2. • CAPÍTULO 1 •
POLÍTICA
Que todas as condições de vida sejam por direito
acessíveis a todos (princípio de igualdade); que as
desigualdades só sejam aceitáveis, se resultarem em
proveito dos mais desfavorecidos (princípio de
diferença). Assim, a justiça admite a desigualdade (é
necessário recompensar o mérito), mas recusa o
sacrifício dos mais desfavorecidos (que acabaria por
fracturar a sociedade).
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3. • Secção 1 •
Política e Estado
por contrato (constituição), a uma autoridade que lhe
garante segurança e liberdade. Mas este ideal é, muitas
vezes, traído pelos governos.
O Estado, noção propriamente política, designa a mais Dois Exemplos:
alta autoridade para gerir a vida em conjunto. 1. As Espigas de Heródoto
Distingue-se da sociedade, à qual impõe uma Heródoto conta que Periandro, tirano de Coríntia, tinha
arbitragem quando surgem conflitos entre interesses enviado um mensageiro ao tirano de Mileto para
privados. Detentor da força (policial e militar), o Estado aprender como garantir a sua segurança e o seu
pode definir-se como o detentor do monopólio da sucesso. O tirano de Mileto não disse nada, mas, ao
violência legítima (Max Weber). Esta força exerce-se passar num campo de trigo, cortou subitamente as
num território, que pode agrupar várias nações (parece espigas que estavam mais altas do que ele. O tirano só
ser o caso de Espanha; foi o caso dos império pode garantir a sua segurança, eliminando os homens
modernos). Só se fala de Estado a partir do século XV. mais valentes e os mais dotados da Cidade. Um Estado
A filosofia antiga só reconhece a Cidade (polis, em tirânico é, portanto, necessariamente mediocrático. Só
grego, donde deriva a palavra política). Com a o medo provocado no povo permite que esse regime se
passagem da Cidade ao Estado, o Estado torna-se mantenha.
artificial: é o produto de uma vontade que se submete,
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4. mentira. Ora leão, ora raposa, o Príncipe só pode
2. A Ilha de Utopia justificar a sua acção pelo interesse superior do Estado.
Thomas More imaginou uma cidade ideal, para 2. Hobbes
denunciar a injustiça que reinava na Inglaterra do seu Hobbes é o primeiro pensador político a propor uma
tempo. Em Utopia, toda a gente trabalharia, embora concepção contratualista do Estado. No estado natural,
ninguém se aproveitasse dos outros como faziam os o homem é o lobo do homem: tem medo do seu
nobres e os soldados ingleses; não haveria diferenças de semelhante e considera-se legitimado a matar para não
vestuário, portanto, também não sinais exteriores de ser morto. Esta situação de guerra generalizada
riqueza; mudar-se-ia regularmente de casa e nada seria conduziria ao desaparecimento do género humano, se
possuído por muito tempo; as refeições seria tomadas os homens não realizassem um contrato, através do
em comum e todos se instruiriam; tudo seria partilhado qual transferem a sua força a um único de entre eles (o
e convivial. Em resumo, More propunha que fossem Leviatan) que, em contrapartida, garante a segurança a
abolidas as causas das injustiças, através de regras bem todos. Segundo Hobbes, esta é a primeira missão do
estabelecidas. Estado.
3. Arendt
Três Autores: A politóloga Hannah Arendt mostra que o totalitarismo
1. Maquiavel constitui uma forma inédita de regime político. Difere
Para o autor de O Príncipe, o importante em política da simples tirania, na medida em que exige a politização
não é encontrar o melhor regime possível (questão das massas, através da aceitação de uma ideologia
moral), mas estabelecer quais são os meios necessários limitadora de toda a liberdade de pensamento. Assim, o
para obter e conservar o poder (questão técnica). O fim Estado totalitário realiza uma fusão entre o povo e o seu
justifica os meios, e o Príncipe não deve hesitar em chefe. O seu núcleo central é o lugar, onde a diferença
tomar medidas que a moral condena, como a força ou a entre os homens é completamente erradicada no seu
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5. próprio interior: o campo de concentração. Para evitar
um sistema desta natureza, devemos inspirar-nos nos
fundamentos gregos do político, na praça pública como
lugar onde se exprime a diferença de opinião.
4
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6. • Secção 2 •
Política e Sociedade
condutas individuais são socialmente determinadas? A
sociedade permite a realização pessoal do indivíduo?
Enfim, esta noção desemboca num problema político:
como é que o Estado, distinto da sociedade (em
particular segundo Hegel), pode resolver as
contradições internas do corpo social?
O termo Sociedade designa um conjunto de indivíduos
ligados entre si por uma cultura e uma história. É,
Dois Exemplos:
portanto, de algum modo, abusivo falar de sociedades
1. A Árvore e a Floresta
animais que se perpetuam por hereditariedade e não
por herança. É, todavia, pertinente falar de sociedade Que razões haverá para que, numa floresta, as árvores
industrial. A noção de sociedade coloca, antes de mais, cresçam em altura e direitas, e, quando isoladas,
um problema antropológico: será o homem desenvolvam os seus ramos de forma desordenada e
naturalmente sociável como pensa, por exemplo, tenham dificuldade em crescer em altura, sendo
Aristóteles? Para compreender como e por que razão os necessária a intervenção humana (poda) para corrigir
homens se organizaram em sociedade, desde Hobbes, é esta tendência? Na floresta, as árvores procuram a luz,
habitual opor um estado de natureza (fictício) a um lutam para não morrer abafadas sob a sombra das
estado de sociedade (que descreve genericamente a outras árvores. Kant utiliza esta metáfora para mostrar
realidade actual). A noção de sociedade coloca também que nenhum progresso é possível fora da sociedade. É a
um problema sociológico: em que medida as nossa insociável sociabilidade dos homens, a sua tendência
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7. para viver em sociedade, mas sempre com relutância, gosto pela propriedade da terra, que está na origem de
que, de acordo com um plano invisível da natureza, todas as infelicidades do homem. Do ponto de vista de
conduz a espécie a progredir. Rousseau, as primeiras sociedades constituem a idade
de ouro da humanidade: o homem natural adquiriu
2. A Arte de se Assoar sociabilidade, mas não perdeu a sua autonomia. O
desenvolvimento do amor-próprio destruirá esta idade
O sociólogo Norbert Elias mostra que uma sociedade se
de ouro.
