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A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA


            Teresa Castro d’Aire




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INTRODUÇÃO

À semelhança daquilo que foi feito no primeiro volume desta colecção, tentamos oferecer
ao público leitor um momento mais de reflexão sobre a realidade de um grupo de pessoas
que entenderam viver uma sexualidade de sinal contrário. Também este é um tema ao qual
julgamos que um grande número de leitores não irá resistir, seja qual for o seu sexo e a
sua orientação sexual. Porque é um dos maiores tabús da História da nossa Civilização. Um
tabú que engloba um mistério indesvendável.
Tal como já tinha acontecido com os homossexuais masculinos, também elas, as sáficas, ao
longo dos séculos, e salvo raras excepções, se esquivaram a falar sobre a intimidade dos
seus sentimentos e da sua sexualidade.
Tal como se passou com eles, também elas resolveram finalmente quebrar o seu silêncio.
Aceitaram falar um pouco de si, rompendo assim com um secretismo que desde sempre as
vinha acompanhando.
Tiveram aqui a palavra, disseram o que tinham a dizer. Uma delas quis inclusivamente
identificar-se.
São nove entrevistas que se pretenderam informais no tom, mas nem por isso menos sérias
na abordagem das questões, e sobretudo despidas de preconceitos. Também aqui a intimidade
é chamada pelo nome que tem, sem falsos pudores.
Foram entrevistadas mulheres de grupos etários que vão dos dezanove aos sessenta e cinco
anos, com estatutos sócio-profissionais muito diferentes, mulheres diferentes até na cor
da pele, com opções políticas e religiosas muito diversificadas. Estão presentes mães de
família de aspecto conservador e está uma activista política de esquerda. Estão católicas
praticantes, uma delas esteve quase a ser freira, está uma meia-judia, está uma panteísta
e uma ateia confessa.
Nalguns pontos assumem, no entanto, posições convergentes: à semelhança dos homens, todos
elas entendem que a homossexualidade é uma característica que nalguns casos surge logo na
infância, noutros casos só muito mais tarde se revela, mas é qualquer coisa que nasce com
o indivíduo. Há quem tenha tido a sua primeira experiência aos dez anos de idade, há quem
a tenha tido aos quarenta e oito.
Todas elas garantem que as sáficas portuguesas são muitas. Ninguém sabe quantas serão ao
certo, mas de acordo com estes depoimentos são muito mais numerosas do que geralmente se
imagina. Algumas foram ou são casadas, três delas têm um ou mais filhos, outras tantas
gostariam de os ter tido.
Todas elas têm códigos de valores e todas elas fazem conceitos morais da vida.
Todas elas parecem absolutamente libertas de qualquer sentimento de culpa em relação à
sua orientação sexual, todas elas estão perfeitamente satisfeitas com a sua condição de
mulheres e com a sua condição de sáficas.
Um ponto em que parecem discordar: a designação a adoptar. Há as que aceitam com agrado a
palavra lésbica, há as que não querem nem ouvir pronunciá-la.
Quem são elas? Pessoas comuns. Pessoas, apenas pessoas que quiseram falar um pouco de si
próprias. Talvez seja... essa rapariga que vai sentada ao seu lado no autocarro ou no
metro.




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Ana Margarida, 39 anos, bancária.

- Bom, em primeiro lugar, diga-me qual é a designação que prefere: sáfica, lésbica,
mulher homossexual...
- Eu gosto da palavra lésbica, é uma palavra que me soa muito bem, inclusive noutras
línguas, lesbian, lesbienne... mas sei que é uma palavra que não agrada a muita gente,
inclusive às próprias lésbicas.
- Porque será? Tem alguma explicação para isso?
- Bom, a mim parece-me que as pessoas ainda têm muita dificuldade em encarar as coisas de
frente, quer dizer, em aceitar o fenómeno com naturalidade, quando afinal não é nenhum
bicho de sete cabeças. É a coisa mais natural desta vida, faz parte de múltiplas
culturas, desde os gineceus gregos aos harens árabes...
- Está bem, já vamos falar nisso, mas agora preferia que me dissesse alguma coisa sobre
as origens do lesbianismo, no seu caso pessoal. Acha que já nasceu lésbica, ou isso foi
uma coisa que só lhe aconteceu mais tarde?
- Olhe, você está-me a dar imensa vontade de rir com essa pergunta, porque de repente
lembrei-me de uma fulana que eu conheço que diz que se tornou lésbica por causa de uma
anestesia geral. Ela conta que não tinha nenhuma espécie de tendências, nem nunca tinha
pensado em semelhante coisa, e que um dia foi operada a uma apendicite, e acordou
lésbica. Diz que quando acordou da anestesia olhou para a cara da médica anestesista e de
repente apaixonou-se por ela. Você acha que isto pode acontecer a uma pessoa?
- Realmente é um bocado esquisito...
- Pois é... eu não acredito. Olhe, no meu caso eu acho que foi de nascença. Aliás, a mim
parece-me que é sempre de nascença. Algumas mulheres demoram é uma data de anos a
descobrir a coisa dentro delas. Estou-me a lembrar de uma frase da Jill Johnston “Todas
as mulheres são lésbicas, à excepção daquelas que ainda não o sabem”. E é perfeitamente
natural que levem algum tempo a descobrir, repare que toda a educação que recebemos desde
que nascemos é uma educação aparentemente inspirada nos valores heterossexuais, mas no
fundo cheia de convites à homossexualidade, às vezes muito subtis, mas que estão lá, para
quem os quiser ver. Repare na Barbie, por exemplo. A beleza feminina para agradar aos
homens, não é? Mas antes de agradar aos homens, é para agradar a quem? Às meninas de
cinco anos...
- Quer dizer que as Barbies podem ajudar a estimular as tendências lésbicas das meninas
de cinco anos?
- Como milhares de outras coisas. Tudo aquilo que as ajuda a desenvolver ajuda a
desenvolver todas as suas vertentes, a vertente lésbica também, porque é que havia de ser
uma excepção?
- Disse-me que no seu caso é de nascença?
- Bom, se quer que lhe responda muito seriamente, eu acho que em tudo na vida sou a
conjugação de três factores: sou uma herança genética, e a esse nível eu acredito que
nasci com predisposição para ser lésbica, depois sou o produto da minha educação, de
todas as influências que o mundo exterior pode ter exercido sobre mim, e é claro que
existiram muitos factores que me encaminharam nesse sentido, e em terceiro lugar sou
também o resultado de um acto de vontade, ou seja, eu sou lésbica porque quero, e se
quisesse deixar de o ser deixava de o ser nesse mesmo momento. Se a coisa passasse a ser
obrigatória, por exemplo, aí eu de certeza que me passava para o outro lado, porque do
que eu gosto mesmo é de transgredir, de fazer as coisas todas ao contrário. Mas pronto,
quando eu tinha cinco anos havia uma amiga da minha mãe que tinha uns olhos muito pretos,
com umas grandes pestanas, que já nessa altura me deixava perturbadíssima. Aos oito anos
estava perdida de amores, irremediavelmente perdida, pela minha professora da segunda
classe. Nem dormia de noite, está a ver?
- E foram sempre mulheres mais velhas?
- Nessa altura sim. Bem vê, as miúdas da minha idade não tinham gracinha nenhuma, nem
tinham maminhas nem nada...
- Quer dizer que nessa altura você já pensava nessas coisas?
- Pensar... talvez não pensasse, mas no subconsciente acho que já gostava. Sempre achei
que as mulheres eram muito mais bonitas que os homens.
- E não acha que essa sua atracção por mulheres mais velhas possa ter estado ligada a
algum trauma, alguma má relação familiar, uma procura de uma figura materna substituta?


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- Pois, o Freud é que disse essas coisas, não foi? Mas não é verdade. Pelo menos no meu
caso. Não foi nada disso que aconteceu. A minha mãe não era uma personalidade que me
provocasse traumas, até nos dávamos mais ou menos bem. Às vezes discutíamos por isto ou
por aquilo, mas nada de grave. Nunca me maltratou, nunca me desleixou mas também nunca me
sufocou, está a ver?
- Bem, então e depois? Como é que foi a sua adolescência?
- Aí foi um bocado mais complicado. Tive uma grande paixão por uma rapariga de uma outra
turma, mas houve uma cabra de uma colega que nos apanhou um bilhetinho, levou para casa
para mostrar à mãe, a mãe foi falar com a reitora, foi uma fita... estávamos a ver que
eramos expulsas.
- Então e depois?
- Depois? Então, eles primeiro acharam que aquilo era tudo uma anormalidade, o meu pai
esteve dois meses sem me falar, mas depois a minha mãe teve uma conversa comigo e lá me
convenceu que o melhor que tinha a fazer era ganhar juizo.
- Ganhar juizo?
- Pois, quer dizer, ser igual a toda a gente... fui a festas com rapazes, dancei com
eles, ainda namorei com dois ou três...
- E então?
- Então, olhe, era superior às minhas forças. A voz deles eu ainda suportava. Aliás ainda
hoje gosto de mulheres de voz grave. Quando se esganiçam começam-me logo a irritar.
- Mas os rapazes?
- Ah, pois, era a barba que me incomodava, era o cheiro deles que me dava vómitos, acho
que era uma aversão visceral. E depois eram as bazófias, estavam sempre à espera que as
raparigas ficassem ali embevecidas a olhar para eles, horrorosos, cheios de borbulhas...
e elas ali, deslumbradas, horas esquecidas a ouvir-lhes as palermices.
- Mas disse-me que também tinha namorado...
- Pois foi...
- E nunca se deitou com nenhum deles?
- Deitei. E este até era docinho, quer dizer, não foi delicioso, mas também não posso
dizer que fosse assim uma coisa insuportável. Fisicamente, quero eu dizer. O problema que
se pôs foi mais um problema psicológico. Eu não conseguia aceitar ficar na posição de
“objecto dominado”. Se calhar era a minha personalidade que era muito forte, talvez haja
em mim um excesso de amor-próprio, independência, chame-lhe o que quiser. Eu por mim
chamo-lhe auto-estima e rebeldia, e não me envergonho disso nem um bocadinho, sabe, sou
assim uma espécie de Lilith.
- Lilith?
- Pois, foi a primeira mulher do Adão, não sabia?
- Não, desculpe, mas acho que nunca ouvi falar. Está na Bíblia?
- Não, não está, quer dizer, já deve ter estado, no livro de Génesis, acho eu, mas
tiraram-na. Agora só está no Talmude. Foi a primeira mulher a rebelar-se contra o poder
masculino. Chateou-se com o Adão e deixou-o, foi-se embora.
- Essa é gira...
- Pois, mas olhe que é uma personagem muito venerada entre nós, é uma espécie de
protectora, de “fada madrinha” de todas as lésbicas.
- Então e você diz que é uma espécie de Lilith?
- Pois, sabe, no dia em que me deitei com o tal rapazinho, a certa altura apeteceu-me
trocar de posição, de forma a que o meu corpo ficasse por cima do dele. E não era por
mais nada, era só para experimentar, mas ele amuou, e o namoro acabou ali.
- E depois? Não teve outros namorados?
- Tive, até havia um que vinha de Sintra todos os fins de semana só para me ver.
- E fazia amor com ele?
- Não, com este por acaso não fiz. Quer dizer, havia uns beijinhos e umas coisas assim.
Mas não valia a pena, era tempo perdido.
- Não gostava?
- Quer dizer, não gostava muito, mas o problema que se punha continuava a ser sobretudo
um problema psicológico. Eu era rebelde demais para aceitar o poder do macho, é uma coisa
que me irrita que não tem explicação. Mas até descobrir, até conseguir mergulhar até ao
mais profundo de mim própria ainda demorou algum tempo, e ao todo ainda cheguei a ter uns
três ou quatro namorados diferentes, salvo erro. Uma vez tive um que era um espertalhão.


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Representava o papel do homem inseguro, que é uma coisa que eles sabem que as mulheres
não resistem, e nesse aspecto eu não fujo à regra. Fazia-se frágil, sabe como é, e eu com
os instintos maternais todos a sairem-me cá para fora. Só ao fim de dois meses de namoro
é que percebi que ele era igualzinho aos outros, aquilo era tudo ronha, era tudo um jogo
para me fisgar. Eu fisicamente sou gira, porque é que não hei-de admitir uma coisa que é
verdade? Tenho este nariz de judia um bocadinho grande mas sou gira, e sobretudo sou
filha única e os meus pais tinham bastante dinheiro, está a ver? Acho que era por causa
disso.
- Quer dizer que nunca foi rejeitada pelos homens?
- Olhe para mim. Acha que sim?
- Não, francamente, acho que não.
- Pois não.
- E os seus pais, entretanto? Conformaram-se?
- A minha mãe já não é viva. O meu pai nunca me falou no assunto, acho que é mais fácil
para ele fingir que não sabe. O meu pai é uma pessoa assim, quando as coisas o incomodam
prefere não falar nelas. Ele é judeu, e a minha mãe era católica, de maneira que em minha
casa nem se ia à Missa, nem se celebrava o Sabbath, pronto, ele às vezes vai à Sinagoga,
a minha mãe quando queria ia à Igreja, mas pronto, lá em casa não se discutia religião,
que era para ninguém se chatear.
- Olhe, e uma noção de pecado ligada à sua sexualidade, nunca teve?
- Bom, eu prefiro não pensar muito nisso, porque você repare: por um lado a minha mãe
ensinou-me que existe um Deus, que é o Deus dos Cristãos, que não nos deixa fazer nada
destas coisas. Por outro lado eu também “herdei” um outro Deus, que é o Deus de Israel,
que também não acha graça nenhuma à brincadeira, de maneira que eu vou vivendo a minha
vida, e quando morrer logo converso com eles.
- Olhe, falou-me de instintos maternais, nunca pensou em ter uma criança? Não gostava?
- Quer dizer, lá gostar, gostava, mas é muito complicado, e também tinha de ter um modo
de vida completamente diferente, tinha de ter muito mais tempo livre. Talvez um dia, se
os processos de adopção forem simplificados, talvez um dia pense em adoptar uma criança.
- Olhe, agora gostava que me contasse alguma coisa sobre as práticas sexuais...
- Entre mulheres?
- Sim, não sei se quer responder...
- Claro, não tenho problema nenhum, mas não há assim muito para contar. Fazemos aquilo
que nos apetece, não há muitas regras...
- E pruridos...
- Eu cá não tenho nenhuns. Mas há mulheres que têm. Aquelas muito machonas, sabe como é?
São umas chatas, não gostam disto, não gostam daquilo, eu não tenho pachorra nenhuma.
- As machonas são complicadas, é isso?
- É um bocado. Conheci uma que queria vir para a cama comigo e não se queria despir. E no
entanto ela gostava de sentir a minha nudez, está a ver? É por essas e por outras que eu
não gosto de “sapatonas”, gosto muito mais de “sandalinhas”. Mas há uma outra coisa que
eu gostava de explicar: é que as machonas são muitas vezes caricaturas de homens, e
caricaturas grosseiras, dão muito nas vistas, e pela negativa, eu reconheço isso, mas são
uma minoria. A grande maioria das lésbicas que eu conheço, aquelas com quem me dou, as
minhas amigas, são mulheres iguais às outras, vestem-se como as outras, usam cabelos
bonitos e tratados, não fumam à rufião, muitas delas são mulheres casadas e mães de
filhos, na maioria casos os maridos nem sonham.
- Você está a dizer que as mulheres casadas e mães de filhos deste País gostam de se
deitar com outras mulheres?
- Muitas delas gostam sim senhora. E os maridos nem lhes passa pela cabeça.
- Mas isso é só no Jet-Set, não?
- Que ideia, é em todos os níveis sociais. É claro que num nível mais elevado as pessoas
têm mais a noção daquilo que estão a fazer, mas até na província, você nunca viu nos
bailaricos como elas gostam de dançar umas com outras?
Olhe, aqui há uns tempos atrás eu assisti a uma actuação de um grupo de folclore, acho
que era um grupo do Norte, e então havia uma dança que era a “Dança da Matilde” que era
dançada só pelas mulheres. Elas vinham convidar as mulheres que estavam na assistência,
de forma que eu também fui, dancei com uma rapariga ainda novinha, por acaso até era
muito gira, e então essa dança era uma coisa mais ou menos assim:


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“Oh Matilde sacode a saia,
  Oh Matilde levanta o braço,
  Oh Matilde dá-me um beijinho,
  Oh Matilde dá-me um abraço.”

Elas punham-se sentadas sobre os calcanhares e dançavam viradas umas para as outras,
ainda hoje quando me lembro disso acho que foi uma das coisas mais lesboeróticas que eu
já vi na minha vida.
- Eu estou a falar a sério. Você acha que elas dançam umas com outras e estão a pensar
nisso?
- Ora bem... a pensar nisso talvez não estejam, eu acredito que nem lhes passe pela
cabeça, mas que a dança existe, isso, e que elas gostam de a dançar, lá isso gostam. E
tudo isso é perfeitamente natural, não é nenhuma coisa esquisita.
- Mas isso não quer dizer que sejam lésbicas.
- Pois não, sou só eu é que sou... a única diferença entre mim e elas é que eu tenho
consciência do meu lesbianismo e elas não. A união dos sexos opostos só serve mesmo para
fazer meninos, porque o prazer, o verdadeiro prazer, prazer sensual puro e simples, é com
os nossos iguais que o obtemos. Você veja lá se na África Negra, e no Norte de África, e
na Índia, os homens não andam de mão dada na rua. Você já viu coisa mais homoerótica do
que um grupo de escoceses a tocar gaita de foles, e a dançar em cima das espadas? E os
russos, não se beijam na boca? E ninguém tem que ver nisso nenhuma anormalidade, são
necessidades naturais e perfeitamente saudáveis do ser humano.
- Bom, mudando de assunto. Existem lésbicas prostitutas?
- Eu só conheci uma, acho que é uma coisa que quase não há. Não iam ter muita clientela,
julgo eu, porque não é o tipo de coisa que apeteça comprar. Só se forem os homens, e eu
sei que há homens que pagam para ver, e para entrar no esquema, mas parece-me que acabam
por “comprar um produto falsificado”. Porque o lesbianismo é um fenómeno que se
caracteriza justamente pela ausência do elemento masculino. No momento em que há uma
presença masculina deixa de acontecer o lesbianismo genuíno, é outra coisa qualquer, pode
ser uma representação teatral, um número de circo...
- Regressando à questão sexual, disse-me que não tinha pruridos...
- Nenhuns.
- Sexo oral também?
- Claro, quer dizer, não é uma obrigação, mas é o melhor de tudo.
- Assim com uma mulher qualquer?
- Eu nunca me deitei com nenhuma que fosse “uma mulher qualquer”. Para mim eram todas
especiais, pelo menos naquele momento. Por isso nunca vi motivos para evitar ou para não
fazer aquilo que me apetecesse.
- E com os homens, nunca fez?
- Não. Só eu é que sei o nojo que tenho das pilas dos homens. Pois se eu não como
salsichas, não como bananas...
- Também lhe metem nojo, é?
- Enfim, seja por uma questão estética, se quiser. Em contrapartida houve uma amiga minha
que esteve uma vez nos Açores, e trouxe de lá uma coisa a que chamam as cracas, é um
molusco da família das lapas que eles cozem em água do mar, chupa-se directamente com a
boca, e tem uma espécie de algas que parecem uma penugem à volta, tem um sabor como o do
caranguejo, e deve ter sido a coisa que até hoje mais prazer me deu a comer.
- Mas isso está à venda aqui no continente?
- Não, eu até lhe sugeri que montasse um comércio de importação do dito molusco, o
sucesso era garantido. Cá para mim ela ia ter dificuldade era em responder às encomendas.
Eu estou a imaginar a cena, a malta aqui do continente toda a encomendar as cracas, eles
lá nos Açores a escavarem as rochas, ainda eram capazes de afundar o arquipélago...
- ...
- Acha que os seus leitores vão ficar escandalizados com o que eu disse?
- Se ficarem, paciência, isto são livros para adultos. Bom, mas com isso tudo o que você
quer dizer é que os genitais femininos não a enojam. É isso?
- Não, francamente, quer dizer... depende da mulher, claro, mas as mulheres com quem me
deitei nunca me enojaram.


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- E foram muitas?
- Algumas, sei lá, umas dez ou quinze, talvez... não foram muitas mais. Mas isso foi nos
tempos gloriosos em que eu não tinha juízo.
- E doenças venéreas? Nunca apanhou?
- Olhe, talvez não acredite, mas realmente nunca apanhei. Para já penso que essas coisas
se tornam menos contagiosas entre mulheres, e depois também devo ter tido um bocado de
sorte.
- E objectos? Nunca usou?
- Os objectos chamam-se dildos. Até sei de uma pessoa que os faz em casa, em silicone,
montou uma espécie de indústria caseira, até se pode escolher a cor, e parece que está
farta de fazer dinheiro. Mas a maior parte da clientela não são lésbicas, pelo menos pelo
que ela me contou.
- Então?
- Então, são gays, são homens impotentes, são mulheres casadas que não estão para aturar
os maridos...
- E você?
- Já experimentei, mas francamente não acho que façam falta nenhuma. Não sou uma
entusiasta. Prefiro usar os meus próprios recursos naturais e... a inspiração do momento.
- E “ménages à trois” ?
- Também já experimentei, e a quatro, e não é desengraçado, até é giro, tudo às escuras,
quando a gente começa a encontrar maminhas, e rabinhos, e “passarinhas”, e ninguém sabe
de quem é o quê, mas é só isso, é só para se “curtir”, para se passar um bocadinho
agradável. Não é para viver o verdadeiro amor.
- E o 69? Já agora...
- Também já experimentei, a gente nesta vida tem de experimentar um bocadinho de tudo,
não é? Mas também não acho que seja uma grande invenção. É muito complicado, sabe, acabam
por acontecer duas sensações, dois prazeres muito fortes ao mesmo tempo, e a gente para
se concentrar num deles acaba por se distrair do outro... eu por mim prefiro que as
coisas vão acontecendo uma de cada vez, sem pressas, saboreiam-se melhor, e dura muito
mais tempo. E é o melhor de tudo. Eu agora vivo com esta minha amiga há já algum tempo,
há um ano e meio. Antes dela tinha uma outra namorada, mas perdi a cabeça com
a ........., foi assim uma paixão... e nunca me senti tão bem como me sinto agora.
Estamos horas e horas, só a sentir a pele uma da outra, às vezes já nem há onde dar mais
beijos, e talvez não acredite, mas temos noites em que nem fazemos sexo nem nada, é só o
gozo de estarmos ali a sentir aquela doçura, o cheiro uma da outra, que é uma coisa
deliciosa, e a dizermos coisas bonitas, assim uma baboseiras muito patetas mas que nos
fazem sentir muito bem. Depois paramos, fumamos um cigarro, recomeçamos, às vezes ao fim
de semana é até de manhã.
- E os bares?
- Há uma data deles em Lisboa, noutros sítios não conheço, mas também deve haver. Uns têm
um aspecto assim melhorzinho, outros são muito deprimentes, mas se calhar também são as
pessoas que os tornam deprimentes. Há um que tem umas “matinés dançantes” muito kitch que
dão pelo nome de “bailinho dos bombeiros”. Eu não vou lá por todas as razões, e também
porque é daquela fulana que canta, que é a Dina, e eu acho a fulana um nojo. Uma fulana
que tem um bar gay e que a seguir vai fazer o hino para um partido que se não é nazi,
para lá caminha... eu se pudesse enfiava-lhe era um penico cheio de uma coisa que eu cá
sei pela cabeça abaixo.
- Você acha que ela não tem o direito de pensar à direita?
- Tem, claro, estamos em democracia, não é? Eu acho que a Dina tem todo o direito de
pensar à direita, e de ser paga para fazer cantigas para a direita, e de cantar mal, e de
ser pirosa, e de cantar aquelas músicas da cor de corno, agora eu é que também tenho o
direito de não ir ao bar dela nem comprar os discos dela. Não lhe dou um tostão que seja
a ganhar.
- Dá a impressão que há qualquer questão, qualquer problema pessoal entre si e ela...
- Que ideia, só a conheço de vista, nem nunca falei com ela, e há uns anos atrás eu ia lá
ao bar, depois deixei de ir, e a única vez que lá fui recentemente até me trataram bem,
quer dizer, trataram-me normalmente, pronto, não tenho nenhuma razão de queixa, isto que
eu digo é só porque acho que as pessoas não se podem esquecer dos campos de concentração
e dos triângulos cor-de-rosa, e eu acho que uma pessoa como a Dina, seja ela homossexual


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ou não, isso eu não sei se ela é, nem me interessa, mas que ganha a sua vida num bar gay
a cantar para as lésbicas, não tem o direito de fazer cantigas para um PP. Você não pode
frequentar a Igreja e também a Sinagoga, tem de escolher, não pode servir a dois
senhores. Portanto isto que eu disse não tem a ver com nenhuma questão pessoal, é uma
questão política. E eu até sou uma pessoa moderada, se quer que lhe diga costumo votar no
PS.
- Mas tem outros locais de encontro?
- Claro que sim. Tenho uns jantarinhos que a gente às vezes faz em casa de umas e de
outras, é muito mais giro. Estamos muito mais à vontade e divertimo-nos muito mais,
dançamos como queremos, não há “mirones”, é muito melhor.
- O panorama não parece mau... dá ideia que há muitas pessoas como você que não só se
sentem muito bem na sua pele, como vivem uma vida de alegres folionas...
- Algumas estão bastante bem, mas não se iluda. Há muitos problemas por resolver, nem
tudo está tão simplificado, nem tão desmistificado. Há algumas que vivem situações
verdadeiramente dramáticas, com problemas de auto-estima, problemas na família, problemas
económicos, problemas no emprego, situações até jurídicas, quando entram em ruptura com
os maridos, por causa da tutela dos filhos, eu sei de uma que raptou o miúdo três
vezes... há situações que são um verdadeiro inferno. Eu própria passei por uma situação
muito complicada. Foi um emprego que tive em que o patrão se lhe meteu na cabeça que
havia de vir para a cama comigo. Aliás acho que era norma lá na empresa. Um belo dia já
estava tão farta daquele jogo do gato e do rato que resolvi dizer-lhe a verdade, julgava
eu que era uma maneira de ele me deixar em paz. Eu tinha vinte anos, está a ver?
- Então e depois?
- Ele ficou doido, disse-me que era mais uma razão, ele “tinha de me possuir”. Foi uma
chatice, mas felizmente tive um bocado de sorte, porque de repente abriu concurso para
umas vagas aqui no Banco, e eu fui prestar provas e fui admitida. É engraçado porque eu
acho que o gerente aqui do Balcão é gay, ele nunca me disse, e até é casado e tudo, mas
eu desconfio imenso, de maneira que é optimo, não é o melhor emprego do mundo, mas pelo
menos não tenho pirilaus a saltarem-me para cima.
- Bom, eu acho que não resisto a perguntar-lhe o que é que pensa do caso Bobbit.
- Acho que não tem propriamente muito a ver com lesbianismo, mas acho que ela teve toda a
razão. Se eu mandasse, todos os violadores eram punidos com a castração.
- E as mulheres violadoras?
- Arranjaria uma pena equivalente. Ninguém tem o direito de violar ninguém.
- Para acabar, uma história engraçada que lhe tenha acontecido. Não se lembra de nenhuma?
- Lembro-me de uma vez ter ficado escondida debaixo de uma cama... mas lembro-me de outra
mais gira. Foi uma rapariga que eu conheci, e ainda andámos juntas uma semana, ou coisa
parecida, e de repente descobri que ela era minha prima. Já não nos víamos há mais de
vinte anos, mas era minha prima.




