente porque o v. 14 também contém preceitos sobre alimentos puros e impuros. Que ironia! Com vossos preceitos de purificação e mandamentos visais precaver-vos de abominações, para serdes aceitáveis perante Deus, e nisso vos tornastes pessoalmente uma abominação para Deus. Porque não lhe obedecem, mas se guiam por suas próprias leis e lhe submetem outros. Por isso são imprestáveis, reprovados, incapazes. Paulo, que cuida e luta para que ele mesmo não se torne imprestável, depois de ter anunciado o evangelho a outros e se confessou do lado de Deus, conclama agora também com a máxima determinação seu filho Tito, para que não se torne imprestável, mas que nesse esforço recupere os renegados para que convalesçam na fé. “Pelos frutos os conhecereis”, – por mais difícil que seja a aplicação dessa palavra para cada caso, ela não deixa de ser um parâmetro para diferenciar entre heresia e são doutrina. A pergunta decisiva é: como são as obras? Será que estão em consonância com o testemunho da fé, como corresponde à sã doutrina do evangelho?
  • 15. II. A educação da igreja por meio da graça – Tt 2.1-15 A. Exortação para uma conduta digna – Tt 2.1-10 1. Homens e mulheres idosos como exemplos – Tt 2.1-3 1 –Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina. 2 – Quanto aos homens idosos, que sejam temperantes, respeitáveis, sen-satos, sadios na fé, no amor e na constância. 3 – Quanto às mulheres idosas, semelhantemente, que sejam sérias em seu proceder, não caluniadoras, não escravizadas a muito vinho; sejam mestras do bem, Os hereges e seus grupos não devem ser difamados nem desprezados. O alvo da argüição profética é “convalesçam na fé” (Tt 1.13). O mesmo vale para exortações à igreja em geral e particularmente aos idosos em seu meio (Tt 2.2). Ao invés de negar a fé em Deus através do agir, devem professá-la por meio da conduta (Tt 2.1-10). Nas past os “catálogos para vida doméstica” não são subdivididos em “segmentos” (homem-mulher, pais-filhos, senhores-escravos) como nas demais cartas de Paulo, mas pelas diferenças de idade e gênero. Ambas as listagens têm em comum a ênfase na família, o que se expressa com mais nitidez em Tt do que em 1Tm. O cerne da família, assim como da igreja, consiste na afetuosa harmonia de marido e mulher “no Senhor”. Os v. 1-10 mostram o que essa unidade na concordância mútua significa na prática, como ela pode ser favorecida, e como é possível evitar a ruptura entre idoso e jovem, homens e mulheres. Depois disso, volta a ser apresentado um hino como bloco de proclamação (Tt 2.11-14). O v. 15 encerra essa seção da carta (Tt 1.10-2.14). Novamente é acrescentada uma passagem de exortação, agora referente à conduta da igreja perante sociedade e autoridade (Tt 3.1s), ao que se conecta mais um bloco de proclamação (Tt 3.3-7). Os dois trechos de proclamação são “como colunas de ponte que sus-tentam toda a série de exortações” (Brandt, p. 95). Se os blocos de exortação e proclamação não forem nitidamente sepa-rados, o comentarista cai na tentação de transformar em lei geral aquilo que tinha a intenção de uma aplicação muito prática do evangelho a uma situação bem específica. Doutrina e vivência não são a mesma coisa, contudo importa harmonizar ambas nos desafios constantemente renovados do cotidiano. A seção anterior de Tt expôs como e por que ensino e vivência muitas vezes se dissociam. Tt 2.1-10 fornece instruções de como ambas convergem e crescem de maneira saudável. 1 Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina. Conecta-se com Tt 1.13 e desenvolve a dupla incumbência citada em Tt 1.9: argüir os que se contrapõem (Tt 1.10-16) e exortar a todos (Tt 2.1-10). Tu, porém, fala com autoridade (Tt 2.15), contrastando com os vãos discursadores que ensinam o que não convém (Tt 1.10s). O que contradiz a sã doutrina deve ser coibido, o que lhe corresponde deve ser favorecido. Pessoas convalescerão e amadurecerão quando aprenderem a reconhecer e praticar a vontade de Deus. Adoecerão na fé quando agirem ignorando as orientações de Deus, e igualmente quando mesmo conhecendo a vontade de Deus não a cumprirem. 2 (Fala, pois,) que homens idosos (o presidente vem do grupo dos ho-mens idosos, razão pela qual também tem as mesmas fraquezas que eles) devem ser sóbrios: ser alertas, contentar-se, ser comedidos, o contrário de Tt 1.12; cf. 1Tm 3.2! Honrados: 1Tm 3.4,8,11. Sensatos: 1.8; 1Tm 3.2. Essas três qualidades apontam a um ponto comum: a tranqüila serenidade do homem maduro, no qual a palavra e a conduta, a convicção e a ação entraram em consonância. Sadios na fé, no amor e na constância: 1Tm 6.11; 2Tm 3.10! As três cartas pastorais (past) têm como preocupação fundamental que as igrejas se tornem saudáveis, maduras, emancipadas na fé. Nisso as pessoas idosas devem precedê-las como exemplos. A tríade de fé, amor, esperança sintetiza o mais íntimo cerne daquilo que o evangelho significa. Isso não tem nada a ver com “aburguesamento”, porque essa maturidade na fé é devoção gerada pelo Espírito, e não está direcionada para uma hábil adaptação ao mundo, mas para a glória de Deus. 3 Mulheres idosas (presbytis) semelhantemente: cabe dizer a elas o mes-mo que foi dito aos homens idosos, apenas enfatizando de forma correlata a sua condição feminina.