torna civilizada, à medida que os seus membros
recalcam tudo o que sentem em si como próprio da sua 2. Durkheim
natureza animal. Não assoamos o ranho com os dedos, Fundador da sociologia científica, Durkheim afirma que
nem com toalhas como na Idade Média, mas com devemos considerar os factos sociais como coisas. A
lenços, de acordo com um código estabelecido (é sociedade cria os indivíduos que, se não tivessem uma
impróprio olhar para o lenço depois de nos assoarmos, consciência colectiva, seriam incapazes de viver juntos.
por exemplo). Esta prevalência da sociedade sobre os seus membros
observa-se até no estudo do suicídio. Acto pessoal por
excelência, o suicídio pode ser explicado
Três Autores:
sociologicamente: quando a consciência colectiva
1. Rousseau
enfraquece (por exemplo, quando não pertencemos a
No seu Discurso sobre a origem das desigualdades, nenhuma associação religiosa, desportiva…), a taxa de
Rousseau distingue o homem no estado de natureza, suicídio aumenta.
que vive só, do homem no estado civil, que vive em
3. Lévi-Strauss
sociedade. Esta mudança de estado deve-se a um
O antropólogo Lévi-Strauss lembra que todas as
funesto acaso: o agrupamento dos homens devido às
sociedades estabelecem laços entre os seus membros,
asperezas do clima e o aumento da população geram o
através da troca. São trocado bens, serviços,
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8. mensagens… e mulheres (diz ele). Tratando-se de
mulheres, a regra observada em todas as sociedades é a
proibição do incesto: a estrutura elementar de
parentesco requer que a esposa não seja irmã do
marido. Esta lei de exogamia (as pessoas casadas devem
ter origem em famílias diferentes) é universal, mas não
natural: é livremente instituída. Todas as sociedades
humanas são, portanto, culturais.
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9. • Secção 3 •
Política, Justiça e Direito
ser retirados). A justiça social consiste em dar a cada
um o que é seu (de acordo com o mérito ou as
necessidades); a justiça penal consiste em colocar um
fim à vingança, através da intervenção de um terceiro (o
juiz).
Todos nós podemos revoltar-nos diante de uma
Dois Exemplos:
situação de injustiça: a justiça também é um
1. O Anel de Giges
sentimento. Esta unanimidade perde-se, todavia,
quando passamos da moral (ou da justiça, ou da virtude No livro de Platão A República, Glauco conta a história
como diziam os antigos) para o direito, pois, neste caso, do pastor Giges que, tendo encontrado um anel mágico
as regras variam em função dos países onde ele é capaz de o tornar invisível, usa-o para seduzir a rainha
aplicado: há portanto uma distância entre o que é da Lídia, matar o rei e tomar o seu lugar. Glauco
legítimo (que tem a ver com o direito natural) e o que é acredita que qualquer um agiria como Giges, se tivesse
legal (que depende do direito positivo, do direito esse anel. A justiça seria, neste caso, simplesmente o
escrito, do “estabelecido” numa Constituição). Em resultado do olhar dos outros: respeitamo-la por medo
termos ideais, esta distância deveria ser nula num de ser condenados, mas se nos fosse garantida a
Estado de Direito, que tivesse uma Constituição, impunidade, não hesitaríamos em ser injustos. Sócrates
baseada nos direitos do homem imprescritíveis (que contesta esta redução da justiça à hipocrisia social e vê
não podem ser dados) e inalienáveis (que não podem
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10. nela uma virtude fundamental, da qual depende o moral, ela é também o que regula o direito. Consciente
equilíbrio da alma e da sociedade. de que a lei, em resultado da sua generalidade, pode ser
fonte de injustiça, ele propõe a ideia de equidade como
2. Os Direitos do Fantasma correcção da lei: a justiça requer, por isso, a experiência
de um juiz.
O inglês Edmund Burke decidiu escrever, a partir de
1789, as suas Reflexões sobre a revolução de França 2. Grotius
para impedir que as ideias revolucionárias Este jurista holandês, contemporâneo de Descartes, no
contaminassem a Inglaterra. Nessas reflexões, critica os livro Do direito da guerra e da paz como o direito
direitos do homem, verdadeiros do ponto de vista natural pode fixar de forma imutável e racional os
metafísico (mas) falsos do ponto de vista moral e critérios de uma guerra justa, como condição de uma
político, porque ignoram a complexidade humana. paz duradoura. É preciso, por exemplo, que uma guerra
Destinando-se ao homem em geral e não ao homem seja oficialmente declarada em nome de motivos
nacional, esses direitos só podem ser atribuídos a um legítimos; que acabe com a celebração de um tratado de
fantasma: o homem dos direitos do homem não existe. paz que oficialize o retorno ao direito entre os
beligerantes; que, durante a guerra sejam respeitadas
certas regras, como a de não matar os prisioneiros. Em
Três Autores:
resumo, segundo ele, enquadrando juridicamente a
1. Aristóteles
violência colectiva, esta será reduzida.
