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DA VIDA AO TEMPO:
Simmel e a construção
da subjetividade no mundo
moderno *

Jonatas             Ferreira




Introdução                                                 uma certa sensibilidade cosmopolita, um enfoque
                                                           predominantemente microssociológico e uma in-
       O fato de Simmel ter se mantido em evidência        terpretação da cultura que privilegia o jogo dinâmi-
durante a primeira metade do século XX deve-se,            co entre estruturas simbólicas identitárias e forças
em grande medida, ao interesse que sua obra                de alteridade.2 Por este motivo, não parece fortuito
despertou na sociologia americana numa época em            que ensaios como “O estrangeiro”, “O aventureiro”
que os padrões consagrados de produção científica          e “Conflito” sejam até hoje presenças obrigatórias
se opunham ao seu brilhante “ensaísmo”. O seguin-          nas coletâneas da obra de Simmel publicadas nos
te comentário parece representar o tipo de acolhida        Estados Unidos, como pode atestar o Selected wri-
que sua obra recebeu durante este período: “Sim-           tings editado em 1971 por Donald Levine.
mel tem a mais refinada inteligência entre todos os               Embora influente e de importância evidente,
seus contemporâneos. Mas, fora disso, é totalmente         tal recepção da obra de Simmel deu-se às custas de
vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a             uma apreciação mais ampla de aspectos funda-
verdade. Ele é um compilador de pontos de vista            mentais de seu universo temático. É curioso que
com os quais rodeia a verdade, sem pretender ou            um livro tão importante quanto Lebensanschau-
estar apto a possuí-la.”1 Não obstante esta aparente       ung. Vier Metaphysische Kapitel,3 de 1918, reunin-
idiossincrasia de sua personalidade intelectual ou,        do os últimos ensaios produzidos por Simmel,
como o texto sugere, apesar de sua impotência em           ainda não tenha sido traduzido para o inglês,
“possuir” a verdade, a obra Simmel firmou-se como          francês ou português — à exceção do ensaio
referência sociológica das mais importantes. Sua           “Caráter transcendental da vida”, traduzido na
popularização deve-se, sem dúvida, ao interesse            década de 70 para o inglês. A importância teórica
que a Escola de Chicago demonstrou por alguns de           dos quatro ensaios que o compõem, todavia, pode
seus traços distintivos, dentre os quais eu destacaria     ser estimada se tivermos em mente o meio acadê-
                                                           mico no qual eles emergiram e com o qual contras-
*   Agradeço os comentários de Silke Weber, Paulo Henri-   tam de forma tão categórica. Pois se é bem verdade
    que Martins e Terry Mulhal a este ensaio.              que a tradição neokantiana, com a qual Simmel

                                                                               RBCS Vol. 15 no 44 outubro/2000
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convive intimamente, sonha com um projeto soci-                 apenas um reconhecimento genérico de Simmel
ológico capaz de se estruturar a partir de uma                  como filósofo. O estímulo específico que Heide-
concepção atemporal de subjetividade,    o    Leben-            gger recebeu deste trabalho é visível a qualquer
sanschauung aponta para o reconhecimento do                     um que hoje leia no primeiro dos quatro “Capítu-
tempo como fator estruturante do ser-no-mundo e                 los Metafísicos”, reunidos sob o título Lebensans-
da possibilidade do saber. Se o conhecimento                    chauung, aquilo que um Simmel moribundo con-
científico não for um “esquecimento” desta verda-               cebeu como sua tarefa filosófica. Lá podemos ler:
de ontológica fundamental, de forma alguma ele                  “A vida é verdadeiramente o passado e o futuro”.
deverá buscar a “posse” de verdades universais e                Ele chama “a transcendência da vida o verdadeiro
atemporais como critério e base de validade. Anos               absoluto”, e o ensaio conclui: “Eu sei muito bem
mais tarde, Heidegger afirmaria que todo saber                  que obstáculos lógicos existem à expressão con-
autêntico deve abrir-se à indeterminação ontológi-              ceitual deste modo de ver a vida. Eu tentei formu-
ca do ser-no-mundo — e essa indeterminação                      lá-los com a plena consciência do risco lógico,
surge como conseqüência inevitável do reconheci-                uma vez que é possível que tenhamos atingido
mento de nossa temporalidade, ou seja, como                     aqui um nível em que dificuldades lógicas de
constatação de nossa finitude ou, como diria Hei-               forma alguma nos impõem o silêncio — pois este
degger, de nosso ser-para-a-morte. Se aceitamos,                é o mesmo nível em que a raiz lógica da metafísica
todavia, o tempo como estrutura ontológica funda-               se nutre.”
mental, e conseqüentemente como determinante
da possibilidade do saber, todo o projeto neokan-                  Se percebemos nestes quatro ensaios adian-
tiano da Escola de Baden (leia-se Windelband,              tada uma tese tão central no universo teórico
Rickert e o Weber dos ensaios metodológicos),              heideggeriano, qual seja, que ser e tempo são
com o qual Simmel tem um contato tão íntimo,               conceitos correlatos, que se perceber humano é
entra em colapso. Esta perspectiva induziu Rickert         perceber-se mortal, ou, ainda, que a ontologia
(1924) a afirmar de forma infatigável durante sua          deve ser entendida como fundamento mais radical
carreira que aquilo que capacita a verdade científi-       da lógica, é preciso enfatizar que Simmel procura
ca a ser um valor acima de todos os outros valores         não dissociar esta perspectiva de sua possibilidade
é precisamente que a ciência se nega a ser “parte          histórica, ou seja, sua tomada de consciência
da vida em geral”. Procedendo deste modo, a                pertence à cultura moderna. A historicidade da
ciência escaparia à sina dos seres orgânicos que           obra de Heidegger não deve espantar ninguém,
germinam, desenvolvem-se e morrem. O conheci-              por mais parcimonioso que ele se tenha mostrado
mento, para Rickert, deve se proclamar transcen-           em reconhecer suas dívidas intelectuais. O fato de
dental em relação à vida e ao tempo — e nesta              uma reflexão acerca da estrutura temporal do ser
afirmação mesma nós constatamos a importância              emergir nas sociedades modernas não é, obvia-
de se pensar a pauta fenomenológica (mais espe-            mente, fortuito. É a esta historicidade que o traba-
cificamente, seus pressupostos existenciais e tem-         lho de Simmel já nos remete.
porais) que põe tal projeto sociológico de pé.                     Dito isto, é necessário conceder: uma refle-
         Uma idéia bem distinta de transcendência é        xão acerca do significado do tempo como catego-
oferecida por Georg Simmel no Lebensanschau-               ria ontológica e epistemológica fundamental não é
ung. A respeito deste livro, temos de Hans-Georg           novidade no pensamento de tradição crítico-trans-
Gadamer um depoimento que ensejou, em parte, a             cendental na qual a obra de Simmel sem dúvida se
investigação que apresento neste ensaio. Em uma            inscreve. Mesmo os adversários mais categóricos
nota de rodapé do seu Verdade e método Gadamer             desta tradição não deixam de reconhecer, com
(1975, p. 521) comenta:                                    variados enfoques quanto ao seu significado, que
                                                           o tempo constitui de fato um elemento de estrutu-
      Já em 1923 Heidegger falou-me com admiração          ração da realidade humana. Tomemos um exem-
      dos últimos escritos de Georg Simmel. Isso não foi   plo que nos é com certeza familiar. No Formas
DA VIDA AO TEMPO                                                                                     105

elementares da vida religiosa, opondo-se a Kant,      unidirecional e unívoca do tempo: ou bem como
Durkheim sustenta a tese de que, se o tempo há de     categoria primordialmente social, ou bem como
significar alguma coisa, ele deve ser um tempo        elemento estruturante da possibilidade subjetiva de
compartilhado, social, ou então ele não é nada.       acesso ao mundo fenomênico. Kant, ele próprio,
Assim, contra uma noção de tempo supostamente         não estava desatento às implicações decorrentes
pré-social, homogênea e vazia, ele propõe o tem-      deste impasse teórico fundamental. E aqui, a bem
po como categoria objetiva e coletiva. Há, no meu     da verdade, faz-se necessário afirmar que para ele o
modo de entender, algo de sólido na argumenta-        tempo não é apenas a categoria vazia e homogênea
ção durkheimiana. Porém, se por um lado, no           à qual se refere Durkheim — crítica que, de uma
contexto desta argumentação, o tempo passa a ser      outra perspectiva, Bergson também sustentará. Se
entendido não mais como condição de possibilida-      uma fundamentação do saber científico é possível,
de subjetiva e a priori do conhecimento, como o       raciocina Kant, ela não pode ser legitimada pelo
queria Kant, mas como categoria cultural, sua         senso comum, pela tradição. O mundo social, que
importância na estruturação do real não é de          se revoluciona incrivelmente à época em que ele
modo algum questionada ou relevada. Pelo con-         escreve suas três Críticas, não pode fornecer o
trário: “A divisão em dias, semanas, meses, anos      fundamento do saber pois é, em si, a coisa a ser
etc. corresponde à periodicidade dos ritos, das       explicada e produzida. Sob o tempo de calendário,
festas, das cerimônias públicas. Um calendário        dos rituais, das festividades, das colheitas, Kant
exprime o ritmo da atividade coletiva ao mesmo        tentará encontrar um tempo fundamental, um tem-
tempo que tem a função de assegurar-lhe a regula-     po que estrutura o acesso do ser humano à sua
ridade.” (Durkheim, 1921, p. 15).                     própria humanidade e sociabilidade.
       Aparentemente, a possibilidade de sincronia           Se podemos aceitar que na Crítica da razão
é tomada pelo pensamento crítico como conse-          pura a noção do tempo ainda se desdobrava, em
qüência implícita do desvelamento da estrutura        grande medida, a partir da perspectiva da expli-
fenomênica que capacita o ser humano a perceber,      cação causal dos fenômenos naturais, na Crítica
entender, sentir e transformar o mundo. Assim,        do julgamento o tempo surge como problema
para que a sociedade e o tempo compartilhado das      teórico do ser humano como ser social. Como
tarefas sociais sejam possíveis, faz-se necessário    sabemos, neste trabalho Kant percebe a possibili-
explicar a existência de um indivíduo aberto ao       dade de estruturação da vida coletiva a partir de
reconhecimento do tempo e à experiência da vida       duas situações antagônicas, porém complementa-
coletiva. Porém, uma coisa não explica a outra        res: a partir do sentimento do belo ou do senti-
automaticamente, e esse é o ponto em que o            mento do sublime. Privado de garantias transcen-
argumento durkheimiano ganha significado. No          dentes que legitimem uma compreensão bela d a
que diz respeito ao tempo, a passagem do nível        vida, ou seja, uma compreensão da vida baseada
individual ao coletivo não pode ser tomada de         na harmonia e na proporção, o mundo moderno
forma alguma como sendo auto-evidente.                se vê impelido a assumir-se a partir do reconheci-
       Se é bem verdade que o pensamento crítico      mento da desproporção que o caracteriza. Se o
já apresentaria suas próprias defesas contra um       sentimento do belo nos dá acesso a um mundo
certo dogmatismo e mesmo uma certa tautologia         social não problemático, onde a imanência e a
que sustentam a unidade da tese durkheimiana —        possibilidade de compartilhar sentimentos é per-
o tempo compartilhado tanto estrutura a possibili-    cebida como o fundamento mesmo de nossa hu-
dade da vida social como é explicado por “valores”    manidade, o sentimento do sublime exige o sacri-
sociais —, ele mostra uma certa dificuldade em        fício de tais promessas de harmonia, de um senso
responder às questões legítimas propostas por         comum entre os seres humanos. Deste modo, o
Durkheim na introdução ao Formas elementares.         poder transcendental da razão impõe o indivíduo
       No mais, o conflito entre estas duas aborda-   transformador e livre como o centro dinâmico do
gens, obviamente, deriva de uma compreensão           mundo moderno.
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       O sacrifício da beleza, de um ideal de vida       na obra de Simmel. Se é bem verdade que em
baseado na imanência, na harmonia e na presença;         Schopenhauer e Nietzsche o tema da vida constitui
o reconhecimento da vida moderna como dinâmica           um eixo central de investigação, este conceito já
de desproporção e portanto de contingência, cons-        guarda uma especificidade considerável em rela-
titui uma agenda recorrente na tradição crítica. Em      ção ao pensamento vitalista, sobretudo como ele
grande medida, o fato de esta tradição tratar muito      surge da pena de Bergson. Ora, tanto Bergson
raramente da idéia de um tempo compartilhado             como Simmel são por vezes associados à oposição
deve-se a uma ênfase teórica específica que privile-     básica que estrutura o vitalismo, a saber, a concep-
gia uma compreensão da vida coletiva a partir da         ção de um conflito entre estruturas fenomenológi-
desproporção e da contingência. Assim, por exem-         cas formais (culturais) e um fluxo de energia vital
plo, os primeiros românticos propõem um projeto          que agiria de modo a romper os limites de tais
de arte reflexiva, onde o fundamental ontológico         estruturas. Se Bergson traz para dentro da filosofia
do ser humano passa a ser encontrado no provisó-         “o novo” como questão fenomenológica central,
rio, naquilo que está em constante estado de trans-      Simmel é uma referência sociológica decisiva na
formação. Novalis (1997, p. 65) diria a este respeito:   elaboração de uma análise da cultura moderna
“Apenas aquilo que é incompleto pode ser compre-         como cultura de ruptura. O que os diferencia, no
endido — pode nos levar mais adiante. O que está         entanto, é a consciência histórica com que o tema
completo pode apenas ser usufruído. Se nós dese-         da vida é tratado por Simmel e que em Bergson
jarmos compreender a natureza devemos postulá-la         cede lugar a um certo biologismo. Considere-se,
como incompleta, para atingir deste modo uma             por exemplo, o “Metrópole e vida mental”, onde
variável incompleta. Toda determinação é relativa.”      Simmel adianta a famosa tese giddensiana da
       É uma grande sensibilidade para com esta          segurança ontológica: “Assim, o tipo metropolita-
compreensão do mundo moderno que coloca o                no — que apresenta mil modificações individuais
universo teórico simmeliano num patamar diferen-         — cria para si um órgão protetor contra perturba-
ciado em relação a uma parcela significativa de          ções profundas com as quais as flutuações e
seus contemporâneos. Seus excelentes artigos so-         descontinuidades do meio exterior o ameaçam.”
bre estética moderna são uma evidência desta             (Simmel, 1971, p. 326). Neste traço da cultura
sensibilidade. Porém, mais do que isso, as incur-        moderna, ou seja, na ruptura constante de limites e
sões que Simmel faz na problemática do tempo e           formas, Simmel não vê em princípio razão para
da finitude humana anunciam a resolução daque-           celebração; ao contrário, isto constituiria a “tragé-
la questão identificada por Durkheim e que o             dia” e a “ilusão” do mundo moderno, pensar que
pensamento crítico, em que pese toda a tradição          pode existir sem engendrar uma forma cultural.
que se forma a partir da Crítica do julgamento,          Assim, em franca oposição à postura bergsoniana,
deixou em aberto. Ora, apesar da justeza de se           Simmel observa: “Temos a impressão que Bergson
perceber o moderno como dinâmica do contigen-            nunca se deu conta do que há de profundamente
te, é necessário entender a possibilidade de conví-      trágico no fato de que a vida, para poder existir,
vio social (não ouso dizer a possibilidade de uma        deve se converter em não-vida.”4
“ordem social”) quando a promessa de proporção                  Mas o que, positivamente, caracteriza sua
e harmonia é historicamente sacrificada.                 análise do problema da vida no mundo moderno?
                                                                No universo simmeliano de fronteiras e trans-
                                                         gressões, limite e transcendência, nenhuma idéia
O problema da vida
                                                         está investida de maior centralidade teórica que a
       O percurso que vai desde a publicação de          idéia de vida, mais precisamente, da vida tal como
Schopenhauer e Nietzsche, em 1907, aos Quatro            ela é experienciada nas sociedades modernas.
capítulos metafísicos (1918) corresponde a um            Como inúmeros outros pensadores formados no
lento desenvolvimento teórico em que a questão           contexto de crise do historicismo alemão,5 Simmel
do tempo passa a se impor como problema central          contempla angustiado as perspectivas existenciais
DA VIDA AO TEMPO                                                                                           107

