1. ETNOMATEMÁTICA E A CULTURA AMAZÔNICA: PERSPECTIVA DE
INCLUSÂO SOCIAL
Maria Augusta Raposo de B. Brito1
Isabel Cristina R. de Lucena 2
Francisco Hermes Santos da Silva3
RESUMO
Este artigo é parte de um projeto de pesquisa de mestrado que tem como
perspectiva geral analisar as relações entre a cultura amazônica e a prática de
aprender em sala de aula, a partir do reconhecimento de influências do meio
ambiente, encharcado de diversidades, contribuintes na construção de saberes da
Matemática local e da Matemática escolar. A vivência com uma professora numa
escola da Ilha do Combu (Belém/Pará/Brasil), oportunizou relacionar a cultura
tradicional inerente àquela população ribeirinha e o saber escolar a partir do
entrelaçamento de sua prática pedagógica e a inclusão social.
Palavras-chaves: Etnomatemática; Cultura Amazônica; Escola Ribeirinha e
Inclusão Social
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A pesquisa de mestrado, parte do Programa de Pós-Graduação em Ensino
de Ciências e Matemáticas do NPADC/UFPA4
, tem como foco principal analisar
as práticas pedagógicas no contexto da sala de aula, a partir das possíveis
relações entre cultura amazônica e matemática escolar, na escola ribeirinha da
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, desde 2005.Participa do
Grupo de Estudo e Pesquisa de Etnomatemática da UFPA.Linha de Pesquisa: Etnomatemática.
Professora pertencente ao quadro docente da Secretaria de Educação do Estado do Pará
(SEDUC). prof_augustaraposo@yahoo.com.br
2
Professora Doutora pertencente ao quadro docente da Universidade Federal do Pará e ao
Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. Área de Atuação: Educação
Matemática.ilucena@ufpa.br.
3
Professor Doutor pertencente ao quadro docente da Universidade Federal do Pará e ao
Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. Área de Atuação: Educação Matemática.
fhermes@ufpa.br
3
4
Núcleo de Apoio Pedagógico ao Desenvolvimento Científico da Universidade Federal do Pará.
2. 2
Ilha do Combu (Belém/PA/Brasil). Esta Idéia surgiu após o convívio, em função do
Projeto Universilhas5
desenvolvido pelo NPADC, com algumas professoras da ilha
do Combu. Na oportunidade, foi identificada uma professora que tem
demonstrado preocupações com o distanciamento entre a matemática vista na
escola e a matemática do dia-a-dia dos alunos ribeirinhos, que na maioria das
vezes, é a grande responsável pela retenção e evasão escolar.
A problemática desta pesquisa está assim definida: quais as relações
existentes e possíveis entre a prática pedagógica docente na Escola Municipal da
ilha do Combu e a vivência sócio-cultural dos alunos no que diz respeito aos
conceitos matemáticos ou a etnomatemática ali desenvolvida?
PRIMEIRAS TRAVESSIAS
A ilha do Combu está localizada a 1,5 Km ao sul da cidade de Belém,
capital do Estado do Pará. É banhada pelo rio Guamá. Atualmente possui uma
população em média com 1300 habitantes, em 280 famílias. Sua subsistência é
mantida basicamente pela extração do açaí e cacau. A situação educacional é
administrada pela Secretaria Municipal de Educação de Belém, que mantém
somente uma escola na Ilha em anexo a Escola Silvio Nascimento localizado no
bairro da Condor (Belém).
A escola do Combu possui duas professoras que trabalham no sistema de
ciclos6
, permitindo peculiaridades no modo de ensinar devido sua localização.
A maioria dos moradores da ilha do Combu só vive da coleta do açaí e do
cacau, frutas comercializáveis nas feiras de Belém. “Na safra, a gente tira até
5
Projeto que objetiva contribuir para a formação compartilhada de professores das ilhas visa a formação
inicial de estudantes universitários ao compromisso social da formação continuada de educação em exercício.
6
Que compreende o atendimento de crianças de 4 a 14 anos.
3. 3
duas rasas de açaí (o mesmo que quatro latas). Meu filho vai vender e a gente
divide o pagamento” diz Margarida, uma moradora do Combu (LAMEIRA, 2006, p.
A-5).