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Luciana, 51 anos, dona de casa.

- Para começar, Luciana, qual é a designação que prefere? Prefere a designação de mulher
homossexual, prefere a designação de lésbica?
- Prefiro a designação de mulher homossezual porque a palavra lésbica é um bocado
chocante.
- Em que altura da sua vida é que a Luciana encontrou a homossexualidade dentro de si?
Quando é que isso aconteceu, e em que circunstâncias?
- Foi durante a minha adolescência, talvez por volta dos meus catorze, quinze anos. Eu
estava num colégio interno, um colégio de freiras, só de meninas, e acho que foi lá que a
coisa se foi desenvolvendo progressivamente.
- Olhe, e como é que isso foi vivido por si? Teve dificuldades, problemas?
- Ah, sim, foi muito problemático.
- Mas foi problemático porque os outros lhe causaram problemas, ou os problemas estavam
dentro de si?
- Estavam dentro de mim, acho eu. Havia a questão da religião, aliás elas até faziam uma
certa pressão para eu ficar lá para ser freira, diziam que havia em mim uma certa
propensão para ser religiosa, porque eu era muito meiga, muito submissa, e já se sabe que
se eu fosse para freira elas ficavam com a fortuna toda dos meus pais, que é razoável,
mas depois o meu pai começou a perceber que elas andavam muito de roda de mim e, toscou-
lhes a marosca, e então tirou-me de lá, mas elas não queriam, queriam que eu lá ficasse.
- E a sua família, o que é que diz de tudo isso? Os seus pais ainda são vivos?
- São. E eu preferia que não soubessem, mas acho que eles desconfiam. A minha mãe,
sobretudo, porque é uma pessoa bastante perspicaz, e eu acho que ela já sabe há muito
tempo, só que rejeita, prefere fingir que não sabe, embora já tenha acontecido uma
situação em que houve uma pessoa que tentou fazer chantagem, e ela ficou muito chocada,
mas felizmente foi capaz de dar a volta à situação.
- Olhe, Luciana, agora gostava que me dissesse alguma coisa sobre as origens da
homossexualidade, no seu caso pessoal. Acha que já nasceu homossexual, ou isso foi uma
coisa que só lhe aconteceu mais tarde?
- Acho que se nasce. Acho que é um bichinho que a gente tem cá dentro...
- E os homens, Luciana? Teve muitos namorados, teve poucos, como é que foi?
- Só tive um, que foi o meu ex-marido.
- Quer dizer que a Luciana já foi casada? O que é que o seu ex-marido pensa do assunto?
- Eu acho que ele é um bruto tão completo, apesar de ter uma posição socio-económica de
bastante relevo, mas ele é tão estúpido que nem semelhante coisa lhe passa pela cabeça.
- E porque é que a Luciana casou com ele?
- Acho que fui mais ou menos “forçada”.
- Mas porquê? Estava grávida?
- Que ideia, estava completamente virgem.
- Então?
- Era aquela coisa, “porque é que ela não se casa, toda a gente tem noivo, porque é que
ela não tem”, a minha mãe às vezes dizia “Parece que tens alergia às calças”, mal ela
sabia...
- E teve relações com ele...
- Claro. Mas não gostava.
- E ele? Percebia que a Luciana não gostava?
- Ai, eu acho que sim. Eu tinha uma repugnância pelo cheiro dele... era-me muito
desagradável, às vezes nem dava para disfarçar. De maneira que tive de me separar.
- Foi sorte não ter tido filhos.
- Mas eu tive, tive dois filhos.
- E eles sabem?
- Não.
- Olhe, e pensa dizer-lhes algum dia?
- Ao mais novo, sim. Ao outro não. Ele não tem sensibilidade nem capacidade mental para
entender.
- E se um dos seus filhos fosse homossexual, como é que a Luciana reagia?
- Aceitava, pois com certeza.
- Luciana, você considera-se uma mulher masculina?


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- Não, de maneira nenhuma, sou até muito feminina e é assim que eu gosto de ser.
- E costuma agradar aos homens?
- Acho que sim, pelo menos pela maneira como eles às vezes olham para mim, fazem um ar
mais guloso...
- E se pudesse mudar de sexo, mudava?
- Jamais!
- E se pudesse de repente passar a ser heterossexual, passava?
- Não, também não.
- Olhe, e práticas sexuais? Fala-se às vezes de mulheres homossexuais que são activas, e
de outras que são passivas, acha que é verdade?
- Acho que depende, não é, vai tudo da disposição do momento, e da parceira que se
encontra pela frente. Eu pela minha parte tanto gosto de ser uma coisa como outra, sou
uma coisa e outra conforme me apetece.
- E acerca dessa história do orgasmo vaginal e do orgasmo clitoriano, o que é que me diz?
- Digo-lhe que existem ambos, mas talvez para mim o clitoriano seja o mais intenso.
- Luciana, o que é para si um orgasmo?
- Não lhe sei descrever. É tão bom, tão bom... não lhe sei explicar melhor.
- Olhe, e uma sensação de pecado ligada à sua tendência mais íntima?
- Pecado?
- Sim, quer dizer, a ideia de um Deus que amanhã possa vir a puni-la, porque no fundo a
Luciana recebeu uma educação muito religiosa, e hoje é uma pessoa que transgride...
- Não, não acredito. Deus é pai, e compreende tudo, nunca me vai pedir contas por isto.
- Olhe, e experiências amorosas com mulheres? Muitas?
- Uma só, que é a mulher com quem vivo hoje. Nunca me tinha deitado com outra, nem penso
deitar. Seria impensável.
- Pelos vistos valeu a pena...
- Ah, sim, sem dúvida nenhuma.
- E não pensa voltar-se nunca mais para os homens?
- Ah, não, eu tive uma vida de casada que foi extraordinariamente traumatizante, porque o
meu ex-marido é uma pessoa com um perfil muito difícil, e o meu filho mais velho também,
porque é a “fotocópia” do pai mas ainda é pior, é do género de partir coisas, e de atirar
com tachos à parede, eu fui várias vezes parar ao Hospital Ortopédico, uma vez com um
braço partido, outra vez com o queixo partido...
- Ouça, quer dizer que apesar de não gostar do seu marido, nem do contacto com ele, se
ele não fosse agressivo, apesar de tudo a Luciana talvez não o tivesse deixado?
- Olhe, não sei. Porque por um lado uma mulher divorciada às vezes ainda é um bocado mal
vista, e qualquer um julga que lhe pode faltar ao respeito, e também tinha os filhos
pequenos, e depois também havia a questão religiosa. Eu sabia que ele também não gostava
de mim, se gostasse de mim não me batia, aliás eu hoje acho que ele só casou comigo por
causa do dinheiro, e acho que fiz muito bem em deixá-lo, mas nessa altura achava que
tinha de levar aquela cruz, mas por outro lado a sensação de mal estar que eu tinha ao pé
dele era tão forte que era capaz de o ter deixado na mesma.
- Mas enquanto durou o seu casamento nunca se sentiu atraída por outro homem?
- Nem homem nem mulher, eu não sou mulher para ser infiel, seja em que circunstâncias
for. Nem em pensamentos.
- Costuma-se dizer que a carne é fraca...
- Pois será, mas não a minha. Eu sei muito bem o terreno onde piso.
- Você dá-me um bocado a impressão de também ter tido azar com o marido que lhe calhou...
- Ah, sim, ele era um bruto, repare que eu nem um beijo sabia o que era, um beijo como
deve ser, mas mesmo que não fosse, e eu admito que haja homens diferentes do meu, depois
de experimentar uma mulher já ninguém se volta outra vez para os homens.
- A Luciana sabe que há mulheres que usam objectos de borracha. O que é que pensa disso?
- Penso que é uma parvoíce. Pois se eu tive um ao natural e não gostava... não gostava do
formato, não gostava do aspecto, não gostava do cheiro... não achava graça nenhuma,
fazia-me uma impressão horrorosa, para que é que eu vou querer uma cópia, se não gostei
do original? Em contrapartida quando via uma mulher despida achava que era uma coisa
lindíssima, achava que aquilo devia ser uma delícia.
- Mas não sabia como era...
- Não, não sabia, tive de perguntar à ........., que nessa altura ainda era só minha


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amiga. Não fazia a menor ideia, de maneira que um dia voltei-me para ela e disse-lhe que
ela tinha de me explicar como era, e ela explicou, não sei se está a ver...
- Bom, para acabar, explique-me só como é que uma mulher como você, uma mãe de família de
vestido e colar de pérolas, se decide de repente a assumir uma ligação com uma pessoa do
seu próprio sexo.
- Olhe, foi muito difícil. Muito difícil mesmo. Comecei por ter uma certa relutância, e
sofri bastante até conseguir aceitar aquilo que eu própria sentia, mas havia uma atracção
muito grande pela mulher com quem vivo hoje, a ponto de eu ter chegado a dizer-lhe que
não sabia o que é que se estava a passar comigo. Era uma pessoa que eu já conhecia, nunca
tinha falado com ela mas conhecia-a de vista, e foi muito engraçado porque ia um dia num
comboio e adormeci, e de repente acordei e ela estava na minha frente, e eu olhei para
ela e senti que tinha de ser aquela pessoa, senti que era o amor da minha vida. Entrei
num conflito tremendo comigo própria, porque de facto os homens não me diziam nada, e eu
sempre tinha sentido uma grande necessidade de ternura em relação a outras mulheres,
desde muito novinha, mas nunca tinha levado isso para o plano do amor, e de repente
percebi que estava apaixonada por uma mulher, de maneira que foi um passo muito difícil
de dar, eu suava suores frios, enfim... Hoje ela é alguém que é a continuação do meu
próprio corpo, do meu pensamento, é a única pessoa com quem eu consigo partilhar tudo,
corpo e espírito, e consigo ter com ela uma relação de tranquilidade e de equilíbrio como
uma mulher e um homem nunca conseguem atingir. Eu só tenho pena de não poder dizer isto a
toda a gente, de cara levantada, mas não posso, primeiro porque o meu filho mais novo
ainda é menor, e o meu ex-marido ainda era capaz de arranjar maneira de me levar a
tribunal e de mo tirar. E também ia magoar muito os meus pais, mas daqui uns anos, que o
meu filho seja maior, e esteja preparado para saber a verdade, e se os meus pais já não
estiverem neste mundo, se nessa altura eu tiver a situação financeira desafogada que
tenho hoje, que não precise de trabalhar, nessa altura dou a cara e conto tudo, porque
todas as mulheres precisam de saber, o mal é as mulheres não saberem o bom que isto é,
porque quando elas souberem o mundo dá uma volta, se dá! Isto foi a melhor coisa que eu
descobri na minha vida, eu agora só tenho medo é de morrer e não gozar isto por muitos
anos. Se eu perco aquilo que tenho agora até sou capaz de morrer, não tenha dúvidas,
morro sim! E é por isso que eu digo a todas as mulheres deste País, se não querem ter
problemas não experimentem, porque no dia em que experimentarem com uma mulher nunca mais
querem um homem.




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Joana, 24 anos, hospedeira de terra de uma companhia aérea.

- Joana, em primeiro lugar, qual é a designação que prefere? Lésbica, sáfica, mulher
homossexual?
- Eu não gosto muito de catalogar as pessoas. A palavra lésbica não me agrada
minimamente, não me agrada a mim nem agrada a ninguém, acho eu. Prefiro mulher
homossexual.
- Quando é que a Joana descobriu as suas tendências para a homossexualidade?
- Bom, eu já fui casada três anos, um dia conheci a ............, que estava divorciada,
ela veio viver para minha casa por causa das circunstâncias do divórcio dela, e foi nessa
altura que começou. Já lá vão três anos.
- E foi só nessa altura que deu por isso?
- Não, eu acho que já sabia, só que tinha medo de assumir. Eu nunca tinha encontrado
ninguém que me ensinasse a ver as coisas de outra forma.
- Quer dizer que a sua amiga já se tinha assumido?
- Sim, ela nessa altura até tinha uma amiga, quando eu apareci na vida dela.
- E a Joana, nunca tinha tido uma experiência?
- Não, nunca. Apesar de estar convencida de que no fundo, inconscientemente, nunca quis
outra coisa que não fosse aquilo que tenho agora. Porque os relacionamentos que tive com
os homens de facto nunca me satisfizeram a nível nenhum.
- E na adolescência, como é que foi vivida essa sua tendência?
- Não foi. Nem sequer ao nível do subconsciente.
- Olhe, Joana, e a sua família? Sabem? Aceitam? Como é?
- Sabem, e aceitam, porque se eu não estava feliz com o meu casamento, e de repente eu
encontrei uma pessoa diferente, e as coisas já duram há três anos, e eles vêem que eu
agora ando muito mais feliz, eles compreenderam que eu tenho o direito de ser feliz, seja
com uma homem, seja com uma mulher. Aceitaram muito bem. Ao princípio foram um bocado
renitentes, e é natural, porque isto é uma coisa que nem toda a gente aceita, mas eu abri
logo o jogo, e acho que essa minha honestidade também acabou por ajudar, e por funcionar
a meu favor. Já com a família dela as coisas não são assim tão simples. Eles toleram mas
não aceitam. O pai dela, por exemplo, simpatiza muito comigo e aceita-me muito bem, mas o
resto da família já não me aceita assim tão bem. É uma família muito burguesa, muito
classe média, enquanto que a minha já são pessoas um bocadinho mais modestas, não têm
tantos problemas, e talvez seja por isso.
- Olhe, Joana, você acha que se nasce homossexual, ou isso é uma coisa que se adquire com
o tempo?
- Eu acho que se nasce homossexual, como acho que há muita gente que ainda não descobriu
a sua própria homossexualidade, e não descobriram por causa da sociedade. Eu acho que há
muitos casamentos frustrados como foi o meu, porque as pessoas têm medo de assumir uma
relação homossexual, que é a coisa mais natural deste mundo.
- Disse-me que o seu relacionamento com os homens não foi grande coisa, quer falar um
bocadinho sobre isso?
- Os meus namoros... quer dizer, não é que tivessem corrido mal, pelo menos até uma certa
altura, mas depois de umas semanas as coisas começavam a correr mal. Por exemplo, o meu
segundo namorado, é uma pessoa que eu ainda hoje tenho um carinho muito especial por ele,
eu era capaz de viver com ele o resto da minha vida, mas como irmãos. Isso é uma coisa
que lhes faz muita confusão, pensarem como é que uma mulher se dá ao luxo, e tem o
atrevimento, de não precisar de uma pila para nada.
- E como é que você tem esse atrevimento?
- Tenho. Realmente não preciso dos homens para nada. Eles acham que são uns supra-sumos,
mas eu de facto governo-me muito bem sem eles.
- Olhe, Joana, e filhos? Nunca teve pena de não ter um filho?
- Eu tenho.
- Ai sim?
- Tenho, tenho um filho que é uma graça.
- E tem a sensação de ser uma boa mãe para ele?
- Tenho. Apesar de estar um bocadinho apreensiva em relação ao futuro. Vai haver um dia
em que vou ter de lhe dizer a verdade, e só espero conseguir dizer-lhe na altura certa e
da maneira certa.


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- A Joana considera-se uma mulher masculina?
- Não, nem um bocadinho. Às vezes lá visto umas calças, lá meto uns sapatos mais
desportivos, mas não sou uma mulher masculina.
- E sobre as mulheres muito masculinas, o que é que me diz?
- Bom, eu não aceito isso muito bem, porque eu acho que lá pelo facto de ser ou não
homossexual, uma mulher é sempre uma mulher. No momento em que uma mulher resolve
cultivar um tipo masculino está a desprezar a coisa melhor que tem, que é o facto de ter
nascido mulher. Eu não critico, mas não gosto, como não gosto de ver um homem de saltos
altos e pestanas postiças.
- Olhe, Joana, há um bocado a ideia, sobretudo por parte dos homens, e também de algumas
mulheres, de que as mulheres quando se viram para outras mulheres é porque foram
rejeitadas pelos homens. O que é que tem a dizer sobre isso?
- Eu acho que isso são conceitos que estão completamente ultrapassados. Nem me parece que
haja ninguém hoje em dia a voltar-se para as mulheres porque foram rejeitadas pelos
homens. Hoje em dia uma mulher que resolve “virar” lésbica é porque descobriu a sua
própria sexualidade. Não tem nada a ver com serem ou não rejeitadas pelos homens, porque
não há mulheres feias, há mulheres que são menos bonitas do que outras, e há mulheres que
não fazem nada para tirar partido da beleza que têm, porque toda a mulher é bonita.
- Acha que as mulheres são mais bonitas que os homens?
- Não.
- Se pudesse mudar de sexo, mudava?
- De maneira nenhuma.
- E se pudesse voltar a ser completamente heterossexual?
- Não voltava.
- Olhe, Joana, o que são as práticas sexuais entre mulheres?
- Bom, para já as coisas são vividas de uma forma muito mais intensa, e depois sabe que
duas mulheres são duas iguais, sabem muito melhor o que querem uma da outra do que uma
mulher e um homem, porque um homem nunca pode saber o que são as sensações de uma mulher.
As mulheres têm outra sensibilidade, têm outra capacidade de dar carinho.
- Sabe que também há um bocado a ideia de que entre duas mulheres há uma que faz o papel
de macho...
- Isso é uma tolice, não existe, na cama não existe um homem e uma mulher, existem duas
mulheres e pronto. Pode haver um momento em que uma seja mais activa, e a outra mais
passiva, mas isso vai da disposição do momento, não tem nada a ver com o esquema
heterossexual. Poderá haver uma com um temperamento mais rebelde, ou mais decidido, mas
quando chegam à cama desfazem-se como torrões de açúcar.
- Olhe, Joana, e sobre os locais de encontro?
- Bom, há o “Bailinho dos Bombeiros”, mas eu não vou lá muito. Aliás eu não sei se serão
lugares de encontro ou de segregação, e de desencontro. Porque os homossexuais estão
estigmatizados, e eu acho que se ainda por cima se fecham em ghettos isso não pode ser
nada bom para ninguém. As pessoas vão para ali porque pelo menos vão encontrar outras
pessoas que também não têm um espaço melhor para conviver, mas é muito engraçado que há
muitos não-gays que vão lá só para bisbilhotar, e pensam que vão lá ver os animaizinhos
do jardim zoológico, ou não sei o quê, mas de facto não se passa nada nesses bares que
não se passe cá fora, as pessoas não estão lá a fazer nada de especial, quando muito
podem dar a mão, ou dar um beijinho, mas não se vai para ali para fazer outras coisas.
Agora parece que há um esquema no Bairro Alto, que é um bar de prostituição de mulheres e
para mulheres.
- A sério? Olhe que é a primeira pessoa que fala nisso...
- É verdade, eu até tenho andado com uma certa curiosidade de ir lá meter o nariz.
Obviamente que não é para ir para a cama com nenhuma mulher, mas tenho alguma curiosidade
de descobrir onde é, e de ir até lá para ver como é que essas coisas funcionam. E também
há algumas, sobretudo miúdas de dezassete, dezoito anos, que gostam de mulheres, mas
funcionam nos bares, como alternas, e deitam-se com os homens porque é a única maneira
que têm de sobreviver.
- Joana, nós já falámos um bocadinho de sexo, mas eu ainda não lhe perguntei uma coisa: o
que é um orgasmo?
- É tão difícil de explicar... é o culminar de tudo, também não lhe sei explicar muito
melhor, mas também não é uma coisa que se tenha de atingir sempre, às vezes não acontece,


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e não é por isso que uma pessoa vai ficar chateada. Eu posso passar horas na cama com a
minha amiga, e não atingirmos o orgasmo, ou até nem sequer fazermos sexo, e ser óptimo.
Não é que o orgasmo não tenha importância nenhuma, é claro que tem, mas também não é
assim tanta.
- Também se fala de orgasmo vaginal e de orgasmo clitoriano, o que é que a Joana me diz
sobre isso?
- Eu acho que são diferentes, mas são os dois muito bons, embora eu prefira o clitoriano.
- A Joana foi educada religiosamente?
- Sim, fui à catequese e tudo.
- Nunca teve uma noção de pecado, um certo receio de que haja um Deus que amanhã lhe
possa pedir contas?...
- Não, eu acho que as pessoas devem ser felizes, e se realmente Deus existe, Ele quer é
que as pessoas sejam felizes, seja de que maneira for.
- Para terminar, quer acrescentar alguma coisa?
- Eu gostava de acrescentar duas coisas. A primeira tem a ver com a imagem pública das
pessoas. Duas mulheres não podem dar um beijinho no meio da rua. Mas porquê? É ridículo,
e eu espero que num futuro próximo as pessoas estejam mais libertas, e vejam as coisas de
outra maneira, porque toda a gente tem o direito de ser como é.
A segunda questão é a questão laboral. Eu passei por uma situação muito chata. Estava a
trabalhar numa empresa, toda a gente gostava de mim, os patrões achavam que o meu
trabalho era optimo, parecia que era tudo uma maravilha. Um dia descobriram que eu vivia
com uma mulher, e daí para a frente passaram a criticar-me, o meu trabalho já não
prestava, até que um dia ouvi um colega meu a falar com o patrão. Ele estava a dizer que
eu era muito bonita, e o patrão respondeu-lhe: “Oh pá, essa gaja é gado, não presta, tu
não sabes que ela está com outra gaja?”. É muito difícil para uma mulher assumir no
emprego que é homossexual. Quando as pessoas são artistas, ou quando atingem um
determinado estatuto socio-profissional, as coisas tornam-se mais fáceis, mas antes disso
é muito complicado. Eu quando saí dessa empresa, as perseguições e as pressões foram
tantas que eu tive um esgotamento, estive uma semana a fazer uma cura de sono, de forma
que eu nunca mais vou cair na asneira de contar no meu local de trabalho aquilo que sou.
Embora existam muitas mais dentro da companhia, e topamo-nos umas às outras, mas a norma
é cada uma fingir que não sabe de nada, e que não é nada com ela. O que é que eu vou
fazer? Vou-me armar em panfletária, e pôr em risco o meu emprego e a subsistência do meu
filho? Não me posso dar a esse luxo. Mas vou lutando, com as forças que tenho. Lutei
muito por aquilo que quiz, e arrisquei muito, deixei casa, deixei um marido que ganhava
bem, deixei conforto, e não me arrependo. Por isso gostava de dizer a todas as mulheres
homossexuais que lerem esta entrevista que não percam a coragem, que não se deixem
vencer. Mesmo que cometam erros, que tropecem muitas vezes, levantem-se sempre, porque
vale a pena. Acima de tudo, nós estamos neste mundo é para ser felizes.