que se abrem ao indivíduo moderno. No Conflito               si próprias suficientes e confortantes, nada conhe-
na Idade Moderna, por exemplo, ele observa: “A               ce do questionamento incansável que é o produto
ponte entre o passado e o futuro das formas                  de reflexão acerca de um ser capturado numa
culturais parece ter sido demolida; nós olhamos              cadeia de meios, atalhos e improvisos. (Simmel,
sob nossos pés para dentro do abismo de vida não             1986, p. 4)
formada. Mas talvez essa ausência de forma seja
em si a forma mais apropriada da vida contemporâ-              Tomemos o interesse simmeliano pela circu-
nea.” (Simmel, 1968, p. 25). Assim como ele,            lação monetária como exemplo. O dinheiro é
Jaspers sente-se desconfortável num mundo em            apenas um sinônimo da necessidade premente de
que o ser humano, mediante o emprego incansável         encontrar um denominador comum em meio a
da razão, arranca-se de suas próprias raízes e vê “o    uma rede de meios que se torna mais e mais
fundamento da vida tremer sob seus pés” (Jaspers,       complexa. Não se trata apenas do fato de que o
1959, p. 10). De gosto mais patético que dramático,     “objeto” que pode satisfazer nosso desejo se coloca
Troeltsch entrou para o anedotário deste tipo de        fora de nosso alcance e, portanto, da possibilidade
discurso ao interromper uma certa conferência           de fruição, mas também de que, com o apareci-
com a seguinte frase: “Cavalheiros, tudo perdeu         mento das economias monetárias, os objetos per-
sua firmeza!” (apud Rubanowice, 1982, p. 9).            dem eles próprios, gradualmente, o seu significado
       Simmel acredita que uma reflexão sobre a         subjetivo, pessoal. Essa experiência societária mos-
vida é historicamente constituída, que a vida se        tra que toda uma estrutura de meios converte-se
torna objeto de contemplação e angústias quando         não apenas num passo intermediário entre o dese-
aquilo que nós vivenciamos de forma imediata            jo e sua satisfação, mas no núcleo mesmo da vida
pode ser diferenciado daquilo que concebemos            social. Se tanto Hegel como Simmel reconhecem a
com o auxílio do intelecto. Os ecos da crítica          existência de uma fissura que humaniza o ser
hegeliana ao formalismo kantiano aqui são eviden-       humano, à qual atribuem uma dimensão franca-
tes. Parece significativo o fato de que a produção      mente técnica, ou seja, essa fissura diz respeito a
de instrumentos, o estabelecimento de um inter-         uma condição estruturalmente suplementar da re-
mediário entre desejo e fruição, esteja na base de      lação do ser humano com o mundo natural e
uma mudança que instaura o processo de humani-          social, um campo de divergência claro surgirá
zação do ser humano: a passagem de uma relação          quando produzirmos a seguinte questão: em que
direta entre o “animal humano” e a natureza para        medida pertence também ao horizonte do humano
uma relação indireta: ser humano-meios-fins. “O         a superação deste hiato?
homem é o ser indireto”, observa Simmel (1986, p.
3), “e torna-se mais ainda tanto maior seja o seu
                                                        Schopenhauer e Nietzsche
desenvolvimento cultural”. A emergência da vida
como problema filosófico e existencial, assim, é              O livro Schopenhauer e Nietzsche constitui
produto de um processo em que uma estrutura             uma referência de fato importante para entender-
tecnológica mediativa torna-se progressivamente         mos o conjunto da obra de Simmel. Neste ensaio
complexa, separando mais e mais o desejo huma-          Simmel desenvolve algumas de suas teses mais
no da possibilidade de fruição. Tempo, consciên-        centrais acerca do moderno, particularmente a tese
cia, causalidade são formas de manifestar esta          do caráter negativo, sem repouso e contingente da
fissura no ser. Em outras palavras, tanto mais a        vida moderna. Assim sendo, justifica-se que nos
perspectiva de fruição escapa num labirinto de          detenhamos na sua análise. Segundo Simmel (1986,
relações sociais e produtivas, tanto mais a vida        p. 5), para Schopenhauer a vontade absoluta, que
constitui-se como problema ontológico.                  responde pela existência de todo ser, constitui um
                                                        fundamento e um limite “que não permite um lugar
     A vida, quando consiste de relações curtas entre   externo de repouso: não existe nada além da
     meios e fins, sendo cada uma dessas relações em    vontade”. Nada existe que não seja posto em
108                             REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44

movimento por este princípio fundamental. Quer                lar e outras conexões causais é possível explicar
refletindo acerca da importância do “discurso”, da            psicologicamente por que eu chegaria mesmo a
“vontade” ou do “tempo”, o moderno parece neces-              desejar ou por que minha vontade total coincide
sitar da fronteira, do espaço liminar, como possibili-        com a direção de meu caráter total e constitui
dade derrradeira do ser. Como decorrência, o exter-           aquela direção. Cada ato da vontade é finito e
no, o para além, emerge como tema recorrente                  pode ser pacificado, mas a vontade como tal
desta forma de pensamento — e o modo como este                jamais pode ser mitigada. (Simmel, 1986, p. 26)
limite se dispõe em relação ao absoluto forma uma
zona de confluência sobre a qual as muitas negocia-             Uma tal noção do ser e do viver, segundo
ções do moderno operam. É neste sentido que o            Simmel, age no pensamento ocidental de modo a
fechamento ou abertura do ser se apresenta como          sacudir a velha crença de que a “racionalidade é
questão ontológica fundamental. Para Schopenhau-         essência básica e profundamente assentada do
er, se aceitarmos que o ser é vida, e que a vida         homem que se coloca sob os outros estratos da
confunde-se com a necessidade sem repouso, tere-         vida” (Simmel, 1986, p. 28). A concepção da
mos necessariamente de resistir à idéia de uma meta      vontade absoluta como a substância mais abran-
final para a vida, de um fechamento.                     gente do ser tem um significado inegável na
       A noção de uma finalidade na vida constituiria    estruturação de uma abordagem estética do fenô-
uma fronteira. Quando este limite não existe, a vida     meno moderno. Tal concepção destitui a razão da
torna-se disforme: “na medida em que a vida é            posição central que ela ocupa no pensamento pós-
vontade, ela fica em última instância sentenciada a      kantiano, uma vez que, de acordo com ela, “a
ser desprovida de valor e significado: ela é aquilo      lógica requer um suporte não lógico”, quer dizer, a
que claramente não deveria ser. [...] Ele [Scho-         razão é uma manifestação de algo mais substancial,
penhauer] não percebe em absoluto o sentimento           nomeadamente, a vontade absoluta. “Na metafísica
da vida como celebração, sentimento do qual Niet-        da vontade de Schopenhauer há este sentimento
zsche está impregnado.” (Simmel, 1986, p. 6). A          irreversível de que estaríamos assegurados de ser
oposição entre Schopenhauer e Nietzsche sugere           num modo diverso do reconhecimento conscien-
que Simmel critica a antiescatologia da noção de         te.” (idem, p. 29).
uma vontade absoluta como sendo, de fato, uma                     Por isso mesmo, de acordo com Simmel, o
escatologia negativa, um desejo melancólico por          que quer que se faça de uma tal concepção do ser
formas eternas. A celebração da vida como último         é estritamente um assunto de personalidade filosó-
objetivo da vida seria, neste sentido, uma radicaliza-   fica (ou “atitude” filosófica). Para Schopenhauer, a
ção e uma alternativa à negatividade do pensamen-        multiplicidade da vida, e particularmente dos de-
to antiescatológico de Schopenhauer. “Mas todo           sejos, só existe no plano fenomenológico, quer
prazer quer eternidade, uma profunda, profunda,          dizer, no tempo e no espaço; o que se coloca para
profunda eternidade”, diria Nietzsche nas linhas         além deste domínio, o que se coloca para além da
finais do Assim falava Zaratustra. Para Schopenhau-      possibilidade de cognição, ou seja, o ser, a vontade
er, por outro lado, “toda felicidade ‘é essencialmen-    absoluta, deve ser unidade absoluta — uma vez
te e sempre negativa’” (Simmel, 1986, p. 54). Pois, se   que esta esfera transcende as limitações fenome-
para ele seria concebível que cada desejo individual     nológicas do intelecto. Simmel combate a visão do
fosse pacificado, o próprio ato de desejar permane-      intelecto como unidade absoluta inicialmente num
ceria sem possibilidade de mitigação. Segundo esta       terreno lógico. O intelecto conhece não apenas
concepção, o ser possui uma deficiência intrínseca,      por meio de um processo de diferenciação, mas
estando fadado a ser para sempre “faltante”. É isto      também de unificação. O exemplo que Simmel traz
que o impulsiona, é isto que o leva a ser.               à tona é o da função da cópula em proposições
                                                         lógicas. Mantenhamos o tom pessimista e analise-
      Schopenhauer expressa seu ponto de vista assu-     mos a seguinte proposição: “A vida é dor.” Nesta
      mindo que através do recurso à motivação singu-    sentença, a cópula permite não apenas uma opera-
DA VIDA AO TEMPO                                                                                        109

ção de diferenciação — quer dizer que “vida” e          vida não é algo que lhe é externo, mas é a própria
“dor” são, em princípio, diferenciáveis —, mas          vida. Aquilo que Schopenhauer descrevera negati-
também que tanto a substância quanto o acidente         vamente como impossibilidade de repouso (para
da proposição, isto é, tanto a coisa qualificada        ele, cada objetivo estabelecido pela vontade é
(vida) quanto a coisa qualificante (dor), adquiram      ilusório uma vez que vontade e ser são idênticos),
uma unidade no “ser”, ou seja, na palavra “é”. “A       é preciso conceber como indicador da abertura
vida é dor.” Em outras palavras, processos intelec-     ontológica do ser humano para o mundo. Se para
tivos dependem tanto de diferenciação quanto de         Schopenhauer a única solução existencial para
unificação. Mais ainda, unificação é uma categoria      nossa falta ontológica, para todo sofrimento da
discursiva, cognitiva. O uso do termo “absoluto”        condição humana, seria dada pela “erradicação da
para qualificar um movimento transcendental de          personalidade”, para Nietzsche, por outro lado, é
unificação seria, em princípio, tão justificado quan-   necessário reconhecer que a vida é potência de si,
to dizer que a vida é absoluta diferenciação. “É        isto é, a vida é imanente a si mesma.
uma questão de satisfação emocional, que pode vir              A esperança, então, constituiria a resposta
tanto de uma visão do mundo como radicalmente           que Simmel daria ao pessimismo. O que o pessi-
unido através de sua base ou de uma visão do            mista não pode negar é o fato de que, ao formular
mundo como resplandecente na riqueza de um              a vida como vontade insaciável, ele também apre-
número infinito de unidades independentes.”             senta, mesmo que não intencionalmente, a espe-
(Simmel, 1986, p. 39).                                  rança como impulso ontológico básico. Mesmo
       Caracterizar o ser como vontade é apenas dar     que ele chegue à conclusão de que este tipo de
um passo além do intelectualismo que caracteriza        esperança (uma esperança que não depende, em
a tradição neokantiana de Windelband e Rickert,         princípio, de nenhuma resposta religiosa) não tem
uma vez que a questão da essência do ser continua       qualquer fundamento, que nós estamos fadados à
sem resposta, continua suscitando, segundo Sim-         falta, ele não pode deixar de admitir que nós temos
mel, um “temor inexprimível”. Contudo, o que é          vontade e, portanto, esperança. Anos mais tarde,
admirável nesta caracterização do ser é que ela         Heidegger (1993, parte II, pp. 279) diria a esse
“redime a rigidez do conceito de ser como tal”          respeito: “Mesmo que, ainda existindo, nada mais
(Simmel, 1986, p. 48). Se para Schopenhauer o ser       possua ‘diante de si’ e ‘feche para balanço’, o
é nosso destino mais sombrio, isto se deve ao fato      ‘preceder-a-si-mesmo’ ainda determina o seu ser. A
de que, para ele, a vida continua presa a uma           falta de esperança [...] não retira a pre-sença de
escatologia negativa, a uma falta que não pode ser      suas possibilidades, sendo apenas um modo pró-
mitigada. Uma marca distintiva do pensamento            prio de ser para essas possibilidades. Do mesmo
simmeliano é a maneira aguda com que ele conse-         modo, ser e estar voltado para tudo ‘sem qualquer
gue ter acesso às dificuldades éticas e políticas       ilusão’ também conserva em si o ‘preceder-se-a-si-
implicadas na caracterização da condição humana         mesmo’.” Dante, então, estaria certo ao inscrever
em termos de uma falta ontológica. Como implica-        no umbral do “lugar da morte eterna”: ao entrar por
ção sub-reptícia de uma tal caracterização, a pers-     essas portas abandone toda esperança. “A felicida-
pectiva de uma unidade política transfenomênica         de da antecipação não é uma ilusão na qual
emerge como resolução totalitária de uma ansieda-       pretendemos conter o incontido e somos estimula-
de que marca a vida nas sociedades modernas. Em         dos pela fantasia e não pela realidade; ao invés
oposição a esta visão, Simmel afirma com Nietzs-        disso, de forma bastante legítima e honesta, a
che: o fato de a vontade ser orientada para sua         esperança da felicidade torna-se felicidade da es-
satisfação permite vislumbrar a possibilidade de        perança.” (Simmel, 1986, p. 56).
felicidade. A vida como êxtase, como potência de               Devemos avançar com cuidado aqui. Ora,
si mesma, é a resposta que a vida, vista como           como deveremos interpretar o sentido atribuído
vontade absoluta, e portanto como falta absoluta,       por Simmel à palavra “esperança”, termo tão signi-
dá a si mesma. O sentido e finalidade última da         ficativo para a tradição judaico-cristã? Seria possí-
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vel entendê-la como aceno escatológico de resolu-      próprios limites conhece-os como limites. Kaspar
ção dessa ansiedade fundamental, uma perspecti-        Hauser não sabia que ele estava numa prisão até o
va em nada dissemelhante àquela que ele critica        momento em que ele se encontrou no espaço
em Schopenhauer, ou estaríamos mais próximos           aberto e pôde ver as paredes pelo lado de fora.”
da crença heideggeriana no “excesso” da vida           (idem, p. 355). A vida, enquanto fronteira, estrutu-
(mais precisamente, do ser) como fim em si mes-        ra-se pela partilha de dois lados de um limite
mo? A resposta oferecida por Schopenhauer e            específico, ou seja, o ser e o não-ser. Este compar-
Nietzsche é clara; o que ainda não é claro é o papel   tilhamento, todavia, é uma transcendência do fini-
desempenhado pela noção de falta no pensamen-          to na direção de sua própria finitude, e não na
to simmeliano.                                         direção de sua superação.