  • 16. Na atitude dignas: a atitude abarca todo o ser, a unidade da consti-tuição interior e da aparência exterior. Dignamente (hieroprepes), a rigor: apropriado ao que é santo. Wohlenberg traduz: “As mulheres idosas, seme-lhantemente, como convém aos que estão no serviço sagrado, disciplinadas, dignas, refletindo a santidade de Deus.” Talvez resida aqui uma alusão a Ana, cujo ser inteiro estava voltado para Deus. Então poderíamos tra-duzir “sacerdotalmente”, e então ficaria claro que tanto aqui como em todas as passagens das past continua pressuposto o sacerdócio real de todos os crentes, porque na verdade não se fala especificamente de um serviço das viúvas, mas de mulheres idosas em geral. Entre elas, porém, é bem possível que, da mesma forma que entre os homens idosos, algumas tenham exercido um serviço de presbíteras. No aspecto básico esse tipo de serviço sem dúvida existe (como, entre outras coisas, também demonstra o final do versículo). Contudo para desdobrá-lo certamente havia necessidade de mais tempo, porque eram grandes os preconceitos sociais. Não caluniadoras: como em 1Tm 3.11; 2Tm 3.8. Poderíamos indagar por que não são listadas características negativas no caso dos homens idosos. No entanto, elas já foram mencionadas em Tt 1.6s! Tt 2.2 abarca todos os homens idosos, enquanto Tt 1.6s se dirige em particular aos presbíteros e líderes do grupo dos idosos. Não viciadas no consumo do vinho: cf. Tt 1.7 = não dado ao vinho; 1Tm 3.8: dirigido a diáconos! Chama atenção que aqui se fale do vício de bebida entre mulheres. Em contextos moralmente decaídos até mesmo as mulheres perdem a sobriedade, tornando-se escravas de toda sorte de formas de prazer. Viciadas: como em Gl 4.3; Rm 6.18,22. Estar submisso a poderes naturais do mundo, a pecados, ser escravo deles. Mestras do bem (kalodidaskalos) também pode significar: boas profes-soras em palavra e exemplo. Ou seja, uma presbítera que ensina! Também Brandt (p. 97) pensa em uma alusão a um presbiterato feminino. Prisca poderia ser considerada uma presbítera. Comparem-se também as exposições acerca do serviço das viúvas na igreja de Éfeso. Que estimulam à sensatez. O alvo principal de seu magistério é a sen-satez, nada diferente daquilo que também Tito deve ensinar. O objeto de sua instrução não é citado! A construção da frase é igual a Tt 2.2,6,9: os homens idosos devem ser disciplinados; as mulheres idosas igualmente se-jam pessoas que, como boas mestras, produzem a disciplina. A atividade de magistério das mulheres idosas está formulada de forma genérica, e não restrita, p. ex., à instrução de mulheres jovens. Por meio de seu ensino e sua conduta elas devem estimular a sensatez na igreja. Naturalmente isso deve impressionar particularmente as mulheres jovens, quando as irmãs mais ve-lhas dão um bom exemplo. 2. O comportamento das mulheres jovens – Tt 2.4s 4 – (Dize que) instruam as jovens recém-casadas a amarem ao marido e a seus filhos, 5 – a serem sensatas, honestas, boas donas de casa, bondosas, sujeitas ao marido, para que a palavra de Deus não seja difamada. 4 Amar ao marido (philandros): na exortação Tito também se deve dirigir às mulheres jovens, assim como Timóteo. É muito bom-vindo quando mulheres mais idosas podem realizar o serviço de exortação, mas tentar inferir disso uma lei segundo a qual somente mulheres mais idosas poderiam instruir as irmãs mais novas, ou mulheres só pudessem ensinar entre mulheres (e crianças) não está de acordo com os escritos do NT. Ademais a exortação como tal não deve ser entendida como lei: isso se evidencia justamente também no fato de que para as igrejas em Creta as mulheres são exortadas a amar os maridos, enquanto no caso da igreja em Éfeso essa mesma exclamação se dirige aos homens. Lá a correspondência no amor é pressuposta nas mulheres, aqui, porém, isso não é tão óbvio porque a realidade social é outra. A harmonia entre homem e mulher somente é viável quando seu amor for recíproco; e, de acordo com as circunstâncias exteriores e as etapas da vida (às mulheres idosas não está sendo dito nada em relação a seu comportamento frente aos maridos!), importa estimular ao amor ora o homem, ora a mulher. Amar os filhos (philoteknos): amorosas com os filhos. À primeira vista também isso parece ser uma obviedade, mas está em concordância com o que foi dito até aqui sobre a realidade social em Creta e na igreja. Em 1Tm 2.15 trata-se provavelmente de mães que negligenciavam os filhos por razões religiosas. Aqui em Tt 2.4 parece que o verdadeiro amor materno para com os filhos ainda não despertou nelas.