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Francisca, 36 anos, profissão liberal.

- Para começar, Francisca, qual é a designação que prefere? Mulher homossexual, sáfica,
lésbica?
- Mulher homossexual. Não gosto nada da palavra lésbica, é uma palavra que eu rejeito
visceralmente.
- Olhe, quando é que detectou em si as tendências homossexuais, e em que circunstâncias?
- É uma história engraçada. Foi quando fui obrigada pela primeira vez a encarar
frontalmente a situação. Tinha dezanove anos. É engraçado porque eu sempre tinha sentido
uma certa atracção pelo sexo feminino, sentia uma coisa muito forte por algumas das
minhas professoras, e por outras mulheres bastante mais velhas, aliás ainda hoje quase
todas são minhas amigas, mas eu até aí nunca tinha visto a questão como uma questão
sexual, inclusivamente pensava muitas vezes que gostaria de viver com essas pessoas, para
partilhar da vida delas, mas não pensava em sexo nem nada disso. O que me atraía era a
ternura, o afecto, e não o sexo, e quando fui confrontada com essa situação lembro-me de
ter ficado extremamente chocada, e de ter rejeitado a coisa completamente.
- Quer contar como é que isso aconteceu?
- Foi com uma pessoa por quem sentia uma grande amizade, com quem tinha muitos pontos em
comum, só que ela pôs-me as coisas nestes termos: “Ou aceitas também o aspecto sexual, ou
a mim não me interessa mais ser tua amiga”. E perante esta situação em que fui colocada,
em que tinha pela frente uma pessoa de quem eu gostava e que gostava de mim, e que queria
partilhar tudo comigo, mas que me punha as coisas daquela maneira, eu disse que ia
pensar. E fui pensar. E acabei por ceder, porque pensei o seguinte: “Bom, isto pode ser
que não seja grande coisa, mas mal também não pode fazer, por isso vou experimentar”. E
experimentei. Até hoje.
- E então?
- Então, achei que era assim. Achei que era o grau mais profundo de encontro que podia
haver entre duas pessoas.
- E a sua família? Sabem, não sabem, e o que é que dizem disso?
- O meu pai morreu há muitos anos. A minha mãe sabe, e teve uma reacção que para mim foi
completamente inexperada. Eu até aí tinha tido uma relação estupenda com ela, uma relação
de abertura, de amor, e pensei que ela me fosse aceitar tal como eu sou, e que me
compreendesse, até porque sou filha única. E quando eu me vi confrontada com a situação
de ter de assumir a opção que tinha feito em termos da minha sexualidade, ela reagiu
muito mal, e portanto a partir daí as nossas relações alteraram-se, eu deixei de ter por
ela os sentimentos que tinha, e a partir daí ela tem interferido sistemática e
negativamente nas minhas relações, julgo eu que por uma questão de ciúmes. Eu acho que,
no subconsciente dela, ela acha que se eu gosto de mulheres, devia contentar-me com a
companhia dela e devia sublimar tudo nela.
- Acha que ela sente isso?
- Acho. E até já lho disse. Já a obriguei a tomar consciência desse facto. Já a
confrontei com isso. Ela reagiu muito mal, mas eu não podia deixar de lhe dizer. E não
foi só isso. Eu tive de me demarcar em relação a uma série de coisas, porque todos os
relacionamentos que eu tive até hoje com outras pessoas foram fortemente afectados pela
influência da minha mãe, que tem feito as coisas mais diabólicas, desde telefonemas
anónimos até sei lá mais o quê, para conseguir destruír qualquer relação que eu possa ter
com qualquer mulher. Por ciumeira pura.
- Olhe outra coisa, Francisca, você acha que nasceu homossexual, ou essa foi uma
característica que você só adquiriu depois?
- Comigo houve uma percentagem, digamos assim, que era genética, e outra que foi
aprendida. Mas acho que há pessoas em quem a coisa geneticamente estava “programada”, mas
o ambiente pode nunca chegar a proporcionar que a coisa aconteça, e essa aprendizagem
nunca se chegar a fazer, como pode acontecer o contrário, geneticamente não estar
“programado”, mas o ambiente proporcionar essa experiência, e a coisa desenvolver-se. Mas
a mim parece-me que na maioria dos casos a tendência genética provavelmente estava lá e o
ambiente proporcionou que a pessoa experimentasse, e a pessoa provou, e gostou, e pronto.
- Olhe, e os homens? Teve namorados, ou não teve, como é que foi?
- Não foram muitos. Eu nesse aspecto acho que vivi sobretudo alguns desencontros. Houve
uma paixão que foi bastante forte, e era recíproca, mas ele vivia em Angola, e a


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distância já era um factor que complicava, para não dizer que impossibilitava o
relacionamento. Depois houve rapazes que gostaram de mim, mas não havia da minha parte
uma correspondência, por isso não podia resultar, e também houve um rapaz de quem eu
gostei muito, mas também aí as coisas não resultaram.
- E filhos? Nunca teve pena de não ter filhos?
- Não. Nunca tive. Penso que pôr mais gente neste mundo é um acto de egoísmo. Não
acredito que haja ninguém que esteja satisfeito nesta vida, que ache que valha a pena
viver, por isso acho que não vale a pena pôr mais gente na terra.
- Você é muito pessimista... Olhe, e nunca pensou em adoptar uma criança?
- Nas duas relações mais duradouras que tive chegou a pôr-se essa hipótese, mas é muito
complicado, aliás nem sequer existe em Portugal, julgo eu, uma forma legal de duas
pessoas do mesmo sexo adoptarem uma criança. É claro que eu posso ir a um bairro de lata,
comprar uma criança recém nascida, registá-la como se fosse minha, e dar-lhe amor, dar-
lhe um futuro, dar-lhe tudo, é uma infracção à Lei mas é também um acto de grande
humanidade, mas até isso é uma coisa que não se pode fazer com ligeireza, é preciso ter
uma capacidade de dádiva muito grande, até porque essa criança pode vir com inúmeros
problemas. Eu não sei, por exemplo, se ao fim de um tempo se detectasse que a criança
estava infectada com o vírus do HIV, ou com outra doença qualquer, francamente não sei se
como é que iria encarar o problema, de forma que teoricamente não rejeito essa
possibilidade, mas na prática não sei se tenho essa disponibilidade interior, essa
generosidade toda.
- Francisca, você é uma mulher que cultiva um estilo um pouco andrógino. Sente-se bem
assim?
- Sinto. Eu sentir-me-ia mal era se tivesse de cultivar outro estilo. Eu sou assim mesmo,
e sinto-me muito bem tal como sou.
- Você concorda com aquela ideia que existe de que as mulheres homossexuais são mulheres
que foram rejeitadas pelos homens?
- Nalguns casos acho que sim, acho que algumas mulheres fizeram esse percurso, mas isso
acontecia mais noutros tempos, e talvez ainda aconteça na província, onde as mulheres
ainda não sabem que têm o direito de pura e simplesmente rejeitar os homens. Hoje em dia,
e na província também, porque a televisão tem servido para informar as pessoas, e chega a
todo o lado, as mulheres já sabem muito bem qual é o seu lugar na sociedade, e quais são
os seus direitos, por isso parece-me que elas quando se voltam para as outras mulheres é
mesmo porque se sentem mais atraídas e porque gostam mais. No meu caso não fui muito
requestada pelos homens porque de facto não cultivo essas situações sociais de encontros
heterossexuais. Eu acredito nos encontros entre pessoas, independentemente do sexo, e não
no encontro entre pessoas porque se pertence a este ou ao outro sexo.
- Se pudesse mudar de sexo, mudava?
- Não mudava, jamais.
- E se pudesse passar a ser completamente heterossexual?
- Essa pergunta não faz muito sentido para mim. Eu defendo que o equilíbrio mais perfeito
se atinge com a bissexualidade. Contra mim falo, porque eu não me posso assumir como
bissexual, pelo menos na prática, na medida em que nunca vivi uma relação com um homem,
mas teoricamente acho que me devo assumir como bissexual, porque teoricamente não rejeito
essa possibilidade.
- E práticas sexuais?
- Aceito tudo, desde que dê prazer às pessoas.
- Francisca, o que é para si um orgasmo?
- É uma situação aflitiva que se começa a desencadear, e tal como ele é descrito em
termos fisiológicos, vai crescendo, até atingir um ponto culminante, e quando está lá no
cimo a aflição é de tal maneira forte que só se deseja que acabe depressa.
- E o que é isso do orgasmo vaginal e do orgasmo clitoriano?
- São duas formas diferentes de se sentir uma mesma coisa, eu conheço as duas e digo-lhe
que o vaginal é bom, mas eu ainda gosto mais do clitoriano, nesse aspecto não tenho
dúvidas nenhumas. Aliás eu acho que é por isso que muitas vezes as relações
heterossexuais não resultam, é porque os homens não sabem isso.
- E o recurso a objectos?
- Nunca experimentei. Sei que existe, mas nunca vi necessidade de me servir dessas
coisas. Prefiro explorar a minha própria habilidade natural. Isso tem a ver com o perfil


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das pessoas, obviamente. Eu confesso que isso para mim é uma coisa um bocado disparatada,
e custa-me um bocadinho a perceber porque é que há mulheres que usam essas coisas, porque
para isso então mais vale ir com um homem. Acho que isso está bem para os gays, sobretudo
agora com o problema da SIDA, agora para as mulheres acho que não serve para nada.
- Olhe, e uma noção de pecado, ligada à sua sexualidade?
- Eu não tenho esse tipo de problema, porque não cultivo nenhuma religiosidade, de forma
que não encaro as coisas por esse prisma. Eu fui educada dentro da religião católica, fiz
a Primeira Comunhão e mais não sei o quê, e isso fez-me interiorizar uma certa noção de
pecado, mas quando atingi a idade adulta rejeitei tudo isso. Não tenho nenhuma relação
com nenhum Deus.
- E quando morremos? Para onde é que vamos?
- Vamos para a terra. Nós somos pó e mais nada. Morremos, acabou. Quando muito poderemos
vir a ser alimento para as plantinhas, e para outros seres.
- Olhe, e o que é que pensa dos bares, dos lugares de encontro?
- Compreendo que existam, mas não os frequento. Acho que cada uma é livre de lá ir se
quiser, mas a mim não me dizem nada. O meu estar na vida não passa por aí. Se calhar há
pessoas que não têm outra forma de se encontrar, e nessa medida se calhar os bares são
nesmo necessários, mas eu de facto não sou frequentadora. Acho mesmo que esses bares são
um factor de deturpação da homossexualidade, de abandalhamento, se quiser, de uma coisa
que pode ser vivida com toda a decência. Porque o verdadeiro encontro e o relacionamento
sério entre as pessoas não passa por isso. Mas também não “simpatizo” nada com os
“lugares de engate” heterossexuais, onde aliás também podem acontecer encontros
homossexuais. Porque eu não faço uma grande distinção na vida entre homossexuais,
heterossexuais e bissexuais, até porque acho que a postura mais certa, mais equilibrada,
é a da bissexualidade. Acho que toda a gente tem a liberdade de fazer aquilo que quiser,
desde que não incomode nem moleste os outros. Devia haver um respeito muito maior entre
as pessoas. Se todos se respeitassem uns aos outros este mundo era optimo, e quando as
pessoas se fecham nos ghettos dos bares estão de certa forma a desvirtuar aquilo que é
sério e honesto.
- Olhe, e de experiências amorosas, que tal? Muitas? Poucas?
- Poucas. Necessariamente poucas. Eu só conto três histórias amorosas na minha vida. De
facto não são muitas, se se pensar que há mulheres que têm vinte ou trinta ou cinquenta.
Tive uma relação que durou nove anos, outra que durou cinco, agora há dois anos que estou
com esta minha amiga. Penso que foram relações sérias, qualquer delas, e podiam ter
durado mais tempo. Porque para me dar completamente a alguém, eu tenho de achar que de
facto vale a pena. Chegar ao aspecto sexual é para mim o último passo no encontro e na
partilha, e eu não encontrei assim tanta gente com quem me pudesse partilhar
completamente, com quem merecesse a pena chegar à vivência do sexo.
- Já agora, uma história engraçada que tenha vivido, não me quer contar?
- Não sei... olhe, uma vez recebi uma proposta de um encontro a três, que me surgiu como
uma oportunidade única, e eu gosto de situações que sejam por um lado quase de um certo
risco, e que por outro lado sejam novidade, acho que tenho um espírito de abertura muito
grande.
- Desculpe lá, mas olhe que isso contado dessa maneira não tem assim muita graça...
- Pois não, não tem graça nenhuma, porque realmente não teve mesmo graça, porque a minha
companheira rejeitou a coisa completamente.
- E depois, o que é que aconteceu?
- Foi-me muito difícil gerir a situação. Ela ficou muito contrariada, mas enfim, lá
aceitou fazer a experiência, mas é claro que resultou muito mal. Mas é engraçado, e isso
sim, tem realmente graça, é que eu, que tinha aderido à ideia, acabei, interiormente, por
achar que era bom, embora não me tivesse aproveitado da situação, e ela, que tinha
rejeitado a ideia, aproveitou-se muito mais do que eu, e nós quando nos lembramos dessa
história ainda hoje nos rimos. Eu acho engraçadíssimo que ao fim de um certo tempo
entrámos em pormenores, e só nessa altura, passados anos, é que percebemos que ela gozou
muito mais com a situação do que eu. Quer dizer, chegámos as três à cama, eu estava cheia
de vontade, e a terceira pessoa também estava muito mais interessada em mim do que na
minha amiga, mas eu estava com imensos problemas em relação à minha amiga, porque ela se
tinha fartado de dizer que não queria, e tinha inclusivamente entrado numa situação de
conflito aberto comigo, de maneira que eu estava completamente bloqueada e quase que não


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fiz nada, e ela e a terceira pessoa é que fizeram a festa, e eu fiquei de fora. Portanto,
e resumindo, eu aceito esse tipo de prática, embora as pessoas com quem tenho vivido a
rejeitem, e acho que é uma experiência gira para se fazer. Acho que quem tiver condições
para poder disfrutar de uma oportunidade dessas não deve deixar de experimentar.
- Mas como filosofia de vida, acha que é uma hipótese aceitável?
- Como filosofia de vida acho que é muito complicado. Não é por mim, porque os problemas
que se põem são ao nível da partilha, e eu acho que tenho uma grande capacidade de
partilha, mas penso que uma relação a três é uma coisa muito difícil de gerir. Há o
problema do ciúme, porque as pessoas não têm capacidade de dádiva e de aceitação dos
outros. Não é por mim, porque eu acho que era capaz de gerir uma situação dessas, mas a
minha experiência ensinou-me que de facto é tão difícil que se calhar não vale mesmo a
pena.




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Carla, 19 anos, estudante.

- Olhe, Carla, para começar, qual é a designação que prefere? Mulher homossexual,
lésbica, sáfica?
- A palavra lésbica a mim não me incomoda assim muito, mas também não me importo que me
chamem de outras maneiras. Eu não me importo com nada.
- Quando é que a Carla descobriu as suas tendências para o lesbianismo, e como foi que
isso aconteceu?
- Ah, isso foi muito engraçado, eu tinha dezasseis anos, foi numa altura em que os meus
pais tinham ido à terra, e eu estava em exames, de forma que fiquei em casa da minha
vizinha, e então o marido dela é da PSP, e nessa noite estava de serviço, de maneira que
ela começou assim com umas coisas, a dizer que eu estava a ficar cada vez mais gira, e a
perguntar se eu tinha cuequinhas com renda, e não sei que mais, e eu achei aquilo tudo
uma conversa muito parva, mas não liguei. Ás tantas, já devia passar da meia-noite,
acordei com ela a chamar-me, que tinha uma surpresa para mim, e então eu lá me levantei,
muito espantada, e então é que vi que ela estava com uma lingerie com umas flores azuis,
e estava saída do banho, toda perfumada, tinha posto música a tocar, e uns poucos de
pauzinhos de incenso, daqueles que se vendem nos indianos, e então puxou-me para ela, e
abraçou-me, depois começou a dar-me beijos no pescoço, e eu sem perceber nada, mas ao
mesmo tempo aquilo estava a saber-me bem, e perguntei-lhe o que era aquilo, e o que é que
ela queria. Ela deu-me um copo com whisky e disse-me: “Olha, eu gosto muito de ti, e
gostava muito de passar a noite contigo, mas pronto, se não queres podes ir dormir, mas
ficas a perder, por isso vê lá se queres ou não, tu é que sabes.”
Eu aí de repente olhei para ela, achei-a bonita, pensei que se calhar ficava mesmo a
perder, e disse-lhe que sim, que queria. Ainda ficámos ali um bocado na sala, na
marmelada, depois fomos para o quarto, e pronto. Agora quando o marido dela está de
serviço eu vou até lá para lhe “fazer companhia”.
- E ele não desconfia de nada?
- Acho que não, porque é que havia de desconfiar?
- E os seus pais?
- Também não. Noutro dia ligou lá para casa um rapaz que é meu colega da faculdade, e
depois à noite a minha mãe pôs-se a fazer-me perguntas à mesa, se era o meu namorado, e
umas coisas assim, e eu disse que sim, que era, mais ou menos, e que estava a acabar o
curso, e eles ficaram todos satisfeitos.
- Olhe, Carla, a Carla acha que já nasceu lésbica, ou foi uma coisa que só lhe aconteceu
depois?
- Eu não sei, porque eu antes nem nunca tal coisa me tinha passado pela cabeça, mas
também, se não houvesse lá qualquer coisa dentro de mim, também não tinha ido assim à
primeira, não é? Porque ela só me convidou, não me obrigou, eu só fui para a cama com ela
porque quis, e ainda por cima gostei...
- Quer dizer que a Carla nunca teve namorados?
- Não, quer dizer, pelo menos assim namorados à séria, isso não tive. Ainda não pensei
muito bem se quero ter, porque eu gosto muito da minha vizinha, mas por outro lado não
posso estar muitas vezes com ela, é só quando o marido não está, por isso isto é tudo uma
grande confusão, eu ainda nem sei o que é que quero fazer da minha vida.
- A Carla gostava de ter filhos?
- Ai, adorava. Por isso é que isto ainda é tudo mais complicado. Do que eu gostava era de
poder viver com ela, noutra cidade qualquer, que ninguém nos conhecesse, e podermos ter
um bébé, mas como isso não pode ser...
- Pois é, vai ter de fazer a sua escolha.
- Mas eu já fiz, eu quero viver com a ..........., quero que ela deixe o marido. Até
podíamos adoptar uma criança, ou ir buscá-la a um bairro de lata...
- Bom, olhe que isso também lhe pode criar uma situação um bocadinho complicada. Mas
responda-me a outra coisa: a Carla alguma vez se sentiu rejeitada pelos homens?
- Não, alguns até me dizem que eu sou gira e tudo, mas eu nem perco tempo a pensar nisso.
- E uma rapariga masculina, acha que é?
- Não, nada mesmo.
- Se a Carla pudesse de repente mudar de sexo, mudava?
- Não sei, acho que não. Eu sinto-me muito bem assim. Mas por outro lado também gostava


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de ser rapaz para poder casar com a ........... É uma paixão tão grande...
- A Carla queria casar com ela?
- Era giro, não era?
- E se pudesse de repente deixar de sentir aquilo que sente pela sua amiga?
- Pois, resolvia uma data de problemas, isso era, mas eu não queria.
- Olhe, Carla, e o que são as vossas práticas sexuais?
- ...
- Não quer contar?
- Não é isso, é que ela é capaz de se chatear...
- Então não conte, pronto.
- Também não há assim muito para contar, mas é assim, eu gosto tanto quando ela passa as
mãos pelo meu peito, e pela minha cintura, as mãos dela são tão macias... e depois também
fazemos outras coisas... mas pronto. É assim.
- Carla, o que é para si um orgasmo?
- Eu não sei muito bem explicar. Foi uma coisa que eu levei um bocadinho de tempo a
aprender, ao princípio nem sabia muito bem lá chegar, foi a ............. que me ensinou.
Mas é assim um momento em que se tem um prazer tão grande, tão grande, que ficamos com
tonturas, e parece que a nossa “coisinha” vai rebentar, parece que vai explodir.
- E objectos, usam?
- Objectos?
- Sim, pilinhas feitas de plastico...
- Que horror! Eu nem estava a perceber o que é que você queria dizer com isso... Não, não
usamos, aliás eu ainda estou virgem, por isso já vê...
- E uma noção de pecado, ligada à sua sexualidade? Tem?
- Eu por mim não tenho, e nem acho que esteja a fazer mal nenhum, mas os meus pais são de
uma religião, eu não vou agora dizer qual é, mas é uma religião que não aceita a
homossexualidade, nem a feminina nem a masculina, de maneira nenhuma, por isso eu nem
quero pensar, se algum dia os meus pais descobrem, aí as coisas vão ficar muito
complicadas, até são capazes de ir contar ao marido dela, ou de me pôr fora de casa, é
melhor nem pensar nisso.
- E sobre os bares, o que é que me diz?
- Nunca fui. Ando com imensa curiosidade de ir a um que me falaram, só para ver, mas não
tenho ninguém que vá comigo, e eu para ir sozinha também não tenho assim muita lata...
veja lá, se no seu livro houver alguém que queira vir comigo...




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Alexandra, 29 anos, jornalista.