Aristóteles propõe que se dintinga a justiça distributiva
3. Rawls
das honrarias e das riquezas (que deve ser proporcional
Autor de Teoria da Justiça, o americano John Rawls
ao mérito) da justiça comutativa (que preside às trocas
propõe um modelo de justiça, adaptado ao pluralismo
económicas e se baseia num princípio de estrita
das democracias modernas. Para que uma sociedade
igualdade). A justiça não é, portanto, só uma virtude
seja justa, é preciso que aqueles que decidem sobre o
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11. seu funcionamento desconheçam o lugar que ocuparão
nessa sociedade. Nestas condições de véu de
ignorância, para além do pressuposto de que essa
sociedade deve preservar a liberdade, todos
concordarão de imediato com dois princípios: que todas
as condições de vida sejam por direito acessíveis a todos
(princípio de igualdade); que as desigualdades só sejam
aceitáveis, se resultarem em proveito dos mais
desfavorecidos (princípio de diferença). Assim, a justiça
admite a desigualdade (é necessário recompensar o
mérito), mas recusa o sacrifício dos mais desfavorecidos
(que acabaria por fracturar a sociedade).
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12. • CAPÍTULO 2 •
A MORAL
A felicidade é própria do homem (pois só é acessível
a um ser racional) e é a finalidade última da sua
acção (pois basta-se a si mesma).Aristóteles
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13. • Secção 1 •
A Moral e a Liberdade
Estado impõe poucas limitações ao indivíduo, fala-se de
Estado liberal. Se o indivíduo considera que as leis são
demasiado limitativas e matam a sua liberdade, e se vai
A moral é, numa primeira abordagem, uma noção ao ponto de contestar o Estado em todas as suas
metafísica: o homem é livre, ou é determinado por formas, estaremos perante um libertário ou um
condições que ele não controla? Se ele é a causa anarquista.
primeira das suas escolhas, diz-se que possui livre
arbítrio. Só que um poder desta natureza não é Dois Exemplos:
susceptível de ser demonstrado (ou não o foi até 1. O Burro de Buridan
agora). Numa segunda abordagem, a liberdade é uma
O que é que se passará, se colocarmos um burro
noção moral. Para Kant, uma vez que a liberdade não
esfomeado e cheio de sede num ponto equidistante de
pode ser demonstrada, deve ser postulada para que a
um curso de água e de um saco de aveia? O filósofo
moral seja possível. Com efeito, só um ser livre pode
medieval Buridan acha que o burro não será capaz de se
escolher entre o Bem e o Mal: para dever é preciso
mexer e acabará por morrer de fome. Porquê? Porque
primeiro poder. Reciprocamente, segundo Kant, só um
os motivos da sua acção possível se anulam
ser moral pode ser livre: a liberdade é, então, sinónimo
mutuamente (Buridan parte do princípio de que o burro
de autonomia. Pelo contrário, aquele que quer gozar a
é mesmo burro). O mesmo não aconteceria com o
vida sem limitações morais é um libertino. Em terceiro
homem que, mesmo na ausência de motivo decisivo,
lugar, a liberdade é uma noção política. Aqui, a
pode tomar decisões, graças a uma força que não
oposição é entre o cidadão livre e o escravo. Quando o
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14. precisa de outra causa para além de si mesma: o livre conhecimento da necessidade, isto é, no acesso às ideias
arbítrio. Só o homem possui livre arbítrio: ele é à adequadas a respeito do mundo. É livre aquele que age
imagem de Deus e, por isso, escapa às limitações do de acordo com a sua natureza. A liberdade é a nossa
reino animal. força para agir, elevada ao máximo e regulada pela
razão.
2. O Carvão Ardente de Balzac 2. Montesquieu
No romance Les Chouans (1829), Balzac descreve a Pensador liberal, Montesquieu é o defensor da
seguinte cena: para provar o seu amor a Marie de separação dos poderes, pois onde o poder executivo,
Verneuil, o marquês de Montauran não hesita em legislativo e judicial estão concentrados na mesma mão
segurar num carvão ardente ao longo de toda a sua reina um terrível despotismo. No entanto, o autor de O
declaração. Este acto ilustra a teoria de Maine de Biran espírito das leis não acredita num regime de total
sobre o sentimento do esforço voluntário como prova de liberdade, pois a própria liberdade pareceu
liberdade. Só quando resistimos ao nosso corpo que nos insuportável a povos que não estavam acostumados a
ordena um movimento reflexo (aqui para evitar uma beneficiar dela. É por isso que o ar puro é, por vezes,
queimadura), é que nós temos a experiência completa prejudicial àqueles que viveram num país pantanoso.
da nossa liberdade. Julgando que não existe nada de mais insolente do que
Três Autores: o povo, Montesquieu defendeu para a França, não uma
República, mas uma Monarquia parlamentar.
1. Espinosa
3. Sartre
Espinosa contesta a ideia de que o homem possua um
poder, graças ao qual escaparia às leis da natureza: o Para o existencialismo, o homem está condenado a ser
homem não é um império dentro de um império. Mas livre. Ele não pode não fazer escolhas: a recusa de
se o homem não tem livre arbítrio, em que é que reside escolher é escolher não escolher.Único ser para quem a
a sua liberdade? Para Espinosa, a liberdade reside no existência precede a essência, o homem só é aquilo que
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15. se faz ser: é o produto das suas escolhas. Tendo sido
influenciado pelo marxismo, Sartre não nega que o
homem esteja sujeito a fortes determinações históricas,
que nasça em situação. Mas acredita que cada homem
pode sempre libertar-se da situação que não tenha
escolhido.
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16. • Secção 2 •
A Moral e o Dever
não para consigo próprio. O suicídio, neste caso, não
seria moralmente condenável.