  • 17. 5 Sensatas: no v. 2 isso é esperado de homens idosos, no v. 4 mencionado como atitude básica para a atividade letiva das mulheres idosas. Castas (hagnos): originalmente referente à pureza cultual, depois trans-ferido para o comportamento ético, mas continua tendo relação com a religiosidade, cf. v. 3: na atitude, dignas como mulheres santas que prestam serviços sagrados. Aqui se tem em mente especialmente a pureza moral no matrimônio. Ser sensato (comedido) e casto são características que formam uma unidade. Em 1Tm 2.9 a castidade está associada ao senso de pudor. É difícil ouvir esses termos com o som e a conotação límpidos que os ca-racterizam desde Jesus: à luz da alegria pela libertação dos gêneros para a verdadeira humanidade. Não pudicícia e frieza, mas cálida desinibição e cordialidade emanam dessas palavras. Dedicadas ao lar (oikourgous, de oikos = casa): contrasta com aqueles que abandonam sua casa à destruição por heresias. Em nossos ouvidos também essa palavra dificilmente consegue ser liberta da estreita e constrangedora atitude pequeno-burguesa, com a qual foi cercada justamente também por maridos legalistas e ciosos de sua dominação (uma atitude supostamente fundamentada na Bíblia). Saber conduzir e organizar um lar não é uma obra monótona e anticriativa, mas uma tarefa realmente humana, desde que não se pense ser necessário prescrever às mulheres como devem entender a “dedicação ao lar”, e desde que não se derive disso uma lei que sirva para banir a mulher para o lar, incriminando ou condenando todas as atividades fora da casa. Deveríamos ler com mais atenção o “elogio à dona de casa laboriosa” em Pv 31.10-31, para notar como a autoconsciência, a múltipla atividade e a responsabilidade daquela dona de casa têm pouquíssimo a ver com o estreito e isolado modo de vida que muitas esposas hoje em dia, que passam os dias solitários com um ou dois filhos em um pequeno apartamento. A ela ainda cabia estabelecer o trabalho diário de suas (!) empregadas, e quando pretendia comprar um campo ou uma vinha com seu próprio dinheiro, fechava um negócio! Com madura superioridade ela sorria em direção do dia seguinte e supervisionava todos os afazeres em sua casa. Bondosas: assinala o que importa acima de tudo, a saber, que a dedicação da mulher ao lar tenha um espaço de livre desenvolvimento, por meio do qual a bondade dela beneficie a todos, com os quais ela se relaciona. Quando se inviabiliza ou poda artificialmente a organização própria da mulher quanto a seu espaço de atuação, o espírito definha, depressões e isolamento magoado substituem uma alegre atitude básica da vida, capaz de emanar bondade. Submissas aos maridos: como em Ef 5.21s; Cl 3.18; cf. 1Tm 2.12 e o apêndice específico a respeito! Não se trata de uma dócil rendição a tudo que o marido exige! Ela administrará o lar com bondade e em concordância com a vontade do marido, não sem ele nem contra ele. A liberdade e igualdade da mulher não contradizem a subordinação ao marido, desde que essa subordinação possa acontecer de forma espontânea e não segundo as concepções das fantasias masculinas de superioridade, nem de sua cobiça por dominação. Aliás, a parceria de homem e mulher assumirá configurações diversas em épocas diferentes (também dentro do mesmo matrimônio), bem como em situações sociais mudadas. A subordinação não é uma nova lei instituída pelo NT em lugar de leis anteriores. A única “lei constitucional” é o amor, e isso significa: reciprocidade em tudo, inclusive na subordinação [Ef 5.21]. Em decorrência, o relacionamento entre marido e mulher será marcado ora de forma mais patriarcal (responsabilidade principal do marido), ora como parceria (responsabilidade mútua e disposição de servir um ao outro de acordo com os dons que cada qual recebeu). A novidade que Jesus introduziu no relacionamento entre os gêneros não é de forma alguma uma confirmação ou um reforço do predomínio masculino, mas uma restauração da reciprocidade original. É expressão daquele amor divino, que tomou forma humana em Jesus, que marido e mulher ajam de acordo com o aconselhamento e acordo mútuos. Uma vez superada a tradicional concepção errônea de um caráter lega-lista e discriminatório da subordinação da mulher, poderá florescer uma nova compreensão para seu verdadeiro sentido: a superioridade natural da mulher nas principais áreas da vida, sua maneira natural de se posicionar no centro das questões da vida facilmente poderia levá-la à soberba diante do marido quando ela experimenta a plena libertação de toda a tutela por meio de Jesus. Essa poderia ter sido uma tentação peculiar para as mulheres nas primeiras igrejas. Para que a palavra não seja difamada: Não apenas a subordinação ao marido, mas tudo o que foi dito até aqui, propicia à igreja e ao entorno um ensino prático visível da libertação por intermédio do evangelho na vida daqueles que seguem a Jesus.