- Antes de mais, Alexandra, qual é a designação que prefere? Lésbica? Sáfica? Mulher
homossexual?
- A palavra que eu utilizo mais vezes é a palavra lésbica. Porque acho que é o que é, e
pronto. Eu sei que há pessoas a quem essa palavra faz muita comichão, mas isso é só
porque as pessoas não estão habituadas. Os homossexuais às vezes também são
preconceituosos. Alguns até são homofóbicos, se não fossem não se escondiam tanto, não é?
Têm um autêntico horror à coisa. Se bem que eu também ache que as pessoas se auto-
intitulam lésbicas, ou hetero, ou bi, e fecham-se assim nuns compartimentos estanques em
que eu não acredito assim muito, porque ninguém está livre, de hoje para amanhã, de
dobrar a esquina e encontrar o príncipe ou a princesa dos seus sonhos, não se sabe, não
é, porque esta coisa das emoções e dos afectos não é como os produtos que a gente compra
no supermercado, não se escolhem pela cor, pelo tamanho, pelo feitio, não se escolhem
porque fazem falta, aparecem quando aparecem, quando dá o click, pronto. De maneira que
eu acho que a designação, embora não tenha que se ter medo dela, é um bocado limitativa.
- E quando é que pela primeira vez se sentiu atraída por uma mulher?
- Eu era pequenininha, com quatro, cinco anos, e lembro-me de olhar assim com uma
profunda emoção para algumas das amigas da minha mãe. Achava-as o máximo. Davam-me
aquelas paixonites que dão nas crianças... e essas coisas foram-se sucedendo...
- E quando é que teve consciência do que se estava a passar consigo?
- Eu não sei, mas era muito miúda, e já sabia que era diferente, porque era assim, quando
estas coisas aconteciam, e eu sentia que alguém estava a reparar em mim, eu disfarçava,
sentia-me na obrigação de desviar o olhar. Aliás, a páginas tantas, o meu grande sufoco
era não ter nascido rapaz. Porque eu gostava de raparigas, não é, portanto achava que se
tivesse nascido rapaz isso me teria facilitado muito as coisas, porque o que eu tinha na
cabeça era o que me tinham ensinado, o esquema hetero, e portanto para gostar de
raparigas eu achava que devia ter nascido rapaz. Eu às vezes perguntava aos meus pais
quando é que ia ter as minhas namoradas, e eles ficavam muito indignados, muito
entupidos, e diziam-me que não, que quem tinha namoradas eram os rapazes, e então,
perante estas coisas, não é, para mim não havia confusão nenhuma, entendi que se os meus
pais me diziam que quem tinha namoradas eram os rapazes, como eu queria ter namoradas, eu
tinha de passar a ser rapaz.
- Quer dizer que a sua família sabe?
- Muito contrariadamente, não é, mas sabem. Ao princípio não ligavam muito. Depois
começaram a oferecer-me bolas de futebol, espingardas, fisgas, luvas de boxe, arcos e
flechas, enfim, “aquelas coisas normais de que as raparigas gostam...” e como lá em casa
não havia rapazes, éramos todas raparigas, era eu que tinha jeito para brincar com
brinquedos de rapaz, era eu que desaparecia horas sem ninguém saber onde é que eu estava,
não brincava com bonecas...
- E hoje em dia? Aceitam?
- Hoje em dia se pudessem faziam-me uma lobotomia, para eu ficar quieta.
- Olhe, e como é que tudo isso foi vivido na adolescência?
- Ah, não, não foi de todo, não foi na adolescência, foi muito mais tarde. A primeira vez
que me deitei com uma mulher tinha vinte e um anos. Mas a primeira vez que tive
consciência de que isto era um problema um bocado complicado foi aos doze anos. Fui para
o Liceu, e havia muitas raparigas, e então aquilo era um paraíso, porque de cada vez que
mudava de ano arranjava assim uma paixoneta... eram assim umas coisas platónicas, não é,
que era assim é que devia ser.
- Alexandra, diga-me outra coisa: você acha que já nasceu lésbica, ou essa foi uma
característica que foi adquirindo com o tempo? Acha que é uma coisa genética?
- Não sei, eu não tenho conhecimentos de genética para poder afirmar uma coisa dessas.
Mas penso que em muitos casos é apenas uma questão de opção pessoal, e mais nada. Eu acho
que muitas mulheres às tantas optam, porque neste mundo agressivo, masculino, estúpido,
sem imaginação, às tantas a ternura e o afecto entre duas mulheres acaba por ser a
alternativa mais atraente, mais segura, mais tranquilizadora.
- E como é ser lésbica em Portugal?
- É difícil. Há países onde os Gays masculinos estão organizados, e têm poder, e dão
cartas, como nos Estados Unidos, no Canadá, em Inglaterra, na Alemanha. Nos Estados


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Unidos, que é o caso que eu conheço melhor, quando há as Gay Parades, primeiro discursam
os gays, depois discursam as lésbicas, depois discursam os bi, depois discursam os
travesties e depois então é que discursam os trans-sexuais, e esta é a hierarquia que
serve para os desfiles, para as representações, para tudo, e então eu acho que num
ambiente desses o que se está a criar é um grupo de tendências totalitaristas, baseado
numa hegemonia que não se percebe muito bem qual é, gente que funciona em matilha, e acho
que tudo isso deve ser combatido, nos Estados Unidos, em Portugal, onde quer que exista.
Porque deve haver imensos Gays com imensas razões para se quererem afastar do mundo
hetero, mas o perigo é que esses grupos formam-se para lutar contra a descriminação, mas
quando esses mesmos grupos começam a ter demasiado poder acabam por ser eles próprios que
praticam a descriminação. Só depois do Hitler já houve centenas de grupos que exerceram
poderes totalitários, e eu não me apetece fazer parte de um grupo desses, ou melhor, não
quero sequer ser identificada com esse tipo de atitude extremista. Até porque cada vez
mais as pessoas têm de entender que não há “o nosso mundo” e “o mundo dos outros”. O
mundo é só um, e as pessoas têm de aprender a viver juntas. Eu tenho imensa pena que os
outros não percebam nada sobre a minha forma de estar, tenho imensa pena que eles não
entendam, e me combatam, e me agridam, mas eu não quero estar do outro lado da barreira.
Eu quero é que eles entendam que nós vivemos todos juntos neste planeta e temos de nos
aceitar e respeitar uns aos outros.
- Olhe, se se organizasse uma manifestação na Av. da Liberdade, você ia?
- Depende, não é? Se fossem os fulanos da extrema esquerda não ia de certeza.
- Porquê?
- Porque eles acham que a comunidade gay em Portugal está toda com eles, mas isso é um
disparate, porque há gente gay em todos os Partidos, e os da extrema esquerda acabam por
ser tão repressores como os da extrema direita. Você veja o caso da Dina. Ela não pode
pretender estar à frente de um bar que toda a gente sabe que é um bar de lésbicas, e
fazer de conta que aquilo é o Casino do Estoril, e exercer uma repressão enorme sobre as
miúdas que lá vão porque não têm outro sítio para se encontrar, e chegam ali, deixam lá
ficar o dinheiro que têm, que não deve ser muito, não é, mas se calhar para algumas é
tudo o que têm, e nem sequer podem dar um beijo.
- Mas a Dina é lésbica?
- Eu não sei se ela é lésbica ou não, isso é uma coisa que eu não posso saber, nunca fui
para a cama com ela, aliás... nem que ela me pedisse de joelhos, mas a questão que se põe
não é essa, a questão que se põe em relação à Dina é que ela é homófoba, preconceituosa e
malcriada. Eu conheço milhares de pessoas como ela, que são pessoas completamente
desinteressantes, são pessoas que não levam a lado nenhum, são pessoas que só servem para
gerar a confusão, e que ainda por cima dão mau nome à homossexualidade. Mas não é só no
bar da Dina, há outros que são exactamente a mesma coisa.
- Bom, vamos deixar isso de parte. E a sua juventude? Teve namorados?
- Ah, não, andava à pancada com os rapazes. As minhas irmãs arranjavam problemas com os
namorados e eu é que tinha de andar à pancada com eles.
- Nessa altura pensava que gostaria de casar e de ter filhos?
- Não. E no entanto a minha vida acabou por dar uma volta. É uma história muito
engraçada. Porque eu não só não pensava nada nisso como ainda por cima tinha alguns
problemas a nível de ovários e de útero, e o médico disse-me que tinha muito poucas
chances de ter filhos. E acabou por acontecer. O meu caso foi muito engraçado. Às tantas
dobrei a esquina, encontrei um homem que achei o máximo, fiquei instantaneamente
apaixonada, ele tinha montanhas de defeitos, mas pronto, naquele momento era o máximo. De
maneira que perdi a cabeça com ele, e tive uma criança.
- Foi o único homem da sua vida?
- Não, mas também não acredito que me volte a interessar por outro. Era preciso que
viesse o arcanjo S. Gabriel, com aqueles caracolinhos loiros, e com aquela carinha de
menina... e mesmo assim ia ter de ficar a olhar para mim durante vinte dias... sabe que
eu acho que me tenho tornado cada vez mais selectiva... nós não temos de ser omnívoros,
não é?
- Olhe, e em relação à sua filha, acha que tem sido uma boa mãe?
- Eu espero bem que sim, pelo menos faço tudo por isso. Eu acho que ela às vezes se
ressente um bocadinho por ter os pais separados, mas temos uma relação optima. Mas eu
gostava de falar mais um bocadinho de quando era miúda. Houve um dia em que eu me


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apercebi pela primeira vez de que o meu lesbianismo era um problema social um bocado
complicado. Foi um dia em que eu ia com um grupo de amigos pela avenida, e passaram por
nós dois homossexuais, e eles começaram a fazer comentários em relação a eles, e
arrasaram-nos da cabeça aos pés. E eu comecei a pensar que se se diziam       essas coisas
sobre os outros qualquer dia    iam começar a dizê-las também sobre mim, e essas coisas
ofendem, e magoam, e então eu aí tive a consciência de que a minha alegria de viver nunca
mais ia voltar a ser a mesma coisa. Depois fui para o Liceu, e era muito pequenita, devia
ter a altura da minha filha, e os outros gozavam comigo, penduravam-me nos cabides,
faziam-me aquelas coisas que os miúdos fazem aos mais pequenos. Mas quando cheguei aos
treze anos, durante as férias grandes cresci imenso, e a primeira coisa que me aconteceu
quando entrei no Liceu foi que uma miúda mais velha que até aí nunca me tinha ligado
nenhuma veio ter comigo e perguntou-me se eu queria jogar futebol com elas, de forma que
era assim que elas iam formando as equipas de futebol feminino, que acabavam por ser
concentrados de lésbicas, aliás no basquet também, e então eu lá fui para a equipa, tive
um treinador que se chamava Pedro, tinha um metro e noventa, era lindo, mas era tão
burro, tão burro, tão fantasticamente burro que era uma coisa impressionante. Depois
passei para uma equipa semi-profissional, depois tive outra treinadora que era o máximo,
mas essa era a namorada da guarda redes, e a guarda redes era minha amiga, e essas coisas
não se fazem, não é, de maneira que não houve nada, mas ela tinha muitos cuidados comigo,
as outras queriam pregar-me partidas e ela vinha e fazia voz grossa, de maneira que eu
sentia-me ali o máximo. De forma que passei uma adolescência alegre e divertida, assim
com umas paixonites platónicas, nunca confessadas nem pela minha parte nem por elas, um
tanto reprimida pelos meus pais, mas se calhar ainda bem, porque se eles não me tivessem
reprimido tanto eu não tinha desenvolvido tanto a minha capacidade para “dar a volta” às
coisas. Outra coisa gira que nós fazíamos era que íamos à noite para o pé do muro do
colégio das freiras, que era para onde iam os rapazes para namorar as meninas, e então
quando os rapazes se iam embora chegávamos nós, a equipa de futebol feminino.
Assobiavamos-lhes, elas vinham à janela, e era optimo, a gente divertia-se imenso.
Faziamos-lhes propostas, e elas não sabiam que éramos nós. Depois vinham as freiras, e
mandavam-nas para dentro, e nós riamo-nos que nem umas perdidas, aquilo era uma fita
todas as noites... Outras vezes iamos para a messe dos oficiais, quem lá estava eram as
mulheres deles, e íamos desafiá-las, e no meio disto tudo alguns “negócios” eram bem
sucedidos. Entretanto o que não era lá muito bem sucedido eram os meus estudos, porque eu
preocupava-me muito mais com a equipa de futebol, e com as pequenas, não é, do que com os
estudos, de maneira que os meus pais acabaram por me arranjar uma explicadora de
português com quem por acaso também passei umas ricas tardes. A explicadora oferecia-me
cigarrilhas, e eu dizia que não queria. Depois oferecia-me Martinis, e eu dizia que não
queria. Mas ela é que queria à viva força enfiar-me pelo menos os Martinis. Depois
sentava-se ao meu lado, à mesa da sala de jantar, para me dar as explicações, e às tantas
havia sempre qualquer coisa dela em cima de mim. E então eu levantava-me e mudava de
lugar. E ela dizia-me: “Não sejas parva, vem para aqui”. E eu “Não!” E então aquela cena
normalmente acabava comigo a andar à volta da mesa, e ela com o livro atrás de mim. Eu
tinha quinze anos, ela tinha vinte e quatro. Mas a pessoa que era, era filha da pessoa
mais importante lá da terra, de maneira que se se descobrisse aquilo ia dar uma barracada
tão grande, que eu não arriscava, por muito que me apetecesse.
- Você considera-se uma mulher masculina?
- Não, não tenho nada a ver com isso. Tenho talvez um ar um bocado arrapazado, mas não me
considero masculina.
- Sabe que há um bocado a ideia de que as lésbicas são mulheres que foram rejeitadas
pelos homens. Acha que é verdade?
- Não. Quer dizer, eu acho que isso talvez aconteça com algumas, mas essas são uma
espécie de ”lésbicas de empréstimo”. Mas não há regras para os afectos, não há regras
para a forma de as pessoas se compensarem, porque de facto somos todos diferentes, e de
facto quando nós aprendemos a gostar dos outros é por causa dessas pequenas diferenças. E
eu acho que se isso acontece com algumas mulheres não sou eu que as vou criticar.
- Olhe, Alexandra, e pudesse mudar de sexo, mudava?
- Credo! Não!
- E se durante a sua adolescência arrapazada lhe tivessem oferecido essa possibilidade,
tê-la-ia aceite?


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- Não, também não.
- E se de repente pudesse passar a ser exclusivamente heterossexual?
- Eu gostava de ver essa proposta feita ao contrário. Aos hetero. Porque é que ninguém
lhes pergunta essas coisas a eles?
- Tem razão. Olhe, e práticas sexuais entre mulheres? Essa história por exemplo das
activas e das passivas, é verdade?
- Sabe que é a coisa que mais me chateia é quando os hetero descobrem que eu sou, e
começam a querer saber coisas, e me vêm com essa história de saber se há uma que faz de
homem e outra que faz de mulher. Eu fico a pensar que raio de vida sexual é que essa
gente poderá ter, percebe? Eu acho que não pode passar pela cabeça de ninguém,
minimamente tranquilo em relação à sua própria sexualidade, fazer uma pergunta dessas. Eu
acho que as pessoas chegam aos sessenta anos com ideias acerca da sua própria sexualidade
que são de uma pessoa ficar arrepiada, mas enfim, Deus é grande, e se Ele os acolhe, quem
sou eu para dizer seja o que for.
- Alexandra, o que é o sexo entre mulheres?
- Bom, há mulheres com quem é muito bom, há outras com quem nem por isso, tudo depende.
- Olhe, Alexandra, e o que é um orgasmo?
- Não lhe sei explicar. Sei que é muito bom, mas não sei explicar. Porque para mim o
orgasmo não é só aquele momento, é tudo o que acontece antes, e por que não, é também
aquilo que vem depois, de maneira que está a ver, é muita coisa.
- O que é que me diz, por exemplo, sobre orgasmo vaginal e orgasmo clitoriano?
- Olhe, se quer que lhe diga, ainda não descobri de qual dos dois é que gosto mais. Estou
como o outro “Eu tenho dois amores...” Sabe que eu acho que as questões sexuais têm toda
a importância e não têm importância nenhuma. Tudo depende de tantas coisas... a pessoa
tem de estar bem consigo própria, tem de estar bem com a outra pessoa, a outra pessoa não
pode ser uma pessoa qualquer, e eu não consigo separar as coisas.
- Olhe, e experiências amorosas, foram muitas?
- Não foram muitas, mas às vezes penso que foram demais.
- A Alexandra alguma vez teve uma noção de pecado ligada à sua sexualidade? A ideia de um
Deus que mais tarde lhe possa pedir contas, porque afinal de contas a sua sexualidade é
uma sexualidade transgressora...
- Pelo contrário. Eu acredito fortemente na existência de Deus, e acredito que Ele está
comigo, e “tem-me posto a mão debaixo do rabinho”, tem-me protegido sempre nos piores
momentos. Deus não é homossexual, mas também não é hetero, e jamais me há-de julgar por
uma coisa dessas. Deus pode ser tudo o que nós quisermos. Eu tenho uma amiga que inventou
uma deusa que é a Lady Clitoressa, e presta-lhe culto e tudo.
- Olhe, e descriminação?
- A discriminação é o abuso do poder, e o que muitas pessoas fazem em relação aos
homossexuais é justamente isso, o abuso do poder. E eu acho que esse abuso se está a dar
no sentido inverso. Embora na maioria dos casos os homossexuais portugueses sejam
pacíficos, e não chateiem ninguém, eu acho que começam a acontecer alguns focos de
provocação, alguns focos de extremismo que não é nada bom que existam, são até contra-
producentes. Nós tivemos um grupo de reflexão que justamente tentou abranger pessoas de
todos os quadrantes, mas não é fácil. Já existiu no passado, depois houve uma cisão,
porque houve uma pessoa que fez uma tentativa no sentido de “cilindrar” as outras, mas
agora estamos outra vez a tentar organizar as coisas, porque é preciso que haja um grupo
dedicado à defesa de determinados direitos fundamentais dos homossexuais.
Porque existe de facto discriminação em relação aos homossexuais, e isso é abuso de
poder. Eu fiz parte desse grupo de reflexão que funcionou durante um ano e meio, nós
chamavamos-lhe Grupo de Consciência Lésbica, e foi um grupo pelo qual passaram muitas
dezenas de mulheres, reuniamo-nos semanalmente em casa de uma, em casa de outra, foi um
grupo que fez um trabalho estupendo, e as pessoas que passaram por lá pelo menos falaram,
discutiram, escreveram, trocaram ideias, e foi uma experiência extraordinariamente
positiva.
- E porque é que acabou?
- Bom, surgiram vários problemas, um deles foi uma tentativa de quebra do anonimato por
parte de uma das pessoas que é uma senhora que edita uma revista lésbica que obviamente
tem as suas limitações, mas é a única que existe em Portugal, aliás eu acho que ela está
a fazer um trabalho óptimo, e que tem um valor extraordinário, mas foi preciso chamá-la à


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pedra, porque as pessoas se querem o anonimato lá têm as suas razões, e essa pessoa faz
muito bem em defender as mulheres do campo que não têm instrução, mas os homossexuais
existem, e sempre existiram em todas as camadas sociais, e é preciso defender também as
outras. Ela é uma pessoa que se preocupa com as lésbicas das camadas mais baixas, mas há
as outras, que têm um nome, uma carreira a defender, um cargo de responsabilidade, e a
quebra do anonimato é uma coisa que ninguém pode pedir a ninguém. A opinião dela foi que
nós éramos todas umas Betinhas de Cascais, mas não é nada disso, nós participamos nas
coisas, não queremos é ser radicais nem panfletárias nem andamos de rótulo na testa.
Outro problema grave que se põe é o da solidão, porque nem sempre temos uma pessoa à
nossa medida, e isso cria um problema de consumismo, aliás este não é um problema
exclusivamente homossexual, mas a mim faz-me pena que isso aconteça tanto e que de certa
forma seja tão má publicidade para os homossexuais. Porque uma acusação que nos é
dirigida com alguma frequência é justamente essa: “Se realmente está tudo bem e está tudo
certo, porque é que vocês se juntam e se separam tantas vezes?” Eu acho que isso tem a
ver com a dificuldade que as pessoas hoje têm em estar sozinhas. No caso dos homossexuais
esse problema acaba por se tornar mais grave porque não há um acompanhamento, nem há o
enquadramento numa estrutura social e familiar, e é lógico que as pessoas tendem a sentir
o problema da solidão de uma forma agravada. Eu acho que em Portugal os casais hetero não
se separam muito mais porque as pessoas não têm dinheiro para alugar casas, as pessoas,
mesmo quando se dão mal, não têm dinheiro para se divorciar, ou para ficar a viver
sozinhas. A maior parte das mulheres em Portugal não tem dinheiro, ganha manifestamente
menos do que os homens. Basta ver nos transportes públicos. De manhã, quem vai para o
emprego de autocarro ou de metro são as mulheres, quem vai de carro são os homens. Os
homens têm mais poder de compra. Aqui entra de novo e flagrantemente a discriminação e o
abuso de poder, e no caso das lésbicas há mais factores ainda de agravamento da situação.
Mas sabe que eu tento ver sempre um lado positivo mesmo nas coisas mais negativas. Neste
caso o que acontece é que tudo isto acaba por dar às mulheres e aos homossexuais uma
endurance e uma visão da vida que está talvez mais de acordo com o caminho que terá de
vir a ser feito no futuro, socialmente, para melhorar as condições de vida das pessos. As
mulheres como ganham menos, e estão habituadas a sobreviver com menos, estão mais
“equipadas” psicologicamente para se desenrascar com menos dinheiro e de outras maneiras.
Se uma pessoa não pode ter carro não tem, e pronto.
Mas ainda em relação à discriminação, houve noutro dia um encontro Gay, com uma mesa
redonda, e então convidaram um advogado que é o Francisco Teixeira da Mota que disse:
“Ponham os casos em Tribunal, porque enquanto não puserem não se criam precedentes, não
se cria jurisprudência, não se cria um movimento para mexer com a Lei.” Isso é tudo muito
engraçado, mas era o que dizia uma das miúdas que vinha comigo “Querem mártires!” Porque
de facto uma pessoa normal, com uma vida normal, com um emprego normal, com um ordenado
normal, que se meta numa batalha campal judicial em Portugal, pode até nem perder a
causa, só que são quatro ou cinco anos de despesas a que uma pessoa não pode fazer face,
e são quatro ou cinco anos de problemas que nunca mais acabam. Este advogado disse
algumas coisas importantes, só que de facto não se vêem soluções à vista. E no caso das
lésbicas a situação é de facto muito difícil.
- É mais difícil do que a dos homossexuais masculinos?
- Ah, sim, claro, basta o facto de qualquer homem em Portugal ganhar mais do que uma
mulher, para os gays estarem sempre mais protegidos. Eu no meu emprego ganho menos do que
qualquer dos meus colegas homens. Até os estagiários entram para lá a ganhar mais do que
eu.
- Mas eles não sabem que você tem uma criança pequena para sustentar?
- Eles não querem nem saber do que é que eu tenho ou não tenho. As mulheres ganham ali
menos do que os homens, e ponto final. E quando há aumentos, os homens têm 4%, que é uma
ninharia, mas as mulheres têm direito a 2%, pronto, é assim.