                                                            [...] o fato que nós, como seres cognitivos, e dentro
O caráter transcendental da vida                            das possibilidades da própria cognição, podemos
       Uma das teses mais famosas de Simmel acer-           vir a conceber a idéia que o mundo pode não
ca da vida é ainda sustentada no “Caráter transcen-         caber inteiramente nas formas de cognição, o fato
dental da vida”: “O par de proposições — que o              que, mesmo de forma puramente problemática,
limite é incondicional, posto que sua existência é          nós possamos pensar em algo dado no mundo
constitutiva de nossa posição dada no mundo, mas            que nós simplesmente não podemos pensar —
que nenhum limite é incondicional, uma vez que              isto representa um movimento que alcança o
cada um pode em princípio ser alterado, suplanta-           além, não apenas de uma simples fronteira, mas
do, contornado —, esse par de proposições apare-            do limite da mente em sua totalidade, uma ato de
ce como a explicação da unidade interna da ação             transcendência que em si estabelece os limites da
vital.” (Simmel, 1971, p. 354). A cognição pode             cognição, não importa se esses limites sejam atuais
fornecer um exemplo de como a vida se estrutura             ou apenas possíveis. (Simmel, 1971, p. 357)
de modo transcendental, isto é, tanto a partir do
reconhecimento de um limite, de uma fronteira,                Como Kant antes dele, na Crítica do julga-
quanto de um tipo particular de transgressão a essa    mento, Simmel consegue perceber nas inúmeras
restrição. Ao jogar, o enxadrista se depara com a      aporias que estruturam a vida consciente não
ambigüidade de saber e não saber as conseqüênci-       apenas a irracionalidade de uma impossibilidade,
as de seus movimentos; pois se ele não soubesse        mas também o sinal de uma produtividade, eviden-
de fato as conseqüências de seus movimentos o          ciada na própria capacidade de formular estes
jogo seria impossível, “mas também seria impossí-      becos sem saída. Mas como pode nosso pensa-
vel se essa capacidade de antecipar se estendesse      mento formular uma questão cujas possíveis res-
indefinidamente” (idem, ibidem). O fato de conhe-      postas já estão de antemão rejeitadas? A resposta
cermos os nossos limites como tais implica, de         de Kant não seria outra: porque nosso processo de
certo modo, uma habilidade de transcendê-los,          pensar é estruturalmente transcendente ele é capaz
pois só assim o reconhecimento do limite é possí-      de “superar” estes cismas colocando-os renovada-
vel; nesse gesto, todavia, somos sempre remetidos      mente, aceitando-os como condição estrutural do
para a restrição que transcendentalmente reconhe-      viver humano. De forma similar, Simmel não mos-
cemos. Essa aporia caracteriza a compreensão           tra interesse em fechar cismas fenomenológicos,
simmeliana da vida como experiência liminar,           mas em mostrá-los como parte de uma dinâmica
assim como nos permite ter acesso ao próprio           transcendental e produtiva. Assim, se bem que
sentido que Simmel confere à idéia de transcen-        admitindo, com Hegel, uma explicação histórica
dência. Mas, como poderíamos aceitar essa propo-       para esta fratura que se exacerba com a moderni-
sição aparentemente contraditória, de estar ao         dade, Simmel entende esta separação como estru-
mesmo tempo dentro e fora de um limite? “Pois, de      turante de nosso sentido de humanidade. Contra
certo modo, apenas quem se coloca fora de seus         Hegel, ele não espera a reparação de tal fratura
DA VIDA AO TEMPO                                                                                         111

como sendo possível dentro do horizonte de nossa           historicidade. Mesmo quando emerge no presente
humanidade.                                                como história pessoal, como memória privada, não
       A tentativa de cruzar uma fronteira intranspo-      podemos deixar de reconhecer o passado a partir
nível é o movimento egológico de auto-afirmação;           dos laços sócio-históricos que estruturam a nossa
ao empreender esse movimento impossível o self             existência. Para além da limitação lógica de sua
investe suas margens de transcendência. A explo-           definição, o presente é de fato transcendência (ou
ração simmeliana da conexão existente entre limi-          excesso, mais propriamente dito) em duas dire-
naridade e vida, entretanto, não pára neste tropo          ções opostas: como um esticar-se em direção ao
mais espacial. Num momento em que a filosofia do           passado ou um espreitar o nosso futuro, como
valor tomava como garantido a presença do sujeito          memória ou como ansiedade. O futuro, desta
científico e a qualidade indéxica desta temporali-         perspectiva, não estaria fora de alcance, como algo
dade como condição de possibilidade da compre-             que nos aguarda num trecho desconhecido de
ensão histórica, Simmel retoma a aporia aristotélica       nossa jornada, mas constituiria um movimento
do tempo:                                                  natural de transcendência do agora. “O presente
                                                           que se vivencia existe no fato de que ele transcen-
     O presente, no sentido estritamente lógico do         de o agora. Em cada manifestação da vontade, aqui
     termo, não abarca mais que a “inextensão” absolu-     e agora, nós demonstramos que o umbral entre o
     ta do momento. Da mesma forma que o ponto não         agora e o futuro não é verdadeiro em absoluto; que
     é espaço ele também não é tempo. Ele denota           tão logo assumimos um tal umbral, nós nos posici-
     simplesmente a coalizão do passado e do futuro,       onamos de um e de outro lado dele.” Em relação
     apenas esses dois constituem tempo de alguma          ao futuro, pode-se assim dizer que “nós vivemos
     magnitude, quer dizer, tempo real. Mas como um        continuamente numa região de fronteira que per-
     não é mais e o outro ainda não é, a realidade adere   tence tanto ao futuro quanto ao presente” (Simmel,
     apenas ao presente. (Simmel, 1971, p. 359)            1971, pp. 360-361).6
                                                                  Acerca de uma tal elaboração da estrutura
     O passado atinge o presente como memória,             temporal do ser humano, diríamos que é digno de
como aquilo cuja atualidade tem de ser negada              nota não apenas o fato de termos aqui adiantada,
mas cuja realidade deve ser recuperada continua-           em certa medida, uma importante tese heideggeri-
mente — e assim, para ser mais preciso, teríamos           ana, mas também a lucidez e honestidade intelec-
de dizer que a mão do agora estira-se em direção           tual com a qual Simmel expõe os pressupostos de
ao passado.                                                sua própria compreensão do ser. “Todas as teorias
                                                           que localizam a essência do espírito humano na
     A esfera da vida presente, atual, estica-se comple-   vontade dizem simplesmente que o espiritual pro-
     tamente até ele. Isso obviamente não quer dizer       jeta-se para além de seu presente estreito, por
     que o passado como tal por este artifício levanta     assim dizer, que o futuro já está dentro dele.”
     da sepultura. O que isso quer dizer, no entanto,      (Simmel, 1971, p. 361). Porque a vontade deseja e
     uma vez que sabemos que a experiência não está        espera, porque ela é ao mesmo tempo o reconhe-
     no presente, mas antes atrelada a algum momento       cimento de uma falta e um excesso de si, ela não
     no passado, é que nosso presente não permanece        pode deixar de se dispor temporalmente no senti-
     num só ponto, como acontece com a experiência         do do ainda-não e do não-mais; desejando e
     mecânica. Ele se estende, por assim dizer, para       esperando ela institui o futuro como estrutura
     trás. (Simmel, 1971, p. 360)                          fundamental do ser-no-mundo. Essa compreensão
                                                           do ser, para Simmel, pertence, portanto, a um
        A relação entre presente e passado é, assim,       momento histórico do desenvolvimento ocidental
complexa e ambígua. A mão do presente não se               em que a complexificação da vida alcança um
dirige ao passado a partir do nada, mas a partir de        paroxismo, e em que uma falta insaciável se torna
uma tradição, ou seja, do reconhecimento de nossa          a marca de nossa humanidade. Mas a noção de
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tempo a partir da qual aqui se compreende a falta       são formalizadora de um limite que se apresenta
é, como disse acima, um presente que se dispõe em       como tal em cada momento de nossa vida. A morte
relação a um futuro, e não um presente que se           torna-se discursiva (ou seja, não apenas condição
desloca de si em relação a esse futuro. Em ambos        de possibilidade de qualquer discurso, mas tam-
os casos o tempo é o meio de reconhecimento do          bém e fundamentalmente uma alegoria à morte
caráter trans-formador das sociedades modernas:         absoluta) quando nós nos damos conta de que sua
apenas no primeiro sentido o presente excede a si       apropriação ontológica é impossível — e mesmo
próprio permanecendo uma imanência de si mes-           assim necessária. A morte como tal é uma discursi-
mo, ao passo que no segundo ele nega a si próprio       vidade impossível, pois qualquer gesto em sua
com um aceno do “ainda-não”.                            direção implica um construir contínuo da vida. A
       Contra o ponto de vista neokantiano de que       ironia e paradoxo supremos é que nós construímos
tudo é imanente ao sujeito (universal, atemporal),      a morte porque desejamos viver como selfs, nos
Simmel proclamaria que nada pode se colocar             tornamos humanos porque percebemos o impos-
para além da vida, e a vida é ela própria trans-        sível, o nosso não-ser, a nós mesmos como húmus.
cendência. Por este motivo, o além-da-vida não          Mas o que a palavra impossível significa neste
pode ser evitado como uma instância de forma-           contexto? Como o impossível, aquilo que não
ção do self , ou seja, seu tipo específico de viver é   existe ou que não pode ser realizado, aquilo sobre
tal que ele não pode evitar a questão da não-           o qual não podemos reivindicar nenhuma posse,
vida, do não-mais-ser, visto que o reconhecimen-        poder ou influência, pode determinar qualquer
to do seu estar vivo e presente se dá através do        tipo de dinâmica?
reconhecimento de sua possibilidade mais íntima,               Em primeiro lugar, a direção desta questão
de sua “futuridade” intrínseca. Este é o ponto em       deve ser propriamente entendida, uma vez que o
que a idéia de morte, como nada que abarca a            que ela busca não é necessariamente a forma
vida e o ser, como impossibilidade absoluta,            através da qual algo é relacionado com a sua
apresenta-se como transgressão fundamental a            negação, com seu entorno, com aquilo que a torna
partir da qual o self se estrutura. Imanente à vida,    disponível, visível. Nem sequer procura-se aqui a
a morte se torna, para Simmel, o seu Gestalter a        área comum em que esses dois domínios se con-
priori. Para além das dificuldades teóricas que         fundem e interagem. Não se trata mesmo da
uma tanatologia possa acarretar, a morte e o ser-       relação do universo com a possibilidade de sua
para-a-morte são questões que, como tal, o self         negação — ao menos não na medida em que nos
não pode deixar de pensar. É este o nível mais          posicionemos como contempladores dessa possi-
fundamental a que uma reflexão acerca da tem-           bilidade. Se o impossível aqui estabelece alguma
poralidade do ser deve necessariamente chegar.          dinâmica, trata-se de um tipo específico de dinâmi-
Mas, é preciso que voltemos sempre ao ponto:            ca cujo caráter absoluto nunca pode ser dissociado
poderia uma tal reflexão surgir em outro “mun-          do ser finito que somos; ela é de fato sua expressão
do” que não o mundo moderno?                            típica: um retorno e recuperação da própria finitu-
                                                        de. Para Simmel, a dinâmica entre o possível e o
                                                        impossível é sempre incompleta, desejante, e mes-
A morte e o self
                                                        mo assim, e por essa razão, sempre presente, atual.
      Para Simmel, a concepção da morte como            Aquilo que somos capazes de tomar posse, subju-
experiência liminar e onipresente não se apresenta      gar, isto é, o possível, nos remete necessariamente
como o extinguir físico que espera cada um de nós       ao impossível — e é por essa razão que o possível
num determinado “local” de nossa vida, não se           se revela como negociador compulsivo do seu
apresenta como a morte do imaginário popular,           próprio domínio. Pois mesmo quando essa impos-
com sua mão ossuda e sua face impossível. Pelo          sibilidade não é relativa mas absoluta, uma feno-
contrário, o pensar a morte deve ser entendido          menologia de minha própria morte, por exemplo,
acima de tudo como uma reflexão sobre a dimen-          o fato de que ela pode ser pensada torna o
DA VIDA AO TEMPO                                                                                         113

impossível um alvo do possível, mesmo quando           falta, pois a falta constitui o impulso subjacente a
reconhecemos quão precário e insatisfatório esse       cada movimento transcendental singular que ex-
gesto se revela. É esta relação dúbia entre finito e   perienciamos através da vida — como de resto à
absoluto que Simmel propõe como sendo a base           vida tomada como um todo, que é vista como
da dinâmica do moderno em geral e do self em           insuficiente, faltante, insatisfatória e, portanto, de-
particular.                                            mandando transcendência: “A inadequação [Un-
       Assim, não causa surpresa o fato de que         zulänglichkeit] que existe entre, por um lado,
Simmel inicie tanto “Para uma metafísica da morte”     nossos impulsos e potencialidades e a possibilida-
(Zur Metaphysik des Todes) quanto “Morte e imor-       de interna e externa de sua realização, por outro
talidade” (Tod und Unsterblichkeit) com uma refle-     lado, deve necessariamente responder pela cons-
xão acerca da idéia de forma e seu significado para    trução de um self contínuo.” (Simmel, 1918, p.
o viver: “O segredo da forma está em que ela é uma     113). Assim, mesmo a idéia religiosa de transcen-
fronteira; ela é a coisa em si e ao mesmo tempo o      dência deve se subordinar a essa idéia mais abran-
concluir da coisa, a área [ ezirk] em que ser e não-
                          B                            gente de transcendência na qual o self paira acima
mais-ser da coisa formam unidade.” (Simmel, 1918,      da contingência, contradições e temporalidades
p. 99). A implicação discursiva desta reflexão sobre   incongruentes que formam a multiplicidade da
o significado da morte, a compreensão onto-esté-       vida. Sendo mais preciso, é necessário dizer que a
tica do self que ela expressa, é o principal tema do   promessa religiosa de imortalidade da alma estru-
primeiro ensaio. Sua tese central é que a delimita-    tura-se a partir de uma idéia de transcendência
ção de seres orgânicos, diferentemente de seres        distinta daquela que Simmel tem em mente. Essa
inorgânicos, não é meramente espacial, mas tam-        promessa é baseada na suposição de que o self (ou
bém, e principalmente, temporal. Meu self não          a alma) possui uma vida, do mesmo modo que um
apenas começa além dos limites espaciais de um         transeunte tem o cabelo encaracolado, cinco de-
determinado ente e finda onde um outro principia;      dos em cada mão etc. “A abordagem religiosa tem
os seres orgânicos incorporam o tempo como             uma preocupação pela imortalidade da alma num
elemento fundamental da realização do seu ser.         outro sentido; ela diz respeito mais a um ter [ inem
                                                                                                          e
       Uma vez que rejeitamos o ponto de vista         Habem]; a alma quer beatitude ou a visão de Deus
segundo o qual a morte é colocada para o ser           ou talvez concretamente continuar existindo; ou,
orgânico do mesmo modo que o limite espacial é         através de uma sublimação ética mais forte, ela
colocado para o ser inorgânico, a morte humana         quer uma qualidade ela própria: ela deseja ser
passa a não poder mais ser entendida da forma          salva, ou justificada, ou purificada.” (idem, p. 117).
como os gregos construíram o mito das três Fúrias             No cristianismo, a idéia da transcendência
(Simmel, 1918, p. 100): a primeira tecendo o fio da    através da imortalidade da alma culmina num
vida, a segunda dando-lhe limite e a terceira          paradoxo. Por um lado, a vida é compreendida
procedendo ao seu corte. A morte está desde o          dentro da perspectiva da eternidade da alma, ou
princípio colocada como possibilidade mais essen-      seja, a morte nada mais é que uma indentação na
cial da vida e não pode ser referida por intermédio    vida eterna da alma. Diante da eternidade da alma,
de uma metáfora espacial. O que é específico dos       todavia, a morte perde seu “ferrão vital”. O que
seres humanos em relação aos outros seres orgâni-      significa uma vida sem fronteiras, sem limite tem-
cos é que temos acesso ao sentido temporal de          poral? Teria a vida algum valor positivo, ou qual-
nosso ser e assim nos reconhecemos como seres          quer sentido que seja, se este não fosse conferido
incompletos, necessitando da idéia formal da mor-      pela onipresença negativa da morte? Como seria
te para nos sentirmos uma totalidade. O prefigurar     possível pensar o self e qualquer processo de
desta totalidade em cada instante da vida é o que      individuação sem a presença formativa e liminar
Simmel entende por self.                               do nada? Somente na medida em que estamos
       De Schopenhauer Simmel toma a idéia de          conscientes de nossa morte, da possibilidade do
que a autoconsciência é gerada pela percepção da       impossível, nos tornamos indivíduos. “Se nós vi-
114                             REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44