  • 18. 3. Tito como exemplo dos homens jovens – Tt 2.6-8 6 – Quanto aos moços, de igual modo, exorta-os para que, em todas as coisas, sejam criteriosos. 7 – Torna-te, pessoalmente, padrão de boas obras. No ensino, mostra integridade, reverência, 8 – linguagem sadia e irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito. De igual modo exorta os homens jovens a ser sensatos: somente agora aparece o predicado da lista toda: exorta! Essa também deve ter sido a intenção do v. 2: exorta os homens idosos. Toda vez que ocorre nas past o termo “sensato” é necessário lembrar-se de que a palavra na verdade cita uma das principais virtudes helenistas, mas que carece da humildade. Autocontrole é o que o marido faz consigo mesmo! Nas past, porém, a autodisciplina sempre é disciplina do Espírito Santo, é dádiva dele, realização dele. Como, no entanto, se concretiza a sensatez recebida? Quem se apega ao teor da palavra no poder do Espírito, quem atiça a dádiva do Espírito para mantê-lo um braseiro sempre vivo, quem permanece na palavra, quem invoca o Senhor em comunhão com outros, quem foge das paixões da mocidade e corre atrás da justiça, quem se exercita na devoção, neste o Espírito faz amadurecer o fruto de uma vida disciplinada. Aos homens jovens é preciso dizer a mesma coisa que às jovens mulheres: sejam sensatos! Constantemente percebemos: a partir dessas listagens não é possível deduzir quaisquer diferenças rígidas entre os gêneros. Os dois versículos seguintes são dirigidos a Tito. Como ele mesmo deve ser considerado homem jovem, o que é dito a ele também vale para seus parceiros da mesma faixa etária. 7 Oferecendo-te pessoalmente como exemplo de boas obras. Exorta através do teu exemplo! Em todas as qualidades enumeradas, em todos os encontros com jovens e idosos, com homens e mulheres. Em tudo estás sendo exigido completa e integralmente. Contudo, isso não seria uma sobrecarga? Essa exortação não deve ser entendida de maneira moralista e legalista. Pelo contrário, à imagem distorcida dos hereges deve ser contraposto o exemplo de um mestre saudável, porque o poder de imagens negativas somente pode ser superado por imagens poderosas melhores. Não são construídas posições de poder eclesiástico, mas uma pessoa é apresentada: oferece-te pessoal- mente! Propicia a todos a possibilidade de notarem em ti o que Deus realiza em um ser humano. A idéia não pode ser que Tito se apresente como herói de virtudes com uma auréola de santo! Para ele vale o mesmo que para todos os seus irmãos: “Também nós éramos néscios… servindo a toda sorte de paixões e prazeres” (Tt 3.3). A mesma natureza velha continua ainda em Tito e sempre se concretizará quando ele não permanecer na obediência e na fé da nova vida: a graça de Deus nos educa (inclusive Paulo e Tito), para que reneguemos a descrença e as paixões terrenas e pratiquemos a vida verdadeira (Tt 2.12)! Na doutrina não-deturpação: o exemplo de boas obras ilumine a doutrina, o preceito seja precedido pelo exemplo. Na maneira pela qual apresenta a doutrina e a si mesmo, seja ele límpido, transparente, puro em suas opiniões, sem visar lucro. O melhor comentário é dado por 2Co 4.2, bem como a simultânea confirmação de que aqui existe o mesmo tom fundamental da exortação: “Nós (como servos do Senhor) renunciamos às coisas clandestinas de que é preciso se envergonhar, não andando ardilosamente, nem deturpando a palavra de Deus, pelo contrário recomendando-nos diante de Deus a toda consciência humana pelo fato de revelarmos a verdade.” Com reverente seriedade: como em 1Tm 3.8,11. O serviço à palavra não tolera brincadeiras frívolas nem subserviência a humanos. Procede em concordância com o que advogas. Não transformes o precioso tesouro em mercadoria barata pela maneira com que o ofereces e ofereces a ti mesmo. 8 (Oferecendo, cf. v. 7) um falar sadio, irrepreensível. A sã doutrina também requer ser apresentada de maneira sadia. Nem o ilustrado descompromisso (retórica), nem a impertinência incompreensível, nem o linguajar religioso particularmente devoto fazem justiça à verdadeira singeleza do evangelho. Teu falar, no diálogo individual e na proclamação, bem como na refutação dos falsos mestres, seja expressão de tua vivência na palavra de Deus. Não tentes impressionar com palavras, proclama de forma sóbria e humanamente sadia, e o resultado não tardará. Para que o adversário seja envergonhado, porque não poderá dizer nada de negativo sobre nós: pode se tratar de pessoas discordantes e críticas dentro e fora das igrejas. A respectiva conclusão de Tt 2.5,8-10 sempre expressa a mesma coisa: não dar motivo de blasfêmia e crítica depreciadora.