                                25
Luísa Freitas, 46 anos, comerciante.

- Luísa, diga-me em primeiro lugar qual é a designação que prefere: lésbica, sáfica,
mulher homossexual?
- Olhe, a palavra lésbica é uma palavra que eu aceito muito bem.
- E quando foi que descobriu em si pela primeira vez as tendências para o lesbianismo?
- Ah, isso é uma grande história.
- Optimo, já é um bom começo.
- Bem, eu não sei se isso tem alguma coisa a ver, mas quando eu era miúda, devia ter os
meus quinze, dezasseis anos, ou talvez menos, eu gostava muito de recortar fotos de
artistas de cinema, e é engraçado que só recortava fotos de mulheres. Havia algumas que
eu achava especialmente bonitas. Eu não achava os homens bonitos, mas o que é certo é que
aos seis anos eu tive a minha primeira paixoneta, e foi por um rapaz. É claro que estes
amores da infância são sempre platónicos e até assexuados. Depois comecei a apaixonar-me
pelas minhas professoras, era muito engraçado, andava a segui-las pela rua, e coisas
assim.
- Apaixonava-se por elas porque as achava bonitas?
- Não, não era tanto por causa das características físicas delas, aliás ainda hoje eu não
me apaixono por ninguém por causa das características físicas, mas sim por aquilo que eu
acho que essa pessoa tem lá dentro.
- Ora bem, começou então por ter umas paixonetas por rapazes, umas paixonetas pelas suas
professoras, e depois por volta dos quinze anos coleccionava recortes de jornais de
actrizes de cinema. Alguma em particular?
- Eram as desse tempo, não é? A Jayne Mansfield, a Elizabeth Taylor, a Romy Schneider...
- Mas explique-me uma coisa: você tinha consciência do que se estava a passar consigo, ou
nem sequer se apercebia?
- Não, de todo, nem sequer pensava nisso. Aconteceu tudo de uma forma muito natural, eu
nem sabia o que era o lesbianismo. E como ao mesmo tempo ia tendo as tais paixonetas por
rapazes, achava que isso é que era o amor, e que o que sentia pelas professoras era uma
grande admiração, eu não me preocupava em explicar as coisas de outra maneira, as coisas
eram assim e pronto. Depois, mais ou menos por essa altura, vi um filme que se chamava
“Raparigas em uniforme”. Era um filme alemão que contava a história de uma rapariga de um
colégio que se apaixonava por uma professora, e na altura lembro-me de ter pensado:
“Olha, afinal não sou só eu”.
- Por tudo isto que me está a contar, a Luísa não é propriamente lésbica, é mais uma
bissexual, ou não?
- Sim, quer dizer, eu não sei muito bem o que é que sou, teoricamente acho que sou
bissexual, embora neste momento tenha uma relação lésbica. Não sei por quem me vou
apaixonar a seguir, mas também não estou nada preocupada com isso. Agora estou apaixonada
por uma mulher, e tenho uma relação com ela, é uma relação que sai um bocado fora do
esquema convencional das outras lésbicas, mas enfim... tenho a minha faceta lésbica toda
“ao de cima”.
- E quando é que teve verdadeiramente consciência disso?
- Foi em 1980, quando vim para Portugal. Eu tinha estado a viver na Holanda, sabia que
havia lá muitas lésbicas, que até faziam manifestações e não sei que mais, mas nunca me
deu para aí, foi só quando vim para Portugal. Eu nessa altura estava apaixonada por um
homem, mas também estava ligada a um grupo feminista, o IDM, Informação e Documentação de
Mulheres, que já não existe, e tinha uma amiga holandesa que era jornalista, e que me
disse que queria entrevistar mulheres aqui em Portugal. Então eu indiquei-lhe uma mulher
que não conhecia, que nessa altura pertencia a um grupo que era só de lésbicas, mas de
quem tinha ouvido falar, e de quem tinha lido escritos dispersos que me levaram a pensar
que era um discursos feministas mais coerentes que eu tinha visto em Portugal, que era
a ............, que tinha estado na célebre “Manifestação dos Soutiens”. O nosso “Grupo
das Bruxas”, que mais tarde se separou do IDM, estava a fazer um livro sobre isso, e essa
minha amiga holandesa fez-lhe a entrevista, e disse-me que tinha ficado maravilhada, que
a ............ era uma “mulher soberana”, e eu fiquei muito impressionada com o que a
Saskia disse acerca dela. Entretanto soube que o grupo dela tinha sido o resultado de uma
divisão dentro do IDM, antes de eu entrar, porque havia as lésbicas e havia as não
lésbicas, e não se entendiam, isso é uma coisa muito chata que acontece às vezes com os