vêssemos eternamente, a vida com os seus valores        tamente de Rickert, Simmel não nega a possibilida-
e conteúdos permaneceria provavelmente fundida          de do gesto órfico, quer dizer, que o ser humano
de uma maneira indiferenciada [...]” (Simmel, 1918,     pudesse ser movido pelo impulso transgressivo de
p. 112). A idéia de construção da subjetividade,        ter acesso ao nada como tal, colocando-se através
deste modo, liga-se ao moderno não como decisão         deste gesto a possibilidade do impossível: o nada
autônoma de uma consciência racional que se quer        absoluto, nossa própria morte como tal. O que ele
originária, mas como decorrência de uma dinâmica        afirma é que este gesto é sempre finito. Se a vida é
social baseada na transformação, na velocidade, na      a fuga da morte (Simmel, 1918, p. 110), apenas ao
contingência.                                           admitir a morte como possibilidade mais íntima do
         Para Simmel, só o indivíduo morre comple-      nosso ser nós nos tornamos verdadeiramente indi-
tamente, e o conceito “indivíduo” aqui adquire a        víduos (idem, pp. 102-103).
elasticidade da própria consciência do ser: “o                 Deveremos agora repassar brevemente o ca-
indivíduo é mortal, mas o genus não é; olhando          minho que percorremos. Em primeiro lugar, perce-
mais longe: o genus singular é mortal, mas a vida       bemos que a tradição crítica define o tempo como
não é; a vida é mortal, mas a matéria não é;            fundamento ontológico do acesso ao mundo, e
finalmente a matéria pode, como caso excepcional        portanto da possibilidade de cognição, práxis e
do ser, desaparecer, mas o ser não pode.” (Simmel,      auto-reflexão. O locus fenomênico deste funda-
1918, p. 132).                                          mento não pode ser dado pelo senso comum, nem
        Como o não-ser é apenas um caso especial        garantido pela condição inerentemente social do
do ser (posto que o momento imediatamente               ser humano; ele deve ser procurado de forma a
anterior à formação do universo, ou aquele que          explicar a possibilidade de tal senso comum e tal
sucederia sua anulação total, não podem ser huma-       sociabilidade. Observamos o sentido histórico de
namente concebidos sem a noção do ser), o não-          uma tal postura teórica: ela significa o esvaziamen-
ser ainda é ser, argumenta Simmel. Aqui nós             to do tempo, a possibilidade de entender os ciclos
percebemos, com surpresa, uma aparente conver-          naturais não mais como coisa determinante da vida
gência entre Simmel e Heinrich Rickert. Ambos           social, mas como coisa a ser redefinida pela técni-
sustentam que o nada só pode ser compreendido           ca, pela intensificação do ritmo da vida. A idéia
como manifestação do ser. A esse respeito, anos         mítica de que existe uma proporção entre as coisas
depois da publicação do Lebensanschauung, Ri-           cede historicamente lugar ao sentimento de des-
ckert esclarecerá os pressupostos ontológicos do        proporção, de contingência que caracteriza o mo-
conjunto de sua obra do seguinte modo: “É um            derno como processo eminentemente descentrado
contra-senso falar acerca da verdadeira estrutura       e revolucionário. A contribuição simmeliana ins-
de significação se nós consideramos o coisa-algu-       creve-se nesta tradição, mostrando que a tempora-
ma [Nicht-Etwas] ou o nada como sujeito. Desde          lidade que funda a possibilidade do ser humano
que permaneçamos no mero pensar, o nada é               está intimamente relacionada à sua “futuridade”,
apenas um predicado, quer dizer, apenas nega-           ao seu ser-não-mais, à sua morte. Qualquer pers-
ção.” (Rickert, 1930, p. 209). Subjacente à formula-    pectiva de entender a condição da vida, da “subje-
ção do nada como positividade ontológica, nós           tividade” na modernidade terá de contemplar este
temos em Rickert a redução do ser e não-ser do          descentramento inicial e a dimensão temporal que
existente a uma mesma temporalidade. Esta co-           lhe é fundamental. Ou seja, trata-se não apenas da
presença, ou co-temporalidade, do ser e não-ser         idéia de contingência, mas de um sentido de
do existente é a afirmação da atemporalidade do         presença que implica um dispor-se para o futuro.
sujeito cognoscente. A aceitação da possibilidade              O que resta ainda por explicar é o sentido
do nada, ou nada como tal, colocaria em xeque o         mais profundo da indagação durkheimiana: como
caráter discursivo da morte e sua significação          é possível um tempo compartilhado, mesmo reco-
sacrificial, qual seja, a de constituir uma instância   nhecendo que o moderno é fugaz, efêmero? Ora,
transcendental e formativa da vida. Porém, distin-      apesar da constante revolução técnica e social por
DA VIDA AO TEMPO                                                                                              115

ela determinada, a vida moderna só pode ser                      homem, como um lance, no “cuidado” de si.
concebida como social — e o moderno constrói a                   Projetado desta maneira, o homem está postado
sua própria tradição, mesmo que envolta em difi-                 “na abertura do ser”. Mundo é a clareira do ser na
culdades. À guisa de conclusão, discorrerei breve-               qual o homem penetrou a partir da condição de
mente acerca da resposta que Heidegger nos ofe-                  ser-projetado de sua essência. O “ser-no-mundo”
rece a essa questão, entendendo esta resposta                    nomeia a essência da ex-sistência, com vista à
como estando implicitamente contida na reflexão                  dimensão iluminada, desde a qual desdobra o seu
simmeliana sobre a modernidade e sobre a condi-                  ser “ex” da ex-sistência.
ção humana.
                                                                   A co-existência é a forma específica pela qual
                                                            o ser humano é no mundo, ou seja, seu ser é
Algumas considerações finais
                                                            sempre lançado num mundo de existentes. O
       Se atentarmos bem para o que Simmel nos              desvelar do ser é, deste modo, a descoberta da co-
oferece, perceberemos que o tempo socialmente               existência. O tempo compartilhado corresponde-
programado das tarefas coletivas, rituais, celebra-         ria, assim, ao programa cultural no qual nascemos,
ções, o tempo do calendário, relaciona-se intima-           um tempo recebido de nossos ancestrais e que nos
mente com essa dimensão temporal mais funda-                capacita a fazer face à morte. “Fazer face”, aqui,
mental em que o próprio existir vem à tona. A esse          possui um duplo sentido, indicando tanto a neces-
respeito podemos dizer que o ser a que apenas o             sidade de afastar a morte de nosso horizonte
ser humano pode ter um acesso fundamental não               imediato quanto o fato de, assim procedendo,
é terreno de um cogito nem de um cogitatum                  darmos à morte uma face: a nossa própria. Por
originário, não é âmbito da agência nem da estru-           meio da ação coletiva, da celebração, do desenvol-
tura. Sua futuridade, seu caráter extático o desti-         vimento da fala, da escrita, dos instrumentos,
nam ao mundo, e este destino lhe é essencial.               afastamos do nosso horizonte existencial imediato
Qualquer impulso metafísico no sentido de uma               a nossa possibilidade mais íntima e fundamental. A
busca de originalidade tanto do lado do cogito              determinação do tempo através de um calendário
como do cogitatum é incapaz de compreender este             de rituais, trabalho, lazer, constituiria uma resposta
simples fato. A este respeito Heidegger (1987, p.           existencial à nossa própria mortalidade. A observa-
79) comenta na sua Carta sobre o humanismo:                 ção dessa ambigüidade é importante para perce-
                                                            bermos como seria possível um posicionamento
     Chamar a atenção para o “ser-no-mundo” como            em relação tanto à tradição que localiza o tempo
     traço fundamental da humanitas do homo huma-           no âmbito da ação coletiva quanto àquela outra
     nus não significa afirmar que o homem é apenas         que procura compreender sua condição de possi-
     um ser “mundano”, no sentido cristão; portanto,        bilidade no plano dos indivíduos. O tempo com-
     um ser afastado de Deus e, até, desligado da           partilhado mostra-se, segundo esta perspectiva,
     “transcendência”. Com esta palavra pensa-se o          como a outra face do reconhecimento de nossa
     que mais claramente foi denominado por trans-          futuridade, de nosso ser-para-morte; sem esse
     cendente. [...] “Mundo” [...], na expressão “ser-no-   “esquecimento” não existiria recuperação (desve-
     mundo”, não significa, de maneira alguma, o ente       lamento) possível do significado de nosso ser
     terreno, em oposição ao celeste, nem mesmo             temporal.
     “mundano” em oposição ao “espiritual”. “Mundo”,               O mito de Prometeu-Epimeteu é aqui escla-
     naquela expressão, não significa, de modo algum,       recedor, como observa Bernard Stiegler no seu La
     um ente e nenhum âmbito do ente, mas a abertura        technique et le temps: “Trata-se do tempo em que
     do ser. O homem é e é homem, enquanto é o ex-          os deuses existiam, mas onde as raças mortais
     sistente. Ele está postado, num processo de ultra-     ainda não existiam.” (Platão, Protágoras, 320d,
     passagem, na abertura do ser, que é o modo como        apud Stiegler, 1994, p. 195). Encarregado de proce-
     o próprio ser é; este projetou a essência do           der à distribuição das virtudes entre os seres de
116                             REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44

forma a que cada um não venha a se extinguir,           ram” pode emergir um pensamento que elabora a
Epimeteu faz um trabalho rápido porém imprevi-          condição ontológica do ser humano (do ser no
dente. Ele distribui convenientemente todas as          mundo) como eminentemente temporal. A futuri-
virtudes existentes entre os seres vivos, de forma      dade e a mortalidade do ser emergem como
que esses possam preservar sua própria existência,      elementos ontológicos fundamentais numa socie-
mas esquece do ser humano que se torna desam-           dade cujos indivíduos confrontam a todo momento
parado diante do mundo natural. Cabe a Prometeu         a obsolescência dos programas culturais e técnicos
reparar o erro do irmão. “Então Prometeu, vítima        — âmbito do seu ser social. Como Baudelaire,
do embaraço de descobrir que meio ele encontra-         poderíamos dizer que pensar o moderno é pensar
ria de salvaguardar o homem, rouba de Hefaisto e        de forma a captar a pretensão à “eternidade” de um
Atena o gênio criador das artes, roubando o fogo        mundo e uma forma de viver eminentemente
(pois sem o fogo não existiria meio de ninguém          fugazes.
adquirir o gênio ou de utilizá-lo); e é procedendo            É por ser sensível ao que há de dramático
deste modo que ele dá ao homem um presente.”            neste tipo de configuração histórica que Simmel
(Platão, idem). Os programas culturais, a história      nos proporciona um referencial teórico que alarga
dentro da qual o ser humano é “jogado”, devem ser       as fronteiras do pensamento sociológico.
entendidos a partir dessa alegoria do sentido da
técnica. Trata-se de um presente ambíguo que nos
                                                        NOTAS
capacita a preservar nossa própria vida (e os
programas técnico-culturais constituem aqui, obvi-
amente, a própria dádiva da sobrevivência para          1   Este trecho corresponde a uma transcrição de Heinz
este ser desprovido de virtudes) ao mesmo tempo             Maus das palavras de Ernst Bloch. Aparentemente,
                                                            Bloch era ainda mais ácido em sua crítica, como observa
que lhe revela sua mortalidade.                             Evaristo de Moraes Filho na sua introdução a Georg
       Todo convívio social pressupõe um progra-            Simmel (Moraes Filho, 1983, p. 13).
ma cultural, uma tradição dentro da qual nós            2   Assim, por exemplo, em um de seus ensaios mais
compreendemos o nosso presente como uma de-                 populares, Simmel conclui que a ajuda ao pobre é
                                                            explicada não pela força de algum tipo de abnegação ou
terminação do passado. Se é certo que essa deter-
                                                            altruísmo daqueles que são mais afortunados, mas para
minação constitui a chave para recuperarmos a               que este último grupo possa manter a estabilidade de
verdade do ser, não é menos verdade que um tal              sua identidade comunitária.
presente se imobiliza dentro de uma tradição que        3   Uma tradução deste título para o português traz alguns
nos impede de ver a futuridade e indeterminação             problemas. A palavra Anschauung, comumente traduzi-
                                                            da como “visão” (como em Weltanschauung: visão de
inerentes a este presente. E é a tarefa do pensar           mundo), possui, na tradição kantiana, ainda o sentido
“retomar” um tal presente e sacudi-lo de sua                de “intuição”, ou seja, uma apreensão não conceitual da
imobilidade, revelando no ser humano o que é                realidade. O título poderia, assim, ser traduzido como
                                                            Visão da vida. Quatro capítulos metafísicos, ou Intuição
fundamental: o acesso ao ser como transbordar de            da vida. Quatro capítulos metafísicos.
si em si próprio.
                                                        4   Tomo emprestada esta citação da excelente introdução
       Não cabe nos determos mais no significado            que Jean-Louis Villeiard-Baron faz ao Philosophie de la
da contribuição heideggeriana. Uma tal incursão             modernité (Simmel, 1990, p. 9).
nos levaria para além dos limites deste ensaio.         5   A respeito da crise do historicismo alemão ver Heide-
Interessa-nos, entretanto, localizar tal contribuição       gger, Dilthey, and the crisis of historicism, de Charles
                                                            Bambach (1995).
e as possibilidades críticas que ela abre dentro do
terreno já demarcado, em grande medida, pela            6   Cf. Heidegger (1993, p. 279): “[...] na pre-sença [Dasein],
                                                            há sempre algo pendente, que ainda não se tornou ‘real’,
contribuição simmeliana. É à modernidade e seu              como um poder-ser de si mesma. Na essência da
dinamismo que devemos sempre retornar para                  constituição fundamental da pre-sença reside, portanto,
compreender o sentido e a radicalidade que um tal           uma constante inconclusão. A não totalidade significa o
                                                            pendente do poder-ser.”
pensamento testemunha. Apenas porque as fron-
teiras entre passado, presente e futuro se “indefini-
DA VIDA AO TEMPO                                                                                          117