A Cultura Amazônica está representada no cotidiano imaginário das
pessoas ribeirinhas7
, a partir da construção de suas casas, cascos8
, canoas,
matapi9
, tipiti10
, redes11
, brinquedos, cestos12
, instrumentos musicais e
artesanatos, suas relações com a natureza, com mitos e ritos, vivências utilizadas
e reutilizadas através de registro e análises sob o olhar da educação matemática.
Discutir sobre essas possibilidades se constitui em um dos objetivos mais gerais
dessa pesquisa, o que em última instância deverá contribuir para o
reconhecimento da influência cultural, em particular da cultura amazônica, no
processo ensino-aprendizagem da matemática no contexto da sala de aula.
O CAMINHAR DAS INQUIETUDES
Tendo em vista a importância de uma busca de qualidade na prática
pedagógica, torna-se oportuno uma investigação que possa contribuir para o
enriquecimento do processo ensino-aprendizagem na disciplina Matemática, que
está intimamente ligada ao meio sócio-cultural de um grupo social na Amazônia.
Baseado nesse comentário “o ensino da Matemática pode ter uma importante
7
Grupos de pessoas que moram às margens dos rios.
8
Embarcação escavada artesanalmente em tronco de árvore que varia de 3 a 5 metros de
comprimento e que à forma e o seu processo de fabricação lembra construções indígenas.
9
Instrumento feito de fibra amazônica na forma cilíndrica de 40 cm de comprimento e 25 cm de
diâmetro, com uma espécie de funil nas extremidades que facilita a entrada de camarão e dificulta
a sua saída.
10
Utensílio em forma cilíndrica, trançado em fibras amazônicas, alongado e flexível, com abertura
na parte superior e duas alças: a de cima para prender a um ponto fixo e a de baixo para introduzir
a alavanca e fazê-lo distender-se, espremendo a polpa de cacau. Esta é uma tecnologia
tipicamente indígena.
11
Espécie de leito inicialmente confeccionado de fibras amazônicas resistentes e suspenso pelas
extremidades. Atualmente usa-se a fibra de algodão para essa confecção.
12
Balaio. Depósito feito de fibras amazônicas.
4. 4
contribuição na reafirmação e, em numerosos casos, na restauração da dignidade
cultural das crianças” D′ Ambrosio (2005, p.7), compreendemos que a matemática
passe a ser um elo de ligação entre os saberes silenciados e tantas culturas
negadas. Pois,
[...] um dos mais importantes conceitos da
Etnomatemática é o de considerar a associação existente
entre a matemática e a formas culturais distintas. Assim, a
Etnomatemática implica uma conceituação muito ampla do
etno e da matemática. Muito mais do que simplesmente uma
associação a etnias, etno se refere a grupos culturais
identificáveis, como por exemplo sociedades nacionais –
tribais, grupos sindicais e profissionais, crianças de uma
certa faixa etária etc. - , e inclui memória cultural, códigos,
símbolos, mitos e até maneiras específicas de raciocinar e
inferir [...] (D′AMBROSIO, 1990, p.17).
É nesse contexto que buscamos investigar na escola da Ilha do Combu
como a Matemática dos ribeirinhos é usada nas explicações e superação de
obstáculos que surgem no seu dia-a-dia, está relacionada com a matemática
trabalhada na sala de aula.
Identificamos uma professora, que reside em Belém e pertence a rede
municipal de ensino, atuando no turno da manhã no ensino infantil com 18 alunos
e à tarde no Ciclo Básico II13
, com 15 alunos. Em suas aulas procura desenvolver
e utilizar recursos didáticos confeccionados com materiais da própria região e
trabalha a relação da cultura tradicional com o conhecimento matemático do
currículo escolar.
A referida professora apresenta uma preocupação em relação ao processo
ensino-aprendizagem quando enfatiza que “nós os professores devemos utilizar
estratégias adequadas para motivar e despertar o interesse de cada aluno para o
conteúdo que será estudado”. Assim supõe-se que, como a professora tenta
13
Correspondendo a 3ª e 4ª série do Ensino Fundamental.
5. 5
trabalhar o ensino-aprendizagem em parceria com seus alunos em uma ação
empreendedora, conseqüentemente poderá trazer resultados diferentes daqueles
comumente obtidos em uma sala de aula destituída desse tipo de preocupação.
Como professores de Matemática escutamos constantemente que a
Matemática é uma disciplina difícil ensinada de forma mecânica, onde geralmente
se usa um conjunto de fórmulas e passos que se repetidos corretamente, levam
invariavelmente à solução de um problema na maioria das vezes hipotético e é
desconectada da realidade sócio-cultural dos alunos.