Dois Exemplos
O que é que devo fazer? Esta questão é típica da moral e 1. Os Dez Mandamentos
do direito. O dever refere-se à obrigação, ao Bem O filósofo e teólogo Martin Buber interpreta o episódio,
(moral) ou à Lei (direito), supõe uma regra e tem como em que Deus dá a Moisés o decálogo como uma etapa
destinatário a liberdade do indivíduo - não fosse assim, necessária no caminho que conduz o povo judeu da
e o dever confundir-se-ia com a necessidade, a que não libertação do Egipto até à Terra prometida. Os dez
podemos escapar. A moral tem a ver com as condições mandamentos são outras tantas regras que permitem
internas à pessoa; ela deixa ao direito o estudo das aos Hebreus estruturar a sua liberdade e adquirir a sua
obrigações exteriores. A ética (ou moral) que defende identidade. Assim, o quinto mandamento que obriga a
que há obrigações incondicionais é chamada de descansar ao sétimo dia e a honrar os pais dá à
deontológica. Opõe-se à ética consequencialista que comunidade a coesão necessária no tempo, enquanto
julga que uma acção é moral só se os seus efeitos sobre que a proibição de roubar os bens de outros organiza a
os outros forem bons. Chama-se ética minimal, a moral comunidade no espaço. Respeitar o dever seria então
que considera que só há deveres para com os outros, e ser-se plenamente humano.
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17. 2. A Escolha do Gémeo tem em conta as circunstâncias no enunciado do
Há situações, em que seja impossível saber o que se deveres.
deve fazer? O filósofo inglês Bernard Williams imagina 2. Kant
o caso trágico de um médico que, na altura do parto de Representante por excelência da ética deontológica,
uma mulher que espera dois gémeos, só conseguiria Kant considera que só conseguimos deduzir os deveres
salvar uma das crianças. Nenhum critério racional lhe a partir da razão prática. Há imperativos que são
permite motivar a sua escolha, pois a vida de um vale categóricos, porque não dependem das circunstâncias,
tanto como a vida do outro: as duas obrigações são mas daquilo que a razão nos ordena. Esta encontra na
equivalentes - o dilema moral é insolúvel. forma da lei (a universalidade) o conteúdo daquilo que
prescreve: deve-se agir, elevando ao universal a máxima
Três Autores da nossa acção. Assim, por exemplo, tenho o dever de
1. Cícero manter as minhas promessas, porque também não
quero ser traído, isto é, entendo que essa máxima se
Para este estóico, o primeiro dever de todos os homens
aplica universalmente. Para Kant, uma vez que todos os
é o de conservar-se a si mesmo. A sabedoria consiste,
homens dispõem de razão, todos sabem qual é o seu
em primeiro lugar, em respeitar em nós a nossa
dever.
natureza. Mas, como o homem vive em sociedade, deve
adaptar esta preocupação consigo mesmo à relação com 3. Mill
os outros. Por esta razão, Cícero escreveu um Tratado Este filósofo inglês, representante da corrente
dos deveres, no qual descreve as condutas convenientes utilitarista, reduz os nossos deveres ao mínimo. O único
para bem viver em sociedade, mantendo-se virtuoso. critério da acção correcta é o de não prejudicar os
Esta moral média, que consiste por exemplo em não outros. Mas, nestas condições, como devemos reagir
manter uma promessa obtida por medo ou surpresa, quando vemos alguém a afogar-se? John Stuart Mill
responde que não podemos condenar aquele que não
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18. faz nada. E se aquele que tenta salvar o banhista em
perigo de se afogar, o faz por interesse (por exemplo,
pelo dinheiro que poderá ganhar, ou na esperança de
ver o seu nome no jornal), a sua acção será moralmente
boa: a moral não se avalia a partir das intenções, mas a
partir das consequências das nossas acções.
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19. • Secção 3 •
A Moral e a Felicidade
realidade, muitas vezes vivido como um cruel
desencantamento, põe em causa a própria busca da
felicidade: não será essa busca irresponsável, egoísta,
imoral?
A felicidade é um estado de satisfação duradoura e
completa. Não se reduz, portanto, ao prazer que é Dois Exemplos
sempre breve e parcial. Mas se todos conhecem 1. O Mito do Andrógeno
momentos de prazer, nem todos alcançam a felicidade. Num banquete bem regado, onde Sócrates discute com
Ainda por cima ser feliz depende da boa sorte, e não os seus amigos a melhor definição do amor, Arstófanes
somente do mérito daquele que busca a felicidade. É (célebre autor de comédias) conta o mito do andrógeno:
por isso que a felicidade é mais um ideal do que uma no princípio, o homem tinha quatro pernas e quatro
realidade. Chama-se eudemonismo à doutrina que braços, mas, por causa do seu orgulho, foi dividido em
considera que a busca da felicidade é a finalidade das dois pelos deuses. Embora não tenha ficado maneta,
acções humanas e hedonismo à que visa simplesmente nem perneta, a saudade da sua metade perdida leva-o a
a busca do prazer. A felicidade tem a ver ao mesmo procurá-la desesperadamente. Quando a encontra, não
tempo com a psicologia e com a moral. Com efeito, a abandona mais: o amor permite atingir o ponto mais
podemos ficar satisfeitos com ilusões e, por isso, a alto da felicidade que é o sentimento de uma unidade
imaginação pode ser considerada a faculdade que nos reencontrada.
permite alcançar a felicidade. Mas o retorno à
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20. 2. A Experiência do Homem Drogado Durante uma andorinha não faz a primavera (Ética a
toda a sua vida Nicómaco de Aristóteles). Uma criança não pode
O filósofo alemão Robert Spaemann imagina nas suas pretender ser feliz, entre outras coisas, poque o seu
Noções fundamentais de moral a seguinte experiência: entendimento não está completamente desenvolvido.