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     t p y i c e K p t l Munique/Leipzig, Dun-
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Simmel subjetividade artigo

  • 1. DA VIDA AO TEMPO: Simmel e a construção da subjetividade no mundo moderno * Jonatas Ferreira Introdução uma certa sensibilidade cosmopolita, um enfoque predominantemente microssociológico e uma in- O fato de Simmel ter se mantido em evidência terpretação da cultura que privilegia o jogo dinâmi- durante a primeira metade do século XX deve-se, co entre estruturas simbólicas identitárias e forças em grande medida, ao interesse que sua obra de alteridade.2 Por este motivo, não parece fortuito despertou na sociologia americana numa época em que ensaios como “O estrangeiro”, “O aventureiro” que os padrões consagrados de produção científica e “Conflito” sejam até hoje presenças obrigatórias se opunham ao seu brilhante “ensaísmo”. O seguin- nas coletâneas da obra de Simmel publicadas nos te comentário parece representar o tipo de acolhida Estados Unidos, como pode atestar o Selected wri- que sua obra recebeu durante este período: “Sim- tings editado em 1971 por Donald Levine. mel tem a mais refinada inteligência entre todos os Embora influente e de importância evidente, seus contemporâneos. Mas, fora disso, é totalmente tal recepção da obra de Simmel deu-se às custas de vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a uma apreciação mais ampla de aspectos funda- verdade. Ele é um compilador de pontos de vista mentais de seu universo temático. É curioso que com os quais rodeia a verdade, sem pretender ou um livro tão importante quanto Lebensanschau- estar apto a possuí-la.”1 Não obstante esta aparente ung. Vier Metaphysische Kapitel,3 de 1918, reunin- idiossincrasia de sua personalidade intelectual ou, do os últimos ensaios produzidos por Simmel, como o texto sugere, apesar de sua impotência em ainda não tenha sido traduzido para o inglês, “possuir” a verdade, a obra Simmel firmou-se como francês ou português — à exceção do ensaio referência sociológica das mais importantes. Sua “Caráter transcendental da vida”, traduzido na popularização deve-se, sem dúvida, ao interesse década de 70 para o inglês. A importância teórica que a Escola de Chicago demonstrou por alguns de dos quatro ensaios que o compõem, todavia, pode seus traços distintivos, dentre os quais eu destacaria ser estimada se tivermos em mente o meio acadê- mico no qual eles emergiram e com o qual contras- * Agradeço os comentários de Silke Weber, Paulo Henri- tam de forma tão categórica. Pois se é bem verdade que Martins e Terry Mulhal a este ensaio. que a tradição neokantiana, com a qual Simmel RBCS Vol. 15 no 44 outubro/2000
  • 2. 104 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44 convive intimamente, sonha com um projeto soci- apenas um reconhecimento genérico de Simmel ológico capaz de se estruturar a partir de uma como filósofo. O estímulo específico que Heide- concepção atemporal de subjetividade, o Leben- gger recebeu deste trabalho é visível a qualquer sanschauung aponta para o reconhecimento do um que hoje leia no primeiro dos quatro “Capítu- tempo como fator estruturante do ser-no-mundo e los Metafísicos”, reunidos sob o título Lebensans- da possibilidade do saber. Se o conhecimento chauung, aquilo que um Simmel moribundo con- científico não for um “esquecimento” desta verda- cebeu como sua tarefa filosófica. Lá podemos ler: de ontológica fundamental, de forma alguma ele “A vida é verdadeiramente o passado e o futuro”. deverá buscar a “posse” de verdades universais e Ele chama “a transcendência da vida o verdadeiro atemporais como critério e base de validade. Anos absoluto”, e o ensaio conclui: “Eu sei muito bem mais tarde, Heidegger afirmaria que todo saber que obstáculos lógicos existem à expressão con- autêntico deve abrir-se à indeterminação ontológi- ceitual deste modo de ver a vida. Eu tentei formu- ca do ser-no-mundo — e essa indeterminação lá-los com a plena consciência do risco lógico, surge como conseqüência inevitável do reconheci- uma vez que é possível que tenhamos atingido mento de nossa temporalidade, ou seja, como aqui um nível em que dificuldades lógicas de constatação de nossa finitude ou, como diria Hei- forma alguma nos impõem o silêncio — pois este degger, de nosso ser-para-a-morte. Se aceitamos, é o mesmo nível em que a raiz lógica da metafísica todavia, o tempo como estrutura ontológica funda- se nutre.” mental, e conseqüentemente como determinante da possibilidade do saber, todo o projeto neokan- Se percebemos nestes quatro ensaios adian- tiano da Escola de Baden (leia-se Windelband, tada uma tese tão central no universo teórico Rickert e o Weber dos ensaios metodológicos), heideggeriano, qual seja, que ser e tempo são com o qual Simmel tem um contato tão íntimo, conceitos correlatos, que se perceber humano é entra em colapso. Esta perspectiva induziu Rickert perceber-se mortal, ou, ainda, que a ontologia (1924) a afirmar de forma infatigável durante sua deve ser entendida como fundamento mais radical carreira que aquilo que capacita a verdade científi- da lógica, é preciso enfatizar que Simmel procura ca a ser um valor acima de todos os outros valores não dissociar esta perspectiva de sua possibilidade é precisamente que a ciência se nega a ser “parte histórica, ou seja, sua tomada de consciência da vida em geral”. Procedendo deste modo, a pertence à cultura moderna. A historicidade da ciência escaparia à sina dos seres orgânicos que obra de Heidegger não deve espantar ninguém, germinam, desenvolvem-se e morrem. O conheci- por mais parcimonioso que ele se tenha mostrado mento, para Rickert, deve se proclamar transcen- em reconhecer suas dívidas intelectuais. O fato de dental em relação à vida e ao tempo — e nesta uma reflexão acerca da estrutura temporal do ser afirmação mesma nós constatamos a importância emergir nas sociedades modernas não é, obvia- de se pensar a pauta fenomenológica (mais espe- mente, fortuito. É a esta historicidade que o traba- cificamente, seus pressupostos existenciais e tem- lho de Simmel já nos remete. porais) que põe tal projeto sociológico de pé. Dito isto, é necessário conceder: uma refle- Uma idéia bem distinta de transcendência é xão acerca do significado do tempo como catego- oferecida por Georg Simmel no Lebensanschau- ria ontológica e epistemológica fundamental não é ung. A respeito deste livro, temos de Hans-Georg novidade no pensamento de tradição crítico-trans- Gadamer um depoimento que ensejou, em parte, a cendental na qual a obra de Simmel sem dúvida se investigação que apresento neste ensaio. Em uma inscreve. Mesmo os adversários mais categóricos nota de rodapé do seu Verdade e método Gadamer desta tradição não deixam de reconhecer, com (1975, p. 521) comenta: variados enfoques quanto ao seu significado, que o tempo constitui de fato um elemento de estrutu- Já em 1923 Heidegger falou-me com admiração ração da realidade humana. Tomemos um exem- dos últimos escritos de Georg Simmel. Isso não foi plo que nos é com certeza familiar. No Formas
  • 3. DA VIDA AO TEMPO 105 elementares da vida religiosa, opondo-se a Kant, unidirecional e unívoca do tempo: ou bem como Durkheim sustenta a tese de que, se o tempo há de categoria primordialmente social, ou bem como significar alguma coisa, ele deve ser um tempo elemento estruturante da possibilidade subjetiva de compartilhado, social, ou então ele não é nada. acesso ao mundo fenomênico. Kant, ele próprio, Assim, contra uma noção de tempo supostamente não estava desatento às implicações decorrentes pré-social, homogênea e vazia, ele propõe o tem- deste impasse teórico fundamental. E aqui, a bem po como categoria objetiva e coletiva. Há, no meu da verdade, faz-se necessário afirmar que para ele o modo de entender, algo de sólido na argumenta- tempo não é apenas a categoria vazia e homogênea ção durkheimiana. Porém, se por um lado, no à qual se refere Durkheim — crítica que, de uma contexto desta argumentação, o tempo passa a ser outra perspectiva, Bergson também sustentará. Se entendido não mais como condição de possibilida- uma fundamentação do saber científico é possível, de subjetiva e a priori do conhecimento, como o raciocina Kant, ela não pode ser legitimada pelo queria Kant, mas como categoria cultural, sua senso comum, pela tradição. O mundo social, que importância na estruturação do real não é de se revoluciona incrivelmente à época em que ele modo algum questionada ou relevada. Pelo con- escreve suas três Críticas, não pode fornecer o trário: “A divisão em dias, semanas, meses, anos fundamento do saber pois é, em si, a coisa a ser etc. corresponde à periodicidade dos ritos, das explicada e produzida. Sob o tempo de calendário, festas, das cerimônias públicas. Um calendário dos rituais, das festividades, das colheitas, Kant exprime o ritmo da atividade coletiva ao mesmo tentará encontrar um tempo fundamental, um tem- tempo que tem a função de assegurar-lhe a regula- po que estrutura o acesso do ser humano à sua ridade.” (Durkheim, 1921, p. 15). própria humanidade e sociabilidade. Aparentemente, a possibilidade de sincronia Se podemos aceitar que na Crítica da razão é tomada pelo pensamento crítico como conse- pura a noção do tempo ainda se desdobrava, em qüência implícita do desvelamento da estrutura grande medida, a partir da perspectiva da expli- fenomênica que capacita o ser humano a perceber, cação causal dos fenômenos naturais, na Crítica entender, sentir e transformar o mundo. Assim, do julgamento o tempo surge como problema para que a sociedade e o tempo compartilhado das teórico do ser humano como ser social. Como tarefas sociais sejam possíveis, faz-se necessário sabemos, neste trabalho Kant percebe a possibili- explicar a existência de um indivíduo aberto ao dade de estruturação da vida coletiva a partir de reconhecimento do tempo e à experiência da vida duas situações antagônicas, porém complementa- coletiva. Porém, uma coisa não explica a outra res: a partir do sentimento do belo ou do senti- automaticamente, e esse é o ponto em que o mento do sublime. Privado de garantias transcen- argumento durkheimiano ganha significado. No dentes que legitimem uma compreensão bela d a que diz respeito ao tempo, a passagem do nível vida, ou seja, uma compreensão da vida baseada individual ao coletivo não pode ser tomada de na harmonia e na proporção, o mundo moderno forma alguma como sendo auto-evidente. se vê impelido a assumir-se a partir do reconheci- Se é bem verdade que o pensamento crítico mento da desproporção que o caracteriza. Se o já apresentaria suas próprias defesas contra um sentimento do belo nos dá acesso a um mundo certo dogmatismo e mesmo uma certa tautologia social não problemático, onde a imanência e a que sustentam a unidade da tese durkheimiana — possibilidade de compartilhar sentimentos é per- o tempo compartilhado tanto estrutura a possibili- cebida como o fundamento mesmo de nossa hu- dade da vida social como é explicado por “valores” manidade, o sentimento do sublime exige o sacri- sociais —, ele mostra uma certa dificuldade em fício de tais promessas de harmonia, de um senso responder às questões legítimas propostas por comum entre os seres humanos. Deste modo, o Durkheim na introdução ao Formas elementares. poder transcendental da razão impõe o indivíduo No mais, o conflito entre estas duas aborda- transformador e livre como o centro dinâmico do gens, obviamente, deriva de uma compreensão mundo moderno.
  • 4. 106 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44 O sacrifício da beleza, de um ideal de vida na obra de Simmel. Se é bem verdade que em baseado na imanência, na harmonia e na presença; Schopenhauer e Nietzsche o tema da vida constitui o reconhecimento da vida moderna como dinâmica um eixo central de investigação, este conceito já de desproporção e portanto de contingência, cons- guarda uma especificidade considerável em rela- titui uma agenda recorrente na tradição crítica. Em ção ao pensamento vitalista, sobretudo como ele grande medida, o fato de esta tradição tratar muito surge da pena de Bergson. Ora, tanto Bergson raramente da idéia de um tempo compartilhado como Simmel são por vezes associados à oposição deve-se a uma ênfase teórica específica que privile- básica que estrutura o vitalismo, a saber, a concep- gia uma compreensão da vida coletiva a partir da ção de um conflito entre estruturas fenomenológi- desproporção e da contingência. Assim, por exem- cas formais (culturais) e um fluxo de energia vital plo, os primeiros românticos propõem um projeto que agiria de modo a romper os limites de tais de arte reflexiva, onde o fundamental ontológico estruturas. Se Bergson traz para dentro da filosofia do ser humano passa a ser encontrado no provisó- “o novo” como questão fenomenológica central, rio, naquilo que está em constante estado de trans- Simmel é uma referência sociológica decisiva na formação. Novalis (1997, p. 65) diria a este respeito: elaboração de uma análise da cultura moderna “Apenas aquilo que é incompleto pode ser compre- como cultura de ruptura. O que os diferencia, no endido — pode nos levar mais adiante. O que está entanto, é a consciência histórica com que o tema completo pode apenas ser usufruído. Se nós dese- da vida é tratado por Simmel e que em Bergson jarmos compreender a natureza devemos postulá-la cede lugar a um certo biologismo. Considere-se, como incompleta, para atingir deste modo uma por exemplo, o “Metrópole e vida mental”, onde variável incompleta. Toda determinação é relativa.” Simmel adianta a famosa tese giddensiana da É uma grande sensibilidade para com esta segurança ontológica: “Assim, o tipo metropolita- compreensão do mundo moderno que coloca o no — que apresenta mil modificações individuais universo teórico simmeliano num patamar diferen- — cria para si um órgão protetor contra perturba- ciado em relação a uma parcela significativa de ções profundas com as quais as flutuações e seus contemporâneos. Seus excelentes artigos so- descontinuidades do meio exterior o ameaçam.” bre estética moderna são uma evidência desta (Simmel, 1971, p. 326). Neste traço da cultura sensibilidade. Porém, mais do que isso, as incur- moderna, ou seja, na ruptura constante de limites e sões que Simmel faz na problemática do tempo e formas, Simmel não vê em princípio razão para da finitude humana anunciam a resolução daque- celebração; ao contrário, isto constituiria a “tragé- la questão identificada por Durkheim e que o dia” e a “ilusão” do mundo moderno, pensar que pensamento crítico, em que pese toda a tradição pode existir sem engendrar uma forma cultural. que se forma a partir da Crítica do julgamento, Assim, em franca oposição à postura bergsoniana, deixou em aberto. Ora, apesar da justeza de se Simmel observa: “Temos a impressão que Bergson perceber o moderno como dinâmica do contigen- nunca se deu conta do que há de profundamente te, é necessário entender a possibilidade de conví- trágico no fato de que a vida, para poder existir, vio social (não ouso dizer a possibilidade de uma deve se converter em não-vida.”4 “ordem social”) quando a promessa de proporção Mas o que, positivamente, caracteriza sua e harmonia é historicamente sacrificada. análise do problema da vida no mundo moderno? No universo simmeliano de fronteiras e trans- gressões, limite e transcendência, nenhuma idéia O problema da vida está investida de maior centralidade teórica que a O percurso que vai desde a publicação de idéia de vida, mais precisamente, da vida tal como Schopenhauer e Nietzsche, em 1907, aos Quatro ela é experienciada nas sociedades modernas. capítulos metafísicos (1918) corresponde a um Como inúmeros outros pensadores formados no lento desenvolvimento teórico em que a questão contexto de crise do historicismo alemão,5 Simmel do tempo passa a se impor como problema central contempla angustiado as perspectivas existenciais
