Este trabalho discute a cultura do cultivo não-comercial de maconha no Brasil, através dos dados de uma pesquisa realizada em uma comunidade de usuários na Internet. A pesquisa utiliza dados etnográficos sobre a comunidade Growroom (www.growroomnet), relacionando-os com dados quantitativos a respeito do perfil e dos hábitos de consumo de pessoas que plantam maconha para uso pessoal no Brasil, coletados através de um levantamento realizado em 2004 (Censo Cannábico). Além disso, discute o atual status legal da planta e da conduta de cultivar para uso pessoal, reservando também uma discussão a respeito dos aspectos históricos e culturais dessas práticas. A monografia é finalizada com algumas considerações a respeito de mitos existentes em torno desses hábitos, tecendo recomendações que possam embasar mudanças nas políticas e leis que os regulam.
Colhendo Kylobytes O Growroom E A Cultura Do Cultivo De Maconha No Brasil
1. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Sergio M. S. Vidal
Colhendo Kylobytes:
O Growroom e a cultura do
cultivo de maconha no Brasil
SALVADOR - BA
2010.1
2. Sergio M. S. Vidal
Colhendo Kylobytes: O Growroom e a cultura
do cultivo de maconha no Brasil
Monografia apresentada
como requisito parcial para
obtenção do título de
Bacharel em Ciências Sociais
com concentração em
Antropologia, sob orientação
do Prof. Dr. Edward MacRae
Banca Examinadora:
SALVADOR - BA
2010.1
2
3. AGRADECIMENTOS
À Família da qual venho (Mãe, Pai e irmão), por terem me apoiado, mesmo quando
nem sempre entendiam ou concordavam com todos os meus motivos e formas de
agir;
À família que estou formando (Laura e o bebê), pela paciência e tolerância que
tiveram e ainda terão que ter pelas conseqüências dos caminhos que escolhi trilhar;
Aos amig@s verdadeiros, por alimentarem minha alma, me acolherem nos momentos
mais difíceis e celebrarem comigo os grandes momentos;
Ao Ira, que mais que um amigo é um irmão que já fazia parte da Família antes mesmo
de nos conhecermos pessoalmente;
Ao meu orientador, que têm atuado de forma muito mais ampla do que esta função,
sendo apoiador, incentivador e amigo;
Aos Mestres contemporâneos com os quais tenho a honra de compartilhar lições
inesquecíveis;
Aos ilustres anônimos que me incentivaram, muito ou pouco, por e-mail, telefone;
carta, pensamento positivo ou sinal de fumaça;
Aos membros da comunidade Growroom, sem os quais nenhuma dessas linhas faria
o menor sentido de serem escritas;
E à Santa Maria por nos dar a vida e a luz para vivê-la com sabedoria.
3
4. RESUMO
Este trabalho discute a cultura do cultivo não-comercial de maconha no Brasil,
através dos dados de uma pesquisa realizada em uma comunidade de usuários na
Internet. A pesquisa utiliza dados etnográficos sobre a comunidade Growroom
(www.growroomnet), relacionando-os com dados quantitativos a respeito do perfil e
dos hábitos de consumo de pessoas que plantam maconha para uso pessoal no Brasil,
coletados através de um levantamento realizado em 2004 (Censo Cannábico). Além
disso, discute o atual status legal da planta e da conduta de cultivar para uso pessoal,
reservando também uma discussão a respeito dos aspectos históricos e culturais
dessas práticas. A monografia é finalizada com algumas considerações a respeito de
mitos existentes em torno desses hábitos, tecendo recomendações que possam
embasar mudanças nas políticas e leis que os regulam.
Palavras-chave: Cannabis sativa – Maconha - Brasil; Cultivo de maconha para
consumo próprio; Aspectos históricos e antropológicos; Legislação e Políticas
Públicas; Growroom – seu espaço para crescer
4
6. SUMÁRIO
1. Sobre o lugar do autor neste trabalho.............................................7
2. Sobre este trabalho........................................................................11
3. Drogas, Ciência e Cultura..............................................................15
4. A maconha na História do Brasil...................................................27
5. A maconha no Brasil atual............................................................35
6. O status legal do cultivo não-comercial de maconha......................41
7. A redescoberta da cultura do cultivo de maconha.........................48
8. O nascimento do Growroom.........................................................57
9. Tornando-se usuário do Growroom..............................................61
10. Cultivando maconha para consumo próprio.................................76
11. Sobre o mito da “maconha transgênica” e outras considerações...91
12. Referências.................................................................................105
ANEXOS
I. Questionário das entrevistas com usuários do Growroom...........114
II. Questionário do Censo Cannábico...............................................117
6
7. 1.Sobre o lugar do autor neste trabalho
“pra mim é sagrado, é a minha Santa Maria, minha mãe, é a luz da
minha vida, enfim, é a cura para humanidade... É quem me dá o meu
valor... Pra eu ser quem sou, do jeito que escolhi ser...” (Cabelo1)
Antes de iniciar as discussões do trabalho apresentado aqui, é preciso
compartilhar questionamentos e dúvidas que, ao longo do tempo, tornaram-se
reflexões epistemológicas constantes, desde que decidi me enveredar pela
Antropologia das drogas e alimentos2. Na experiência do fazer antropológico, desde
cedo me deparei com questões que, aos poucos, decidi transformar em pilar para os
tão necessários exercícios de estranhamento e vigilância epistemológica,
fundamentais para o trabalho de campo. Afinal, ao conviver em comunidades para
estudar a cultura do uso de drogas, que lugar estaria eu ocupando nessas
Observações Participantes? O lugar de antropólogo observando enquanto participa
para aprender com os nativos, ou de um nativo que, deixando apenas de participar,
passou a aprender com a comunidade de antropólogos as ferramentas que
possibilitaram também exercer a observação e outras atuações do fazer
antropológico?