coloca-se um homem numa mesa e, depois de ele ter Aristóteles defende uma concepção muito elitista da
adormecido, injecta-se no seu cérebro uma substância felicidade: ela está reservada ao sábio que teve sucesso
química de libertação prolongada e regular, que lhe na vida.
garanta um sentimento de êxtase permanente durante 2. Epicuro
toda a sua vida. Ao fim de vários decénios, quando o seu Epicuro afirma que é possível alcançar a felicidade.
corpo estivesse demasiado velho. Quem quer fazer a Para isso, é necessário satisfazer exclusivamente os
experiência? Ninguém, certamente. A recusa revela: desejos naturais e necessários, e viver no instante
todos nós sabemos que a felicidade não se confunde presente. Mas atenção: embora o epicurismo seja uma
com um estado permanente de prazer. modalidade de hedonismo, não se confunde com uma
busca desenfreada do prazer. O sábio é aquele que
Três Autores procura evitar as perturbações da sua alma (ataraxia) e
1. Aristóteles a dor no seu corpo (aponia). A felicidade é, então, aquilo
que se sente quando se alcança um estado de equilíbrio.
A felicidade é própria do homem (pois só é acessível a
um ser racional) e é a finalidade última da sua acção 3. Bentham
(pois basta-se a si mesma). No entanto, a felicidade não Jeremy Bentham, pensador utilitarista, defende na sua
depende só da razão. Com efeito, segundo Aristóteles, Introdução aos princípios de moral e de legislação
não conseguiremos ser verdadeiramente felizes, se (1789) que a tarefa do legislador é a de garantir a maior
formos feios, pobres ou ignorantes. Por outro lado, a felicidade ao maior número. Com efeito, a felicidade
felicidade só pode ser alcançada no fim da vida pois individual, embora seja a única finalidade verdadeira
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21. das acções, só pode ser efémera se não é obtida numa
sociedade que garanta a segurança dos bens. Deve-se,
então, privilegiar a felicidade pública, harmonizando os
interesses particulares. O que interessa é o total de
felicidade alcançado deste modo. Para Bentham, a
felicidade é quantificável e é menos um assunto moral
do que económico.
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22. • CAPÍTULO 3 •
O SUJEITO
Desde o momento em que vejo a face de alguém, ela
pede-me que a respeite, e, desse modo, revela-me a
possibilidade de lhe recusar esse pedido.
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23. • Secção 1 •
O Sujeito e a Consciência
Dois Exemplos
1. O Príncipe e o Sapateiro
O filósofo inglês John Locke colocou o seguinte enigma:
A consciência designa originariamente um saber se transplantarmos a memória de um príncipe para o
partilhado (cum=com; scire=saber): é um saber que corpo de um sapateiro, será que este se tornaria no
acompanha aquele que pensa. Deste modo, distingue-se príncipe que se lembrava de ter sido, ou tornar-se num
a consciência espontânea ou imediata, virada para o sapateiro observado por outro? Esta é uma das
mundo exterior, da consciência reflectida em que o eu primeiras formulações do problema da identidade. Para
se volta para si mesmo. Com os filósofos modernos da Locke, a consciência faz a identidade pessoal. Por
consciência (ou do sujeito), que surgem a partir do outras palavras, a identidade estende-se até aos limites
século XVII com Descartes, o saber será recentrado no da memória de cada uma, mas não para além dela. A
homem, nas suas faculdades de pensar, na sua busca de identidade real não depende, para este empirista inglês,
identidade. A consciência tem também um sentido de uma substância, mas somente do testemunho da
moral: é aquilo que permite ao sujeito distinguir o bem minha consciência, isto é, da experiência não verificável
do mal. A origem desta consciência pode ser o coração que tenho de mim mesmo.
(Rousseau) ou a razão (Kant). A consciência colectiva 2. As Badaladas do Relógio
designa a consciência do grupo que ultrapassa ou Quando o relógio dá horas, como é que não nos
supera a soma das consciências individuais. enganamos a respeito da hora anunciada? Bergson
toma este exemplo para contestar o dogma da
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24. instantaneidade da consciência: se esta só estivesse para quem a auto-depreciação é a melhor maneira de
atenta a cada uma das badaladas do relógio, se ela não nos conhecermos a nós próprios.
despertasse de maneira descontínua, não poderia ter em 4. Descartes
conta o número de badaladas ouvidas e seria, por isso, Embora Descartes não utiliza a palavra consciência, é
incapaz de dizer que horas são. É preciso que seguramente a ela que se refere quando fundamenta a
retenhamos, a cada nova badalada, aquelas que a sua filosofia do sujeito. Procurando nas suas
precederam. É por esta razão que Bergson afirma no seu Meditações metafísicas uma primeira verdade,
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência que a encontra-a na certeza de o meu pensamento é tudo
consciência é memória. quanto basta para provar a minha existência. O célebre
cogito (penso, logo existo) designa a intuição, através da
Três Autores qual eu sei que eu sou: a consciência de si, que nem
3. Montaigne sequer passa, segundo Descartes, pela mediação do
Nos seus Ensaios, Montaigne explica que o seu livro corpo, não é uma ilusão, mas uma verdade clara e
versa sobre ele próprio, sobre a sua “substantifique” distinta. Esta verdade evidencia a dimensão metafísica
medula, e que o seu projecto é experimentar em si do homem que é, antes de tudo o mais, uma coisa que
mesmo a condição humana. Eu provo-me, eu amo-me pensa.
a mim mesmo, diz Montaigne. Para ele, a consciência de 5. Husserl
si passa pelo prazer de um trabalho introspectivo feliz. Toda a consciência é consciência de alguma coisa, diz
Mais do que se lamentar das suas próprias Husserl, o pai da fenomenologia. Isso significa que a
imperfeições, o sujeito que medita sobre si mesmo deve consciência não é uma substância, mas um fluxo
aprender a rir-se delas. É preciso que saibamos que intencional, uma intencionalidade. Reciprocamente,
somos uma fraude, não hesita em escreve Montaigne, todo o objecto é objecto para uma consciência. Mas isso
não quer dizer que o objecto visado ou referido não tem
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25. essência, que só existe para mim. A fenomenologia não
é incompatível com o reconhecimento da essência das
coisas.