  • 5. DA VIDA AO TEMPO 107 que se abrem ao indivíduo moderno. No Conflito si próprias suficientes e confortantes, nada conhe- na Idade Moderna, por exemplo, ele observa: “A ce do questionamento incansável que é o produto ponte entre o passado e o futuro das formas de reflexão acerca de um ser capturado numa culturais parece ter sido demolida; nós olhamos cadeia de meios, atalhos e improvisos. (Simmel, sob nossos pés para dentro do abismo de vida não 1986, p. 4) formada. Mas talvez essa ausência de forma seja em si a forma mais apropriada da vida contemporâ- Tomemos o interesse simmeliano pela circu- nea.” (Simmel, 1968, p. 25). Assim como ele, lação monetária como exemplo. O dinheiro é Jaspers sente-se desconfortável num mundo em apenas um sinônimo da necessidade premente de que o ser humano, mediante o emprego incansável encontrar um denominador comum em meio a da razão, arranca-se de suas próprias raízes e vê “o uma rede de meios que se torna mais e mais fundamento da vida tremer sob seus pés” (Jaspers, complexa. Não se trata apenas do fato de que o 1959, p. 10). De gosto mais patético que dramático, “objeto” que pode satisfazer nosso desejo se coloca Troeltsch entrou para o anedotário deste tipo de fora de nosso alcance e, portanto, da possibilidade discurso ao interromper uma certa conferência de fruição, mas também de que, com o apareci- com a seguinte frase: “Cavalheiros, tudo perdeu mento das economias monetárias, os objetos per- sua firmeza!” (apud Rubanowice, 1982, p. 9). dem eles próprios, gradualmente, o seu significado Simmel acredita que uma reflexão sobre a subjetivo, pessoal. Essa experiência societária mos- vida é historicamente constituída, que a vida se tra que toda uma estrutura de meios converte-se torna objeto de contemplação e angústias quando não apenas num passo intermediário entre o dese- aquilo que nós vivenciamos de forma imediata jo e sua satisfação, mas no núcleo mesmo da vida pode ser diferenciado daquilo que concebemos social. Se tanto Hegel como Simmel reconhecem a com o auxílio do intelecto. Os ecos da crítica existência de uma fissura que humaniza o ser hegeliana ao formalismo kantiano aqui são eviden- humano, à qual atribuem uma dimensão franca- tes. Parece significativo o fato de que a produção mente técnica, ou seja, essa fissura diz respeito a de instrumentos, o estabelecimento de um inter- uma condição estruturalmente suplementar da re- mediário entre desejo e fruição, esteja na base de lação do ser humano com o mundo natural e uma mudança que instaura o processo de humani- social, um campo de divergência claro surgirá zação do ser humano: a passagem de uma relação quando produzirmos a seguinte questão: em que direta entre o “animal humano” e a natureza para medida pertence também ao horizonte do humano uma relação indireta: ser humano-meios-fins. “O a superação deste hiato? homem é o ser indireto”, observa Simmel (1986, p. 3), “e torna-se mais ainda tanto maior seja o seu Schopenhauer e Nietzsche desenvolvimento cultural”. A emergência da vida como problema filosófico e existencial, assim, é O livro Schopenhauer e Nietzsche constitui produto de um processo em que uma estrutura uma referência de fato importante para entender- tecnológica mediativa torna-se progressivamente mos o conjunto da obra de Simmel. Neste ensaio complexa, separando mais e mais o desejo huma- Simmel desenvolve algumas de suas teses mais no da possibilidade de fruição. Tempo, consciên- centrais acerca do moderno, particularmente a tese cia, causalidade são formas de manifestar esta do caráter negativo, sem repouso e contingente da fissura no ser. Em outras palavras, tanto mais a vida moderna. Assim sendo, justifica-se que nos perspectiva de fruição escapa num labirinto de detenhamos na sua análise. Segundo Simmel (1986, relações sociais e produtivas, tanto mais a vida p. 5), para Schopenhauer a vontade absoluta, que constitui-se como problema ontológico. responde pela existência de todo ser, constitui um fundamento e um limite “que não permite um lugar A vida, quando consiste de relações curtas entre externo de repouso: não existe nada além da meios e fins, sendo cada uma dessas relações em vontade”. Nada existe que não seja posto em
  • 6. 108 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44 movimento por este princípio fundamental. Quer lar e outras conexões causais é possível explicar refletindo acerca da importância do “discurso”, da psicologicamente por que eu chegaria mesmo a “vontade” ou do “tempo”, o moderno parece neces- desejar ou por que minha vontade total coincide sitar da fronteira, do espaço liminar, como possibili- com a direção de meu caráter total e constitui dade derrradeira do ser. Como decorrência, o exter- aquela direção. Cada ato da vontade é finito e no, o para além, emerge como tema recorrente pode ser pacificado, mas a vontade como tal desta forma de pensamento — e o modo como este jamais pode ser mitigada. (Simmel, 1986, p. 26) limite se dispõe em relação ao absoluto forma uma zona de confluência sobre a qual as muitas negocia- Uma tal noção do ser e do viver, segundo ções do moderno operam. É neste sentido que o Simmel, age no pensamento ocidental de modo a fechamento ou abertura do ser se apresenta como sacudir a velha crença de que a “racionalidade é questão ontológica fundamental. Para Schopenhau- essência básica e profundamente assentada do er, se aceitarmos que o ser é vida, e que a vida homem que se coloca sob os outros estratos da confunde-se com a necessidade sem repouso, tere- vida” (Simmel, 1986, p. 28). A concepção da mos necessariamente de resistir à idéia de uma meta vontade absoluta como a substância mais abran- final para a vida, de um fechamento. gente do ser tem um significado inegável na A noção de uma finalidade na vida constituiria estruturação de uma abordagem estética do fenô- uma fronteira. Quando este limite não existe, a vida meno moderno. Tal concepção destitui a razão da torna-se disforme: “na medida em que a vida é posição central que ela ocupa no pensamento pós- vontade, ela fica em última instância sentenciada a kantiano, uma vez que, de acordo com ela, “a ser desprovida de valor e significado: ela é aquilo lógica requer um suporte não lógico”, quer dizer, a que claramente não deveria ser. [...] Ele [Scho- razão é uma manifestação de algo mais substancial, penhauer] não percebe em absoluto o sentimento nomeadamente, a vontade absoluta. “Na metafísica da vida como celebração, sentimento do qual Niet- da vontade de Schopenhauer há este sentimento zsche está impregnado.” (Simmel, 1986, p. 6). A irreversível de que estaríamos assegurados de ser oposição entre Schopenhauer e Nietzsche sugere num modo diverso do reconhecimento conscien- que Simmel critica a antiescatologia da noção de te.” (idem, p. 29). uma vontade absoluta como sendo, de fato, uma Por isso mesmo, de acordo com Simmel, o escatologia negativa, um desejo melancólico por que quer que se faça de uma tal concepção do ser formas eternas. A celebração da vida como último é estritamente um assunto de personalidade filosó- objetivo da vida seria, neste sentido, uma radicaliza- fica (ou “atitude” filosófica). Para Schopenhauer, a ção e uma alternativa à negatividade do pensamen- multiplicidade da vida, e particularmente dos de- to antiescatológico de Schopenhauer. “Mas todo sejos, só existe no plano fenomenológico, quer prazer quer eternidade, uma profunda, profunda, dizer, no tempo e no espaço; o que se coloca para profunda eternidade”, diria Nietzsche nas linhas além deste domínio, o que se coloca para além da finais do Assim falava Zaratustra. Para Schopenhau- possibilidade de cognição, ou seja, o ser, a vontade er, por outro lado, “toda felicidade ‘é essencialmen- absoluta, deve ser unidade absoluta — uma vez te e sempre negativa’” (Simmel, 1986, p. 54). Pois, se que esta esfera transcende as limitações fenome- para ele seria concebível que cada desejo individual nológicas do intelecto. Simmel combate a visão do fosse pacificado, o próprio ato de desejar permane- intelecto como unidade absoluta inicialmente num ceria sem possibilidade de mitigação. Segundo esta terreno lógico. O intelecto conhece não apenas concepção, o ser possui uma deficiência intrínseca, por meio de um processo de diferenciação, mas estando fadado a ser para sempre “faltante”. É isto também de unificação. O exemplo que Simmel traz que o impulsiona, é isto que o leva a ser. à tona é o da função da cópula em proposições lógicas. Mantenhamos o tom pessimista e analise- Schopenhauer expressa seu ponto de vista assu- mos a seguinte proposição: “A vida é dor.” Nesta mindo que através do recurso à motivação singu- sentença, a cópula permite não apenas uma opera-
  • 7. DA VIDA AO TEMPO 109 ção de diferenciação — quer dizer que “vida” e vida não é algo que lhe é externo, mas é a própria “dor” são, em princípio, diferenciáveis —, mas vida. Aquilo que Schopenhauer descrevera negati- também que tanto a substância quanto o acidente vamente como impossibilidade de repouso (para da proposição, isto é, tanto a coisa qualificada ele, cada objetivo estabelecido pela vontade é (vida) quanto a coisa qualificante (dor), adquiram ilusório uma vez que vontade e ser são idênticos), uma unidade no “ser”, ou seja, na palavra “é”. “A é preciso conceber como indicador da abertura vida é dor.” Em outras palavras, processos intelec- ontológica do ser humano para o mundo. Se para tivos dependem tanto de diferenciação quanto de Schopenhauer a única solução existencial para unificação. Mais ainda, unificação é uma categoria nossa falta ontológica, para todo sofrimento da discursiva, cognitiva. O uso do termo “absoluto” condição humana, seria dada pela “erradicação da para qualificar um movimento transcendental de personalidade”, para Nietzsche, por outro lado, é unificação seria, em princípio, tão justificado quan- necessário reconhecer que a vida é potência de si, to dizer que a vida é absoluta diferenciação. “É isto é, a vida é imanente a si mesma. uma questão de satisfação emocional, que pode vir A esperança, então, constituiria a resposta tanto de uma visão do mundo como radicalmente que Simmel daria ao pessimismo. O que o pessi- unido através de sua base ou de uma visão do mista não pode negar é o fato de que, ao formular mundo como resplandecente na riqueza de um a vida como vontade insaciável, ele também apre- número infinito de unidades independentes.” senta, mesmo que não intencionalmente, a espe- (Simmel, 1986, p. 39). rança como impulso ontológico básico. Mesmo Caracterizar o ser como vontade é apenas dar que ele chegue à conclusão de que este tipo de um passo além do intelectualismo que caracteriza esperança (uma esperança que não depende, em a tradição neokantiana de Windelband e Rickert, princípio, de nenhuma resposta religiosa) não tem uma vez que a questão da essência do ser continua qualquer fundamento, que nós estamos fadados à sem resposta, continua suscitando, segundo Sim- falta, ele não pode deixar de admitir que nós temos mel, um “temor inexprimível”. Contudo, o que é vontade e, portanto, esperança. Anos mais tarde, admirável nesta caracterização do ser é que ela Heidegger (1993, parte II, pp. 279) diria a esse “redime a rigidez do conceito de ser como tal” respeito: “Mesmo que, ainda existindo, nada mais (Simmel, 1986, p. 48). Se para Schopenhauer o ser possua ‘diante de si’ e ‘feche para balanço’, o é nosso destino mais sombrio, isto se deve ao fato ‘preceder-a-si-mesmo’ ainda determina o seu ser. A de que, para ele, a vida continua presa a uma falta de esperança [...] não retira a pre-sença de escatologia negativa, a uma falta que não pode ser suas possibilidades, sendo apenas um modo pró- mitigada. Uma marca distintiva do pensamento prio de ser para essas possibilidades. Do mesmo simmeliano é a maneira aguda com que ele conse- modo, ser e estar voltado para tudo ‘sem qualquer gue ter acesso às dificuldades éticas e políticas ilusão’ também conserva em si o ‘preceder-se-a-si- implicadas na caracterização da condição humana mesmo’.” Dante, então, estaria certo ao inscrever em termos de uma falta ontológica. Como implica- no umbral do “lugar da morte eterna”: ao entrar por ção sub-reptícia de uma tal caracterização, a pers- essas portas abandone toda esperança. “A felicida- pectiva de uma unidade política transfenomênica de da antecipação não é uma ilusão na qual emerge como resolução totalitária de uma ansieda- pretendemos conter o incontido e somos estimula- de que marca a vida nas sociedades modernas. Em dos pela fantasia e não pela realidade; ao invés oposição a esta visão, Simmel afirma com Nietzs- disso, de forma bastante legítima e honesta, a che: o fato de a vontade ser orientada para sua esperança da felicidade torna-se felicidade da es- satisfação permite vislumbrar a possibilidade de perança.” (Simmel, 1986, p. 56). felicidade. A vida como êxtase, como potência de Devemos avançar com cuidado aqui. Ora, si mesma, é a resposta que a vida, vista como como deveremos interpretar o sentido atribuído vontade absoluta, e portanto como falta absoluta, por Simmel à palavra “esperança”, termo tão signi- dá a si mesma. O sentido e finalidade última da ficativo para a tradição judaico-cristã? Seria possí-