Independente de sua cultura, o aluno deve ter acesso não só à Matemática
escolar mais estar em parceria com a Matemática da cultura da qual está inserido.
Segundo Ferrete e Mendes (2004, p.95):
[...] Devemos entender o que estamos defendendo e
almejando é uma Matemática com significado e
contextualizada, pois acreditamos que essa nova maneira
de entender a Matemática vem mostrar a necessidade de
sua existência. Não queremos propor o fim da Matemática
ensinada hoje nas escolas e universidades, pelo contrário,
queremos valorizá-la, dar-lhe um significado para que ela
exista. A capacidade de explicar, de aprender e
compreender, de enfrentar criticamente situações novas,
constituem a aprendizagem por excelência [...]
Atualmente a sociedade passa por transformações, onde o
desenvolvimento cultural, tecnológico, econômico e social aguça a necessidade
de uma nova postura no processo de ensino-aprendizagem. Principalmente o de
Matemática uma vez que os números são tão essenciais como saber ler e
escrever e que estão presentes em quase tudo que fazemos, implícita ou
explicitamente. Saber quantificar, calcular, medir, fazer operações, analisar
gráficos, tabelas, e resolver problemas da realidade, proporcionam aos alunos
aprenderem a utilizar e a incorporar os mais diversos instrumentos didático-
6. 6
científicos, como réguas, balanças, termômetros, relógios, calculadoras,
telefones, computadores e tanto outros.
POR QUE CAMINHAR COM A ETNOMATEMÁTICA
A partir da década de 70, surge a etnomatemática acompanhada por
profundas transformações ocorridas pela globalização e o fracasso da Matemática
moderna, pois a mesma não dava oportunidade para a valorização do
conhecimento que o aluno trazia para a sala de aula.
Ainda nesta mesma década começa a se discutir a Matemática com vários
educadores matemáticos que apresentavam forte rejeição ao currículo comum
que considerava a Matemática como uma disciplina totalmente isolada do
contexto social, político e cultural. Esses educadores matemáticos tiveram a
oportunidade de efetuar mudanças na sua forma de atuar ao propor novos
olhares, valorizando o conhecimento matemático do cidadão/profissional: dona de
casa, carpinteiro, pedreiro, artesão, vendedores de rua, agricultor, etc.
Percebermos então que a Matemática surge através de uma necessidade, sendo
recriada através da cultura e integração dos conhecimentos matemáticos próprios
de cada grupo social, contrapondo a Matemática escolar tradicional que ignora
todas essas especificidades e nega os conhecimentos resultantes da cultura não
sistematizada pela academia.
Portanto, a Etnomatemática procura aproximar conceitos e conteúdos
matemáticos às experiências vivenciadas pelas populações identificadas em
grupos sociais, criando a possibilidade da utilização da Matemática
(escolar/científica) como uma ferramenta cultural para seu próprio processo de
ensino-aprendizagem permitindo considerar de forma efetiva a inclusão destes
7. 7
grupos na apropriação do conhecimento sistematizado a partir de um processo de
globalização.
A abordagem etnomatemática vai além do subsídio
metodológico para o ensino da Matemática no contexto escolar.
Não se trata, apenas, da melhoria do processo ensino-
aprendizagem da Matemática, mas de desafiar e contestar o
domínio de saberes e a valorização desse domínio por alguns, sob
pena de destruir outros de seus próprios valores, gerando
desigualdades e desrespeitos na vida das populações, extermínios
de uns para ascensão de outros dentro das sociedades. Portanto, a
construção ao etnomatemática para o trabalho pedagógico é,
sobretudo, uma proposta essencial à ética humana (LUCENA,
2005, p.19).
Desta forma, esperamos que a etnomatemática como trabalho pedagógico,
passe a atuar no contexto multicultural, procurando resgatar o fazer matemático
dos ribeirinhos em benefícios de seus valores e culturas, interagindo com outros
grupos de forma que o repasse desses conhecimentos possa defender a
valorização de todos os tipos de culturas.
Portanto, precisamos pensar que a Matemática Ocidental que conhecemos
não é universal, muito embora ela esteja no currículo escolar desde as séries
iniciais.
Devemos conhecer outras Matemáticas para iniciar um processo de
reconhecimento e valorização de outras culturas com a preocupação de deixar
claro que todas são importantes e se influenciam mutuamente sem se sobrepor
umas sobre as outras, a fim de que possamos refletir de que maneira essas
Matemátiças interagem no nosso viver.