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26. • Secção 2 •
Sujeito e Inconsciente
do inconsciente teve, mesmo assim, o mérito de
permitir reabilitar o corpo e o desejo no exercício da
inteligência, e forneceu uma chave interpretativa para
fenómenos culturais como a arte e a religião.
O inconsciente designa, negativamente, aquilo que se
Dois Exemplos
opõe à consciência, aquilo que é desprovido de
consciência (como o sono) e, positivamente, o aparelho 1. A mão da mulher seduzida
psíquico tal como é descrito pela Psicanálise, e que Para Sartre, nós não coincidimos connosco próprios e
estaria na origem da maior parte dos nossos utilizamos essa falta de coincidência para nos
comportamentos. Se aceitarmos esta perspectiva é enganarmos a nós mesmos. Uma jovem tem um
posta em questão toda a tradição do “eu” transparente encontro num café: enquanto ela fala, o seu
para si mesmo, consciente, senhor dos seus actos. O pretendente toma-lhe a mão. Se a jovem deixa ficar a
inconsciente coloca dois problemas: o da possibilidade mão, está a consentir em tornar-se um objecto de
do seu conhecimento (conhecer o inconsciente não será desejo; se a retirar, corre o risco de deixar de ser
deformá-lo para o tornar consciente?), e o do seu poder desejável. Ela abandona a sua mão, mas não se
(se o inconsciente determina as minhas acções, a apercebe de que a abandona, pondo-se a falar de
liberdade será muito provavelmente uma ficção). Os outras coisas. Para Sartre, mais do que o inconsciente,
adversários da psicanálise criticam-na acusando-a de existe em nós uma consciência de má-fé: uma
ser uma pseudociência e de ser fatalista. A descoberta consciência que não quer ver.
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27. 2. Branca de Neve penso. Deste modo, Leibniz resolve o problema da
Na sua Psicanálise dos contos de fada, Bettelheim permanência da identidade.
mostra que a leitura dos contos de fada ajuda a criança 2. Schopenhauer
a superar as suas angústias inconscientes. Leiamos a O autor do Mundo como vontade e como
Branca de Neve a uma menina de 4 anos. Esta, sem o representação, acha que o homem desconhece o que o
saber, vai ouvir contar como poderá resolver o seu leva a agir: o seu carácter. O carácter é o meio, através
complexo de Édipo: o conto dir-lhe-á que os ciúmes que do qual a natureza incarna em nós e arruina a nossa
tem da sua mãe (aqui projectada na Rainha) são liberdade. Com efeito, o carácter é desconhecido e
perigosos, que o seu pai (incarnado pelo caçador que invariável: querer mudá-lo é tão quimérico como
abandona a Branca de Neve na floresta) não é conseguir fazer com que um carvalho dê pêssegos. Mas
forçosamente um protector e que o desejo sexual o que é que a natureza quer de nós? A sua própria
(simbolizado pela maçã envenenada) deve esperar... reprodução. Schopenhauer chama querer viver a este
mecanismo cego que se serve dos nossos sentimentos
Três Autores amorosos, e do nosso desejo sexual, para perpetuar a
1. Leibniz espécie. Só a abstinência nos pode libertar deste
processo inconsciente.
Para Leibniz, a consciência procede por integração de
dados inconscientes, pois as coisas mais notáveis são 3. Freud
compostas por partes que o não são. Devemos, Inventor da psicanálise, Freud defende o paradoxo que
portanto, distinguir a actividade psíquica do consiste em afirmar que somos capazes de saber como
pensamento consciente: Há em mim pequenas funciona o inconsciente. O seu método inclui a análise
percepções imperceptíveis que garantem a transição dos sonhos - a via real na exploração do inconsciente.
entre o não-consciente e o consciente. Mantenho-me, Aí revela-se o que o sujeito recalcou. Freud deduz daqui
assim, o mesmo, apesar dos momento em que não que o aparelho psíquico comporta três pólos: o Id
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28. (origem das pulsões), o Superego (causa do
recalcamento) e o Eu (gestor dos conflitos
inconscientes). Mas ele não se considera fatalista: O Eu
há-de chegar aí onde o Id tem estado.
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29. • Secção 3 •
O Sujeito e o Outro
de respeitar uma diferença, mantendo a comunicação
com ela, por exemplo, através da empatia. A questão do
outro interessa também à antropologia que pesquisa
sobre a pluralidade de culturas e sublinha a sua
irredutível alteridade.
“O outro” designa uma consciência diferente da minha.
Dois Exemplos
Esta noção, na filosofia, tem um sentido mais restrito
do que a noção de “outro” na linguagem comum, que 1. A Desumanização de Robinson
pode remeter para uma coisa, para um animal ou até Robinson é uma figura mítica que tipifica o homem
para o próprio Deus. Ligada à filosofia da consciência, condenado à solidão. No livro Sexta-Feira ou os limbos
que nasce com Descartes no século XVII, a questão do do Pacífico, Michel Tournier propõe uma leitura deste
outro intervém no momento em que o sujeito se personagem. Nele descreve o declínio de Robinson que,
pergunta como é que pode sair da solidão da primeiro, impõe a si mesmo um código legal como se
consciência de si (solipsismo) e conhecer o mundo pela vivesse em sociedade, depois comporta-se como um
via da intersubjectividade - da relação com os outros. animal, mais tarde “vegetaliza-se” fundindo-se com a
Esta questão torna-se, por seu turno, uma questão ilha (faz amor com uma flor), e finalmente petrifica-se:
moral, a partir do momento em que nos recusemos a o seu último prazer será o momento em que o sol o
fazer do outro simples duplos de nós mesmos, puros banha com os seus raios. O homem, privado do seu
alter egos, ou a instrumentalizá-lo. Trata-se com efeito semelhante, acaba por deixar de se um homem.