Essa reflexão se fez cada vez mais necessária, à medida que passei a optar por
temáticas específicas dentro da área de estudo escolhida. Antes de entrar na
Faculdade já havia experimentado diversas drogas, entre lícitas e ilícitas, bem como
me tornado usuário habitual de algumas. Porém, tais fatos, por si, não seriam um
motivo especial para que a escolha dessa área de estudos demandasse alguma
reflexão específica sobre os dilemas do trabalho de campo.
Diversos antropólogos estudam hábitos alimentares, sexuais, crenças
religiosas e outros temas que lhes são próximos enquanto indivíduos ou que fazem
parte do seu cotidiano extra-acadêmico. Alguns autores inclusive estudam práticas
1
Escolhi ilustrar cada tópico com um trecho das falas dos usuários entrevistados por mim durante a
pesquisa.
2
Existe uma ampla discussão entre os antropólogos sobre qual seria realmente o melhor termo para
substituir a palavra drogas, sob argumento de que esta estaria muito estigmatizada atualmente.
Substâncias psicoativas, plantas de poder e enteógenos, são apenas alguns dos exemplos dos
termos utilizados, num debate que se amplia cada vez mais, sobretudo se formos buscar uma forma
de definir o ramo da Antropologia que estudaria a relação dos seres humanos com as “drogas”.
Nesse trabalho adotei a definição do historiador Henrique Carneiro, para quem as drogas, na maior
parte da história humana, estiveram associadas à alimentos, sendo a origem do termo oriunda do
holandês antigo: droog. Tal palavra era utilizada para designar os produtos de origem vegetal
condicionados de forma desidratada, na clássica divisão entre secos e molhados, encontrada em
diversas tradições humanas até os dias de hoje.
7
8. sexuais que são próximas às suas próprias, ou sistemas religiosos dos quais muitas
vezes são praticantes. Existem inúmeros exemplos desse tipo, como o de
pesquisadoras feministas que estudam o próprio movimento feminista, ou de
antropólogos que fazem parte de Casas de Culto Afro-brasileiras e em seus trabalhos
tomam como objeto de estudo seus próprios sistemas de crença.
No entanto, sempre acreditei que, qualquer pesquisador que pretenda estudar
uma comunidade religiosa da qual faça parte, ou qualquer outro tipo de comunidade
ou grupo de indivíduos do qual ele mesmo seja um dos membros, precisará,
necessariamente, fazer considerações a respeito desse lugar especial que ocupa. Até
mesmo para manter a maior honestidade possível com leitores do seu trabalho, o
pesquisador-nativo, ou nativo-pesquisador, precisa expor seu pertencimento ao
grupo ou comunidade, e buscar uma forma de trabalhá-lo não só ao longo da
pesquisa de campo, mas principalmente na forma de exposição dos dados, ou seja no
texto publicado, construindo-o de maneira a deixar claro para o leitor onde termina a
fala do nativo e começa a do pesquisador e vice-versa.
Quando participei, como Bolsista do Programa de Incentivo à Bolsistas de
Iniciação Científica – PIBIC/UFBA – de uma pesquisa de campo por 30 dias no Acre,
coordenada pelo prof. Edward MacRae, a respeito do uso religioso de Ayahuasca3, foi
mais fácil equacionar essa questão. Apesar de já haver tomado Ayahuasca antes de
participar da pesquisa e ter uma relação que pode ser considerada espiritual com a
bebida, não sou “fardado”, nem posso afirmar que seja um “daimista” 4, ou nem ao
menos um seguidor de alguma das religiões que fazem uso da bebida. Isso significa
que, mesmo estando em comunidades onde se faz uso da bebida, e mesmo
compartilhando daqueles momentos de uso ritual, não fazia parte das comunidades
estudadas. Os códigos, as categorias e os significados compartilhados em torno da
bebida e de seus usos tiveram que ser completamente apreendidos por mim, ainda
que de forma mediada pelas leituras de trabalhos a respeito do tema, e por minhas
3
Ayahuasca é uma bebida de origem indígena, utilizada por religiões brasileiras como a União do
Vegetal, a Barquinha e o Santo Daime, dentre outras. A ayahuasca é preparada com o cipó
Banisteriopsis caapi e com as folhas da Psichotria viridis, fervidos juntos com água durante horas,
para reduzir o volume do líquido e extrair o princípios ativos. A bebida contém substâncias como o
DMT, Harmalina, Harmina, dentre outras, consideradas psicodélicos tão poderosos como o LSD-
25, a Mescalina ou MDMA, e capazes de proporcionar estados especiais de percepção existencial.
4
Fardado é o termo utilizado para designar os adeptos do Santo Daime que realizam o ritual no qual
se comprometem em seguir a Doutrina e participar frequentemente dos rituais do calendário
daimista. Já Daimista é o termo com o qual se auto-denominam os adeptos do Santo Daime. É
importante lembrar que o Santo Daime é um sistema de crenças com diferentes vertentes, muitas
vezes divergentes entre si. As Igrejas que frequentei durante a pesquisa pertenciam ao CEFLI –
Centro Eclético Flor de Lótus Iluminado e CEFLURIS – Centro Eclético Fluente Luz Universal
Raimundo Irineu Serra.
8
9. próprias experiências com a bebida e com a religião.
Não precisei fazer o esforço para me colocar num lugar estranho, já que eu na
verdade tive que utilizar todo meu arcabouço teórico sobre essas religiões para
realizar o exercício de apreender aspectos da cultura da comunidade específica que eu
estava estudando, ou seja, o estranhamento estava dado. Não somente por estar em
uma comunidade religiosa com significados a respeito da bebida bastante
diversificados dos meus, ou ainda por estar em um contexto ecológico, cultural, social
e geográfico totalmente diferente do que eu conhecia, mas principalmente por não
fazer parte dessas comunidades. Além disso, não apenas os significados sobre a
bebida eram diferenciados, mas as concepções centrais sobre muitos valores de vida
eram diferentes das minhas, facilitando a realização de uma observação mais
distanciada.
