O texto a mensagem secreta, reflete sobre a importância da escrita para sobreviver ao tempo, resguardar a memória, como a escrita é fundamental para a humanidade.
1. MENSAGEM SECRETA
Traço estes ideogramas sobre um tablete de argila, como
sempre faço por ordem do príncipe. Só que desta vez não se trata
de uma encomenda do príncipe. Escrevo por mim, não por ele.
Gudea não verá esta mensagem. Sofreria muito. É uma mensagem
secreta, não enfeitará as estátuas, nem será conservada no tempo.
Eu a guardarei e a levarei comigo para o túmulo. Este é o lado
obscuro da minha sabedoria e não quero que seja conhecido nem
por meus soberanos, nem por meus contemporâneos.
Gudea e eu somos amigos desde criança. Na infância, éramos
iguais. Mesmo sabendo que ele era filho de reis e que eu era filho
de súditos, na infância não há diferenças. O barro nos sujava, tanto
a ele como a mim, a chuva molhava os dois, os dois éramos
aquecidos pelo sol. As brigas foram de irmãos, as reconciliações
foram de irmãos.
2. Agora já não é assim. Ele é o príncipe e, embora eu seja seu
escriba favorito, a igualdade já não existe. Devo escrever suas
realizações e suas glórias, que são grandes. Faço-o, mas sei que
tudo que é terreno é fugaz, e sei que tudo terminará um dia.
Gudea é generoso e criador, conseguiu que o depósito de
especiarias de Lagash fosse como o Tigre, quando suas águas
estão crescidas. Na casa do tesouro há pedras preciosas, metais
nobres e chumbo. A cidade de Lagash é feliz e poderosa e ama seu
príncipe. Eu também o amo, como súdito e como amigo, mas sei
que as glórias dos reis se acabam.
Tudo que é terreno é fugaz, e tudo terminará um dia. As
esculturas perderão suas cabeças e os corpos dos reis
apodrecerão. Os estandartes guerreiros, os elmos de ouro, as
armas, os instrumentos musicais serão corroídos pela umidade e
pelo tempo. Os escravos e os soberanos morrerão, mas, se eu
disser ao príncipe que ele também é mortal, ele me sacrificará,
embora tenhamos sido iguais na infância.
3. E Gudea é mortal. Esforça-se em conseguir a benevolência
divina e ignora que essa benevolência consiste justamente em dar-
lhe o dom de morrer um dia. Gudea perecerá, assim como Lagash
perecerá nas mãos dos invasores. Os poderosos temem a morte,
mas a morte não teme os poderosos”.
Tudo terminará um dia, e até a lembrança e memória
terminariam se eu não tivesse o poder de traçar estes ideogramas
em uma mensagem secreta. A perenidade das coisas que no
futuro serão somente ruínas está na escrita. A majestade dos
templos ficará só na palavra, o brilho do ouro ficará só na palavra,
o sangue correrá só na palavra, o príncipe ressuscitará só na
palavra. O homem volta quando seu nome fica gravado para
sempre, mesmo que seu corpo seja somente cinzas.
FIM
4. Observações:
Você leu um conto muito bonito, escrito por um escriba sumério. Os sumérios foram um povo que
viveu a mais de cinco milênios no sul da Mesopotâmia e, assim como os chineses e os egípcios,
também desenvolveram uma forma de escrita.
Nesse conto, o escriba reflete sobre a importância da escrita para sobreviver ao tempo, resguardar a
memória. Agora pense você também, sobre como a escrita é fundamental para a humanidade.
Este texto foi encontrado dentro do túmulo de um escriba. Era o escriba do príncipe Gudea, da cidade
suméria de Lagash. Há registros de que esse príncipe e esta cidade realmente existiram.
É um texto, de certa forma, profético: “As esculturas perderão suas cabeças...”. Muitos anos depois de
este texto ter sido escrito, a estátua de Gudea perdeu sua cabeça durante uma invasão Lagash; a
cabeça encontra-se exposta em um museu.
(Título original do conto: “Eu, o escriba”. Traduzido e adaptado do livro historias y cuentos del
alfabeto, de Eduardo Gudiño Kieffer e Hilda Torres Varela.)
Organizado por:
José Arnaldo da silva
Professor de língua portuguesa e estrangeira (inglês).