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30. 2. Os gorgolejos do estômago do vizinho escraviza aquele que não consegue fazer prova da sua
O que é suposto fazermos quando ouvimos os liberdade. Mas o senhor torna-se dependente do
gorgolejos do estômago do vizinho? Fazemo-lo acreditar trabalho do escravo que, por seu turno, domina o seu
que não ouvimos nada. Esta atitude ilustra o que Ervin outro e se faz reconhecer por ele. Este jogo de
Goffman chama os ritos de interacção. Em sociedade reconhecimento recíproco é uma etapa necessária ao
queremos, certamente, salvar a nossa face, mas despertar da inteligência.
sobretudo queremos salvar a face dos outros. A 2. Sartre
sociologia das interacções explica deste modo que, se Sartre dá o nome de “para-o-outro” àquela estrutura da
fazemos tudo o que está ao nosso alcance para evitar o minha consciência que faz com que seja invadido pelo
embaraço dos outros (ao ponto de pedirmos desculpa outro: posso, por exemplo, experimentar um
por eles), isso acontece essencialmente por interesse e sentimento de vergonha estando sozinho (se olhar pelo
não por delicadeza: queremos estabilizar os laços buraco de uma fechadura e me sentir visto por alguém,
sociais, para não sermos nós próprios marginalizados. mesmo que esse sentimento seja falso). Esta dimensão
para-o-outro, que fere a minha liberdade, é, portanto,
Três Autores sobretudo, negativa: o outro é aquele para quem eu sou
1. Hegel um objecto, aquele que me pode coisificar, desde logo
porque me fundo com a imagem que ele tem de mim.
O outro desempenha um papel decisivo na passagem da
Então, sim, o inferno são os outros.
consciência imediata à consciência de si. Com efeito,
para Hegel, eu serei desconhecido para mim mesmo, se 3. Levinas
não for reconhecido pela mediação de uma outra Levinas faz do outro o ponto de partida da sua filosofia
consciência. Disto mesmo é testemunha a célebre moral. Para ele, o “tu” precede o “eu”. É através do
dialéctica do senhor e do escravo: aquele que, para se outro que eu me torno pessoa. Desde o momento em
fazer reconhecer, encoraja o medo da morte, domina e que vejo a face de alguém, ela pede-me que a respeite, e,
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31. desse modo, revela-me a possibilidade de lhe recusar
esse pedido. O outro é o único ser que posso querer
matar. É portanto através do outro - e em particular
através dos mais fracos (as crianças, os idosos...) que eu
descubro a minha própria dimensão moral.
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32. • Secção 4 •
O Sujeito e o Desejo
busca de riqueza, de glória...). A atitude que visa
aniquilar os desejos chama-se ascetismo; é pouco
valorizada pela filosofia (excepto no estoicismo) porque
gera frustrações que podem conduzir à neurose ou à
perversão.
O desejo é, muitas vezes, concebido como a expressão
de algo que nos falta. A palavra tem, aliás, origem na
linguagem dos oráculos, onde designava a ausência de Dois Exemplos
uma estrela (siderius) no céu. Distingue-se o desejo de 1. As Hesitações de Hamlet
uma necessidade (que se refere a uma satisfação No Hamlet, Shakespeare desenha o retrato de um herói
urgente) e do ansiado (cuja realização é muitas vezes “abúlico”: doentiamente indeciso. O príncipe Hamlet
utópica). Quando o desejo é tão intenso que se torna está, com efeito, dividido entre dois desejos: vingar o
exclusivo, fala-se de paixão. Inversamente, a ausência seu pai, talvez covardemente assassinado pelo seu
de desejo corresponde a uma falta de força (astenia), de irmão Claudius, ou não fazer nada. É que quem
gosto (apatia). São duas as disciplinas que se comanda esta vingança é o espectro do seu pai. Como
interessam particularmente pelo desejo: a psicanálise acreditar num espectro? Mas se ele tem razão, como
que o aproxima da pulsão, e a moral que se interroga deixar um covarde usurpador a reinar? Incapaz de
sobre a possibilidade de controlar os desejos. Epicuro escolher, Hamlet é tentado pelo suicídio. Mas aqui
distingue os desejos sãos (naturais e necessários) dos também entre ser e não ser, qual é a boa escolha?
desejos que o sábio deve evitar (prazeres do corpo,
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33. Difícil existência esta, confrontada com desejos higiene, ela esconde os interesses do prazer. Assim,
contrários. após um esforço intenso, podemos beber água com
2. Os ciúmes de Ajax deleite, bebendo-a em nome da santidade. Devemos
Homero conta na Odisseia, no diálogo nos Infernos, que desconfiar do desejo, porque o seu objecto é
Ajax se recusa a falar com Ulisses. Não lhe perdoa ter-se ambivalente.
apossado das armas de Aquiles e, enganado por Atena, 2. Espinosa
ter conhecido a vergonha ao ponto de ser tentado ao Para Espinosa, o desejo não tem origem na falta de
suicídio. Esta relação trágica entre dois heróis gregos alguma coisa. O desejo é que se relaciona com o seu
ilustra a dimensão mimética do desejo, tal como o objecto. O que quer dizer que uma coisa é julgada boa
analisa René Rirard. Nós não desejamos um objecto por não porque a desejamos, mas é porque a desejamos que
aquilo que ele é, mas porque é desejado por outros. ela é considerada boa. Mas então de onde vem o desejo,
Aquilo que o desejo imita é o desejo do outro. É este se não é a expressão de algo que nos falta? Espinosa
mimetismo que gera a rivalidade e a violência. responde: do próprio ser, pois toda a coisa, na medida
em que é em si, esforça-se por preservar-se no seu ser
Três Autores (teoria do conatus que significa esforço). O desejo é,
portanto, para Espinosa, a essência do homem.