A experiência da antropologia ayauasqueira5 é algo discutido há bastante
tempo dentro da área dos estudos sobre drogas, especialmente na antropologia
brasileira, onde é comum encontrarmos muitos pesquisadores que não apenas
comungam significados espirituais sobre a bebida, mas também participam
ativamente das religiões. De fato, desde o século XIX diferentes pesquisadores que
atuaram em comunidades indígenas no Brasil relataram não apenas a cultura do uso
da ayahuasca, mas suas próprias experiências com a bebida.
Devido, principalmente, à necessidade de estudos oficiais sobre essas culturas
que embasassem o processo de regulamentação do uso religioso dessas substâncias6,
diversos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento têm sido chamados a
opinar sobre esses grupos. Desde a primeira expedição oficial do governo, no início
da década de 1980, antropólogos e sociólogos foram incorporados à equipe e, mesmo
antes disso, alguns pesquisadores já realizavam expedições independentes, como
Edward MacRae, orientador deste trabalho.
Face à estas considerações feitas, posso afirmar que, em minha participação
5
A antropóloga Beatriz Labate tece uma excelente reflexão a respeito do lugar do antropólogo
ayahuasqueiro, discutindo as tensões nesse campo, tanto na comunidade de antropólogos quanto
nas comunidades ayahuasqueiras, incluindo considerações sobre ética, regras de conduta, dentre
outros temas relevantes. Ver, LABATE, B. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos.
Campinas – SP: Editora Mercado de Letras, 2004.
6
O início do processo de regulamentação da Ayahuasca deu-se a partir da primeira expedição oficial
do governo brasileiro para estudar uma comunidade que fazia uso religioso da bebida. Em 1983 o
governo brasileiro enviou uma equipe multidisciplinar, que incluía um antropólogo e uma
socióloga, para estudar o uso do Daime em comunidades da Igreja CEFLURIS. O processo de
regulamentação só foi concluído em 2006, quando um Grupo Multidisciplinar de Trabalho
formado por membros do governo, cientistas e representantes de diferentes religiões que fazem uso
da bebida firmaram os Princípios Deontológicos do uso da Ayahuasca, que tornou-se, então, o
documento base para a atual política sobre o tema.
9
10. nesse trabalho de campo em comunidades religiosas que fazem uso de Ayahuasca, foi
mais fácil para mim realizar os exercícios de estranhamento e vigilância
epistemológica, já que contava com reflexões de outros autores a respeito desse tipo
de experiência e ao mesmo tempo, era muito mais explícito, tanto para mim, quanto
para os membros das comunidades, os limites entre meu “lado nativo” e meu “lado
antropólogo”. Nessa experiência de campo eu não podia ser considerado um nativo
apenas por fazer uso das mesmas plantas que a comunidade e por compartilhar
alguns dos seus valores e significados. Eu não era membro da comunidade, nem eles
me entendiam como um membro da comunidade, e sim, no máximo, como um
pesquisador em condição especial, principalmente por estar trabalhando com
Edward MacRae, que é bastante conhecido e respeitado na maioria das comunidades
do Santo Daime, especialmente nas que visitamos.
No entanto, a experiência do fazer antropológico da pesquisa apresentada
nesta Monografia, sobre a comunidade Growroom e a cultura do cultivo de maconha7,
a situação é bastante diferente. Não apenas faço uso da mesma planta que outros
membros da comunidade, mas também faço parte de sua história desde seu
surgimento, conhecendo o fundador antes mesmo da existência do fórum de
discussões, estimulando-o e auxiliando-o na organização e moderação. Além disso,
atualmente participo do processo de institucionalização do Growroom, que por hora
passa por criação de Estatuto e registro de documentos, dentre outras atividades, o
que me coloca diretamente ligado à sua estrutura, forma de atuação e funcionamento.
Assim, uma vez que faço parte da comunidade à qual me propus estudar antes
mesmo de ter definido quais seriam meus rumos na Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, achei correto, do ponto de vista da manutenção do estatuto da
neutralidade científica8, colocar de forma clara meu envolvimento com a
comunidade, com o fórum e com as transformações realizadas ao ao longo de sua
história. Por isso, decidi que utilizaria nesse trabalho algumas estratégias para deixar
7
A maconha é uma planta usada pelos seres humanos há mais de 12.000 anos, para as mais diversas
finalidades. Atualmente existem inúmeros termos para designar a planta, sendo maconha o mais
conhecido no Brasil e Cannabis sativa, seu nome mais conhecido na taxonomia botânica. Por esse
motivo, neste trabalho, usaremos predominantemente maconha e cannabis para nos referirmos à
esta planta.
8
Discutir o conceito de neutralidade científica é algo fora dos objetivos e do formato necessário à
este trabalho. Por hora, gostaria apenas de afirmar que meu posicionamento é de que a ciência,
como todas as práticas humanas, estão impossibilitadas de ter uma neutralidade absoluta, por sua
característica intrínseca de estar vinculada aos contextos histórico, econômico, social, cultural,
dentre outros, dos quais faz parte. A neutralidade é, dessa forma, entendida neste trabalho como o
esforço permanente para exercer a vigilância epistemológica e expor os meus lugares de
pesquisador e nativo.
10
11. da maneira mais explícita possível de que forma tem sido a minha participação na
comunidade, dentre as quais, utilizar meu próprio perfil e mensagens no fórum como
exemplos, quando isso for possível.
O tema drogas, e a análise das múltiplas questões envolvidas nele, ainda é um
tabu em nossa sociedade, ainda que muito tenhamos avançado nesse debate. Sei que
declarar-se usuário de alguma droga, especialmente ilícita, é uma atitude socialmente
arriscada, pois, na grande maioria das vezes, trazemos para nós olhares
estigmatizantes e discriminatórios. Olhares esses que, de forma superficial e taxativa,
provavelmente nos acompanharão a vida toda, mesmo que nossos trabalhos tenham
boa qualidade e a nossa relação com o uso da substância seja equilibrada. No entanto,
apesar de todos os riscos, acredito que não exista outra forma de fazer antropologia
senão sendo extremamente honesto tanto com a comunidade estudada, quanto com a
comunidade de antropólogos e com a sociedade em geral. Na verdade, não há outra
forma de se fazer qualquer atividade sem haver honestidade com as pessoas direta ou
indiretamente participantes do que é estudado e/ou produzido, e talvez influenciadas
por aquilo que fazemos ou falamos.