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A homossexualidade feminina

  • 1. A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA Teresa Castro d’Aire 1
  • 2. INTRODUÇÃO À semelhança daquilo que foi feito no primeiro volume desta colecção, tentamos oferecer ao público leitor um momento mais de reflexão sobre a realidade de um grupo de pessoas que entenderam viver uma sexualidade de sinal contrário. Também este é um tema ao qual julgamos que um grande número de leitores não irá resistir, seja qual for o seu sexo e a sua orientação sexual. Porque é um dos maiores tabús da História da nossa Civilização. Um tabú que engloba um mistério indesvendável. Tal como já tinha acontecido com os homossexuais masculinos, também elas, as sáficas, ao longo dos séculos, e salvo raras excepções, se esquivaram a falar sobre a intimidade dos seus sentimentos e da sua sexualidade. Tal como se passou com eles, também elas resolveram finalmente quebrar o seu silêncio. Aceitaram falar um pouco de si, rompendo assim com um secretismo que desde sempre as vinha acompanhando. Tiveram aqui a palavra, disseram o que tinham a dizer. Uma delas quis inclusivamente identificar-se. São nove entrevistas que se pretenderam informais no tom, mas nem por isso menos sérias na abordagem das questões, e sobretudo despidas de preconceitos. Também aqui a intimidade é chamada pelo nome que tem, sem falsos pudores. Foram entrevistadas mulheres de grupos etários que vão dos dezanove aos sessenta e cinco anos, com estatutos sócio-profissionais muito diferentes, mulheres diferentes até na cor da pele, com opções políticas e religiosas muito diversificadas. Estão presentes mães de família de aspecto conservador e está uma activista política de esquerda. Estão católicas praticantes, uma delas esteve quase a ser freira, está uma meia-judia, está uma panteísta e uma ateia confessa. Nalguns pontos assumem, no entanto, posições convergentes: à semelhança dos homens, todos elas entendem que a homossexualidade é uma característica que nalguns casos surge logo na infância, noutros casos só muito mais tarde se revela, mas é qualquer coisa que nasce com o indivíduo. Há quem tenha tido a sua primeira experiência aos dez anos de idade, há quem a tenha tido aos quarenta e oito. Todas elas garantem que as sáficas portuguesas são muitas. Ninguém sabe quantas serão ao certo, mas de acordo com estes depoimentos são muito mais numerosas do que geralmente se imagina. Algumas foram ou são casadas, três delas têm um ou mais filhos, outras tantas gostariam de os ter tido. Todas elas têm códigos de valores e todas elas fazem conceitos morais da vida. Todas elas parecem absolutamente libertas de qualquer sentimento de culpa em relação à sua orientação sexual, todas elas estão perfeitamente satisfeitas com a sua condição de mulheres e com a sua condição de sáficas. Um ponto em que parecem discordar: a designação a adoptar. Há as que aceitam com agrado a palavra lésbica, há as que não querem nem ouvir pronunciá-la. Quem são elas? Pessoas comuns. Pessoas, apenas pessoas que quiseram falar um pouco de si próprias. Talvez seja... essa rapariga que vai sentada ao seu lado no autocarro ou no metro. 2
  • 3. Ana Margarida, 39 anos, bancária. - Bom, em primeiro lugar, diga-me qual é a designação que prefere: sáfica, lésbica, mulher homossexual... - Eu gosto da palavra lésbica, é uma palavra que me soa muito bem, inclusive noutras línguas, lesbian, lesbienne... mas sei que é uma palavra que não agrada a muita gente, inclusive às próprias lésbicas. - Porque será? Tem alguma explicação para isso? - Bom, a mim parece-me que as pessoas ainda têm muita dificuldade em encarar as coisas de frente, quer dizer, em aceitar o fenómeno com naturalidade, quando afinal não é nenhum bicho de sete cabeças. É a coisa mais natural desta vida, faz parte de múltiplas culturas, desde os gineceus gregos aos harens árabes... - Está bem, já vamos falar nisso, mas agora preferia que me dissesse alguma coisa sobre as origens do lesbianismo, no seu caso pessoal. Acha que já nasceu lésbica, ou isso foi uma coisa que só lhe aconteceu mais tarde? - Olhe, você está-me a dar imensa vontade de rir com essa pergunta, porque de repente lembrei-me de uma fulana que eu conheço que diz que se tornou lésbica por causa de uma anestesia geral. Ela conta que não tinha nenhuma espécie de tendências, nem nunca tinha pensado em semelhante coisa, e que um dia foi operada a uma apendicite, e acordou lésbica. Diz que quando acordou da anestesia olhou para a cara da médica anestesista e de repente apaixonou-se por ela. Você acha que isto pode acontecer a uma pessoa? - Realmente é um bocado esquisito... - Pois é... eu não acredito. Olhe, no meu caso eu acho que foi de nascença. Aliás, a mim parece-me que é sempre de nascença. Algumas mulheres demoram é uma data de anos a descobrir a coisa dentro delas. Estou-me a lembrar de uma frase da Jill Johnston “Todas as mulheres são lésbicas, à excepção daquelas que ainda não o sabem”. E é perfeitamente natural que levem algum tempo a descobrir, repare que toda a educação que recebemos desde que nascemos é uma educação aparentemente inspirada nos valores heterossexuais, mas no fundo cheia de convites à homossexualidade, às vezes muito subtis, mas que estão lá, para quem os quiser ver. Repare na Barbie, por exemplo. A beleza feminina para agradar aos homens, não é? Mas antes de agradar aos homens, é para agradar a quem? Às meninas de cinco anos... - Quer dizer que as Barbies podem ajudar a estimular as tendências lésbicas das meninas de cinco anos? - Como milhares de outras coisas. Tudo aquilo que as ajuda a desenvolver ajuda a desenvolver todas as suas vertentes, a vertente lésbica também, porque é que havia de ser uma excepção? - Disse-me que no seu caso é de nascença? - Bom, se quer que lhe responda muito seriamente, eu acho que em tudo na vida sou a conjugação de três factores: sou uma herança genética, e a esse nível eu acredito que nasci com predisposição para ser lésbica, depois sou o produto da minha educação, de todas as influências que o mundo exterior pode ter exercido sobre mim, e é claro que existiram muitos factores que me encaminharam nesse sentido, e em terceiro lugar sou também o resultado de um acto de vontade, ou seja, eu sou lésbica porque quero, e se quisesse deixar de o ser deixava de o ser nesse mesmo momento. Se a coisa passasse a ser obrigatória, por exemplo, aí eu de certeza que me passava para o outro lado, porque do que eu gosto mesmo é de transgredir, de fazer as coisas todas ao contrário. Mas pronto, quando eu tinha cinco anos havia uma amiga da minha mãe que tinha uns olhos muito pretos, com umas grandes pestanas, que já nessa altura me deixava perturbadíssima. Aos oito anos estava perdida de amores, irremediavelmente perdida, pela minha professora da segunda classe. Nem dormia de noite, está a ver? - E foram sempre mulheres mais velhas? - Nessa altura sim. Bem vê, as miúdas da minha idade não tinham gracinha nenhuma, nem tinham maminhas nem nada... - Quer dizer que nessa altura você já pensava nessas coisas? - Pensar... talvez não pensasse, mas no subconsciente acho que já gostava. Sempre achei que as mulheres eram muito mais bonitas que os homens. - E não acha que essa sua atracção por mulheres mais velhas possa ter estado ligada a algum trauma, alguma má relação familiar, uma procura de uma figura materna substituta? 3
  • 4. - Pois, o Freud é que disse essas coisas, não foi? Mas não é verdade. Pelo menos no meu caso. Não foi nada disso que aconteceu. A minha mãe não era uma personalidade que me provocasse traumas, até nos dávamos mais ou menos bem. Às vezes discutíamos por isto ou por aquilo, mas nada de grave. Nunca me maltratou, nunca me desleixou mas também nunca me sufocou, está a ver? - Bem, então e depois? Como é que foi a sua adolescência? - Aí foi um bocado mais complicado. Tive uma grande paixão por uma rapariga de uma outra turma, mas houve uma cabra de uma colega que nos apanhou um bilhetinho, levou para casa para mostrar à mãe, a mãe foi falar com a reitora, foi uma fita... estávamos a ver que eramos expulsas. - Então e depois? - Depois? Então, eles primeiro acharam que aquilo era tudo uma anormalidade, o meu pai esteve dois meses sem me falar, mas depois a minha mãe teve uma conversa comigo e lá me convenceu que o melhor que tinha a fazer era ganhar juizo. - Ganhar juizo? - Pois, quer dizer, ser igual a toda a gente... fui a festas com rapazes, dancei com eles, ainda namorei com dois ou três... - E então? - Então, olhe, era superior às minhas forças. A voz deles eu ainda suportava. Aliás ainda hoje gosto de mulheres de voz grave. Quando se esganiçam começam-me logo a irritar. - Mas os rapazes? - Ah, pois, era a barba que me incomodava, era o cheiro deles que me dava vómitos, acho que era uma aversão visceral. E depois eram as bazófias, estavam sempre à espera que as raparigas ficassem ali embevecidas a olhar para eles, horrorosos, cheios de borbulhas... e elas ali, deslumbradas, horas esquecidas a ouvir-lhes as palermices. - Mas disse-me que também tinha namorado... - Pois foi... - E nunca se deitou com nenhum deles? - Deitei. E este até era docinho, quer dizer, não foi delicioso, mas também não posso dizer que fosse assim uma coisa insuportável. Fisicamente, quero eu dizer. O problema que se pôs foi mais um problema psicológico. Eu não conseguia aceitar ficar na posição de “objecto dominado”. Se calhar era a minha personalidade que era muito forte, talvez haja em mim um excesso de amor-próprio, independência, chame-lhe o que quiser. Eu por mim chamo-lhe auto-estima e rebeldia, e não me envergonho disso nem um bocadinho, sabe, sou assim uma espécie de Lilith. - Lilith? - Pois, foi a primeira mulher do Adão, não sabia? - Não, desculpe, mas acho que nunca ouvi falar. Está na Bíblia? - Não, não está, quer dizer, já deve ter estado, no livro de Génesis, acho eu, mas tiraram-na. Agora só está no Talmude. Foi a primeira mulher a rebelar-se contra o poder masculino. Chateou-se com o Adão e deixou-o, foi-se embora. - Essa é gira... - Pois, mas olhe que é uma personagem muito venerada entre nós, é uma espécie de protectora, de “fada madrinha” de todas as lésbicas. - Então e você diz que é uma espécie de Lilith? - Pois, sabe, no dia em que me deitei com o tal rapazinho, a certa altura apeteceu-me trocar de posição, de forma a que o meu corpo ficasse por cima do dele. E não era por mais nada, era só para experimentar, mas ele amuou, e o namoro acabou ali. - E depois? Não teve outros namorados? - Tive, até havia um que vinha de Sintra todos os fins de semana só para me ver. - E fazia amor com ele? - Não, com este por acaso não fiz. Quer dizer, havia uns beijinhos e umas coisas assim. Mas não valia a pena, era tempo perdido. - Não gostava? - Quer dizer, não gostava muito, mas o problema que se punha continuava a ser sobretudo um problema psicológico. Eu era rebelde demais para aceitar o poder do macho, é uma coisa que me irrita que não tem explicação. Mas até descobrir, até conseguir mergulhar até ao mais profundo de mim própria ainda demorou algum tempo, e ao todo ainda cheguei a ter uns três ou quatro namorados diferentes, salvo erro. Uma vez tive um que era um espertalhão. 4
  • 5. Representava o papel do homem inseguro, que é uma coisa que eles sabem que as mulheres não resistem, e nesse aspecto eu não fujo à regra. Fazia-se frágil, sabe como é, e eu com os instintos maternais todos a sairem-me cá para fora. Só ao fim de dois meses de namoro é que percebi que ele era igualzinho aos outros, aquilo era tudo ronha, era tudo um jogo para me fisgar. Eu fisicamente sou gira, porque é que não hei-de admitir uma coisa que é verdade? Tenho este nariz de judia um bocadinho grande mas sou gira, e sobretudo sou filha única e os meus pais tinham bastante dinheiro, está a ver? Acho que era por causa disso. - Quer dizer que nunca foi rejeitada pelos homens? - Olhe para mim. Acha que sim? - Não, francamente, acho que não. - Pois não. - E os seus pais, entretanto? Conformaram-se? - A minha mãe já não é viva. O meu pai nunca me falou no assunto, acho que é mais fácil para ele fingir que não sabe. O meu pai é uma pessoa assim, quando as coisas o incomodam prefere não falar nelas. Ele é judeu, e a minha mãe era católica, de maneira que em minha casa nem se ia à Missa, nem se celebrava o Sabbath, pronto, ele às vezes vai à Sinagoga, a minha mãe quando queria ia à Igreja, mas pronto, lá em casa não se discutia religião, que era para ninguém se chatear. - Olhe, e uma noção de pecado ligada à sua sexualidade, nunca teve? - Bom, eu prefiro não pensar muito nisso, porque você repare: por um lado a minha mãe ensinou-me que existe um Deus, que é o Deus dos Cristãos, que não nos deixa fazer nada destas coisas. Por outro lado eu também “herdei” um outro Deus, que é o Deus de Israel, que também não acha graça nenhuma à brincadeira, de maneira que eu vou vivendo a minha vida, e quando morrer logo converso com eles. - Olhe, falou-me de instintos maternais, nunca pensou em ter uma criança? Não gostava? - Quer dizer, lá gostar, gostava, mas é muito complicado, e também tinha de ter um modo de vida completamente diferente, tinha de ter muito mais tempo livre. Talvez um dia, se os processos de adopção forem simplificados, talvez um dia pense em adoptar uma criança. - Olhe, agora gostava que me contasse alguma coisa sobre as práticas sexuais... - Entre mulheres? - Sim, não sei se quer responder... - Claro, não tenho problema nenhum, mas não há assim muito para contar. Fazemos aquilo que nos apetece, não há muitas regras... - E pruridos... - Eu cá não tenho nenhuns. Mas há mulheres que têm. Aquelas muito machonas, sabe como é? São umas chatas, não gostam disto, não gostam daquilo, eu não tenho pachorra nenhuma. - As machonas são complicadas, é isso? - É um bocado. Conheci uma que queria vir para a cama comigo e não se queria despir. E no entanto ela gostava de sentir a minha nudez, está a ver? É por essas e por outras que eu não gosto de “sapatonas”, gosto muito mais de “sandalinhas”. Mas há uma outra coisa que eu gostava de explicar: é que as machonas são muitas vezes caricaturas de homens, e caricaturas grosseiras, dão muito nas vistas, e pela negativa, eu reconheço isso, mas são uma minoria. A grande maioria das lésbicas que eu conheço, aquelas com quem me dou, as minhas amigas, são mulheres iguais às outras, vestem-se como as outras, usam cabelos bonitos e tratados, não fumam à rufião, muitas delas são mulheres casadas e mães de filhos, na maioria casos os maridos nem sonham. - Você está a dizer que as mulheres casadas e mães de filhos deste País gostam de se deitar com outras mulheres? - Muitas delas gostam sim senhora. E os maridos nem lhes passa pela cabeça. - Mas isso é só no Jet-Set, não? - Que ideia, é em todos os níveis sociais. É claro que num nível mais elevado as pessoas têm mais a noção daquilo que estão a fazer, mas até na província, você nunca viu nos bailaricos como elas gostam de dançar umas com outras? Olhe, aqui há uns tempos atrás eu assisti a uma actuação de um grupo de folclore, acho que era um grupo do Norte, e então havia uma dança que era a “Dança da Matilde” que era dançada só pelas mulheres. Elas vinham convidar as mulheres que estavam na assistência, de forma que eu também fui, dancei com uma rapariga ainda novinha, por acaso até era muito gira, e então essa dança era uma coisa mais ou menos assim: 5
  • 6. “Oh Matilde sacode a saia, Oh Matilde levanta o braço, Oh Matilde dá-me um beijinho, Oh Matilde dá-me um abraço.” Elas punham-se sentadas sobre os calcanhares e dançavam viradas umas para as outras, ainda hoje quando me lembro disso acho que foi uma das coisas mais lesboeróticas que eu já vi na minha vida. - Eu estou a falar a sério. Você acha que elas dançam umas com outras e estão a pensar nisso? - Ora bem... a pensar nisso talvez não estejam, eu acredito que nem lhes passe pela cabeça, mas que a dança existe, isso, e que elas gostam de a dançar, lá isso gostam. E tudo isso é perfeitamente natural, não é nenhuma coisa esquisita. - Mas isso não quer dizer que sejam lésbicas. - Pois não, sou só eu é que sou... a única diferença entre mim e elas é que eu tenho consciência do meu lesbianismo e elas não. A união dos sexos opostos só serve mesmo para fazer meninos, porque o prazer, o verdadeiro prazer, prazer sensual puro e simples, é com os nossos iguais que o obtemos. Você veja lá se na África Negra, e no Norte de África, e na Índia, os homens não andam de mão dada na rua. Você já viu coisa mais homoerótica do que um grupo de escoceses a tocar gaita de foles, e a dançar em cima das espadas? E os russos, não se beijam na boca? E ninguém tem que ver nisso nenhuma anormalidade, são necessidades naturais e perfeitamente saudáveis do ser humano. - Bom, mudando de assunto. Existem lésbicas prostitutas? - Eu só conheci uma, acho que é uma coisa que quase não há. Não iam ter muita clientela, julgo eu, porque não é o tipo de coisa que apeteça comprar. Só se forem os homens, e eu sei que há homens que pagam para ver, e para entrar no esquema, mas parece-me que acabam por “comprar um produto falsificado”. Porque o lesbianismo é um fenómeno que se caracteriza justamente pela ausência do elemento masculino. No momento em que há uma presença masculina deixa de acontecer o lesbianismo genuíno, é outra coisa qualquer, pode ser uma representação teatral, um número de circo... - Regressando à questão sexual, disse-me que não tinha pruridos... - Nenhuns. - Sexo oral também? - Claro, quer dizer, não é uma obrigação, mas é o melhor de tudo. - Assim com uma mulher qualquer? - Eu nunca me deitei com nenhuma que fosse “uma mulher qualquer”. Para mim eram todas especiais, pelo menos naquele momento. Por isso nunca vi motivos para evitar ou para não fazer aquilo que me apetecesse. - E com os homens, nunca fez? - Não. Só eu é que sei o nojo que tenho das pilas dos homens. Pois se eu não como salsichas, não como bananas... - Também lhe metem nojo, é? - Enfim, seja por uma questão estética, se quiser. Em contrapartida houve uma amiga minha que esteve uma vez nos Açores, e trouxe de lá uma coisa a que chamam as cracas, é um molusco da família das lapas que eles cozem em água do mar, chupa-se directamente com a boca, e tem uma espécie de algas que parecem uma penugem à volta, tem um sabor como o do caranguejo, e deve ter sido a coisa que até hoje mais prazer me deu a comer. - Mas isso está à venda aqui no continente? - Não, eu até lhe sugeri que montasse um comércio de importação do dito molusco, o sucesso era garantido. Cá para mim ela ia ter dificuldade era em responder às encomendas. Eu estou a imaginar a cena, a malta aqui do continente toda a encomendar as cracas, eles lá nos Açores a escavarem as rochas, ainda eram capazes de afundar o arquipélago... - ... - Acha que os seus leitores vão ficar escandalizados com o que eu disse? - Se ficarem, paciência, isto são livros para adultos. Bom, mas com isso tudo o que você quer dizer é que os genitais femininos não a enojam. É isso? - Não, francamente, quer dizer... depende da mulher, claro, mas as mulheres com quem me deitei nunca me enojaram. 6
  • 7. - E foram muitas? - Algumas, sei lá, umas dez ou quinze, talvez... não foram muitas mais. Mas isso foi nos tempos gloriosos em que eu não tinha juízo. - E doenças venéreas? Nunca apanhou? - Olhe, talvez não acredite, mas realmente nunca apanhei. Para já penso que essas coisas se tornam menos contagiosas entre mulheres, e depois também devo ter tido um bocado de sorte. - E objectos? Nunca usou? - Os objectos chamam-se dildos. Até sei de uma pessoa que os faz em casa, em silicone, montou uma espécie de indústria caseira, até se pode escolher a cor, e parece que está farta de fazer dinheiro. Mas a maior parte da clientela não são lésbicas, pelo menos pelo que ela me contou. - Então? - Então, são gays, são homens impotentes, são mulheres casadas que não estão para aturar os maridos... - E você? - Já experimentei, mas francamente não acho que façam falta nenhuma. Não sou uma entusiasta. Prefiro usar os meus próprios recursos naturais e... a inspiração do momento. - E “ménages à trois” ? - Também já experimentei, e a quatro, e não é desengraçado, até é giro, tudo às escuras, quando a gente começa a encontrar maminhas, e rabinhos, e “passarinhas”, e ninguém sabe de quem é o quê, mas é só isso, é só para se “curtir”, para se passar um bocadinho agradável. Não é para viver o verdadeiro amor. - E o 69? Já agora... - Também já experimentei, a gente nesta vida tem de experimentar um bocadinho de tudo, não é? Mas também não acho que seja uma grande invenção. É muito complicado, sabe, acabam por acontecer duas sensações, dois prazeres muito fortes ao mesmo tempo, e a gente para se concentrar num deles acaba por se distrair do outro... eu por mim prefiro que as coisas vão acontecendo uma de cada vez, sem pressas, saboreiam-se melhor, e dura muito mais tempo. E é o melhor de tudo. Eu agora vivo com esta minha amiga há já algum tempo, há um ano e meio. Antes dela tinha uma outra namorada, mas perdi a cabeça com a ........., foi assim uma paixão... e nunca me senti tão bem como me sinto agora. Estamos horas e horas, só a sentir a pele uma da outra, às vezes já nem há onde dar mais beijos, e talvez não acredite, mas temos noites em que nem fazemos sexo nem nada, é só o gozo de estarmos ali a sentir aquela doçura, o cheiro uma da outra, que é uma coisa deliciosa, e a dizermos coisas bonitas, assim uma baboseiras muito patetas mas que nos fazem sentir muito bem. Depois paramos, fumamos um cigarro, recomeçamos, às vezes ao fim de semana é até de manhã. - E os bares? - Há uma data deles em Lisboa, noutros sítios não conheço, mas também deve haver. Uns têm um aspecto assim melhorzinho, outros são muito deprimentes, mas se calhar também são as pessoas que os tornam deprimentes. Há um que tem umas “matinés dançantes” muito kitch que dão pelo nome de “bailinho dos bombeiros”. Eu não vou lá por todas as razões, e também porque é daquela fulana que canta, que é a Dina, e eu acho a fulana um nojo. Uma fulana que tem um bar gay e que a seguir vai fazer o hino para um partido que se não é nazi, para lá caminha... eu se pudesse enfiava-lhe era um penico cheio de uma coisa que eu cá sei pela cabeça abaixo. - Você acha que ela não tem o direito de pensar à direita? - Tem, claro, estamos em democracia, não é? Eu acho que a Dina tem todo o direito de pensar à direita, e de ser paga para fazer cantigas para a direita, e de cantar mal, e de ser pirosa, e de cantar aquelas músicas da cor de corno, agora eu é que também tenho o direito de não ir ao bar dela nem comprar os discos dela. Não lhe dou um tostão que seja a ganhar. - Dá a impressão que há qualquer questão, qualquer problema pessoal entre si e ela... - Que ideia, só a conheço de vista, nem nunca falei com ela, e há uns anos atrás eu ia lá ao bar, depois deixei de ir, e a única vez que lá fui recentemente até me trataram bem, quer dizer, trataram-me normalmente, pronto, não tenho nenhuma razão de queixa, isto que eu digo é só porque acho que as pessoas não se podem esquecer dos campos de concentração e dos triângulos cor-de-rosa, e eu acho que uma pessoa como a Dina, seja ela homossexual 7
  • 8. ou não, isso eu não sei se ela é, nem me interessa, mas que ganha a sua vida num bar gay a cantar para as lésbicas, não tem o direito de fazer cantigas para um PP. Você não pode frequentar a Igreja e também a Sinagoga, tem de escolher, não pode servir a dois senhores. Portanto isto que eu disse não tem a ver com nenhuma questão pessoal, é uma questão política. E eu até sou uma pessoa moderada, se quer que lhe diga costumo votar no PS. - Mas tem outros locais de encontro? - Claro que sim. Tenho uns jantarinhos que a gente às vezes faz em casa de umas e de outras, é muito mais giro. Estamos muito mais à vontade e divertimo-nos muito mais, dançamos como queremos, não há “mirones”, é muito melhor. - O panorama não parece mau... dá ideia que há muitas pessoas como você que não só se sentem muito bem na sua pele, como vivem uma vida de alegres folionas... - Algumas estão bastante bem, mas não se iluda. Há muitos problemas por resolver, nem tudo está tão simplificado, nem tão desmistificado. Há algumas que vivem situações verdadeiramente dramáticas, com problemas de auto-estima, problemas na família, problemas económicos, problemas no emprego, situações até jurídicas, quando entram em ruptura com os maridos, por causa da tutela dos filhos, eu sei de uma que raptou o miúdo três vezes... há situações que são um verdadeiro inferno. Eu própria passei por uma situação muito complicada. Foi um emprego que tive em que o patrão se lhe meteu na cabeça que havia de vir para a cama comigo. Aliás acho que era norma lá na empresa. Um belo dia já estava tão farta daquele jogo do gato e do rato que resolvi dizer-lhe a verdade, julgava eu que era uma maneira de ele me deixar em paz. Eu tinha vinte anos, está a ver? - Então e depois? - Ele ficou doido, disse-me que era mais uma razão, ele “tinha de me possuir”. Foi uma chatice, mas felizmente tive um bocado de sorte, porque de repente abriu concurso para umas vagas aqui no Banco, e eu fui prestar provas e fui admitida. É engraçado porque eu acho que o gerente aqui do Balcão é gay, ele nunca me disse, e até é casado e tudo, mas eu desconfio imenso, de maneira que é optimo, não é o melhor emprego do mundo, mas pelo menos não tenho pirilaus a saltarem-me para cima. - Bom, eu acho que não resisto a perguntar-lhe o que é que pensa do caso Bobbit. - Acho que não tem propriamente muito a ver com lesbianismo, mas acho que ela teve toda a razão. Se eu mandasse, todos os violadores eram punidos com a castração. - E as mulheres violadoras? - Arranjaria uma pena equivalente. Ninguém tem o direito de violar ninguém. - Para acabar, uma história engraçada que lhe tenha acontecido. Não se lembra de nenhuma? - Lembro-me de uma vez ter ficado escondida debaixo de uma cama... mas lembro-me de outra mais gira. Foi uma rapariga que eu conheci, e ainda andámos juntas uma semana, ou coisa parecida, e de repente descobri que ela era minha prima. Já não nos víamos há mais de vinte anos, mas era minha prima. 8
  • 9. Luciana, 51 anos, dona de casa. - Para começar, Luciana, qual é a designação que prefere? Prefere a designação de mulher homossexual, prefere a designação de lésbica? - Prefiro a designação de mulher homossezual porque a palavra lésbica é um bocado chocante. - Em que altura da sua vida é que a Luciana encontrou a homossexualidade dentro de si? Quando é que isso aconteceu, e em que circunstâncias? - Foi durante a minha adolescência, talvez por volta dos meus catorze, quinze anos. Eu estava num colégio interno, um colégio de freiras, só de meninas, e acho que foi lá que a coisa se foi desenvolvendo progressivamente. - Olhe, e como é que isso foi vivido por si? Teve dificuldades, problemas? - Ah, sim, foi muito problemático. - Mas foi problemático porque os outros lhe causaram problemas, ou os problemas estavam dentro de si? - Estavam dentro de mim, acho eu. Havia a questão da religião, aliás elas até faziam uma certa pressão para eu ficar lá para ser freira, diziam que havia em mim uma certa propensão para ser religiosa, porque eu era muito meiga, muito submissa, e já se sabe que se eu fosse para freira elas ficavam com a fortuna toda dos meus pais, que é razoável, mas depois o meu pai começou a perceber que elas andavam muito de roda de mim e, toscou- lhes a marosca, e então tirou-me de lá, mas elas não queriam, queriam que eu lá ficasse. - E a sua família, o que é que diz de tudo isso? Os seus pais ainda são vivos? - São. E eu preferia que não soubessem, mas acho que eles desconfiam. A minha mãe, sobretudo, porque é uma pessoa bastante perspicaz, e eu acho que ela já sabe há muito tempo, só que rejeita, prefere fingir que não sabe, embora já tenha acontecido uma situação em que houve uma pessoa que tentou fazer chantagem, e ela ficou muito chocada, mas felizmente foi capaz de dar a volta à situação. - Olhe, Luciana, agora gostava que me dissesse alguma coisa sobre as origens da homossexualidade, no seu caso pessoal. Acha que já nasceu homossexual, ou isso foi uma coisa que só lhe aconteceu mais tarde? - Acho que se nasce. Acho que é um bichinho que a gente tem cá dentro... - E os homens, Luciana? Teve muitos namorados, teve poucos, como é que foi? - Só tive um, que foi o meu ex-marido. - Quer dizer que a Luciana já foi casada? O que é que o seu ex-marido pensa do assunto? - Eu acho que ele é um bruto tão completo, apesar de ter uma posição socio-económica de bastante relevo, mas ele é tão estúpido que nem semelhante coisa lhe passa pela cabeça. - E porque é que a Luciana casou com ele? - Acho que fui mais ou menos “forçada”. - Mas porquê? Estava grávida? - Que ideia, estava completamente virgem. - Então? - Era aquela coisa, “porque é que ela não se casa, toda a gente tem noivo, porque é que ela não tem”, a minha mãe às vezes dizia “Parece que tens alergia às calças”, mal ela sabia... - E teve relações com ele... - Claro. Mas não gostava. - E ele? Percebia que a Luciana não gostava? - Ai, eu acho que sim. Eu tinha uma repugnância pelo cheiro dele... era-me muito desagradável, às vezes nem dava para disfarçar. De maneira que tive de me separar. - Foi sorte não ter tido filhos. - Mas eu tive, tive dois filhos. - E eles sabem? - Não. - Olhe, e pensa dizer-lhes algum dia? - Ao mais novo, sim. Ao outro não. Ele não tem sensibilidade nem capacidade mental para entender. - E se um dos seus filhos fosse homossexual, como é que a Luciana reagia? - Aceitava, pois com certeza. - Luciana, você considera-se uma mulher masculina? 9