  • 19. Ser envergonhado: o sentido original é voltar as costas, depois: modificar-se, posicionar-se de outra maneira, demonstrar favor; finalmente: ter medo e respeito, como em Hb 12.9. Aqueles que são envergonhados podem ser conquistados, podem chegar perante Deus ao reconhecimento e à conversão de seu agir. 4. O testemunho dos escravos – Tt 2.9s 9 – Quanto aos servos, que sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe motivo de satisfação; não sejam respondões, 10 – não furtem; pelo contrário, dêem prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador. Quanto à questão do escravismo: 1Tm 6.1s e carta a Filemom! 9 Ao contrário de Ef 6.9 e Cl 4.1, os proprietários não estão incluídos nesta exortação. Seria porque talvez ainda não existissem nas igrejas – ao contrário de Éfeso? É questionável que a exortação seja reforçada, como pensam alguns comentaristas. Em tudo pode ter o sentido de completo, indiviso, de coração, não apenas na aparência. Os pais da igreja sempre enfatizavam com cuidado que a obediência dos escravos somente poderia valer para ações lícitas. Dar motivo de satisfação (euarestos): ser agradável; com exceção de Hb 13.21, usado apenas por Paulo, mais precisamente voltado para Deus, que se agrada de algo: Rm 12.1; 14.18; 2Co 5.4; Fp 4.18. Será que aqui os pequenos senhores aparecem sob o reflexo da glória de Deus, diante do qual o primeiro propósito do ser humano deve ser agradá-lo? Dificilmente poderemos notar aqui uma diferença em relação a Ef 6.7: “servir de bom grado”, por isso se responderá negativamente a questão. Não contradizer (antilegein); já em Tt 1.9 como substantivo: os contradizentes. Lutero: “não latindo de volta”. Trata-se da resposta discordante vinda de um coração irritado. O problema das diferenças de classe se expressa de forma subjacente nessa tentação dos escravos. Algo análogo vale para as penosas tensões entre os gêneros que somente serão suportadas e superadas pelo amor: quando o marido ama a esposa, ele não a provocará a contradizê-lo, quando uma mulher ama o marido (Tt 2.4), ela não o contradirá nem terá necessidade de ter a última palavra. O amor é o motivo decisivo e a força motriz para a conduta agradável, inclusive no relacionamento entre escravos e patrões. O grande equívoco da insistência legalista na subordinação da mulher evidencia-se aqui justamente pela comparação com os escravos, dos quais se espera que se subordinem aos patrões: não por último pelo poder transformador do evangelho foi anulado o escravismo, e com isso a subordinação escrava! Para as mulheres, porém, ela seria uma ordem permanente? 10 Nada furtando (apenas também em At 5.2s!), sonegar, desviar. O escravo Onésimo havia sido desonesto, e quando foi descoberto, fugiu de seu senhor. Em tudo dando provas de boa fidelidade. A fidelidade seja boa! (pistis agathe). Boa aparece enfaticamente no final, não devendo, portanto, ser traduzido de forma atenuada. Trata-se do bem vigente aos olhos de Deus, são as boas obras, para as quais ele nos preparou. A fim de ornarem a doutrina de Deus, nosso Salvador, em tudo. A doutrina de Deus: genitivo de autoria. A doutrina vem de Deus. Ele mesmo é quem proclama, ensina, educa (v. 11). Seu ensino visa conduzir, em todos que o ouvem, à beleza da verdadeira vida humana. A fidelidade de coração do ser humano como um todo caracteriza o servo bom. Sem a ação do Deus Salvador o conserto do ser humano não será uma restauração verdadeira. “A doutrina” é o termo básico para o começo (v. 1), o meio (v. 7) e o fim (v. 10) da seção de exortação prática. Essa sã doutrina, que mantém a fé saudável, sóbria e ativa nas obras, é desenvolvida na seqüência. No Salvador culmina o chamado exortativo, fazendo a transição para a exaltação precisamente dessa graça redentora e educadora de Deus (Tt 2.11-14). B. Jesus é a graça salvífica de Deus (2º hino) – Tt 2.11-15 11 – Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, 12 – educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mun-danas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente,
  • 20. 13 – aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nos-so grande Deus e Salvador Cristo Jesus, 14 – o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda ini-qüidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras. 15 – Dize estas coisas; exorta e repreende também com toda a autoridade. Ninguém te despreze. O presente hino exalta a graça de Deus, manifesta no passado (v. 11), que educa os discípulos de Jesus no presente (v. 12), cuja revelação plena é aguardada no futuro (v. 13), cujo alicerce e força são o amor do Redentor, que purifica seu povo e o leva a viver com zelo sagrado (v. 14). 11 Manifesta: consta bem no começo, enfatizando o súbito, inesperado, surpreendente. No NT a forma passiva do verbo (epiphanein) aparece somente aqui e em Tt 3.4. O substantivo (epiphaneia), aparição, é típico para as past, contudo seu uso antigo em 2Ts 2.8 revela que a palavra, muito freqüente no culto ao imperador e usada para divindades helenistas, com certeza não sofre uma definição literal a partir desse contexto, ainda mais que no mínimo precisa ser levado em conta também o nexo com o AT. A graça de Deus (charis): graça é a palavra predileta do apóstolo. Por graça ele foi salvo, por graça ele se tornou o que é, por graça acontece sua atuação. Graça é dádiva imerecida de Deus, expressão de sua misericórdia, sua benevolência, seu favor e sua benignidade. Deus não é condescendente como as majestades megalomaníacas deste mundo, que em determinadas ocasiões gostam de demonstrar ao povo ou a indivíduos um favor especial. A condescendência de Deus não acontece para “proveito próprio”, mas totalmente por amor, um amor que se derrama em uma ação de misericórdia: em Jesus a graça de Deus se realizou visível e palpavelmente para as pessoas. Através de Jesus sabemos que a misericordiosa condescendência de Deus não rebaixa o ser humano, porque Deus humilha a si mesmo, a fim de exaltar o ser humano de sua baixeza culposa. O hino é perpassado de admiração e de júbilo pelo fato de, que em