Espero ter trilhado este caminho, da melhor forma possível, neste trabalho,
com todas as comunidades e indivíduos a quem devo respeito e responsabilidades, e
onde busquei trazer colaborações para que a sociedade brasileira compreenda e possa
se relacionar melhor com aqueles cidadãos que optaram por cultivar a maconha que
consomem.
2.Sobre este Trabalho
“É incrível como a planta reage aos estímulos. É
impressionante como ela muda diariamente, se relacionando mesmo
conosco, de acordo com as condições que oferecemos a ela. Isso
sempre me deixa impressionado. Me faz lembrar que sempre posso
mudar também”. (Pintolico)
Inicialmente, na pesquisa que deu origem a esta Monografia, eu pretendia
analisar apenas a forma como usuários de maconha estabeleciam relações sociais
através de um fórum de discussões na Internet (www.growroom.net/board). Minha
idéia original era realizar uma observação participante em alguns tópicos de sub-
11
12. fóruns com temas específicos, realizar entrevistas com alguns informantes-chaves e
traçar o histórico do fórum através de depoimentos do seu fundador. Além disso,
também analisaria os dados do Censo Cannábico, projeto do qual fiz parte, e que
consistiu num levantamento quantitativo realizado em 2004, que reuniu cerca de
5.400 questionários respondidos, com mais de 70 perguntas sobre os hábitos e o
perfil dos usuários de maconha brasileiros, sendo totalmente produzido e divulgado
através do Growroom.
Os objetos principais da pesquisa era o fórum, sua estrutura, seu histórico,
seus espaços, tempos e mecanismos de sociabilidade, e os dados do Censo Cannábico,
buscando traçar um perfil do usuário de maconha brasileiro que também faz uso da
Internet, e a questão do cultivo para consumo próprio entraria apenas como um dos
temas debatido na pesquisa. Porém, diversos acontecimentos ao longo da pesquisa
me fizeram redimensionar os espaços reservados a discutir o fórum e os dados do
Censo Cannábico e decidir analisar mais aprofundadamente, considerando como
uma importante questão a ser debatida, a cultura e condutas de cultivo não-comercial
ou para consumo próprio de maconha e seus atuais aspectos sócio-político-legais.
Alguns exemplos de fatores que motivaram a decisão de alterar o espaço e os
temas trabalhados na Monografia são: mudanças na Lei sobre drogas ocorridas em
2006, equiparando as condutas de portar e plantar para consumo próprio e definindo
para estas penas alternativas à prisão; a crescente intensificação do debate público
em torno da legalização da maconha e, principalmente, o que, nesse momento,
revela-se como o tema mais relevante para a comunidade estudada, que é o
alarmante aumento de usuários presos sob acusações de tráfico, devido a
desinformação a respeito do cultivo de maconha para uso pessoal.
Há também o fato de que a prática de cultivo para consumo próprio é cada vez
mais aceita entre os especialistas como uma estratégia de redução de danos eficiente,
e como uma forma de diminuir a violência do mercado atual de maconha 9. Além
disso, tal prática, e sua regulamentação, é objeto de um Projeto de Lei que o
Deputado Paulo Teixeira (PT-SP) pretende propor, e também está sendo discutida
por um Grupo de Trabalho, do qual faço parte, do Conselho Nacional de Políticas
sobre Drogas (CONAD). É importante ressaltar que essa é uma prática ainda muito
pouco debatida na sociedade e que, mesmo a Lei 11.343/06 prevendo tal conduta,
9
Publiquei um artigo no qual discuto especificamente os trabalhos que relacionam a regulamentação
do cultivo para consumo próprio como uma estratégia de redução de danos e riscos do uso de
maconha. Para saber mais ver: Toxicomanias: Abordagens clínicas e sócio-antropológicas.
Salvador: Edufba, 2009.
12
13. muitos usuários têm sido acusados injustamente de tráfico de drogas por cultivarem
alguns espécies de maconha10.
Assim, trazer à tona a discussão sobre essas questões, através da perspectiva
antropológica, mostrou-se indispensável para o a compreensão de processos recentes
no campo da cultura e das drogas. Considero como sendo a atuação principal do
antropólogo a de tradutor cultural. Nesse sentido, o antropólogo teria a função de
compreender aspectos da vida de uma comunidade, utilizando as ferramentas da
etnografia e da antropologia, enquanto participa do seu cotidiano, procurando
elaborar um nível de compreensão mínima a respeito da cultura estudada. Caberia ao
antropólogo focar o olhar não apenas para aqueles temas que sejam relevantes para si
mesmo e para a comunidade de antropólogos, ou outras a quem precise prestar
contas da pesquisa, mas também em questões que sejam relevantes para o grupo
específico com o qual está trabalhando e para a sociedade em geral.
Em minha convivência com a comunidade de usuários do fórum Growroom,
percebi como sendo o principal tema de discussões, o que inclusive o diferencia de
outros fóruns e sites sobre o tema, a troca experiências sobre cultivo para consumo
próprio e o significado atribuído à esta conduta, vista como uma forma potencial de
interferir no mercado de drogas em geral, diminuindo o poder do denominado
“tráfico”11 e a violência envolvida. De 2002 para cá, alguns membros da comunidade
foram presos e acusados de tráfico de drogas e, em geral, foram submetidos a longos
períodos de encarceramento antes de conseguirem ser reconhecidos como usuários.
Esses episódios causaram grande comoção na comunidade e o crescimento do
interesse de que a figura do cultivador passasse a ser reconhecida social e legalmente.