1. Santo Agostinho
3. Schopenhauer
Após ter levado uma vida de prazeres, santo Agostinho
converte-se ao cristianismo e leva uma vida austera Schopenhauer vê no desejo a infelicidade do homem:
virada para Deus. Nas Confissões, onde narra a sua enquanto não está satisfeito, é vivido em modo de
conversão, consagra um capítulo inteiro à sofrimento, mas, uma vez realizado, perde o interesse e
intemperança. Defende que é impossível distinguir o gera outro desejo. Pessimista, Schopenhauer não hesita
que fazemos por necessidade do que é feito por desejo, e em afirmar que a vida oscila, como um pêndulo, da
que esta incerteza é deliciosa, porque sob o véu da direita para a esquerda, do sofrimento para o
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34. aborrecimento, entendendo-se que o aborrecimento
não é a morte do desejo, mas o momento em que ele
recupera forças e se desloca para outro objecto: o
aborrecimento é o desejo de desejar de novo, e sentir
que nunca estaremos verdadeiramente satisfeitos.
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35. • Secção 5 •
O Sujeito, a Existência e o Tempo
trágico de uma existência percebida como finita a
oportunidade de uma conversão a Deus. O
existencialismo ateu (Sartre) considera que a finitude
não é um obstáculo à liberdade e que o homem constrói
pouco a pouco a sua essência, através das suas escolhas
e dos seus actos.
A existência é o facto de ser. Distingue-se da essência
que designa aquilo que uma coisa é. À excepção de Deus
Dois Exemplos
cuja existência é eterna, o próprio da existência é ser
finita, limitada no tempo. A existência opõe-se neste 1. O Mito de Sísifo
sentido à morte. O tempo, por seu turno, designa um Por ter ofendido os deuses, Sísifo é condenado a
período que decorre entre dois acontecimentos. empurrar um enorme rochedo até ao cimo de uma
Caracteriza-se pela mudança (é por isso que Platão o montanha; uma vez lá chegada, a enorme pedra rola
define como uma imagem móvel da eternidade) e pela sempre pela montanha abaixo. Este castigo torna o
irreversibilidade (não podemos voltar atrás no tempo, a trabalho de Sísifo sempre imperfeito, eternamente
não ser na ficção). No caso do homem, o facto de saber recomeçado, vão. Mas é justamente esta ausência de
que a sua existência é finita leva-o a meditar no sentido sentido que interessa Camus: Sísifo é o herói absurdo
da existência. As filosofias que centram a sua reflexão por excelência. Pois, no momento em desce a
na existência são chamadas existencialistas. O montanha, Sísifo pensa que contemplando o seu
existencialismo cristão (Pascal, Kierkgaard...) vê no tormento, supera o seu destino. A existência é um
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36. absurdo, mas sabê-lo é um penhor de felicidade: É memória, um presente do presente que é a visão directa,
preciso imaginar Sísifo feliz. e um presente do futuro que é a expectativa. O tempo,
2. Funès, o Hipermnésico portanto, vive-se sempre no presente e subjectivamente.
Funès ou a memória é uma novela do Argentino Jorge 2. Kant
Luís Borges que conta a história de um homem que Na Crítica da razão pura, Kant mostra que o tempo
sofria de hipermnésia: Funès, aldeão doente, memoriza não é algo em si, mas a forma a priori (que precede a
tudo. Pode lembrar-se de todas as folhas caídas de uma experiência) da nossa percepção. O tempo serve de
árvore e do momento em que as viu cair. Mas esta enquadramento ao aparecimento possível dos
memória integral revela-se inútil. Ao tentar reduzir as fenómenos. Com o espaço, o tempo condiciona a
suas recordações para 70 000 por dia, Funès não experiência, através da qual acedemos ao mundo
consegue parar de as classificar, passa a sofrer de exterior. Para Kant, tudo se passa no tempo, mas o
insónias e morre, esgotado, na sua cama. Para pensar, é tempo, ele, não passa.
preciso abstrair; para viver, é preciso esquecer. 3. Bergson
Para Bergson, a nossa abordagem do tempo é, regra
Três Autores geral, errada. Temos tendência a dividi-lo como fazemos
1. Santo Agostinho com o espaço. Ora, a experiência pura da temporalidade
No livro XI das suas Confissões, santo Agostinho mostra-nos que não há descontinuidade entre o
contesta a opinião, segundo a qual o tempo pode ser presente, o passado e o futuro. O tempo é uma
dividido em três dimensões: o passado, o presente e o mudança, mas uma mudança contínua: a duração real
futuro. O passado já não é; O presente flui vive-se de maneira intensiva e subjectiva. Por outro
permanentemente e parece inacessível; O futuro ainda lado, a intuição pode apreender verdadeiramente o
não é. Mas há uma vivência que corresponde a estas três tempo, e apreendê-lo como duração. A duração,
temporalidades: um presente do passado que é a subjectiva, não é o tempo, objectivo. Quando alguém se
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37. enfastia, cinco minutos duram duas horas. A isto se
refere a duração (durée) de Bergson.
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