  • 10. - Não, de maneira nenhuma, sou até muito feminina e é assim que eu gosto de ser. - E costuma agradar aos homens? - Acho que sim, pelo menos pela maneira como eles às vezes olham para mim, fazem um ar mais guloso... - E se pudesse mudar de sexo, mudava? - Jamais! - E se pudesse de repente passar a ser heterossexual, passava? - Não, também não. - Olhe, e práticas sexuais? Fala-se às vezes de mulheres homossexuais que são activas, e de outras que são passivas, acha que é verdade? - Acho que depende, não é, vai tudo da disposição do momento, e da parceira que se encontra pela frente. Eu pela minha parte tanto gosto de ser uma coisa como outra, sou uma coisa e outra conforme me apetece. - E acerca dessa história do orgasmo vaginal e do orgasmo clitoriano, o que é que me diz? - Digo-lhe que existem ambos, mas talvez para mim o clitoriano seja o mais intenso. - Luciana, o que é para si um orgasmo? - Não lhe sei descrever. É tão bom, tão bom... não lhe sei explicar melhor. - Olhe, e uma sensação de pecado ligada à sua tendência mais íntima? - Pecado? - Sim, quer dizer, a ideia de um Deus que amanhã possa vir a puni-la, porque no fundo a Luciana recebeu uma educação muito religiosa, e hoje é uma pessoa que transgride... - Não, não acredito. Deus é pai, e compreende tudo, nunca me vai pedir contas por isto. - Olhe, e experiências amorosas com mulheres? Muitas? - Uma só, que é a mulher com quem vivo hoje. Nunca me tinha deitado com outra, nem penso deitar. Seria impensável. - Pelos vistos valeu a pena... - Ah, sim, sem dúvida nenhuma. - E não pensa voltar-se nunca mais para os homens? - Ah, não, eu tive uma vida de casada que foi extraordinariamente traumatizante, porque o meu ex-marido é uma pessoa com um perfil muito difícil, e o meu filho mais velho também, porque é a “fotocópia” do pai mas ainda é pior, é do género de partir coisas, e de atirar com tachos à parede, eu fui várias vezes parar ao Hospital Ortopédico, uma vez com um braço partido, outra vez com o queixo partido... - Ouça, quer dizer que apesar de não gostar do seu marido, nem do contacto com ele, se ele não fosse agressivo, apesar de tudo a Luciana talvez não o tivesse deixado? - Olhe, não sei. Porque por um lado uma mulher divorciada às vezes ainda é um bocado mal vista, e qualquer um julga que lhe pode faltar ao respeito, e também tinha os filhos pequenos, e depois também havia a questão religiosa. Eu sabia que ele também não gostava de mim, se gostasse de mim não me batia, aliás eu hoje acho que ele só casou comigo por causa do dinheiro, e acho que fiz muito bem em deixá-lo, mas nessa altura achava que tinha de levar aquela cruz, mas por outro lado a sensação de mal estar que eu tinha ao pé dele era tão forte que era capaz de o ter deixado na mesma. - Mas enquanto durou o seu casamento nunca se sentiu atraída por outro homem? - Nem homem nem mulher, eu não sou mulher para ser infiel, seja em que circunstâncias for. Nem em pensamentos. - Costuma-se dizer que a carne é fraca... - Pois será, mas não a minha. Eu sei muito bem o terreno onde piso. - Você dá-me um bocado a impressão de também ter tido azar com o marido que lhe calhou... - Ah, sim, ele era um bruto, repare que eu nem um beijo sabia o que era, um beijo como deve ser, mas mesmo que não fosse, e eu admito que haja homens diferentes do meu, depois de experimentar uma mulher já ninguém se volta outra vez para os homens. - A Luciana sabe que há mulheres que usam objectos de borracha. O que é que pensa disso? - Penso que é uma parvoíce. Pois se eu tive um ao natural e não gostava... não gostava do formato, não gostava do aspecto, não gostava do cheiro... não achava graça nenhuma, fazia-me uma impressão horrorosa, para que é que eu vou querer uma cópia, se não gostei do original? Em contrapartida quando via uma mulher despida achava que era uma coisa lindíssima, achava que aquilo devia ser uma delícia. - Mas não sabia como era... - Não, não sabia, tive de perguntar à ........., que nessa altura ainda era só minha 10
  • 11. amiga. Não fazia a menor ideia, de maneira que um dia voltei-me para ela e disse-lhe que ela tinha de me explicar como era, e ela explicou, não sei se está a ver... - Bom, para acabar, explique-me só como é que uma mulher como você, uma mãe de família de vestido e colar de pérolas, se decide de repente a assumir uma ligação com uma pessoa do seu próprio sexo. - Olhe, foi muito difícil. Muito difícil mesmo. Comecei por ter uma certa relutância, e sofri bastante até conseguir aceitar aquilo que eu própria sentia, mas havia uma atracção muito grande pela mulher com quem vivo hoje, a ponto de eu ter chegado a dizer-lhe que não sabia o que é que se estava a passar comigo. Era uma pessoa que eu já conhecia, nunca tinha falado com ela mas conhecia-a de vista, e foi muito engraçado porque ia um dia num comboio e adormeci, e de repente acordei e ela estava na minha frente, e eu olhei para ela e senti que tinha de ser aquela pessoa, senti que era o amor da minha vida. Entrei num conflito tremendo comigo própria, porque de facto os homens não me diziam nada, e eu sempre tinha sentido uma grande necessidade de ternura em relação a outras mulheres, desde muito novinha, mas nunca tinha levado isso para o plano do amor, e de repente percebi que estava apaixonada por uma mulher, de maneira que foi um passo muito difícil de dar, eu suava suores frios, enfim... Hoje ela é alguém que é a continuação do meu próprio corpo, do meu pensamento, é a única pessoa com quem eu consigo partilhar tudo, corpo e espírito, e consigo ter com ela uma relação de tranquilidade e de equilíbrio como uma mulher e um homem nunca conseguem atingir. Eu só tenho pena de não poder dizer isto a toda a gente, de cara levantada, mas não posso, primeiro porque o meu filho mais novo ainda é menor, e o meu ex-marido ainda era capaz de arranjar maneira de me levar a tribunal e de mo tirar. E também ia magoar muito os meus pais, mas daqui uns anos, que o meu filho seja maior, e esteja preparado para saber a verdade, e se os meus pais já não estiverem neste mundo, se nessa altura eu tiver a situação financeira desafogada que tenho hoje, que não precise de trabalhar, nessa altura dou a cara e conto tudo, porque todas as mulheres precisam de saber, o mal é as mulheres não saberem o bom que isto é, porque quando elas souberem o mundo dá uma volta, se dá! Isto foi a melhor coisa que eu descobri na minha vida, eu agora só tenho medo é de morrer e não gozar isto por muitos anos. Se eu perco aquilo que tenho agora até sou capaz de morrer, não tenha dúvidas, morro sim! E é por isso que eu digo a todas as mulheres deste País, se não querem ter problemas não experimentem, porque no dia em que experimentarem com uma mulher nunca mais querem um homem. 11
  • 12. Joana, 24 anos, hospedeira de terra de uma companhia aérea. - Joana, em primeiro lugar, qual é a designação que prefere? Lésbica, sáfica, mulher homossexual? - Eu não gosto muito de catalogar as pessoas. A palavra lésbica não me agrada minimamente, não me agrada a mim nem agrada a ninguém, acho eu. Prefiro mulher homossexual. - Quando é que a Joana descobriu as suas tendências para a homossexualidade? - Bom, eu já fui casada três anos, um dia conheci a ............, que estava divorciada, ela veio viver para minha casa por causa das circunstâncias do divórcio dela, e foi nessa altura que começou. Já lá vão três anos. - E foi só nessa altura que deu por isso? - Não, eu acho que já sabia, só que tinha medo de assumir. Eu nunca tinha encontrado ninguém que me ensinasse a ver as coisas de outra forma. - Quer dizer que a sua amiga já se tinha assumido? - Sim, ela nessa altura até tinha uma amiga, quando eu apareci na vida dela. - E a Joana, nunca tinha tido uma experiência? - Não, nunca. Apesar de estar convencida de que no fundo, inconscientemente, nunca quis outra coisa que não fosse aquilo que tenho agora. Porque os relacionamentos que tive com os homens de facto nunca me satisfizeram a nível nenhum. - E na adolescência, como é que foi vivida essa sua tendência? - Não foi. Nem sequer ao nível do subconsciente. - Olhe, Joana, e a sua família? Sabem? Aceitam? Como é? - Sabem, e aceitam, porque se eu não estava feliz com o meu casamento, e de repente eu encontrei uma pessoa diferente, e as coisas já duram há três anos, e eles vêem que eu agora ando muito mais feliz, eles compreenderam que eu tenho o direito de ser feliz, seja com uma homem, seja com uma mulher. Aceitaram muito bem. Ao princípio foram um bocado renitentes, e é natural, porque isto é uma coisa que nem toda a gente aceita, mas eu abri logo o jogo, e acho que essa minha honestidade também acabou por ajudar, e por funcionar a meu favor. Já com a família dela as coisas não são assim tão simples. Eles toleram mas não aceitam. O pai dela, por exemplo, simpatiza muito comigo e aceita-me muito bem, mas o resto da família já não me aceita assim tão bem. É uma família muito burguesa, muito classe média, enquanto que a minha já são pessoas um bocadinho mais modestas, não têm tantos problemas, e talvez seja por isso. - Olhe, Joana, você acha que se nasce homossexual, ou isso é uma coisa que se adquire com o tempo? - Eu acho que se nasce homossexual, como acho que há muita gente que ainda não descobriu a sua própria homossexualidade, e não descobriram por causa da sociedade. Eu acho que há muitos casamentos frustrados como foi o meu, porque as pessoas têm medo de assumir uma relação homossexual, que é a coisa mais natural deste mundo. - Disse-me que o seu relacionamento com os homens não foi grande coisa, quer falar um bocadinho sobre isso? - Os meus namoros... quer dizer, não é que tivessem corrido mal, pelo menos até uma certa altura, mas depois de umas semanas as coisas começavam a correr mal. Por exemplo, o meu segundo namorado, é uma pessoa que eu ainda hoje tenho um carinho muito especial por ele, eu era capaz de viver com ele o resto da minha vida, mas como irmãos. Isso é uma coisa que lhes faz muita confusão, pensarem como é que uma mulher se dá ao luxo, e tem o atrevimento, de não precisar de uma pila para nada. - E como é que você tem esse atrevimento? - Tenho. Realmente não preciso dos homens para nada. Eles acham que são uns supra-sumos, mas eu de facto governo-me muito bem sem eles. - Olhe, Joana, e filhos? Nunca teve pena de não ter um filho? - Eu tenho. - Ai sim? - Tenho, tenho um filho que é uma graça. - E tem a sensação de ser uma boa mãe para ele? - Tenho. Apesar de estar um bocadinho apreensiva em relação ao futuro. Vai haver um dia em que vou ter de lhe dizer a verdade, e só espero conseguir dizer-lhe na altura certa e da maneira certa. 12
  • 13. - A Joana considera-se uma mulher masculina? - Não, nem um bocadinho. Às vezes lá visto umas calças, lá meto uns sapatos mais desportivos, mas não sou uma mulher masculina. - E sobre as mulheres muito masculinas, o que é que me diz? - Bom, eu não aceito isso muito bem, porque eu acho que lá pelo facto de ser ou não homossexual, uma mulher é sempre uma mulher. No momento em que uma mulher resolve cultivar um tipo masculino está a desprezar a coisa melhor que tem, que é o facto de ter nascido mulher. Eu não critico, mas não gosto, como não gosto de ver um homem de saltos altos e pestanas postiças. - Olhe, Joana, há um bocado a ideia, sobretudo por parte dos homens, e também de algumas mulheres, de que as mulheres quando se viram para outras mulheres é porque foram rejeitadas pelos homens. O que é que tem a dizer sobre isso? - Eu acho que isso são conceitos que estão completamente ultrapassados. Nem me parece que haja ninguém hoje em dia a voltar-se para as mulheres porque foram rejeitadas pelos homens. Hoje em dia uma mulher que resolve “virar” lésbica é porque descobriu a sua própria sexualidade. Não tem nada a ver com serem ou não rejeitadas pelos homens, porque não há mulheres feias, há mulheres que são menos bonitas do que outras, e há mulheres que não fazem nada para tirar partido da beleza que têm, porque toda a mulher é bonita. - Acha que as mulheres são mais bonitas que os homens? - Não. - Se pudesse mudar de sexo, mudava? - De maneira nenhuma. - E se pudesse voltar a ser completamente heterossexual? - Não voltava. - Olhe, Joana, o que são as práticas sexuais entre mulheres? - Bom, para já as coisas são vividas de uma forma muito mais intensa, e depois sabe que duas mulheres são duas iguais, sabem muito melhor o que querem uma da outra do que uma mulher e um homem, porque um homem nunca pode saber o que são as sensações de uma mulher. As mulheres têm outra sensibilidade, têm outra capacidade de dar carinho. - Sabe que também há um bocado a ideia de que entre duas mulheres há uma que faz o papel de macho... - Isso é uma tolice, não existe, na cama não existe um homem e uma mulher, existem duas mulheres e pronto. Pode haver um momento em que uma seja mais activa, e a outra mais passiva, mas isso vai da disposição do momento, não tem nada a ver com o esquema heterossexual. Poderá haver uma com um temperamento mais rebelde, ou mais decidido, mas quando chegam à cama desfazem-se como torrões de açúcar. - Olhe, Joana, e sobre os locais de encontro? - Bom, há o “Bailinho dos Bombeiros”, mas eu não vou lá muito. Aliás eu não sei se serão lugares de encontro ou de segregação, e de desencontro. Porque os homossexuais estão estigmatizados, e eu acho que se ainda por cima se fecham em ghettos isso não pode ser nada bom para ninguém. As pessoas vão para ali porque pelo menos vão encontrar outras pessoas que também não têm um espaço melhor para conviver, mas é muito engraçado que há muitos não-gays que vão lá só para bisbilhotar, e pensam que vão lá ver os animaizinhos do jardim zoológico, ou não sei o quê, mas de facto não se passa nada nesses bares que não se passe cá fora, as pessoas não estão lá a fazer nada de especial, quando muito podem dar a mão, ou dar um beijinho, mas não se vai para ali para fazer outras coisas. Agora parece que há um esquema no Bairro Alto, que é um bar de prostituição de mulheres e para mulheres. - A sério? Olhe que é a primeira pessoa que fala nisso... - É verdade, eu até tenho andado com uma certa curiosidade de ir lá meter o nariz. Obviamente que não é para ir para a cama com nenhuma mulher, mas tenho alguma curiosidade de descobrir onde é, e de ir até lá para ver como é que essas coisas funcionam. E também há algumas, sobretudo miúdas de dezassete, dezoito anos, que gostam de mulheres, mas funcionam nos bares, como alternas, e deitam-se com os homens porque é a única maneira que têm de sobreviver. - Joana, nós já falámos um bocadinho de sexo, mas eu ainda não lhe perguntei uma coisa: o que é um orgasmo? - É tão difícil de explicar... é o culminar de tudo, também não lhe sei explicar muito melhor, mas também não é uma coisa que se tenha de atingir sempre, às vezes não acontece, 13
  • 14. e não é por isso que uma pessoa vai ficar chateada. Eu posso passar horas na cama com a minha amiga, e não atingirmos o orgasmo, ou até nem sequer fazermos sexo, e ser óptimo. Não é que o orgasmo não tenha importância nenhuma, é claro que tem, mas também não é assim tanta. - Também se fala de orgasmo vaginal e de orgasmo clitoriano, o que é que a Joana me diz sobre isso? - Eu acho que são diferentes, mas são os dois muito bons, embora eu prefira o clitoriano. - A Joana foi educada religiosamente? - Sim, fui à catequese e tudo. - Nunca teve uma noção de pecado, um certo receio de que haja um Deus que amanhã lhe possa pedir contas?... - Não, eu acho que as pessoas devem ser felizes, e se realmente Deus existe, Ele quer é que as pessoas sejam felizes, seja de que maneira for. - Para terminar, quer acrescentar alguma coisa? - Eu gostava de acrescentar duas coisas. A primeira tem a ver com a imagem pública das pessoas. Duas mulheres não podem dar um beijinho no meio da rua. Mas porquê? É ridículo, e eu espero que num futuro próximo as pessoas estejam mais libertas, e vejam as coisas de outra maneira, porque toda a gente tem o direito de ser como é. A segunda questão é a questão laboral. Eu passei por uma situação muito chata. Estava a trabalhar numa empresa, toda a gente gostava de mim, os patrões achavam que o meu trabalho era optimo, parecia que era tudo uma maravilha. Um dia descobriram que eu vivia com uma mulher, e daí para a frente passaram a criticar-me, o meu trabalho já não prestava, até que um dia ouvi um colega meu a falar com o patrão. Ele estava a dizer que eu era muito bonita, e o patrão respondeu-lhe: “Oh pá, essa gaja é gado, não presta, tu não sabes que ela está com outra gaja?”. É muito difícil para uma mulher assumir no emprego que é homossexual. Quando as pessoas são artistas, ou quando atingem um determinado estatuto socio-profissional, as coisas tornam-se mais fáceis, mas antes disso é muito complicado. Eu quando saí dessa empresa, as perseguições e as pressões foram tantas que eu tive um esgotamento, estive uma semana a fazer uma cura de sono, de forma que eu nunca mais vou cair na asneira de contar no meu local de trabalho aquilo que sou. Embora existam muitas mais dentro da companhia, e topamo-nos umas às outras, mas a norma é cada uma fingir que não sabe de nada, e que não é nada com ela. O que é que eu vou fazer? Vou-me armar em panfletária, e pôr em risco o meu emprego e a subsistência do meu filho? Não me posso dar a esse luxo. Mas vou lutando, com as forças que tenho. Lutei muito por aquilo que quiz, e arrisquei muito, deixei casa, deixei um marido que ganhava bem, deixei conforto, e não me arrependo. Por isso gostava de dizer a todas as mulheres homossexuais que lerem esta entrevista que não percam a coragem, que não se deixem vencer. Mesmo que cometam erros, que tropecem muitas vezes, levantem-se sempre, porque vale a pena. Acima de tudo, nós estamos neste mundo é para ser felizes. 14
  • 15. Francisca, 36 anos, profissão liberal. - Para começar, Francisca, qual é a designação que prefere? Mulher homossexual, sáfica, lésbica? - Mulher homossexual. Não gosto nada da palavra lésbica, é uma palavra que eu rejeito visceralmente. - Olhe, quando é que detectou em si as tendências homossexuais, e em que circunstâncias? - É uma história engraçada. Foi quando fui obrigada pela primeira vez a encarar frontalmente a situação. Tinha dezanove anos. É engraçado porque eu sempre tinha sentido uma certa atracção pelo sexo feminino, sentia uma coisa muito forte por algumas das minhas professoras, e por outras mulheres bastante mais velhas, aliás ainda hoje quase todas são minhas amigas, mas eu até aí nunca tinha visto a questão como uma questão sexual, inclusivamente pensava muitas vezes que gostaria de viver com essas pessoas, para partilhar da vida delas, mas não pensava em sexo nem nada disso. O que me atraía era a ternura, o afecto, e não o sexo, e quando fui confrontada com essa situação lembro-me de ter ficado extremamente chocada, e de ter rejeitado a coisa completamente. - Quer contar como é que isso aconteceu? - Foi com uma pessoa por quem sentia uma grande amizade, com quem tinha muitos pontos em comum, só que ela pôs-me as coisas nestes termos: “Ou aceitas também o aspecto sexual, ou a mim não me interessa mais ser tua amiga”. E perante esta situação em que fui colocada, em que tinha pela frente uma pessoa de quem eu gostava e que gostava de mim, e que queria partilhar tudo comigo, mas que me punha as coisas daquela maneira, eu disse que ia pensar. E fui pensar. E acabei por ceder, porque pensei o seguinte: “Bom, isto pode ser que não seja grande coisa, mas mal também não pode fazer, por isso vou experimentar”. E experimentei. Até hoje. - E então? - Então, achei que era assim. Achei que era o grau mais profundo de encontro que podia haver entre duas pessoas. - E a sua família? Sabem, não sabem, e o que é que dizem disso? - O meu pai morreu há muitos anos. A minha mãe sabe, e teve uma reacção que para mim foi completamente inexperada. Eu até aí tinha tido uma relação estupenda com ela, uma relação de abertura, de amor, e pensei que ela me fosse aceitar tal como eu sou, e que me compreendesse, até porque sou filha única. E quando eu me vi confrontada com a situação de ter de assumir a opção que tinha feito em termos da minha sexualidade, ela reagiu muito mal, e portanto a partir daí as nossas relações alteraram-se, eu deixei de ter por ela os sentimentos que tinha, e a partir daí ela tem interferido sistemática e negativamente nas minhas relações, julgo eu que por uma questão de ciúmes. Eu acho que, no subconsciente dela, ela acha que se eu gosto de mulheres, devia contentar-me com a companhia dela e devia sublimar tudo nela. - Acha que ela sente isso? - Acho. E até já lho disse. Já a obriguei a tomar consciência desse facto. Já a confrontei com isso. Ela reagiu muito mal, mas eu não podia deixar de lhe dizer. E não foi só isso. Eu tive de me demarcar em relação a uma série de coisas, porque todos os relacionamentos que eu tive até hoje com outras pessoas foram fortemente afectados pela influência da minha mãe, que tem feito as coisas mais diabólicas, desde telefonemas anónimos até sei lá mais o quê, para conseguir destruír qualquer relação que eu possa ter com qualquer mulher. Por ciumeira pura. - Olhe outra coisa, Francisca, você acha que nasceu homossexual, ou essa foi uma característica que você só adquiriu depois? - Comigo houve uma percentagem, digamos assim, que era genética, e outra que foi aprendida. Mas acho que há pessoas em quem a coisa geneticamente estava “programada”, mas o ambiente pode nunca chegar a proporcionar que a coisa aconteça, e essa aprendizagem nunca se chegar a fazer, como pode acontecer o contrário, geneticamente não estar “programado”, mas o ambiente proporcionar essa experiência, e a coisa desenvolver-se. Mas a mim parece-me que na maioria dos casos a tendência genética provavelmente estava lá e o ambiente proporcionou que a pessoa experimentasse, e a pessoa provou, e gostou, e pronto. - Olhe, e os homens? Teve namorados, ou não teve, como é que foi? - Não foram muitos. Eu nesse aspecto acho que vivi sobretudo alguns desencontros. Houve uma paixão que foi bastante forte, e era recíproca, mas ele vivia em Angola, e a 15
  • 16. distância já era um factor que complicava, para não dizer que impossibilitava o relacionamento. Depois houve rapazes que gostaram de mim, mas não havia da minha parte uma correspondência, por isso não podia resultar, e também houve um rapaz de quem eu gostei muito, mas também aí as coisas não resultaram. - E filhos? Nunca teve pena de não ter filhos? - Não. Nunca tive. Penso que pôr mais gente neste mundo é um acto de egoísmo. Não acredito que haja ninguém que esteja satisfeito nesta vida, que ache que valha a pena viver, por isso acho que não vale a pena pôr mais gente na terra. - Você é muito pessimista... Olhe, e nunca pensou em adoptar uma criança? - Nas duas relações mais duradouras que tive chegou a pôr-se essa hipótese, mas é muito complicado, aliás nem sequer existe em Portugal, julgo eu, uma forma legal de duas pessoas do mesmo sexo adoptarem uma criança. É claro que eu posso ir a um bairro de lata, comprar uma criança recém nascida, registá-la como se fosse minha, e dar-lhe amor, dar- lhe um futuro, dar-lhe tudo, é uma infracção à Lei mas é também um acto de grande humanidade, mas até isso é uma coisa que não se pode fazer com ligeireza, é preciso ter uma capacidade de dádiva muito grande, até porque essa criança pode vir com inúmeros problemas. Eu não sei, por exemplo, se ao fim de um tempo se detectasse que a criança estava infectada com o vírus do HIV, ou com outra doença qualquer, francamente não sei se como é que iria encarar o problema, de forma que teoricamente não rejeito essa possibilidade, mas na prática não sei se tenho essa disponibilidade interior, essa generosidade toda. - Francisca, você é uma mulher que cultiva um estilo um pouco andrógino. Sente-se bem assim? - Sinto. Eu sentir-me-ia mal era se tivesse de cultivar outro estilo. Eu sou assim mesmo, e sinto-me muito bem tal como sou. - Você concorda com aquela ideia que existe de que as mulheres homossexuais são mulheres que foram rejeitadas pelos homens? - Nalguns casos acho que sim, acho que algumas mulheres fizeram esse percurso, mas isso acontecia mais noutros tempos, e talvez ainda aconteça na província, onde as mulheres ainda não sabem que têm o direito de pura e simplesmente rejeitar os homens. Hoje em dia, e na província também, porque a televisão tem servido para informar as pessoas, e chega a todo o lado, as mulheres já sabem muito bem qual é o seu lugar na sociedade, e quais são os seus direitos, por isso parece-me que elas quando se voltam para as outras mulheres é mesmo porque se sentem mais atraídas e porque gostam mais. No meu caso não fui muito requestada pelos homens porque de facto não cultivo essas situações sociais de encontros heterossexuais. Eu acredito nos encontros entre pessoas, independentemente do sexo, e não no encontro entre pessoas porque se pertence a este ou ao outro sexo. - Se pudesse mudar de sexo, mudava? - Não mudava, jamais. - E se pudesse passar a ser completamente heterossexual? - Essa pergunta não faz muito sentido para mim. Eu defendo que o equilíbrio mais perfeito se atinge com a bissexualidade. Contra mim falo, porque eu não me posso assumir como bissexual, pelo menos na prática, na medida em que nunca vivi uma relação com um homem, mas teoricamente acho que me devo assumir como bissexual, porque teoricamente não rejeito essa possibilidade. - E práticas sexuais? - Aceito tudo, desde que dê prazer às pessoas. - Francisca, o que é para si um orgasmo? - É uma situação aflitiva que se começa a desencadear, e tal como ele é descrito em termos fisiológicos, vai crescendo, até atingir um ponto culminante, e quando está lá no cimo a aflição é de tal maneira forte que só se deseja que acabe depressa. - E o que é isso do orgasmo vaginal e do orgasmo clitoriano? - São duas formas diferentes de se sentir uma mesma coisa, eu conheço as duas e digo-lhe que o vaginal é bom, mas eu ainda gosto mais do clitoriano, nesse aspecto não tenho dúvidas nenhumas. Aliás eu acho que é por isso que muitas vezes as relações heterossexuais não resultam, é porque os homens não sabem isso. - E o recurso a objectos? - Nunca experimentei. Sei que existe, mas nunca vi necessidade de me servir dessas coisas. Prefiro explorar a minha própria habilidade natural. Isso tem a ver com o perfil 16
  • 17. das pessoas, obviamente. Eu confesso que isso para mim é uma coisa um bocado disparatada, e custa-me um bocadinho a perceber porque é que há mulheres que usam essas coisas, porque para isso então mais vale ir com um homem. Acho que isso está bem para os gays, sobretudo agora com o problema da SIDA, agora para as mulheres acho que não serve para nada. - Olhe, e uma noção de pecado, ligada à sua sexualidade? - Eu não tenho esse tipo de problema, porque não cultivo nenhuma religiosidade, de forma que não encaro as coisas por esse prisma. Eu fui educada dentro da religião católica, fiz a Primeira Comunhão e mais não sei o quê, e isso fez-me interiorizar uma certa noção de pecado, mas quando atingi a idade adulta rejeitei tudo isso. Não tenho nenhuma relação com nenhum Deus. - E quando morremos? Para onde é que vamos? - Vamos para a terra. Nós somos pó e mais nada. Morremos, acabou. Quando muito poderemos vir a ser alimento para as plantinhas, e para outros seres. - Olhe, e o que é que pensa dos bares, dos lugares de encontro? - Compreendo que existam, mas não os frequento. Acho que cada uma é livre de lá ir se quiser, mas a mim não me dizem nada. O meu estar na vida não passa por aí. Se calhar há pessoas que não têm outra forma de se encontrar, e nessa medida se calhar os bares são nesmo necessários, mas eu de facto não sou frequentadora. Acho mesmo que esses bares são um factor de deturpação da homossexualidade, de abandalhamento, se quiser, de uma coisa que pode ser vivida com toda a decência. Porque o verdadeiro encontro e o relacionamento sério entre as pessoas não passa por isso. Mas também não “simpatizo” nada com os “lugares de engate” heterossexuais, onde aliás também podem acontecer encontros homossexuais. Porque eu não faço uma grande distinção na vida entre homossexuais, heterossexuais e bissexuais, até porque acho que a postura mais certa, mais equilibrada, é a da bissexualidade. Acho que toda a gente tem a liberdade de fazer aquilo que quiser, desde que não incomode nem moleste os outros. Devia haver um respeito muito maior entre as pessoas. Se todos se respeitassem uns aos outros este mundo era optimo, e quando as pessoas se fecham nos ghettos dos bares estão de certa forma a desvirtuar aquilo que é sério e honesto. - Olhe, e de experiências amorosas, que tal? Muitas? Poucas? - Poucas. Necessariamente poucas. Eu só conto três histórias amorosas na minha vida. De facto não são muitas, se se pensar que há mulheres que têm vinte ou trinta ou cinquenta. Tive uma relação que durou nove anos, outra que durou cinco, agora há dois anos que estou com esta minha amiga. Penso que foram relações sérias, qualquer delas, e podiam ter durado mais tempo. Porque para me dar completamente a alguém, eu tenho de achar que de facto vale a pena. Chegar ao aspecto sexual é para mim o último passo no encontro e na partilha, e eu não encontrei assim tanta gente com quem me pudesse partilhar completamente, com quem merecesse a pena chegar à vivência do sexo. - Já agora, uma história engraçada que tenha vivido, não me quer contar? - Não sei... olhe, uma vez recebi uma proposta de um encontro a três, que me surgiu como uma oportunidade única, e eu gosto de situações que sejam por um lado quase de um certo risco, e que por outro lado sejam novidade, acho que tenho um espírito de abertura muito grande. - Desculpe lá, mas olhe que isso contado dessa maneira não tem assim muita graça... - Pois não, não tem graça nenhuma, porque realmente não teve mesmo graça, porque a minha companheira rejeitou a coisa completamente. - E depois, o que é que aconteceu? - Foi-me muito difícil gerir a situação. Ela ficou muito contrariada, mas enfim, lá aceitou fazer a experiência, mas é claro que resultou muito mal. Mas é engraçado, e isso sim, tem realmente graça, é que eu, que tinha aderido à ideia, acabei, interiormente, por achar que era bom, embora não me tivesse aproveitado da situação, e ela, que tinha rejeitado a ideia, aproveitou-se muito mais do que eu, e nós quando nos lembramos dessa história ainda hoje nos rimos. Eu acho engraçadíssimo que ao fim de um certo tempo entrámos em pormenores, e só nessa altura, passados anos, é que percebemos que ela gozou muito mais com a situação do que eu. Quer dizer, chegámos as três à cama, eu estava cheia de vontade, e a terceira pessoa também estava muito mais interessada em mim do que na minha amiga, mas eu estava com imensos problemas em relação à minha amiga, porque ela se tinha fartado de dizer que não queria, e tinha inclusivamente entrado numa situação de conflito aberto comigo, de maneira que eu estava completamente bloqueada e quase que não 17
  • 18. fiz nada, e ela e a terceira pessoa é que fizeram a festa, e eu fiquei de fora. Portanto, e resumindo, eu aceito esse tipo de prática, embora as pessoas com quem tenho vivido a rejeitem, e acho que é uma experiência gira para se fazer. Acho que quem tiver condições para poder disfrutar de uma oportunidade dessas não deve deixar de experimentar. - Mas como filosofia de vida, acha que é uma hipótese aceitável? - Como filosofia de vida acho que é muito complicado. Não é por mim, porque os problemas que se põem são ao nível da partilha, e eu acho que tenho uma grande capacidade de partilha, mas penso que uma relação a três é uma coisa muito difícil de gerir. Há o problema do ciúme, porque as pessoas não têm capacidade de dádiva e de aceitação dos outros. Não é por mim, porque eu acho que era capaz de gerir uma situação dessas, mas a minha experiência ensinou-me que de facto é tão difícil que se calhar não vale mesmo a pena. 18