  • 8. 110 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44 vel entendê-la como aceno escatológico de resolu- próprios limites conhece-os como limites. Kaspar ção dessa ansiedade fundamental, uma perspecti- Hauser não sabia que ele estava numa prisão até o va em nada dissemelhante àquela que ele critica momento em que ele se encontrou no espaço em Schopenhauer, ou estaríamos mais próximos aberto e pôde ver as paredes pelo lado de fora.” da crença heideggeriana no “excesso” da vida (idem, p. 355). A vida, enquanto fronteira, estrutu- (mais precisamente, do ser) como fim em si mes- ra-se pela partilha de dois lados de um limite mo? A resposta oferecida por Schopenhauer e específico, ou seja, o ser e o não-ser. Este compar- Nietzsche é clara; o que ainda não é claro é o papel tilhamento, todavia, é uma transcendência do fini- desempenhado pela noção de falta no pensamen- to na direção de sua própria finitude, e não na to simmeliano. direção de sua superação. [...] o fato que nós, como seres cognitivos, e dentro O caráter transcendental da vida das possibilidades da própria cognição, podemos Uma das teses mais famosas de Simmel acer- vir a conceber a idéia que o mundo pode não ca da vida é ainda sustentada no “Caráter transcen- caber inteiramente nas formas de cognição, o fato dental da vida”: “O par de proposições — que o que, mesmo de forma puramente problemática, limite é incondicional, posto que sua existência é nós possamos pensar em algo dado no mundo constitutiva de nossa posição dada no mundo, mas que nós simplesmente não podemos pensar — que nenhum limite é incondicional, uma vez que isto representa um movimento que alcança o cada um pode em princípio ser alterado, suplanta- além, não apenas de uma simples fronteira, mas do, contornado —, esse par de proposições apare- do limite da mente em sua totalidade, uma ato de ce como a explicação da unidade interna da ação transcendência que em si estabelece os limites da vital.” (Simmel, 1971, p. 354). A cognição pode cognição, não importa se esses limites sejam atuais fornecer um exemplo de como a vida se estrutura ou apenas possíveis. (Simmel, 1971, p. 357) de modo transcendental, isto é, tanto a partir do reconhecimento de um limite, de uma fronteira, Como Kant antes dele, na Crítica do julga- quanto de um tipo particular de transgressão a essa mento, Simmel consegue perceber nas inúmeras restrição. Ao jogar, o enxadrista se depara com a aporias que estruturam a vida consciente não ambigüidade de saber e não saber as conseqüênci- apenas a irracionalidade de uma impossibilidade, as de seus movimentos; pois se ele não soubesse mas também o sinal de uma produtividade, eviden- de fato as conseqüências de seus movimentos o ciada na própria capacidade de formular estes jogo seria impossível, “mas também seria impossí- becos sem saída. Mas como pode nosso pensa- vel se essa capacidade de antecipar se estendesse mento formular uma questão cujas possíveis res- indefinidamente” (idem, ibidem). O fato de conhe- postas já estão de antemão rejeitadas? A resposta cermos os nossos limites como tais implica, de de Kant não seria outra: porque nosso processo de certo modo, uma habilidade de transcendê-los, pensar é estruturalmente transcendente ele é capaz pois só assim o reconhecimento do limite é possí- de “superar” estes cismas colocando-os renovada- vel; nesse gesto, todavia, somos sempre remetidos mente, aceitando-os como condição estrutural do para a restrição que transcendentalmente reconhe- viver humano. De forma similar, Simmel não mos- cemos. Essa aporia caracteriza a compreensão tra interesse em fechar cismas fenomenológicos, simmeliana da vida como experiência liminar, mas em mostrá-los como parte de uma dinâmica assim como nos permite ter acesso ao próprio transcendental e produtiva. Assim, se bem que sentido que Simmel confere à idéia de transcen- admitindo, com Hegel, uma explicação histórica dência. Mas, como poderíamos aceitar essa propo- para esta fratura que se exacerba com a moderni- sição aparentemente contraditória, de estar ao dade, Simmel entende esta separação como estru- mesmo tempo dentro e fora de um limite? “Pois, de turante de nosso sentido de humanidade. Contra certo modo, apenas quem se coloca fora de seus Hegel, ele não espera a reparação de tal fratura
  • 9. DA VIDA AO TEMPO 111 como sendo possível dentro do horizonte de nossa historicidade. Mesmo quando emerge no presente humanidade. como história pessoal, como memória privada, não A tentativa de cruzar uma fronteira intranspo- podemos deixar de reconhecer o passado a partir nível é o movimento egológico de auto-afirmação; dos laços sócio-históricos que estruturam a nossa ao empreender esse movimento impossível o self existência. Para além da limitação lógica de sua investe suas margens de transcendência. A explo- definição, o presente é de fato transcendência (ou ração simmeliana da conexão existente entre limi- excesso, mais propriamente dito) em duas dire- naridade e vida, entretanto, não pára neste tropo ções opostas: como um esticar-se em direção ao mais espacial. Num momento em que a filosofia do passado ou um espreitar o nosso futuro, como valor tomava como garantido a presença do sujeito memória ou como ansiedade. O futuro, desta científico e a qualidade indéxica desta temporali- perspectiva, não estaria fora de alcance, como algo dade como condição de possibilidade da compre- que nos aguarda num trecho desconhecido de ensão histórica, Simmel retoma a aporia aristotélica nossa jornada, mas constituiria um movimento do tempo: natural de transcendência do agora. “O presente que se vivencia existe no fato de que ele transcen- O presente, no sentido estritamente lógico do de o agora. Em cada manifestação da vontade, aqui termo, não abarca mais que a “inextensão” absolu- e agora, nós demonstramos que o umbral entre o ta do momento. Da mesma forma que o ponto não agora e o futuro não é verdadeiro em absoluto; que é espaço ele também não é tempo. Ele denota tão logo assumimos um tal umbral, nós nos posici- simplesmente a coalizão do passado e do futuro, onamos de um e de outro lado dele.” Em relação apenas esses dois constituem tempo de alguma ao futuro, pode-se assim dizer que “nós vivemos magnitude, quer dizer, tempo real. Mas como um continuamente numa região de fronteira que per- não é mais e o outro ainda não é, a realidade adere tence tanto ao futuro quanto ao presente” (Simmel, apenas ao presente. (Simmel, 1971, p. 359) 1971, pp. 360-361).6 Acerca de uma tal elaboração da estrutura O passado atinge o presente como memória, temporal do ser humano, diríamos que é digno de como aquilo cuja atualidade tem de ser negada nota não apenas o fato de termos aqui adiantada, mas cuja realidade deve ser recuperada continua- em certa medida, uma importante tese heideggeri- mente — e assim, para ser mais preciso, teríamos ana, mas também a lucidez e honestidade intelec- de dizer que a mão do agora estira-se em direção tual com a qual Simmel expõe os pressupostos de ao passado. sua própria compreensão do ser. “Todas as teorias que localizam a essência do espírito humano na A esfera da vida presente, atual, estica-se comple- vontade dizem simplesmente que o espiritual pro- tamente até ele. Isso obviamente não quer dizer jeta-se para além de seu presente estreito, por que o passado como tal por este artifício levanta assim dizer, que o futuro já está dentro dele.” da sepultura. O que isso quer dizer, no entanto, (Simmel, 1971, p. 361). Porque a vontade deseja e uma vez que sabemos que a experiência não está espera, porque ela é ao mesmo tempo o reconhe- no presente, mas antes atrelada a algum momento cimento de uma falta e um excesso de si, ela não no passado, é que nosso presente não permanece pode deixar de se dispor temporalmente no senti- num só ponto, como acontece com a experiência do do ainda-não e do não-mais; desejando e mecânica. Ele se estende, por assim dizer, para esperando ela institui o futuro como estrutura trás. (Simmel, 1971, p. 360) fundamental do ser-no-mundo. Essa compreensão do ser, para Simmel, pertence, portanto, a um A relação entre presente e passado é, assim, momento histórico do desenvolvimento ocidental complexa e ambígua. A mão do presente não se em que a complexificação da vida alcança um dirige ao passado a partir do nada, mas a partir de paroxismo, e em que uma falta insaciável se torna uma tradição, ou seja, do reconhecimento de nossa a marca de nossa humanidade. Mas a noção de
  • 10. 112 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44 tempo a partir da qual aqui se compreende a falta são formalizadora de um limite que se apresenta é, como disse acima, um presente que se dispõe em como tal em cada momento de nossa vida. A morte relação a um futuro, e não um presente que se torna-se discursiva (ou seja, não apenas condição desloca de si em relação a esse futuro. Em ambos de possibilidade de qualquer discurso, mas tam- os casos o tempo é o meio de reconhecimento do bém e fundamentalmente uma alegoria à morte caráter trans-formador das sociedades modernas: absoluta) quando nós nos damos conta de que sua apenas no primeiro sentido o presente excede a si apropriação ontológica é impossível — e mesmo próprio permanecendo uma imanência de si mes- assim necessária. A morte como tal é uma discursi- mo, ao passo que no segundo ele nega a si próprio vidade impossível, pois qualquer gesto em sua com um aceno do “ainda-não”. direção implica um construir contínuo da vida. A Contra o ponto de vista neokantiano de que ironia e paradoxo supremos é que nós construímos tudo é imanente ao sujeito (universal, atemporal), a morte porque desejamos viver como selfs, nos Simmel proclamaria que nada pode se colocar tornamos humanos porque percebemos o impos- para além da vida, e a vida é ela própria trans- sível, o nosso não-ser, a nós mesmos como húmus. cendência. Por este motivo, o além-da-vida não Mas o que a palavra impossível significa neste pode ser evitado como uma instância de forma- contexto? Como o impossível, aquilo que não ção do self , ou seja, seu tipo específico de viver é existe ou que não pode ser realizado, aquilo sobre tal que ele não pode evitar a questão da não- o qual não podemos reivindicar nenhuma posse, vida, do não-mais-ser, visto que o reconhecimen- poder ou influência, pode determinar qualquer to do seu estar vivo e presente se dá através do tipo de dinâmica? reconhecimento de sua possibilidade mais íntima, Em primeiro lugar, a direção desta questão de sua “futuridade” intrínseca. Este é o ponto em deve ser propriamente entendida, uma vez que o que a idéia de morte, como nada que abarca a que ela busca não é necessariamente a forma vida e o ser, como impossibilidade absoluta, através da qual algo é relacionado com a sua apresenta-se como transgressão fundamental a negação, com seu entorno, com aquilo que a torna partir da qual o self se estrutura. Imanente à vida, disponível, visível. Nem sequer procura-se aqui a a morte se torna, para Simmel, o seu Gestalter a área comum em que esses dois domínios se con- priori. Para além das dificuldades teóricas que fundem e interagem. Não se trata mesmo da uma tanatologia possa acarretar, a morte e o ser- relação do universo com a possibilidade de sua para-a-morte são questões que, como tal, o self negação — ao menos não na medida em que nos não pode deixar de pensar. É este o nível mais posicionemos como contempladores dessa possi- fundamental a que uma reflexão acerca da tem- bilidade. Se o impossível aqui estabelece alguma poralidade do ser deve necessariamente chegar. dinâmica, trata-se de um tipo específico de dinâmi- Mas, é preciso que voltemos sempre ao ponto: ca cujo caráter absoluto nunca pode ser dissociado poderia uma tal reflexão surgir em outro “mun- do ser finito que somos; ela é de fato sua expressão do” que não o mundo moderno? típica: um retorno e recuperação da própria finitu- de. Para Simmel, a dinâmica entre o possível e o impossível é sempre incompleta, desejante, e mes- A morte e o self mo assim, e por essa razão, sempre presente, atual. Para Simmel, a concepção da morte como Aquilo que somos capazes de tomar posse, subju- experiência liminar e onipresente não se apresenta gar, isto é, o possível, nos remete necessariamente como o extinguir físico que espera cada um de nós ao impossível — e é por essa razão que o possível num determinado “local” de nossa vida, não se se revela como negociador compulsivo do seu apresenta como a morte do imaginário popular, próprio domínio. Pois mesmo quando essa impos- com sua mão ossuda e sua face impossível. Pelo sibilidade não é relativa mas absoluta, uma feno- contrário, o pensar a morte deve ser entendido menologia de minha própria morte, por exemplo, acima de tudo como uma reflexão sobre a dimen- o fato de que ela pode ser pensada torna o
  • 11. DA VIDA AO TEMPO 113 impossível um alvo do possível, mesmo quando falta, pois a falta constitui o impulso subjacente a reconhecemos quão precário e insatisfatório esse cada movimento transcendental singular que ex- gesto se revela. É esta relação dúbia entre finito e perienciamos através da vida — como de resto à absoluto que Simmel propõe como sendo a base vida tomada como um todo, que é vista como da dinâmica do moderno em geral e do self em insuficiente, faltante, insatisfatória e, portanto, de- particular. mandando transcendência: “A inadequação [Un- Assim, não causa surpresa o fato de que zulänglichkeit] que existe entre, por um lado, Simmel inicie tanto “Para uma metafísica da morte” nossos impulsos e potencialidades e a possibilida- (Zur Metaphysik des Todes) quanto “Morte e imor- de interna e externa de sua realização, por outro talidade” (Tod und Unsterblichkeit) com uma refle- lado, deve necessariamente responder pela cons- xão acerca da idéia de forma e seu significado para trução de um self contínuo.” (Simmel, 1918, p. o viver: “O segredo da forma está em que ela é uma 113). Assim, mesmo a idéia religiosa de transcen- fronteira; ela é a coisa em si e ao mesmo tempo o dência deve se subordinar a essa idéia mais abran- concluir da coisa, a área [ ezirk] em que ser e não- B gente de transcendência na qual o self paira acima mais-ser da coisa formam unidade.” (Simmel, 1918, da contingência, contradições e temporalidades p. 99). A implicação discursiva desta reflexão sobre incongruentes que formam a multiplicidade da o significado da morte, a compreensão onto-esté- vida. Sendo mais preciso, é necessário dizer que a tica do self que ela expressa, é o principal tema do promessa religiosa de imortalidade da alma estru- primeiro ensaio. Sua tese central é que a delimita- tura-se a partir de uma idéia de transcendência ção de seres orgânicos, diferentemente de seres distinta daquela que Simmel tem em mente. Essa inorgânicos, não é meramente espacial, mas tam- promessa é baseada na suposição de que o self (ou bém, e principalmente, temporal. Meu self não a alma) possui uma vida, do mesmo modo que um apenas começa além dos limites espaciais de um transeunte tem o cabelo encaracolado, cinco de- determinado ente e finda onde um outro principia; dos em cada mão etc. “A abordagem religiosa tem os seres orgânicos incorporam o tempo como uma preocupação pela imortalidade da alma num elemento fundamental da realização do seu ser. outro sentido; ela diz respeito mais a um ter [ inem e Uma vez que rejeitamos o ponto de vista Habem]; a alma quer beatitude ou a visão de Deus segundo o qual a morte é colocada para o ser ou talvez concretamente continuar existindo; ou, orgânico do mesmo modo que o limite espacial é através de uma sublimação ética mais forte, ela colocado para o ser inorgânico, a morte humana quer uma qualidade ela própria: ela deseja ser passa a não poder mais ser entendida da forma salva, ou justificada, ou purificada.” (idem, p. 117). como os gregos construíram o mito das três Fúrias No cristianismo, a idéia da transcendência (Simmel, 1918, p. 100): a primeira tecendo o fio da através da imortalidade da alma culmina num vida, a segunda dando-lhe limite e a terceira paradoxo. Por um lado, a vida é compreendida procedendo ao seu corte. A morte está desde o dentro da perspectiva da eternidade da alma, ou princípio colocada como possibilidade mais essen- seja, a morte nada mais é que uma indentação na cial da vida e não pode ser referida por intermédio vida eterna da alma. Diante da eternidade da alma, de uma metáfora espacial. O que é específico dos todavia, a morte perde seu “ferrão vital”. O que seres humanos em relação aos outros seres orgâni- significa uma vida sem fronteiras, sem limite tem- cos é que temos acesso ao sentido temporal de poral? Teria a vida algum valor positivo, ou qual- nosso ser e assim nos reconhecemos como seres quer sentido que seja, se este não fosse conferido incompletos, necessitando da idéia formal da mor- pela onipresença negativa da morte? Como seria te para nos sentirmos uma totalidade. O prefigurar possível pensar o self e qualquer processo de desta totalidade em cada instante da vida é o que individuação sem a presença formativa e liminar Simmel entende por self. do nada? Somente na medida em que estamos De Schopenhauer Simmel toma a idéia de conscientes de nossa morte, da possibilidade do que a autoconsciência é gerada pela percepção da impossível, nos tornamos indivíduos. “Se nós vi-