Em algumas escolas, muitas vezes, a Matemática ainda é tratada como
algo que não sofre transformação. Normalmente ela é conhecida como uma
“ferramenta ultrapassada” de conhecimentos prontos que precisa ser transmitido
8. 8
ao aluno. Desta maneira, atentamos para a seguinte reflexão: se os
conhecimentos estão prontos e acabados o que nos resta então fazer?
O CAMINHAR METODOLÓGICO
A pesquisa será desenvolvida dentro de uma abordagem qualitativa,
tentando sistematizar conhecimentos sobre necessidades e dificuldades de
interação entre a matemática escolar e cultura local.
Para isso, temos a contribuição de Ubiratan D´Ambrosio (1990), no campo
da Etnomatemática, associados ao pensamentos de Claudia Zaslavsky (1989 )
que propõe explorar as práticas matemáticas das culturas dos alunos em sala de
aula, Gelsa Knijnik (1996) com as conexões entre a Educação Popular e a
vertente da Educação Matemática denominada Etnomatemática, Paulus Gerdes
(1992) sobre conceitos geométricos
As teorizações feitas a partir desses trabalhos têm como finalidade
introduzir a cultura, valorizar as vivências dos alunos e a matemática do cotidiano
que poderá fazer parte do currículo escolar.
Foi realizada a pesquisa descritiva da Escola do Combu , com
levantamento do espaço físico e social da escola, atendendo ao objetivo de
conhecer a realidade educacional e ainda, entrevista com a professora a fim de
buscar informações gerais de suas práticas dentro da realidade ribeirinha.
O enfoque metodológico desta pesquisa foi um Estudo de Caso “por
consistir na observação detalhada de um contexto, ou indivíduo, de uma única
fonte de documentos ou de um acontecimento específico ”segundo Merriam
9. 9
apud Bogdan (1994), sendo um estudo que requer um limite de tempo e espaço
adequado, para a finalização da tarefa”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O professor da Amazônia deve ajudar os alunos ribeirinhos a caminharem
e a mergulharem conscientemente dentro da cultura de sua própria comunidade,
buscando a conexão entre os conceitos matemáticos de seu cotidiano com os da
Matemática sistematizada e que são utilizados quando realizam suas atividades
cotidianas. Dentre outros objetivos o professor contribuirá para que os olhares dos
alunos se abram criticamente no intuito de valorizarem e se sentirem
responsáveis em proteger seus pertencimentos culturais, aprendendo,
experimentando e construindo conhecimentos e valores juntos na sala de aula e
fora dela.
REFERÊNCIAS
BOGDAN, Robert C.; PIKLEN, Sari Knopp. Investigação Qualitativa em
Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Ltda, 1994.
D´AMBROSIO, Ubiratan. Volta ao mundo em matemáticas. Scientific
American Brasil..Ediouro, n.11, p. 6-9, 2005.
_______. Etnomatemática: Arte ou técnica de explicar e conhecer. São
Paulo: Ática, 1990.
FERRETE Rodrigo; Iran MENDES. (Re) descobrindo a matemática
presente nos ornamentos geométricos da cerâmica icoraciense: MENDES, Iran
(Org.). Educação (Etno)Matemática: Pesquisas e experiências. Natal: Flecha do
Tempo, 2004.
10. 10
GERDES, Paulus. Sobre o despertar do pensamento geométrico.
Curitiba: Editora da UFPR, 1992.
KNIJNIK, Gelsa. Exclusão e resistência: educação matemática e
legitimidade cultura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
LAMEIRA, Bernadeth. Combu recebe títulos de uso. Diário do Pará,
Belém, 16 fev. 2006. p. A-5.
LUCENA, Isabel. Educação Matemática, Ciência e Tradição: tudo no
mesmo barco. Centro de Ciências Sociais Aplicadas, 206 f., Tese (Doutorado em
Educação). Natal: UFRN/ 2005.
ZASLAVSKY, Cláudia. Integracion de las Matematicas al
Estudio de las Tradiciones Culturales. In: ISGEm Newsletter.
Albuquerque, v.4, n.2, 1989. Disponível na Internet via www. URL:
http://web.nmsu.edu/~pscott/isgem.htm. Arquivo capturado em 09de
fevereiro de 2006.