  • 19. Carla, 19 anos, estudante. - Olhe, Carla, para começar, qual é a designação que prefere? Mulher homossexual, lésbica, sáfica? - A palavra lésbica a mim não me incomoda assim muito, mas também não me importo que me chamem de outras maneiras. Eu não me importo com nada. - Quando é que a Carla descobriu as suas tendências para o lesbianismo, e como foi que isso aconteceu? - Ah, isso foi muito engraçado, eu tinha dezasseis anos, foi numa altura em que os meus pais tinham ido à terra, e eu estava em exames, de forma que fiquei em casa da minha vizinha, e então o marido dela é da PSP, e nessa noite estava de serviço, de maneira que ela começou assim com umas coisas, a dizer que eu estava a ficar cada vez mais gira, e a perguntar se eu tinha cuequinhas com renda, e não sei que mais, e eu achei aquilo tudo uma conversa muito parva, mas não liguei. Ás tantas, já devia passar da meia-noite, acordei com ela a chamar-me, que tinha uma surpresa para mim, e então eu lá me levantei, muito espantada, e então é que vi que ela estava com uma lingerie com umas flores azuis, e estava saída do banho, toda perfumada, tinha posto música a tocar, e uns poucos de pauzinhos de incenso, daqueles que se vendem nos indianos, e então puxou-me para ela, e abraçou-me, depois começou a dar-me beijos no pescoço, e eu sem perceber nada, mas ao mesmo tempo aquilo estava a saber-me bem, e perguntei-lhe o que era aquilo, e o que é que ela queria. Ela deu-me um copo com whisky e disse-me: “Olha, eu gosto muito de ti, e gostava muito de passar a noite contigo, mas pronto, se não queres podes ir dormir, mas ficas a perder, por isso vê lá se queres ou não, tu é que sabes.” Eu aí de repente olhei para ela, achei-a bonita, pensei que se calhar ficava mesmo a perder, e disse-lhe que sim, que queria. Ainda ficámos ali um bocado na sala, na marmelada, depois fomos para o quarto, e pronto. Agora quando o marido dela está de serviço eu vou até lá para lhe “fazer companhia”. - E ele não desconfia de nada? - Acho que não, porque é que havia de desconfiar? - E os seus pais? - Também não. Noutro dia ligou lá para casa um rapaz que é meu colega da faculdade, e depois à noite a minha mãe pôs-se a fazer-me perguntas à mesa, se era o meu namorado, e umas coisas assim, e eu disse que sim, que era, mais ou menos, e que estava a acabar o curso, e eles ficaram todos satisfeitos. - Olhe, Carla, a Carla acha que já nasceu lésbica, ou foi uma coisa que só lhe aconteceu depois? - Eu não sei, porque eu antes nem nunca tal coisa me tinha passado pela cabeça, mas também, se não houvesse lá qualquer coisa dentro de mim, também não tinha ido assim à primeira, não é? Porque ela só me convidou, não me obrigou, eu só fui para a cama com ela porque quis, e ainda por cima gostei... - Quer dizer que a Carla nunca teve namorados? - Não, quer dizer, pelo menos assim namorados à séria, isso não tive. Ainda não pensei muito bem se quero ter, porque eu gosto muito da minha vizinha, mas por outro lado não posso estar muitas vezes com ela, é só quando o marido não está, por isso isto é tudo uma grande confusão, eu ainda nem sei o que é que quero fazer da minha vida. - A Carla gostava de ter filhos? - Ai, adorava. Por isso é que isto ainda é tudo mais complicado. Do que eu gostava era de poder viver com ela, noutra cidade qualquer, que ninguém nos conhecesse, e podermos ter um bébé, mas como isso não pode ser... - Pois é, vai ter de fazer a sua escolha. - Mas eu já fiz, eu quero viver com a ..........., quero que ela deixe o marido. Até podíamos adoptar uma criança, ou ir buscá-la a um bairro de lata... - Bom, olhe que isso também lhe pode criar uma situação um bocadinho complicada. Mas responda-me a outra coisa: a Carla alguma vez se sentiu rejeitada pelos homens? - Não, alguns até me dizem que eu sou gira e tudo, mas eu nem perco tempo a pensar nisso. - E uma rapariga masculina, acha que é? - Não, nada mesmo. - Se a Carla pudesse de repente mudar de sexo, mudava? - Não sei, acho que não. Eu sinto-me muito bem assim. Mas por outro lado também gostava 19
  • 20. de ser rapaz para poder casar com a ........... É uma paixão tão grande... - A Carla queria casar com ela? - Era giro, não era? - E se pudesse de repente deixar de sentir aquilo que sente pela sua amiga? - Pois, resolvia uma data de problemas, isso era, mas eu não queria. - Olhe, Carla, e o que são as vossas práticas sexuais? - ... - Não quer contar? - Não é isso, é que ela é capaz de se chatear... - Então não conte, pronto. - Também não há assim muito para contar, mas é assim, eu gosto tanto quando ela passa as mãos pelo meu peito, e pela minha cintura, as mãos dela são tão macias... e depois também fazemos outras coisas... mas pronto. É assim. - Carla, o que é para si um orgasmo? - Eu não sei muito bem explicar. Foi uma coisa que eu levei um bocadinho de tempo a aprender, ao princípio nem sabia muito bem lá chegar, foi a ............. que me ensinou. Mas é assim um momento em que se tem um prazer tão grande, tão grande, que ficamos com tonturas, e parece que a nossa “coisinha” vai rebentar, parece que vai explodir. - E objectos, usam? - Objectos? - Sim, pilinhas feitas de plastico... - Que horror! Eu nem estava a perceber o que é que você queria dizer com isso... Não, não usamos, aliás eu ainda estou virgem, por isso já vê... - E uma noção de pecado, ligada à sua sexualidade? Tem? - Eu por mim não tenho, e nem acho que esteja a fazer mal nenhum, mas os meus pais são de uma religião, eu não vou agora dizer qual é, mas é uma religião que não aceita a homossexualidade, nem a feminina nem a masculina, de maneira nenhuma, por isso eu nem quero pensar, se algum dia os meus pais descobrem, aí as coisas vão ficar muito complicadas, até são capazes de ir contar ao marido dela, ou de me pôr fora de casa, é melhor nem pensar nisso. - E sobre os bares, o que é que me diz? - Nunca fui. Ando com imensa curiosidade de ir a um que me falaram, só para ver, mas não tenho ninguém que vá comigo, e eu para ir sozinha também não tenho assim muita lata... veja lá, se no seu livro houver alguém que queira vir comigo... 20
  • 21. Alexandra, 29 anos, jornalista. - Antes de mais, Alexandra, qual é a designação que prefere? Lésbica? Sáfica? Mulher homossexual? - A palavra que eu utilizo mais vezes é a palavra lésbica. Porque acho que é o que é, e pronto. Eu sei que há pessoas a quem essa palavra faz muita comichão, mas isso é só porque as pessoas não estão habituadas. Os homossexuais às vezes também são preconceituosos. Alguns até são homofóbicos, se não fossem não se escondiam tanto, não é? Têm um autêntico horror à coisa. Se bem que eu também ache que as pessoas se auto- intitulam lésbicas, ou hetero, ou bi, e fecham-se assim nuns compartimentos estanques em que eu não acredito assim muito, porque ninguém está livre, de hoje para amanhã, de dobrar a esquina e encontrar o príncipe ou a princesa dos seus sonhos, não se sabe, não é, porque esta coisa das emoções e dos afectos não é como os produtos que a gente compra no supermercado, não se escolhem pela cor, pelo tamanho, pelo feitio, não se escolhem porque fazem falta, aparecem quando aparecem, quando dá o click, pronto. De maneira que eu acho que a designação, embora não tenha que se ter medo dela, é um bocado limitativa. - E quando é que pela primeira vez se sentiu atraída por uma mulher? - Eu era pequenininha, com quatro, cinco anos, e lembro-me de olhar assim com uma profunda emoção para algumas das amigas da minha mãe. Achava-as o máximo. Davam-me aquelas paixonites que dão nas crianças... e essas coisas foram-se sucedendo... - E quando é que teve consciência do que se estava a passar consigo? - Eu não sei, mas era muito miúda, e já sabia que era diferente, porque era assim, quando estas coisas aconteciam, e eu sentia que alguém estava a reparar em mim, eu disfarçava, sentia-me na obrigação de desviar o olhar. Aliás, a páginas tantas, o meu grande sufoco era não ter nascido rapaz. Porque eu gostava de raparigas, não é, portanto achava que se tivesse nascido rapaz isso me teria facilitado muito as coisas, porque o que eu tinha na cabeça era o que me tinham ensinado, o esquema hetero, e portanto para gostar de raparigas eu achava que devia ter nascido rapaz. Eu às vezes perguntava aos meus pais quando é que ia ter as minhas namoradas, e eles ficavam muito indignados, muito entupidos, e diziam-me que não, que quem tinha namoradas eram os rapazes, e então, perante estas coisas, não é, para mim não havia confusão nenhuma, entendi que se os meus pais me diziam que quem tinha namoradas eram os rapazes, como eu queria ter namoradas, eu tinha de passar a ser rapaz. - Quer dizer que a sua família sabe? - Muito contrariadamente, não é, mas sabem. Ao princípio não ligavam muito. Depois começaram a oferecer-me bolas de futebol, espingardas, fisgas, luvas de boxe, arcos e flechas, enfim, “aquelas coisas normais de que as raparigas gostam...” e como lá em casa não havia rapazes, éramos todas raparigas, era eu que tinha jeito para brincar com brinquedos de rapaz, era eu que desaparecia horas sem ninguém saber onde é que eu estava, não brincava com bonecas... - E hoje em dia? Aceitam? - Hoje em dia se pudessem faziam-me uma lobotomia, para eu ficar quieta. - Olhe, e como é que tudo isso foi vivido na adolescência? - Ah, não, não foi de todo, não foi na adolescência, foi muito mais tarde. A primeira vez que me deitei com uma mulher tinha vinte e um anos. Mas a primeira vez que tive consciência de que isto era um problema um bocado complicado foi aos doze anos. Fui para o Liceu, e havia muitas raparigas, e então aquilo era um paraíso, porque de cada vez que mudava de ano arranjava assim uma paixoneta... eram assim umas coisas platónicas, não é, que era assim é que devia ser. - Alexandra, diga-me outra coisa: você acha que já nasceu lésbica, ou essa foi uma característica que foi adquirindo com o tempo? Acha que é uma coisa genética? - Não sei, eu não tenho conhecimentos de genética para poder afirmar uma coisa dessas. Mas penso que em muitos casos é apenas uma questão de opção pessoal, e mais nada. Eu acho que muitas mulheres às tantas optam, porque neste mundo agressivo, masculino, estúpido, sem imaginação, às tantas a ternura e o afecto entre duas mulheres acaba por ser a alternativa mais atraente, mais segura, mais tranquilizadora. - E como é ser lésbica em Portugal? - É difícil. Há países onde os Gays masculinos estão organizados, e têm poder, e dão cartas, como nos Estados Unidos, no Canadá, em Inglaterra, na Alemanha. Nos Estados 21
  • 22. Unidos, que é o caso que eu conheço melhor, quando há as Gay Parades, primeiro discursam os gays, depois discursam as lésbicas, depois discursam os bi, depois discursam os travesties e depois então é que discursam os trans-sexuais, e esta é a hierarquia que serve para os desfiles, para as representações, para tudo, e então eu acho que num ambiente desses o que se está a criar é um grupo de tendências totalitaristas, baseado numa hegemonia que não se percebe muito bem qual é, gente que funciona em matilha, e acho que tudo isso deve ser combatido, nos Estados Unidos, em Portugal, onde quer que exista. Porque deve haver imensos Gays com imensas razões para se quererem afastar do mundo hetero, mas o perigo é que esses grupos formam-se para lutar contra a descriminação, mas quando esses mesmos grupos começam a ter demasiado poder acabam por ser eles próprios que praticam a descriminação. Só depois do Hitler já houve centenas de grupos que exerceram poderes totalitários, e eu não me apetece fazer parte de um grupo desses, ou melhor, não quero sequer ser identificada com esse tipo de atitude extremista. Até porque cada vez mais as pessoas têm de entender que não há “o nosso mundo” e “o mundo dos outros”. O mundo é só um, e as pessoas têm de aprender a viver juntas. Eu tenho imensa pena que os outros não percebam nada sobre a minha forma de estar, tenho imensa pena que eles não entendam, e me combatam, e me agridam, mas eu não quero estar do outro lado da barreira. Eu quero é que eles entendam que nós vivemos todos juntos neste planeta e temos de nos aceitar e respeitar uns aos outros. - Olhe, se se organizasse uma manifestação na Av. da Liberdade, você ia? - Depende, não é? Se fossem os fulanos da extrema esquerda não ia de certeza. - Porquê? - Porque eles acham que a comunidade gay em Portugal está toda com eles, mas isso é um disparate, porque há gente gay em todos os Partidos, e os da extrema esquerda acabam por ser tão repressores como os da extrema direita. Você veja o caso da Dina. Ela não pode pretender estar à frente de um bar que toda a gente sabe que é um bar de lésbicas, e fazer de conta que aquilo é o Casino do Estoril, e exercer uma repressão enorme sobre as miúdas que lá vão porque não têm outro sítio para se encontrar, e chegam ali, deixam lá ficar o dinheiro que têm, que não deve ser muito, não é, mas se calhar para algumas é tudo o que têm, e nem sequer podem dar um beijo. - Mas a Dina é lésbica? - Eu não sei se ela é lésbica ou não, isso é uma coisa que eu não posso saber, nunca fui para a cama com ela, aliás... nem que ela me pedisse de joelhos, mas a questão que se põe não é essa, a questão que se põe em relação à Dina é que ela é homófoba, preconceituosa e malcriada. Eu conheço milhares de pessoas como ela, que são pessoas completamente desinteressantes, são pessoas que não levam a lado nenhum, são pessoas que só servem para gerar a confusão, e que ainda por cima dão mau nome à homossexualidade. Mas não é só no bar da Dina, há outros que são exactamente a mesma coisa. - Bom, vamos deixar isso de parte. E a sua juventude? Teve namorados? - Ah, não, andava à pancada com os rapazes. As minhas irmãs arranjavam problemas com os namorados e eu é que tinha de andar à pancada com eles. - Nessa altura pensava que gostaria de casar e de ter filhos? - Não. E no entanto a minha vida acabou por dar uma volta. É uma história muito engraçada. Porque eu não só não pensava nada nisso como ainda por cima tinha alguns problemas a nível de ovários e de útero, e o médico disse-me que tinha muito poucas chances de ter filhos. E acabou por acontecer. O meu caso foi muito engraçado. Às tantas dobrei a esquina, encontrei um homem que achei o máximo, fiquei instantaneamente apaixonada, ele tinha montanhas de defeitos, mas pronto, naquele momento era o máximo. De maneira que perdi a cabeça com ele, e tive uma criança. - Foi o único homem da sua vida? - Não, mas também não acredito que me volte a interessar por outro. Era preciso que viesse o arcanjo S. Gabriel, com aqueles caracolinhos loiros, e com aquela carinha de menina... e mesmo assim ia ter de ficar a olhar para mim durante vinte dias... sabe que eu acho que me tenho tornado cada vez mais selectiva... nós não temos de ser omnívoros, não é? - Olhe, e em relação à sua filha, acha que tem sido uma boa mãe? - Eu espero bem que sim, pelo menos faço tudo por isso. Eu acho que ela às vezes se ressente um bocadinho por ter os pais separados, mas temos uma relação optima. Mas eu gostava de falar mais um bocadinho de quando era miúda. Houve um dia em que eu me 22
  • 23. apercebi pela primeira vez de que o meu lesbianismo era um problema social um bocado complicado. Foi um dia em que eu ia com um grupo de amigos pela avenida, e passaram por nós dois homossexuais, e eles começaram a fazer comentários em relação a eles, e arrasaram-nos da cabeça aos pés. E eu comecei a pensar que se se diziam essas coisas sobre os outros qualquer dia iam começar a dizê-las também sobre mim, e essas coisas ofendem, e magoam, e então eu aí tive a consciência de que a minha alegria de viver nunca mais ia voltar a ser a mesma coisa. Depois fui para o Liceu, e era muito pequenita, devia ter a altura da minha filha, e os outros gozavam comigo, penduravam-me nos cabides, faziam-me aquelas coisas que os miúdos fazem aos mais pequenos. Mas quando cheguei aos treze anos, durante as férias grandes cresci imenso, e a primeira coisa que me aconteceu quando entrei no Liceu foi que uma miúda mais velha que até aí nunca me tinha ligado nenhuma veio ter comigo e perguntou-me se eu queria jogar futebol com elas, de forma que era assim que elas iam formando as equipas de futebol feminino, que acabavam por ser concentrados de lésbicas, aliás no basquet também, e então eu lá fui para a equipa, tive um treinador que se chamava Pedro, tinha um metro e noventa, era lindo, mas era tão burro, tão burro, tão fantasticamente burro que era uma coisa impressionante. Depois passei para uma equipa semi-profissional, depois tive outra treinadora que era o máximo, mas essa era a namorada da guarda redes, e a guarda redes era minha amiga, e essas coisas não se fazem, não é, de maneira que não houve nada, mas ela tinha muitos cuidados comigo, as outras queriam pregar-me partidas e ela vinha e fazia voz grossa, de maneira que eu sentia-me ali o máximo. De forma que passei uma adolescência alegre e divertida, assim com umas paixonites platónicas, nunca confessadas nem pela minha parte nem por elas, um tanto reprimida pelos meus pais, mas se calhar ainda bem, porque se eles não me tivessem reprimido tanto eu não tinha desenvolvido tanto a minha capacidade para “dar a volta” às coisas. Outra coisa gira que nós fazíamos era que íamos à noite para o pé do muro do colégio das freiras, que era para onde iam os rapazes para namorar as meninas, e então quando os rapazes se iam embora chegávamos nós, a equipa de futebol feminino. Assobiavamos-lhes, elas vinham à janela, e era optimo, a gente divertia-se imenso. Faziamos-lhes propostas, e elas não sabiam que éramos nós. Depois vinham as freiras, e mandavam-nas para dentro, e nós riamo-nos que nem umas perdidas, aquilo era uma fita todas as noites... Outras vezes iamos para a messe dos oficiais, quem lá estava eram as mulheres deles, e íamos desafiá-las, e no meio disto tudo alguns “negócios” eram bem sucedidos. Entretanto o que não era lá muito bem sucedido eram os meus estudos, porque eu preocupava-me muito mais com a equipa de futebol, e com as pequenas, não é, do que com os estudos, de maneira que os meus pais acabaram por me arranjar uma explicadora de português com quem por acaso também passei umas ricas tardes. A explicadora oferecia-me cigarrilhas, e eu dizia que não queria. Depois oferecia-me Martinis, e eu dizia que não queria. Mas ela é que queria à viva força enfiar-me pelo menos os Martinis. Depois sentava-se ao meu lado, à mesa da sala de jantar, para me dar as explicações, e às tantas havia sempre qualquer coisa dela em cima de mim. E então eu levantava-me e mudava de lugar. E ela dizia-me: “Não sejas parva, vem para aqui”. E eu “Não!” E então aquela cena normalmente acabava comigo a andar à volta da mesa, e ela com o livro atrás de mim. Eu tinha quinze anos, ela tinha vinte e quatro. Mas a pessoa que era, era filha da pessoa mais importante lá da terra, de maneira que se se descobrisse aquilo ia dar uma barracada tão grande, que eu não arriscava, por muito que me apetecesse. - Você considera-se uma mulher masculina? - Não, não tenho nada a ver com isso. Tenho talvez um ar um bocado arrapazado, mas não me considero masculina. - Sabe que há um bocado a ideia de que as lésbicas são mulheres que foram rejeitadas pelos homens. Acha que é verdade? - Não. Quer dizer, eu acho que isso talvez aconteça com algumas, mas essas são uma espécie de ”lésbicas de empréstimo”. Mas não há regras para os afectos, não há regras para a forma de as pessoas se compensarem, porque de facto somos todos diferentes, e de facto quando nós aprendemos a gostar dos outros é por causa dessas pequenas diferenças. E eu acho que se isso acontece com algumas mulheres não sou eu que as vou criticar. - Olhe, Alexandra, e pudesse mudar de sexo, mudava? - Credo! Não! - E se durante a sua adolescência arrapazada lhe tivessem oferecido essa possibilidade, tê-la-ia aceite? 23
  • 24. - Não, também não. - E se de repente pudesse passar a ser exclusivamente heterossexual? - Eu gostava de ver essa proposta feita ao contrário. Aos hetero. Porque é que ninguém lhes pergunta essas coisas a eles? - Tem razão. Olhe, e práticas sexuais entre mulheres? Essa história por exemplo das activas e das passivas, é verdade? - Sabe que é a coisa que mais me chateia é quando os hetero descobrem que eu sou, e começam a querer saber coisas, e me vêm com essa história de saber se há uma que faz de homem e outra que faz de mulher. Eu fico a pensar que raio de vida sexual é que essa gente poderá ter, percebe? Eu acho que não pode passar pela cabeça de ninguém, minimamente tranquilo em relação à sua própria sexualidade, fazer uma pergunta dessas. Eu acho que as pessoas chegam aos sessenta anos com ideias acerca da sua própria sexualidade que são de uma pessoa ficar arrepiada, mas enfim, Deus é grande, e se Ele os acolhe, quem sou eu para dizer seja o que for. - Alexandra, o que é o sexo entre mulheres? - Bom, há mulheres com quem é muito bom, há outras com quem nem por isso, tudo depende. - Olhe, Alexandra, e o que é um orgasmo? - Não lhe sei explicar. Sei que é muito bom, mas não sei explicar. Porque para mim o orgasmo não é só aquele momento, é tudo o que acontece antes, e por que não, é também aquilo que vem depois, de maneira que está a ver, é muita coisa. - O que é que me diz, por exemplo, sobre orgasmo vaginal e orgasmo clitoriano? - Olhe, se quer que lhe diga, ainda não descobri de qual dos dois é que gosto mais. Estou como o outro “Eu tenho dois amores...” Sabe que eu acho que as questões sexuais têm toda a importância e não têm importância nenhuma. Tudo depende de tantas coisas... a pessoa tem de estar bem consigo própria, tem de estar bem com a outra pessoa, a outra pessoa não pode ser uma pessoa qualquer, e eu não consigo separar as coisas. - Olhe, e experiências amorosas, foram muitas? - Não foram muitas, mas às vezes penso que foram demais. - A Alexandra alguma vez teve uma noção de pecado ligada à sua sexualidade? A ideia de um Deus que mais tarde lhe possa pedir contas, porque afinal de contas a sua sexualidade é uma sexualidade transgressora... - Pelo contrário. Eu acredito fortemente na existência de Deus, e acredito que Ele está comigo, e “tem-me posto a mão debaixo do rabinho”, tem-me protegido sempre nos piores momentos. Deus não é homossexual, mas também não é hetero, e jamais me há-de julgar por uma coisa dessas. Deus pode ser tudo o que nós quisermos. Eu tenho uma amiga que inventou uma deusa que é a Lady Clitoressa, e presta-lhe culto e tudo. - Olhe, e descriminação? - A discriminação é o abuso do poder, e o que muitas pessoas fazem em relação aos homossexuais é justamente isso, o abuso do poder. E eu acho que esse abuso se está a dar no sentido inverso. Embora na maioria dos casos os homossexuais portugueses sejam pacíficos, e não chateiem ninguém, eu acho que começam a acontecer alguns focos de provocação, alguns focos de extremismo que não é nada bom que existam, são até contra- producentes. Nós tivemos um grupo de reflexão que justamente tentou abranger pessoas de todos os quadrantes, mas não é fácil. Já existiu no passado, depois houve uma cisão, porque houve uma pessoa que fez uma tentativa no sentido de “cilindrar” as outras, mas agora estamos outra vez a tentar organizar as coisas, porque é preciso que haja um grupo dedicado à defesa de determinados direitos fundamentais dos homossexuais. Porque existe de facto discriminação em relação aos homossexuais, e isso é abuso de poder. Eu fiz parte desse grupo de reflexão que funcionou durante um ano e meio, nós chamavamos-lhe Grupo de Consciência Lésbica, e foi um grupo pelo qual passaram muitas dezenas de mulheres, reuniamo-nos semanalmente em casa de uma, em casa de outra, foi um grupo que fez um trabalho estupendo, e as pessoas que passaram por lá pelo menos falaram, discutiram, escreveram, trocaram ideias, e foi uma experiência extraordinariamente positiva. - E porque é que acabou? - Bom, surgiram vários problemas, um deles foi uma tentativa de quebra do anonimato por parte de uma das pessoas que é uma senhora que edita uma revista lésbica que obviamente tem as suas limitações, mas é a única que existe em Portugal, aliás eu acho que ela está a fazer um trabalho óptimo, e que tem um valor extraordinário, mas foi preciso chamá-la à 24
  • 25. pedra, porque as pessoas se querem o anonimato lá têm as suas razões, e essa pessoa faz muito bem em defender as mulheres do campo que não têm instrução, mas os homossexuais existem, e sempre existiram em todas as camadas sociais, e é preciso defender também as outras. Ela é uma pessoa que se preocupa com as lésbicas das camadas mais baixas, mas há as outras, que têm um nome, uma carreira a defender, um cargo de responsabilidade, e a quebra do anonimato é uma coisa que ninguém pode pedir a ninguém. A opinião dela foi que nós éramos todas umas Betinhas de Cascais, mas não é nada disso, nós participamos nas coisas, não queremos é ser radicais nem panfletárias nem andamos de rótulo na testa. Outro problema grave que se põe é o da solidão, porque nem sempre temos uma pessoa à nossa medida, e isso cria um problema de consumismo, aliás este não é um problema exclusivamente homossexual, mas a mim faz-me pena que isso aconteça tanto e que de certa forma seja tão má publicidade para os homossexuais. Porque uma acusação que nos é dirigida com alguma frequência é justamente essa: “Se realmente está tudo bem e está tudo certo, porque é que vocês se juntam e se separam tantas vezes?” Eu acho que isso tem a ver com a dificuldade que as pessoas hoje têm em estar sozinhas. No caso dos homossexuais esse problema acaba por se tornar mais grave porque não há um acompanhamento, nem há o enquadramento numa estrutura social e familiar, e é lógico que as pessoas tendem a sentir o problema da solidão de uma forma agravada. Eu acho que em Portugal os casais hetero não se separam muito mais porque as pessoas não têm dinheiro para alugar casas, as pessoas, mesmo quando se dão mal, não têm dinheiro para se divorciar, ou para ficar a viver sozinhas. A maior parte das mulheres em Portugal não tem dinheiro, ganha manifestamente menos do que os homens. Basta ver nos transportes públicos. De manhã, quem vai para o emprego de autocarro ou de metro são as mulheres, quem vai de carro são os homens. Os homens têm mais poder de compra. Aqui entra de novo e flagrantemente a discriminação e o abuso de poder, e no caso das lésbicas há mais factores ainda de agravamento da situação. Mas sabe que eu tento ver sempre um lado positivo mesmo nas coisas mais negativas. Neste caso o que acontece é que tudo isto acaba por dar às mulheres e aos homossexuais uma endurance e uma visão da vida que está talvez mais de acordo com o caminho que terá de vir a ser feito no futuro, socialmente, para melhorar as condições de vida das pessos. As mulheres como ganham menos, e estão habituadas a sobreviver com menos, estão mais “equipadas” psicologicamente para se desenrascar com menos dinheiro e de outras maneiras. Se uma pessoa não pode ter carro não tem, e pronto. Mas ainda em relação à discriminação, houve noutro dia um encontro Gay, com uma mesa redonda, e então convidaram um advogado que é o Francisco Teixeira da Mota que disse: “Ponham os casos em Tribunal, porque enquanto não puserem não se criam precedentes, não se cria jurisprudência, não se cria um movimento para mexer com a Lei.” Isso é tudo muito engraçado, mas era o que dizia uma das miúdas que vinha comigo “Querem mártires!” Porque de facto uma pessoa normal, com uma vida normal, com um emprego normal, com um ordenado normal, que se meta numa batalha campal judicial em Portugal, pode até nem perder a causa, só que são quatro ou cinco anos de despesas a que uma pessoa não pode fazer face, e são quatro ou cinco anos de problemas que nunca mais acabam. Este advogado disse algumas coisas importantes, só que de facto não se vêem soluções à vista. E no caso das lésbicas a situação é de facto muito difícil. - É mais difícil do que a dos homossexuais masculinos? - Ah, sim, claro, basta o facto de qualquer homem em Portugal ganhar mais do que uma mulher, para os gays estarem sempre mais protegidos. Eu no meu emprego ganho menos do que qualquer dos meus colegas homens. Até os estagiários entram para lá a ganhar mais do que eu. - Mas eles não sabem que você tem uma criança pequena para sustentar? - Eles não querem nem saber do que é que eu tenho ou não tenho. As mulheres ganham ali menos do que os homens, e ponto final. E quando há aumentos, os homens têm 4%, que é uma ninharia, mas as mulheres têm direito a 2%, pronto, é assim. 25
  • 26. Luísa Freitas, 46 anos, comerciante. - Luísa, diga-me em primeiro lugar qual é a designação que prefere: lésbica, sáfica, mulher homossexual? - Olhe, a palavra lésbica é uma palavra que eu aceito muito bem. - E quando foi que descobriu em si pela primeira vez as tendências para o lesbianismo? - Ah, isso é uma grande história. - Optimo, já é um bom começo. - Bem, eu não sei se isso tem alguma coisa a ver, mas quando eu era miúda, devia ter os meus quinze, dezasseis anos, ou talvez menos, eu gostava muito de recortar fotos de artistas de cinema, e é engraçado que só recortava fotos de mulheres. Havia algumas que eu achava especialmente bonitas. Eu não achava os homens bonitos, mas o que é certo é que aos seis anos eu tive a minha primeira paixoneta, e foi por um rapaz. É claro que estes amores da infância são sempre platónicos e até assexuados. Depois comecei a apaixonar-me pelas minhas professoras, era muito engraçado, andava a segui-las pela rua, e coisas assim. - Apaixonava-se por elas porque as achava bonitas? - Não, não era tanto por causa das características físicas delas, aliás ainda hoje eu não me apaixono por ninguém por causa das características físicas, mas sim por aquilo que eu acho que essa pessoa tem lá dentro. - Ora bem, começou então por ter umas paixonetas por rapazes, umas paixonetas pelas suas professoras, e depois por volta dos quinze anos coleccionava recortes de jornais de actrizes de cinema. Alguma em particular? - Eram as desse tempo, não é? A Jayne Mansfield, a Elizabeth Taylor, a Romy Schneider... - Mas explique-me uma coisa: você tinha consciência do que se estava a passar consigo, ou nem sequer se apercebia? - Não, de todo, nem sequer pensava nisso. Aconteceu tudo de uma forma muito natural, eu nem sabia o que era o lesbianismo. E como ao mesmo tempo ia tendo as tais paixonetas por rapazes, achava que isso é que era o amor, e que o que sentia pelas professoras era uma grande admiração, eu não me preocupava em explicar as coisas de outra maneira, as coisas eram assim e pronto. Depois, mais ou menos por essa altura, vi um filme que se chamava “Raparigas em uniforme”. Era um filme alemão que contava a história de uma rapariga de um colégio que se apaixonava por uma professora, e na altura lembro-me de ter pensado: “Olha, afinal não sou só eu”. - Por tudo isto que me está a contar, a Luísa não é propriamente lésbica, é mais uma bissexual, ou não? - Sim, quer dizer, eu não sei muito bem o que é que sou, teoricamente acho que sou bissexual, embora neste momento tenha uma relação lésbica. Não sei por quem me vou apaixonar a seguir, mas também não estou nada preocupada com isso. Agora estou apaixonada por uma mulher, e tenho uma relação com ela, é uma relação que sai um bocado fora do esquema convencional das outras lésbicas, mas enfim... tenho a minha faceta lésbica toda “ao de cima”. - E quando é que teve verdadeiramente consciência disso? - Foi em 1980, quando vim para Portugal. Eu tinha estado a viver na Holanda, sabia que havia lá muitas lésbicas, que até faziam manifestações e não sei que mais, mas nunca me deu para aí, foi só quando vim para Portugal. Eu nessa altura estava apaixonada por um homem, mas também estava ligada a um grupo feminista, o IDM, Informação e Documentação de Mulheres, que já não existe, e tinha uma amiga holandesa que era jornalista, e que me disse que queria entrevistar mulheres aqui em Portugal. Então eu indiquei-lhe uma mulher que não conhecia, que nessa altura pertencia a um grupo que era só de lésbicas, mas de quem tinha ouvido falar, e de quem tinha lido escritos dispersos que me levaram a pensar que era um discursos feministas mais coerentes que eu tinha visto em Portugal, que era a ............, que tinha estado na célebre “Manifestação dos Soutiens”. O nosso “Grupo das Bruxas”, que mais tarde se separou do IDM, estava a fazer um livro sobre isso, e essa minha amiga holandesa fez-lhe a entrevista, e disse-me que tinha ficado maravilhada, que a ............ era uma “mulher soberana”, e eu fiquei muito impressionada com o que a Saskia disse acerca dela. Entretanto soube que o grupo dela tinha sido o resultado de uma divisão dentro do IDM, antes de eu entrar, porque havia as lésbicas e havia as não lésbicas, e não se entendiam, isso é uma coisa muito chata que acontece às vezes com os 26