Todos esses processos políticos, legais e sociais e o reconhecimento, nascido na
própria experiência de pesquisa de campo, da relevância do tema do cultivo para a
comunidade estudada, me levaram a crer que tal prática merecia prioridade na
divulgação dos resultados da pesquisa, estimulando uma reflexão sobre mudanças no
objeto deste trabalho. Na difícil tarefa de recortar o objeto, procurei redimensionar a
10
Os casos mais recentes que envolveram diretamente a comunidade Growroom são o de Fábio (RJ) e
Alexandre (RS), usuários que foram inicialmente acusados de tráfico e que depois da intervenção
de advogados sob orientação e apoio do Growroom conseguiram reverter a acusação para cultivo
com fins de consumo pessoal. Para maiores informações sobre o caso de Alexandre ver o tópico
iniciado no dia 14 de dezembro, disponível no endereço:
http://www.growroom.net/board/index.php?showtopic=33112&st=0. Para maiores informações
sobre o caso de Fábio, ver o tópico iniciado no dia 16, disponível em:
http://www.growroom.net/board/index.php?showtopic=33125&st=0.
11
A lei define tráfico de drogas como o comércio sem a devida autorização legal. Neste texto,
aparecem como sinônimos os termos: tráfico, comércio não-autorizado, comércio ilegal e comércio
sem a devida autorização.
13
14. necessidade de produzir uma extensa descrição da história do Growroom, de sua
estrutura, formas e mecanismos de sociabilidade e de me debruçar sobre todos os
dados do Censo Cannábico. Por mais relevante que seja descrever uma comunidade
de maconha no ciberespaço, ou conhecer algumas informações sobre o perfil atual do
consumidor de maconha brasileiro, esses tópicos podem esperar um pouco mais para
terem a atenção que merecem e, é claro, me dedicarei à publicação desses outros
resultados da pesquisa em trabalhos futuros. Assim, , por hora, optei por eleger como
objetivo central discutir aspectos sócio-culturais e legais do cultivo para consumo
próprio, a partir da comunidade de usuários do fórum Growroom e dos dados do
Censo Cannábico, situando o atual status dessa prática segundo as Convenções
Internacionais sobre Drogas (1961, 1971 e 1988) e a Lei 11.343/2006 .
A pesquisa apresentada aqui é fruto de uma análise baseada em 4 tipos de
dados: Bibliográfico, sobre a maconha, seus usos e usuários; Observação Participante
realizada na Comunidade do Growroom – www.growroom.net/board; Entrevistas
com o fundador do Growroom e com outros usuários que cultivam para consumo
próprio; Dados do Censo Cannábico das pessoas que afirmaram plantar pra consumo
próprio.
O levantamento bibliográfico permitiu traçar um panorama sobre a maconha
na História do Brasil, até a atualidade. Os dados coletados em minha participação na
comunidade Growroom são utilizados para analisar as formas de sociabilidade entre
usuários e de reprodução das informações a respeito das técnicas e experiências de
cultivo. Além disso, também são usados para realizar uma descrição do histórico do
fórum, de sua estrutura e forma de funcionamento.
E os dados das entrevistas realizadas e dos questionários do Censo Cannábico
são utilizados para traçar um perfil dos usuários que plantam maconha para consumo
próprio e realizar algumas reflexões a respeito dessa prática no Brasil. As entrevistas
com os usuários do Growroom foram realizadas através de questionários abertos,
respondidos ao longo do último semestre de 2008, sendo que as entrevistas com Ira,
fundador do Growroom, foram realizadas através de softwares de comunicação
online e em 4 oportunidades em que pude estar pessoalmente com ele.
A utilização de metodologias de coleta de dados tão variadas se deve
especialmente ao objeto de estudo tão peculiar e que exige o maior número de
informações disponíveis para ser possível a realização de análises criteriosas sobre a
matéria. Espero ter utilizado da forma mais adequada e proveitosa possível, inclusive
14
15. expondo as vantagens e desvantagens dos caminhos escolhidos para a obtenção das
informações as quais tive acesso para a realização deste trabalho.
3.Drogas, Ciência e Cultura
“O Growroom é um verdadeiro centro científico. Lá aprendi muito
mais sobre plantas do que nas minhas aulas de biologia no colégio”
(Tochiba).
Atualmente, vários pesquisadores têm afirmado a necessidade da utilização de
diferentes tipos de abordagens, concomitantemente, quando nos propomos realizar
estudos sobre o uso de drogas. (ROMANI, 1999; MACRAE, 2000). As abordagens
precisariam obrigatoriamente se debruçar de forma equivalente sobre aspectos
biológicos, sociais, culturais e psicológicos, que se relacionariam dentro do contexto
no qual uma determinada substância é utilizada. Não se trata de dizer que o efeito
farmacológico de uma droga não teria influência sobre a maneira como ela será
consumida, ou como seus efeitos serão percebidos, mas de admitir que todo uso de
substâncias psicoativas está obrigatoriamente inserido dentro de um contexto sócio-
cultural.
Quando se admite isso, é possível também admitir o fato de que as drogas têm
efeitos diferentes entre si e, de acordo com a configuração que o seu uso assuma em
um determinado grupo social, têm também efeitos antropológicos diferenciados.
Assim, tanto as concepções válidas que circulam na sociedade a respeito de drogas,
quanto os pressupostos epistemológicos, teóricos e metodológicos que estariam por
trás dos discursos científicos sobre o tema, deveriam se tomados como parte dos
objetos a ganhar atenção dos cientistas que estudam o uso de drogas (ROMANÍ,
1999).
Os fenômenos sociais relacionados à saúde e enfermidade têm recebido cada
vez maior atenção de cientistas sociais das mais diferentes correntes teóricas. Porém,
tradicionalmente deixada às ciências biomédicas, a produção do saber sobre essas
questões tem sido marcada pela busca do princípio da universalidade de tais
fenômenos que, muitas vezes, vêm sendo compreendidos apenas à luz de suas
determinantes biológicas. Essa perspectiva é informada pelo paradigma positivista e
visa, em última instância, produzir conhecimento para fomentar uma intervenção.