Jesus, a salutar misericórdia divina despontou como um sol sobre o mundo escurecido pelas sombras da morte. Salvadora (soterios); única ocorrência no NT como adjetivo. Como salutaris, em latim, expressando o modo de ação da graça: com potência salvadora, poderosa para resgatar. Graça não é um ceder frágil, não é demonstração fraca de benevolência, mas é o poder divino de amor. Para todos os humanos: o Redentor se entregou por todos. A graça de Deus deseja que todos cheguem à salvação. A oferta universal da salvação se expressa aqui de forma irrestrita, como sempre em Paulo. Todos precisam da redenção. No entanto, ela também é acessível a todos: a homens e mulheres, a idosos e jovens, a escravos e senhores, a judeus e gregos. Quem crê deve sempre lembrar que a graça de Deus vale para todos e tenta alcançar a todos. E isso deve acontecer pelo testemunho de vida da igreja de Jesus. No meio dela a graça de Deus visa brilhar com tanta realidade, perdoando, curando, consertando e sobretudo educando para a plena humanidade conforme a imagem de Jesus, que todo o mundo possa reconhecer a forma com que essa graça se realiza naqueles que se abrem para ela. Entre os v. 11 e 12 existe uma enorme tensão, que não pode ser eliminada pela compreensão nem pelo sentimento humanos. A graça está aí para todos os homens, e ela nos educa. “Nos” refere-se a todos os que aceitam o chamado à salvação e se deixam purificar por Jesus para serem povo da propriedade dele. Para todos – para nós! Somente na perspectiva dessa diferenciação torna-se nítida a premência profética de todas as exortações prévias e subseqüentes. Deus quer um povo de sua propriedade que colabora com zelo na salvação do mundo, iniciada pelo Redentor no momento em que apagou o pecado do mundo com seu amor expiatório. Também aqui constatamos a mais direta relação com o AT! Deus deseja propiciar sua graça a todo mundo por meio de seu povo, que ele redimiu e educa. 12 Ela nos educa (paideuein, gerúndio): educar, disciplinar, castigar, corrigir, instruir. O substantivo paideia está contido em “pedagogia”. A ênfase da frase recai nesse verbo. Afirmou-se que nas past essa palavra teria sofrido uma alteração de significado, que ela seria apenas instrutiva, e não mais entendida como disciplinadora, corretora, punitiva, como nos demais escritos do NT. Contudo 1Tm 1.20 possui nitidamente o sentido de punição, disciplina, bem como 2Tm 2.25. Em 2Tm 3.16 a “educação para a justiça” é descrição sumária de um acontecimento integral que abrange a argüição (do pecado) e a restauração (no arrependimento). Também Tito deve argüir e educar com rigor e
  • 21. determinação. Educação possui dois lados: exortar e encorajar, confrontar e levar ao bom caminho, disciplinar e atrair, ser exemplo e andar com a pessoa, conduzir e liberar. Ambos os lados estão interligados em Tt 2.1-10 e 2.11-14. Também a graça não existe sem disciplina, mas ela é de natureza diferente, sim, contrasta com o duro preceptor da lei, porque “não estais sob a lei, mas sob a graça”. Ela nos educa para que… reneguemos: o primeiro alvo da educação na graça é que aprendamos a renegar! Essa não é uma instrução formal ou frouxa, mas conseqüente e decisiva. Renegar significa renunciar, abdicar, ser capaz de dizer não. O tempo verbal (particípio do aoristo) poderia ser vertido literalmente para: depois de termos decididamente rompido com o pecado no passado, prosseguindo agora nessa abdicação; confirmar, por meio do comportamento atual, a abdicação já realizada. A lei induz o ser humano a dizer “não” precipitadamente, por medo da punição, sem que de fato es-teja convicto no coração da necessidade desse não. A graça tem o poder de realmente convencer do pecado. A paciência de Deus pode conduzir à contrição e ao arrependimento verdadeiros, porque à luz do amor se torna nítido que o pecado nunca vale a pena, nunca traz o enriquecimento esperado, e que, pelo contrário, sob a influência da graça a negativa é reconhecida e viabilizada não apenas como necessária, mas como algo que serve para nosso bem máximo. Quando um ser humano se torna capaz de dizer não de todo o coração, isso não é nada menos que um milagre da graça. A incredulidade (asebeia) contrapõe-se à verdadeira veneração de Deus, à beatitude, devoção (eusebeia), mencionada no mesmo versículo. A palavra aponta para o passado, para uma vida sem e contra Deus. Se a incredulidade fosse renegada definitivamente, não seria preciso exortar, as cartas apostólicas não seriam necessárias, a graça de Deus não precisaria disciplinar nem educar. Tão certo como precisa acontecer uma ruptura com o passado, é também que a linha divisória passa entre incredulidade e beatitude, não apenas entre passado e presente, entre igreja e sociedade, entre cristão e mundo. Ela atravessa também o cerne do próprio coração, porque todo agir autocrático e egoísta é incredulidade (Tt 1.16!). A graça instrui, exorta e fortalece, para que reneguemos constantemente a incredulidade do próprio coração. A profundidade na qual está arraigada essa alienação de Deus pode ser notada na sofreguidão mundana que sempre eclode diante de uma falta de prazer em Deus (beatitude). As paixões mundanas: “mundano” torna a aparecer ainda em Hb 9.1, com o sentido de “terreno”. Aqui o termo pode ter uma conotação muito for-te no sentido de “desejos diabólicos”. O brilho e a voracidade sedutores da sensualidade desprendida de Deus e desenfreada não eram nada estranhos para as igrejas dos primórdios. Novamente importa ouvir e distinguir bem: a alegria pela criação e pelas criaturas de Deus, a gratidão por alimento, bebida e sexualidade não devem ser confundidas com avidez viciada que corrompe o ser humano. Tudo o que excita as paixões e arrasta o ser humano para longe de si mesmo está em contradição com uma vida sensata na justiça, motivo pelo qual deve ser resolutamente rejeitado, renegado. “Foge das paixões (da mocidade)!” Como isso aconteceria realmente, se não por graça? Como o coração cobiçoso conseguiria não desejar os desejos por si mesmo? As variações do vício são absolutamente ilimitadas, das formas mais grosseiras e flagrantes às mais refinadas e ocultas. Quando as paixões mundanas não são renegadas, a graça se torna barata, a pessoa se evade da escola dela. Muitos métodos de evangelização e missão se mostram não bíblicos quando falam apenas da fé no Salvador dos pecadores, mas não igualmente da abdicação ao pecado. No entanto torna a espreitar também aqui o perigo de um empenho legalista. Nenhum dos caminhos que se franqueiam ao mero esforço humano de superação das paixões mundanas conduz ao alvo: 1) Não resistindo aos desejos, porém negando que eles de fato existam. São explicados como expressão da alegria de viver, como vontade de viver, como impulso justificado ou necessidade natural. 