  • 12. 114 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44 vêssemos eternamente, a vida com os seus valores tamente de Rickert, Simmel não nega a possibilida- e conteúdos permaneceria provavelmente fundida de do gesto órfico, quer dizer, que o ser humano de uma maneira indiferenciada [...]” (Simmel, 1918, pudesse ser movido pelo impulso transgressivo de p. 112). A idéia de construção da subjetividade, ter acesso ao nada como tal, colocando-se através deste modo, liga-se ao moderno não como decisão deste gesto a possibilidade do impossível: o nada autônoma de uma consciência racional que se quer absoluto, nossa própria morte como tal. O que ele originária, mas como decorrência de uma dinâmica afirma é que este gesto é sempre finito. Se a vida é social baseada na transformação, na velocidade, na a fuga da morte (Simmel, 1918, p. 110), apenas ao contingência. admitir a morte como possibilidade mais íntima do Para Simmel, só o indivíduo morre comple- nosso ser nós nos tornamos verdadeiramente indi- tamente, e o conceito “indivíduo” aqui adquire a víduos (idem, pp. 102-103). elasticidade da própria consciência do ser: “o Deveremos agora repassar brevemente o ca- indivíduo é mortal, mas o genus não é; olhando minho que percorremos. Em primeiro lugar, perce- mais longe: o genus singular é mortal, mas a vida bemos que a tradição crítica define o tempo como não é; a vida é mortal, mas a matéria não é; fundamento ontológico do acesso ao mundo, e finalmente a matéria pode, como caso excepcional portanto da possibilidade de cognição, práxis e do ser, desaparecer, mas o ser não pode.” (Simmel, auto-reflexão. O locus fenomênico deste funda- 1918, p. 132). mento não pode ser dado pelo senso comum, nem Como o não-ser é apenas um caso especial garantido pela condição inerentemente social do do ser (posto que o momento imediatamente ser humano; ele deve ser procurado de forma a anterior à formação do universo, ou aquele que explicar a possibilidade de tal senso comum e tal sucederia sua anulação total, não podem ser huma- sociabilidade. Observamos o sentido histórico de namente concebidos sem a noção do ser), o não- uma tal postura teórica: ela significa o esvaziamen- ser ainda é ser, argumenta Simmel. Aqui nós to do tempo, a possibilidade de entender os ciclos percebemos, com surpresa, uma aparente conver- naturais não mais como coisa determinante da vida gência entre Simmel e Heinrich Rickert. Ambos social, mas como coisa a ser redefinida pela técni- sustentam que o nada só pode ser compreendido ca, pela intensificação do ritmo da vida. A idéia como manifestação do ser. A esse respeito, anos mítica de que existe uma proporção entre as coisas depois da publicação do Lebensanschauung, Ri- cede historicamente lugar ao sentimento de des- ckert esclarecerá os pressupostos ontológicos do proporção, de contingência que caracteriza o mo- conjunto de sua obra do seguinte modo: “É um derno como processo eminentemente descentrado contra-senso falar acerca da verdadeira estrutura e revolucionário. A contribuição simmeliana ins- de significação se nós consideramos o coisa-algu- creve-se nesta tradição, mostrando que a tempora- ma [Nicht-Etwas] ou o nada como sujeito. Desde lidade que funda a possibilidade do ser humano que permaneçamos no mero pensar, o nada é está intimamente relacionada à sua “futuridade”, apenas um predicado, quer dizer, apenas nega- ao seu ser-não-mais, à sua morte. Qualquer pers- ção.” (Rickert, 1930, p. 209). Subjacente à formula- pectiva de entender a condição da vida, da “subje- ção do nada como positividade ontológica, nós tividade” na modernidade terá de contemplar este temos em Rickert a redução do ser e não-ser do descentramento inicial e a dimensão temporal que existente a uma mesma temporalidade. Esta co- lhe é fundamental. Ou seja, trata-se não apenas da presença, ou co-temporalidade, do ser e não-ser idéia de contingência, mas de um sentido de do existente é a afirmação da atemporalidade do presença que implica um dispor-se para o futuro. sujeito cognoscente. A aceitação da possibilidade O que resta ainda por explicar é o sentido do nada, ou nada como tal, colocaria em xeque o mais profundo da indagação durkheimiana: como caráter discursivo da morte e sua significação é possível um tempo compartilhado, mesmo reco- sacrificial, qual seja, a de constituir uma instância nhecendo que o moderno é fugaz, efêmero? Ora, transcendental e formativa da vida. Porém, distin- apesar da constante revolução técnica e social por
  • 13. DA VIDA AO TEMPO 115 ela determinada, a vida moderna só pode ser homem, como um lance, no “cuidado” de si. concebida como social — e o moderno constrói a Projetado desta maneira, o homem está postado sua própria tradição, mesmo que envolta em difi- “na abertura do ser”. Mundo é a clareira do ser na culdades. À guisa de conclusão, discorrerei breve- qual o homem penetrou a partir da condição de mente acerca da resposta que Heidegger nos ofe- ser-projetado de sua essência. O “ser-no-mundo” rece a essa questão, entendendo esta resposta nomeia a essência da ex-sistência, com vista à como estando implicitamente contida na reflexão dimensão iluminada, desde a qual desdobra o seu simmeliana sobre a modernidade e sobre a condi- ser “ex” da ex-sistência. ção humana. A co-existência é a forma específica pela qual o ser humano é no mundo, ou seja, seu ser é Algumas considerações finais sempre lançado num mundo de existentes. O Se atentarmos bem para o que Simmel nos desvelar do ser é, deste modo, a descoberta da co- oferece, perceberemos que o tempo socialmente existência. O tempo compartilhado corresponde- programado das tarefas coletivas, rituais, celebra- ria, assim, ao programa cultural no qual nascemos, ções, o tempo do calendário, relaciona-se intima- um tempo recebido de nossos ancestrais e que nos mente com essa dimensão temporal mais funda- capacita a fazer face à morte. “Fazer face”, aqui, mental em que o próprio existir vem à tona. A esse possui um duplo sentido, indicando tanto a neces- respeito podemos dizer que o ser a que apenas o sidade de afastar a morte de nosso horizonte ser humano pode ter um acesso fundamental não imediato quanto o fato de, assim procedendo, é terreno de um cogito nem de um cogitatum darmos à morte uma face: a nossa própria. Por originário, não é âmbito da agência nem da estru- meio da ação coletiva, da celebração, do desenvol- tura. Sua futuridade, seu caráter extático o desti- vimento da fala, da escrita, dos instrumentos, nam ao mundo, e este destino lhe é essencial. afastamos do nosso horizonte existencial imediato Qualquer impulso metafísico no sentido de uma a nossa possibilidade mais íntima e fundamental. A busca de originalidade tanto do lado do cogito determinação do tempo através de um calendário como do cogitatum é incapaz de compreender este de rituais, trabalho, lazer, constituiria uma resposta simples fato. A este respeito Heidegger (1987, p. existencial à nossa própria mortalidade. A observa- 79) comenta na sua Carta sobre o humanismo: ção dessa ambigüidade é importante para perce- bermos como seria possível um posicionamento Chamar a atenção para o “ser-no-mundo” como em relação tanto à tradição que localiza o tempo traço fundamental da humanitas do homo huma- no âmbito da ação coletiva quanto àquela outra nus não significa afirmar que o homem é apenas que procura compreender sua condição de possi- um ser “mundano”, no sentido cristão; portanto, bilidade no plano dos indivíduos. O tempo com- um ser afastado de Deus e, até, desligado da partilhado mostra-se, segundo esta perspectiva, “transcendência”. Com esta palavra pensa-se o como a outra face do reconhecimento de nossa que mais claramente foi denominado por trans- futuridade, de nosso ser-para-morte; sem esse cendente. [...] “Mundo” [...], na expressão “ser-no- “esquecimento” não existiria recuperação (desve- mundo”, não significa, de maneira alguma, o ente lamento) possível do significado de nosso ser terreno, em oposição ao celeste, nem mesmo temporal. “mundano” em oposição ao “espiritual”. “Mundo”, O mito de Prometeu-Epimeteu é aqui escla- naquela expressão, não significa, de modo algum, recedor, como observa Bernard Stiegler no seu La um ente e nenhum âmbito do ente, mas a abertura technique et le temps: “Trata-se do tempo em que do ser. O homem é e é homem, enquanto é o ex- os deuses existiam, mas onde as raças mortais sistente. Ele está postado, num processo de ultra- ainda não existiam.” (Platão, Protágoras, 320d, passagem, na abertura do ser, que é o modo como apud Stiegler, 1994, p. 195). Encarregado de proce- o próprio ser é; este projetou a essência do der à distribuição das virtudes entre os seres de
  • 14. 116 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 N o 44 forma a que cada um não venha a se extinguir, ram” pode emergir um pensamento que elabora a Epimeteu faz um trabalho rápido porém imprevi- condição ontológica do ser humano (do ser no dente. Ele distribui convenientemente todas as mundo) como eminentemente temporal. A futuri- virtudes existentes entre os seres vivos, de forma dade e a mortalidade do ser emergem como que esses possam preservar sua própria existência, elementos ontológicos fundamentais numa socie- mas esquece do ser humano que se torna desam- dade cujos indivíduos confrontam a todo momento parado diante do mundo natural. Cabe a Prometeu a obsolescência dos programas culturais e técnicos reparar o erro do irmão. “Então Prometeu, vítima — âmbito do seu ser social. Como Baudelaire, do embaraço de descobrir que meio ele encontra- poderíamos dizer que pensar o moderno é pensar ria de salvaguardar o homem, rouba de Hefaisto e de forma a captar a pretensão à “eternidade” de um Atena o gênio criador das artes, roubando o fogo mundo e uma forma de viver eminentemente (pois sem o fogo não existiria meio de ninguém fugazes. adquirir o gênio ou de utilizá-lo); e é procedendo É por ser sensível ao que há de dramático deste modo que ele dá ao homem um presente.” neste tipo de configuração histórica que Simmel (Platão, idem). Os programas culturais, a história nos proporciona um referencial teórico que alarga dentro da qual o ser humano é “jogado”, devem ser as fronteiras do pensamento sociológico. entendidos a partir dessa alegoria do sentido da técnica. Trata-se de um presente ambíguo que nos NOTAS capacita a preservar nossa própria vida (e os programas técnico-culturais constituem aqui, obvi- amente, a própria dádiva da sobrevivência para 1 Este trecho corresponde a uma transcrição de Heinz este ser desprovido de virtudes) ao mesmo tempo Maus das palavras de Ernst Bloch. Aparentemente, Bloch era ainda mais ácido em sua crítica, como observa que lhe revela sua mortalidade. Evaristo de Moraes Filho na sua introdução a Georg Todo convívio social pressupõe um progra- Simmel (Moraes Filho, 1983, p. 13). ma cultural, uma tradição dentro da qual nós 2 Assim, por exemplo, em um de seus ensaios mais compreendemos o nosso presente como uma de- populares, Simmel conclui que a ajuda ao pobre é explicada não pela força de algum tipo de abnegação ou terminação do passado. Se é certo que essa deter- altruísmo daqueles que são mais afortunados, mas para minação constitui a chave para recuperarmos a que este último grupo possa manter a estabilidade de verdade do ser, não é menos verdade que um tal sua identidade comunitária. presente se imobiliza dentro de uma tradição que 3 Uma tradução deste título para o português traz alguns nos impede de ver a futuridade e indeterminação problemas. A palavra Anschauung, comumente traduzi- da como “visão” (como em Weltanschauung: visão de inerentes a este presente. E é a tarefa do pensar mundo), possui, na tradição kantiana, ainda o sentido “retomar” um tal presente e sacudi-lo de sua de “intuição”, ou seja, uma apreensão não conceitual da imobilidade, revelando no ser humano o que é realidade. O título poderia, assim, ser traduzido como Visão da vida. Quatro capítulos metafísicos, ou Intuição fundamental: o acesso ao ser como transbordar de da vida. Quatro capítulos metafísicos. si em si próprio. 4 Tomo emprestada esta citação da excelente introdução Não cabe nos determos mais no significado que Jean-Louis Villeiard-Baron faz ao Philosophie de la da contribuição heideggeriana. Uma tal incursão modernité (Simmel, 1990, p. 9). nos levaria para além dos limites deste ensaio. 5 A respeito da crise do historicismo alemão ver Heide- Interessa-nos, entretanto, localizar tal contribuição gger, Dilthey, and the crisis of historicism, de Charles Bambach (1995). e as possibilidades críticas que ela abre dentro do terreno já demarcado, em grande medida, pela 6 Cf. Heidegger (1993, p. 279): “[...] na pre-sença [Dasein], há sempre algo pendente, que ainda não se tornou ‘real’, contribuição simmeliana. É à modernidade e seu como um poder-ser de si mesma. Na essência da dinamismo que devemos sempre retornar para constituição fundamental da pre-sença reside, portanto, compreender o sentido e a radicalidade que um tal uma constante inconclusão. A não totalidade significa o pendente do poder-ser.” pensamento testemunha. Apenas porque as fron- teiras entre passado, presente e futuro se “indefini-
  • 15. DA VIDA AO TEMPO 117 BIBLIOGRAFIA __________. (1957), Brücke und Tür: Essays des Philo- sophen zur Geschichte, Religion, Kunst und BAMBACH, Charles R. (1995), Heidegger, Dilthey and Gesellschaft. Stuttgart, K.F. Koehler Verlag. the crisis of historicism. Londres, Cornell Uni- __________. (1968), The conflict in modern age and versity Press. other essays. Nova York, Teachers College DURKHEIM, Émile. (1921), Les formes élémentaires de Press, Columbia University. la vie religieuse. Paris, Presses Universitaires de __________. (1971), On individuality and social for- France. ms. Selected writings. Edited by Donald N. GADAMER, Hans-Georg. (1975), Truth and method. Levine. Chicago/Londres, The Univerisity of Londres, Sheed & Ward. Chicago Press. HEIDEGGER, Martin. (1993), Being and time. Lon- __________. (1978), The philosophy of money. Lon- dres, Blackwell. dres, Routledge & Kegan Paul. __________. (1996), Holderlin’s Hymn the “Ister”. __________. (1986), Schopenhauer and Nietzsche. Bloomington, Indiana University Press. Boston, The University of Massachusetts Press. __________. (1987), Carta sobre o humanismo. Lis- __________. (1990), Philosophie de la modernité. Vol boa, Guimarães Editores. II. Paris, Editions Payot. JASPERS, Karl. (1959), Man in the modern age. Lon- __________. (1991a), “Money in modern culture”. dres, Routledge and Kegan Paul. Theory, Culture & Society, 8, 3: 17-31. KANT, Immanuel. (1929), Critique of pure reason. __________. (1991b), “The problem of style”. Theory, Londres, Macmillan. Culture & Society, 8, 3: 63-71. __________. (1987), Critique of judgement. Londres, __________. (1991c), “The Berlin trade exhibition”. Hackett Publishing Company. Theory, Culture & Society, 8, 3: 119-23. MOARES FILHO, Evaristo de. (1983), “Introdução”, in STIEGLER, Bernard. (1994), La technique et le temps. E. de Moraes Filho (org.), Georg Simmel, São Vol 1: La faute d’épiméthée. Paris, Galilée. Paulo, Ática. NOVALIS, Friedrich. (1997), Philosophical writings. Nova York, State University of New York Press. RICKERT, Heinrich. (1915), Der Gegenstand der Erkenntnis. Einführung in die Transzenden- talphilosophie. Tübigen, J.C.B. Mohr. __________. (1924), Kant als Philosoph der modern Kultur. Ein geschischtphilosophischer Versuch. Tübigen, J.C.B. Mohr. __________. (1930), Die Logik des Prädikats und das Problem der Ontologie. Heidelberg, Carl Win- ters Universitätsbuchhandlung. __________. (1986), The limits of concept formation in natural sciences (abridged version). Londres, Cambridge University Press. RUBANOWICE, Robert J. (1982), Crisis in conscious- ness: the thought of Ernst Troeltsch. Talahasee, University Presses of California. SIMMEL, Georg. (1918), Lebensanschauung. Vier Me- t p y i c e K p t l Munique/Leipzig, Dun- ahssh a i e. cker & Humbolt.