15
16. Por outro lado, o pensamento antropológico de cunho mais compreensivista, partiria
da concepção de que é preciso produzir conhecimento sobre os fenômenos a partir da
forma como as populações estudadas se relacionam com eles. Em outras palavras, à
Sociologia e Antropologia caberia a compreensão e às ciências biomédicas a resolução
dos problemas.
Na área dos estudos sobre os fenômenos do consumo de substâncias
psicoativas não tem sido muito diferente. Apesar das suas especificidades, a
produção de conhecimento sobre o tema tem seguido a lógica das ciências
biomédicas, buscando modelos explicativos baseados na necessidade de elucidar o
nexo causal do problema a ser equacionado, o que, no caso das drogas, seria
eminentemente determinado pela relação substância-organismo. O que significa
dizer que, os trabalhos a respeito consumo de drogas, têm, em grande medida,
buscado o entendimento sobre esses fenômenos partindo de explicações centradas
nos efeitos farmacológicos dessas substâncias. Assim, as experiências com drogas não
seriam entendidas como práticas sociais diversas, com especificidades envolvendo
valores, sujeitos, representações, significados, dentre outros aspectos, mas como
padrões comportamentais gerados por indução farmacológica de um princípio ativo.
Toda a experiência com drogas, que envolveria não só a substância, mas
principalmente o contexto sócio-cultural de uso, seria entendida como causada
unicamente pelo efeito da substância no organismo.
No Brasil, o crescimento da produção de trabalhos em Ciências Sociais no
campo dos fenômenos da saúde se deu principalmente através de sua introdução em
cursos de pós-graduação nos campos da Medicina Social e da Epidemiologia (ALVES
& RABELO, 1998). Com essa afirmação, não se pretende negar a existência de
trabalhos anteriores ao estabelecimento da relação entre ciências sociais e ciências
biomédicas e mesmo de trabalhos posteriores oriundos exclusivamente da Sociologia
e Antropologia. No entanto, a introdução de uma demanda por parte das ciências
biomédicas pela colaboração de cientistas sociais no seu campo traz particularidades
ao pensamento social nessa área que são importantes de serem discutidas.
Ainda que as preocupações sobre os aspectos coletivos da saúde antecedam a
institucionalização de disciplinas especificas, foi somente a partir da década de 1940
que esse processo tomou impulso, sendo também nesse período que Ciências Sociais
entraram nos cursos de Pós-Graduação12. Assim, o processo de institucionalização
12
Como exemplo, temos o Curso de Problemas da Sociologia aplicada à Higiene (1945) na Faculdade
de Saúde Pública da USP.
16
17. das Ciências Sociais no país ocorreu paralelo ao das disciplinas da Saúde Coletiva e
Medicina Social, dentre outras iniciativas de tornar o olhar sobre a saúde mais
interdisciplinar. (CANESQUI, 1995).
Até a década de 60, a introdução das Ciências Sociais no pensamento sobre a
saúde no país se deu principalmente pelo que se chamavam de “Ciências da
Conduta”, através da cooperação em pesquisas epidemiológicas e que produziram
mudanças bastante restritas na compreensão clínica da noção de individuo enquanto
ser bio-psico-social (CANESQUI, 1995, p.20-1). Discutindo ainda sobre esse processo,
Canesqui identifica entre as décadas de 60 e 70 uma transição da hegemonia do
paradigma funcionalista para um materialismo histórico de inspiração althuseriana,
o que seria, segundo ela, a troca de um estruturalismo por outro (p. 22). Essa
mudança teria aberto um largo espaço para o florescimento de uma Epidemiologia
Social ou Crítica, que proporcionou o crescimento da inclusão de cientistas sociais
nas iniciativas de pesquisa nessa área.
No entanto, ainda que as pesquisas epidemiológicas tenham ampliado sua
relação com os fatores sociais das determinantes das doenças e enfermidades, a
lógica positivista intrínseca ao fazer epidemiológico excluía a possibilidade da
compreensão enquanto meta final, permanecendo a epidemiologia uma ferramenta
eminentemente intervencionista. Assim, o saber epidemiológico seria eminente
intervencionista, enquanto boa parte do saber sociológico seria produzido em bases
epistemológicas compreensivistas. Ou seja, em última instância, à epidemiologia
caberia produzir saber sobre um aspecto determinado sobre o qual se possa intervir,
sem a obrigação de desvendar o nexo causal entre determinantes, o que teria sugerido
a metáfora da Epidemiologia de Caixa-preta (p.24). Nesse contexto, caberia aos
cientistas sociais apenas o papel de facilitar a criação dos mecanismos de coleta de
dados para as pesquisas realizadas pelos epidemiologistas.
Mas, as especificidades das abordagens sociológicas de base compreensivista
para os fenômenos da saúde e doença tornaram possível que na década de 80
emergissem novas concepções sobre o tema. Canesqui (1994), analisando 120
trabalhos de ciências sociais na área de saúde, encontrou “crescente interesse
antropológico na análise de fenômenos saúde-doença, fugindo evidentemente à
visão naturalizada, dominante no modelo médico biologicista e mecaniscista”
(p.14). Este interesse teria como reflexo não apenas o crescimento de estudos
antropológicos sobre o tema mas, em sentido mais geral, revelar que a produção das
17
18. Ciências Sociais sobre o tema da saúde havia se ampliado. Até esse período, a
produção das Ciências Sociais sobre o tema estava atrelada ao seu papel subsidiário
do conhecimento biomédico com vistas à promoção de intervenções médico
sanitárias, ou, no máximo, a produzir conhecimento sobre aspectos sociais que
facilitassem essas intervenções.
No entanto, os trabalhos deixaram de ser inspirados meramente por demandas
oriundas dos grupos de interesse ou instituições ligadas às ciências biomédicas, e
também surgiram trabalhos baseados nas preocupações emergidas dentro do próprio
campo das Ciências Sociais. Assim, o foco deixou de ser a doença ou o processo
patológico e passou a ser as populações que estavam sendo estudadas, seus processos
culturais e as relações que estabeleciam com os processos de saúde-enfermidade.