2) Represando as paixões, eliminando suas piores excrescências. O ser humano empreende a luta contra si mesmo. Pessoas religiosas investirão adicionalmente em oração e meditação, exercícios de confissão e penitência. Contudo as paixões tão-somente mudarão de aspecto e retornarão pelas portas dos fundos ou por pensamentos escusos nos lugares mais inesperados e horas mais indesejadas. O fim do caminho ascético é o ser humano que não pratica o bem que deseja, mas realiza o mal que odeia. Sob a influência da graça educadora de Deus as paixões mundanas não são negadas, mas renegadas, porque o Redentor liberta delas e purifica o co-ração da natureza iníqua (v. 14). Quantas
  • 22. vezes podemos chegar e receber perdão para recomeçar? A graça de Deus é tão ilimitada como seu perdão. O limite passa dentro de nós, não dele. O medo que se levanta em nós não é fruto da graça. Quando o coração não se deixa exortar nem conduzir ao arrependimento verdadeiro, ele continuará correndo sobre os velhos trilhos, e a abdicação original – e será que foi autêntica? – permanece sem renovação e aprofundamento. Sob um manto devoto alastra-se, então, a velha natureza. Sem a exortação fraterna recíproca os limites são alcançados mais depressa do que se supõe superficialmente: confissão apenas da boca para fora e prática real da vida se dissociam, contradizem-se. “Todo „avanço‟ na vida cristã é um retorno à graça e uma prece por que ela realize sua obra” (Brandt, p. 100). A graça jamais nos dirá um não, mas ela nos conduzirá implacavelmente a dizermos não à nossa vida sem Deus e às paixões dela resultantes. O alvo de todo o trecho é: vida santa na atualidade! Quem renega, não será prejudicado na vida. Ele somente encontrará a vida plena, ele viverá de maneira sensata, justa e em beatitude na era presente. Sensato: como “doutrina”, está totalmente entrelaçado com o bloco anterior. A sensatez é o alvo da educação da graça: é a límpida sobriedade e vigilância que resulta da negação dos desejos secretos e do perdão obtido. Na sensatez não poderá prevalecer a auto-ilusão nebulosa. Vigilância total na atualidade para a vida de hoje, total plenitude de expectativa (v. 14), isso não é o produto final da autodisciplina, mas efeito da graça, a única que viabiliza a responsabilidade pessoal sensata e que propicia a tudo um novo objetivo. Justo: o sentido da palavra não deve ser dissociado do contexto. Aqueles que foram declarados justos são educados por graça para serem justos (para uma vida justa). 1Ts 2.10 mostra a que se refere “justo”, como o termo visa ser entendido: “Vós e (o próprio) Deus sois testemunhas do modo por que piedosa, justa e irrepreensivelmente procedemos em relação a vós que credes.” Vida santa é diferente de dever e responsabilidade burgueses! A terrível injustiça no mundo tem raiz nas paixões mundanas que extraem sua força motriz da incredulidade. A injustiça não poderá ser dominada se as paixões destrutivas não forem atacadas e despidas radicalmente, até as raízes, no poder da graça salvadora. Em beatitude: a devoção acompanhada da justiça e vivenciada com sóbria vigilância diante das paixões próprias e alheias é uma força de cunho peculiar. Não se apresenta com força ostensiva, sua eficácia não é impositiva. Ela é quase óbvia. Apesar disso ela desperta resistência. Não pode ser ignorada, deixada de lado. Essa devoção existe “em Cristo”. Nisso reside seu fundamento e sua eficácia. O alvo da educação da graça é uma espiritualidade que, direcionada integralmente para Deus, vive e age no meio deste mundo, mas de forma alguma no sentido de tentar demonstrar sua característica “mundana” pelo expediente de, na medida do possível, tentar ser igual (ou não-igual!) também a todos os demais. A motivação determinante para essa espiritualidade não é reconhecimento ou rejeição, mas a graça de Deus permanentemente eficaz. Na era presente: Aqui é decisivo que a graça educa para uma vida no mundo atual e ao mesmo tempo mantém acesa a tensão afetuosa e expectante pelo mundo vindouro. As past não deram uma guinada para instalar-se aqui de forma mundana. Sua natureza “mundana” permanece determinada pelo mundo vindouro. A tradução de Wilckens expressa bem essa tensão básica: “Ela nos educa a renegar a incredulidade e todas as concupiscências mundanas e a viver de maneira disciplinada, justa e devota, enquanto durar a presente era, porque nossa expectativa se dirige à aparição aguardada e beatificadora…” 13 Aguardando nós a beatificadora esperança, a saber, a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus: gerúndio como “educando”. Um estado duradouro que expressa a posição escatológica, o direcionamento para o fim dos tempos. Renegar, viver, aguardar, esses três verbos determinam o trecho, abarcando passado, presente e futuro. Sim, expressam uma intensificação do abdicar ao afirmar e à expectativa. O mesmo vale para: sensata, justa, devotamente. Quem está ébrio de paixões não esperará, porque não está acordado, mas dorme. Tornado sóbrio do sono do passado, desperto pela expectativa beatificadora do que há de vir, um discípulo do Senhor Jesus realmente poderá viver com “presença de Espírito” e manter sua luz acesa: “Cingido esteja o vosso corpo, e acesas, as vossas candeias. Sede vós (ao contrário dos outros, que dormem) semelhantes a ho-mens que esperam (ansiosamente) pelo seu senhor”.