Canesqui destaca como sendo importantes para esse período as contribuições dadas a
partir das discussões sobre os conceitos de disease, illness e sickness, que guardariam
“distinções entre manifestações patológica ou biológica da doença, a percepção
individual ou subjetiva da doença e a ordem cultural estabelecida” (Eisemberg,
1977; Kleinmam, 1978; Frankenberg, 1980; Yung, 1982; apud CANESQUI, 1994).
Esses conceitos abriram a possibilidade de trabalhos que buscaram
compreender o saber, fundamentado nas ciências biomédicas, também, como
inserido em sistemas de referências socialmente e culturalmente determinados. Essa
forma de conceber os fenômenos do adoecer, baseada nos conceitos de disease e
illness, serviu de base para o surgimento da “Teoria do Conflito”. Essa teoria parte do
suposto de que o sistema médico de referências é intrinsecamente oposto ao sistema
leigo de referência, formado a partir das concepções do paciente. Muito utilizada para
entender os padrões de utilização dos serviços de saúde, afirma que “a concepção
biomédica está usualmente em uma oposição conflituosa com a do paciente, pois
para este a doença é formulada através de um ‘sistema leigo de referencia, isto é,
um corpo de conhecimentos, crenças e ações que estruturam a percepção leiga do
doente” (ALVES, s/d).
Assim, os sistemas culturais que informariam as concepções de médicos e
pacientes seriam intrinsecamente opostos e, a priori, inconciliáveis, segundo essa
teoria. Em outras palavras, a ascensão de paradigmas compreensivistas, dentro da
sociologia, possibilitou a emancipação do pensamento social sobre a saúde em
relação aos seus vínculos com o saber de origem biomédica. Essa emancipação tem
permitido que o saber antropológico sobre os fenômenos da saúde-doença deixem
18
19. seus pactos com a intervenção sobre as populações estudadas e reatem seus
compromissos com a compreensão de tais realidades sociais, ainda que se
mantenham interesses intervencionistas, em alguns casos.
Podemos concluir, portanto, que o desenvolvimento do pensamento
antropológico em relação aos fenômenos da saúde-doença se fez em um primeiro
momento ligado às ciências biomédicas e foi à elas subjugado. Em um segundo
momento, a influência das Ciências Sociais se fez mais presente e determinou a
ascensão dos fatores sociais dentro dos modelos explicativos para esses fenômenos.
Foi somente a partir do surgimento de um pensamento sobre os fenômenos
relacionados à saúde-doença oriundos das Ciências Sociais e seus próprios
pressupostos que pudemos assistir ao crescimento das discussões que compreendem
os sistemas médicos e os sistemas leigos enquanto sistemas culturais pluri-
referenciados e, muitas vezes, conflitivos entre si.
Já as contribuições das Ciências Sociais especificamente para os estudos do
uso de drogas, tiveram início ainda na década de 1950, quando começaram a surgir os
primeiros trabalhos enfocando esses fenômenos dentro de alguns grupos urbanos
específicos.
Na década de 1950, analisando grupos de usuários de maconha, o sociólogo
americano Howard Becker propôs nos Estados Unidos um novo método para abordar
a reprodução e manutenção dessas práticas de consumo, buscando respeitar e
compreender a lógica interna dos grupos no qual elas se reproduziam. Vivendo em
um país onde o uso da Cannabis também é muito difundido, Becker inaugurou o
paradigma cientifico que passou levar em conta que os usuários, compartilhavam
entre si valores e significados sobre a maconha e seus usos,e que eram diferentes aos
socialmente hegemônicos. Ou seja, ainda que em muitos aspectos de suas vidas esses
usuários compartilhassem de valores e significados comuns à indivíduos e
comunidades de não-usuários, os valores e significados que se relacionavam à
Cannabis eram divergentes e até mesmo antagônicos. Becker, utilizou o conceito de
cultura definido na Antropologia, para falar em cultura da droga, passando a clamar
pela necessidade de um olhar diferenciado para as comunidades de usuários de
drogas, afirmando ser preciso entender tais grupos dentro de seus próprios termos
(BECKER, 1966).
Em seus trabalhos, Becker analisou a maneira como usuários de maconha, a
partir das experiências em grupo, construíam os significados que justificavam a
19
20. permanência naquilo que ele chamou de carreira de maconheiro. Ele destacou a
maneira como a quantidade, a qualidade, as informações e as formas de uso, que
circulavam nesses grupos de usuários, influenciavam e determinavam as
representações dos usuários sobre seus hábitos, determinando inclusive as
configurações que esse hábito assumia. Dessa forma ele demonstrou que, para se
tornar um maconheiro, seria necessário ao usuário participar da cultura da droga,
para poder saber utilizar a substância da maneira adequada e aprender a identificar
dentre os efeitos obtidos, aqueles que buscava, bem como percebê-los como
prazerosos e reconstruir os próprios valores sobre a substância e suas práticas de uso,
distanciando-se daqueles reproduzidos no senso comum, que tendem a categorizar a
cultura da droga como algo negativo.
Com esse trabalho, Becker forneceu uma importante contribuição e construiu
as primeiras ferramentas teóricas e metodológicas para que os pesquisadores
pudessem analisar comunidades de usuários de drogas sem, no entanto, partirem do
estatuto de que toda a experiência com essas substâncias é determinada meramente
pelos fatores farmacológicos. Segundo ele:
“Evidências experimentais, antropológicas e sociológicas
convenceram grande parte dos observadores de que os
efeitos da droga variam muito, dependendo de variações
na fisiologia e psicologia das pessoas que as tomam, do
estado em que a pessoa se encontra quando ingere a
droga e da situação social na qual ocorre a ingestão da
droga”. (BECKER, 1977).
Assim, em sua perspectiva, o usuário aprende socialmente a perceber tais
efeitos e a interpretá-los como sendo ou não causados pela droga, bem como se tais
efeitos devem ou não ser encarados como prazerosos. Dessa forma, uma determinada
droga pode causar distorção na percepção do tempo e isso ser experimentado como
algo ruim por um indivíduo, mas pode ser o efeito buscado por um outro e ser tido
como prazeiroso. Nesse sentido, a quantidade e a qualidade de informações sobre a
substância consumida, na medida em que uma substância desencadeia múltiplos
efeitos sobre o organismo, o acesso a quais são esses efeitos e a forma como tais
efeitos devem ser percebidos pelo usuário, influenciariam diretamente a experiência
psicoativa.