  • 23. A beatificadora esperança, a saber a manifestação: beatitude como em 1Tm 1.11; 6.15. Somente quem tem esperança é alguém que aguarda, vive no tempo entre a manifestação da graça em humildade (v. 11) e a aparição em glória (v. 13). Pelo fato de que a graça conduz pela vida perdoando e educando, a atuação dela gera uma esperança que anima e beatifica. A manifestação do Senhor em glória é a essência e o auge da expectativa escatológica que anima o orador a dizer: Venha o teu reino… tua é a glória. A santa vontade divina de amor alcançará seu cumprimento pleno para toda a criação na aparição do Redentor. Nosso grande Deus e Redentor Jesus Cristo: Deus, que veio na realidade modesta do ser humano Jesus, está presente desde já como Exaltado, para os que passam a amar sua aparição, por meio do Espírito, da palavra e da ceia. Por já serem atingidos e movidos pela proximidade dele, esperam por sua manifestação em glória. Eles não constróem para si um consolo no além por causa de um sentimento de vazio e miséria. Não sonham com um maravilhoso mundo ideal como compensação para a aflição e angústia. Não unificaram suas fantasias de endeusamento em um ser humano comum, segundo os moldes do culto ao imperador. Por experimentarem desde já diariamente seu amor redentor, purificador e por isso beatificador, por meio da reiterada demonstração de clemência, por isso aguardam o cumprimento pleno daquilo que já começou. Sua esperança não é substituição de algo inexistente, mas certeza da pessoa que já lhes foi presenteada. O que nos cabe dizer diante do alegado “endeusamento do ser humano Jesus”? Como se deve interpretar grande Deus e Redentor? Será que aqui ocorre uma justaposição: a grande majestade (e o poder) de Deus e a salvação do Redentor Jesus Cristo? Segundo essa visão a magnitude de Deus se manifestaria cabalmente na aparição do Messias. Contudo o texto sugere que aqui se deve ver somente uma única pessoa, a saber, Jesus, o Messias que se manifesta com glória. A estrutura da carta possui um peso decisivo: cada capítulo cita duas vezes o Redentor, mais precisamente referindo o termo uma vez a Deus e outra vez ao Messias: Deus (Tt 1.3); o Messias (Tt 1.4); Deus (Tt 2.10); o Messias (Tt 2.13!); Deus (Tt 3.4); o Messias (Tt 3.6). A expressão nosso Deus é citado somente uma vez, uma expressão de confiança e pertencimento pessoal. Ele é o Senhor Exaltado, cuja divindade será manifestada na parusia. Em 2Pe 1.16 é a palavra “magnitude” (majestade) que está indubitavelmente relacionada com “nosso Senhor Jesus, o Messias”. Na literatura profana os dois títulos “Deus e Redentor” tampouco são usados para duas pessoas diferentes, mas para o mesmo soberano secular. A glória em que o Messias se manifesta é sua própria realidade divina, ele há de se “assentar sobre o trono de sua glória”. A divina doxa (glória) não apenas é manifesta através dele, mas nele, “para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai”. Seriam, portanto, os escritos do NT testemunhos de um “endeusamento do fundador” por seus seguidores, demonstrável pela “sociologia do conhecimento”? Fazendo-o, exaltariam como divinos também a doutrina dele e a si mesmos? Pela confissão de que Jesus seria verdadeiro ser humano e verdadeiro Deus a fé visa expressar que Jesus era totalmente humano no agir e no sentir, no conhecer e querer, porém em última análise perpassado por uma autoconsciência que não vem do humano, mas é absoluta e divina. Com sua reivindicação Jesus não apenas se coloca ao lado de Moisés, mas acima dele. Jesus apresentou-se com uma reivindicação e autoconsciência que excedem medidas humanas. Simultaneamente Jesus cresceu como ser humano no conhecimento de si mesmo, assim como também os discípulos podiam e precisavam crescer em sua compreensão da fé. A verdadeira existência humana e a autoconsciência original de Jesus nunca são dissimuladas nos evangelhos. Jesus não é um hermafrodita homem-deus! Por isso erram o alvo as objeções e as diferentes teorias de endeusamento. De acordo com os evangelhos não há dúvidas acerca da humanidade plena de Jesus, seu pensar, sentir, seu mundo imaginário. Contudo sua identidade própria é diferente e única, é de caráter divino. Tanto os apóstolos como também Jesus sabiam o que significa ser endeusado por pessoas! Os apóstolos retiravam-se diante do impulso de serem idolatrados pelas pessoas, porque, afinal, não eram deuses. Jesus não se deixou transformar em divino rei do pão, nem comprovou sua procedência por meio de milagres, nem se deixou levar a demonstrar sua origem divina ao tentador (“Se és Filho de Deus…”), justamente porque em sua auto-consciência divina não tinha necessidade disso. A divindade do Redentor será manifesta quando ele aparecer em glória. Essa esperança não impele, por impulso e sonho, para um mundo substituto irreal, mas torna as pessoas alertas e capazes para uma vida plena na era presente.