20
21. Informações sobre quais dosagens são necessárias para se obter os efeitos
esperados, a forma de consumir e as sensações que devem ser buscadas nesse leque
de efeitos são apenas alguns dos exemplos do que é aprendido em fontes que o
usuário considera confiáveis: normalmente usuários mais experientes, ou grupos de
usuários com os quais podem compartilhar experiências. Os usuários aprenderiam
também com sua própria experimentação e com informações buscadas em
publicações, pesquisas, livros, revistas e outros meios de comunicação, tanto dos
sistemas de especialistas como dos sistemas leigos de referência. Tudo isso formaria o
que Becker chamou de saber informal sobre a droga, que seria o conjunto de
informações que circulam nas redes de sociabilidade formadas por usuários
(BECKER, 1977).
Dessa forma, as representações que grupos na sociedade em geral e os grupos
formados por usuários em particular, constroem sobre a substância, sobre a cultura
em torno do seu consumo, e sobre seus efeitos, tanto individuais quantos sociais, são
de fundamental importância na elaboração das experiências com psicoativos. Por
outro lado, a maneira como a droga e os usuários são entendidas por um grupo social
específico e na sociedade em geral também podem determinar o caráter das
informações sobre as substâncias e seus usuários que serão produzidas pelas
instituições dessa sociedade.
Sabe-se que se uma determinada substância é historicamente categorizada de
forma negativa e sofre um longo processo de estigmatização, é comum que boa parte
das informações divulgadas pelos veículos de comunicação, principalmente os de
massa, estejam de acordo com esses significados e inibam o acesso de cidadãos,
usuários ou não de drogas, a outros tipos de informações, influenciando
especialmente a interpretação que os usuários têm para o uso e para os efeitos
experimentados em suas carreiras.
É nesse sentido que, usuários de maconha, que tenham que conviver com a
ilegalidade do seu hábito, sentem necessidade de reforçar valores que justifiquem a
sua opção e a continuidade de sua carreira desviante, buscando a construção de uma
imagem positiva tanto para seu hábito, quanto para si, em contraposição às
representações sociais que ligam a maconha e os usuários de maconha à imagens de
marginalidade, imoralidade, insanidade e vício. (MACRAE & SIMÕES, 2000).
Como vimos, as representações que os usuários têm sobre a droga, seu
consumo e seus efeitos são construídas em redes de sociabilidade de usuários,
21
22. quando os usuários de determinada substância se mantêm ligados, mesmo que
indiretamente, por um certo período, fazendo circular uma grande quantidade de
informações sobre suas experiências formando o que se chama cultura da droga.
(BECKER, 1977). A cultura da droga é muitas vezes ignorada ou contestada nas
análises sobre os usuários construídas meramente sobre dados farmacológicos ou
jurídico-legais. Tais análises tendem a ignorar as opiniões e motivações dos
indivíduos na busca pelo uso de drogas, elaborando interpretações sobre os usuários
e seus hábitos desprovidas de qualquer relação com a cultura da droga.
Todas essas representações negativas elaboradas em torno da cultura da
droga acabam gerando um volume de informações que concorrem diretamente com
as informações que circulam nas redes informais de sociabilidade de usuários,
gerando uma disputa por legitimidade de duas posições que discordam em muitos
aspectos. As representações sobre a substância, os usuários, o consumo e os efeitos de
determinada substância, que são elaboradas em cima dessa visão reducionista,
tendem a empurrar de forma ainda mais acentuada os usuários para a marginalidade
e a intensificar na sociedade a construção de imagens negativas relacionadas às
substâncias psicoativas e seus usuários. (MACRAE, 2000).
No Brasil, os trabalhos de Becker e outros autores começaram a inspirar o
surgimento de novas abordagens, que passaram a levar em conta os contextos
socioculturais no qual o consumo de drogas se desenvolve, e destacam-se os trabalhos
de Gilberto Velho sobre os comportamentos desviantes. (VELHO, 1974). Em meados
de 1980, as publicações sobre o consumo de Cannabis já revelavam uma forte
identificação do hábito entre as diversas camadas sociais do país e a preocupação em
analisá-los a partir de olhar mais compreensivista. (HENMAN e PESSOA Jr., falta o
ano, pq não foi citado antes.; MACIEL, 1985).
No entanto, até esse período, a produção de dados a respeito dos fenômenos
relacionados ao uso de drogas se refere basicamente a estatísticas policiais,
hospitalares e de institutos médico-legais (BUCHER, 1992), com ênfase nos aspectos
ligados ao tráfico e ao uso de drogas ilícitas. Richard Bucher, afirma que somente a
partir de 1986 é que muitos estudos realmente relevantes começaram a surgir na
área, a partir do incentivo de instituições de fomento à pesquisa, nacionais e
internacionais,
“... graças a uma política de incentivo à investigação
22
23. científica sobre o tema (com apoio do CNPq, do UNDCP,
da OMS e outros), aliada ao esforço de diversos grupos de
pesquisadores universitários, o Brasil se destaca como o
país latinoamericano que mais dispõe de dados
epidemiológicos recentes sobre o consumo de substâncias
psicoativas ” (BUCHER, 1992, p. 12)
Dessa forma, foi somente a partir do final da década de 80 que surgem as
primeiras pesquisas de grande porte a respeito do consumo de drogas no Brasil. No
entanto, é importante ressaltar que tais pesquisas referem-se principalmente a
levantamentos quantitativos baseados em técnicas de survey, apoiados nos
paradigmas epidemiológicos emprestados da biomedicina, a exemplo dos estudos de
Bucher & Totugui (1986/87), Carlini-Cotrim & Carlini (1987), Almeida Filho &
Santana (1987/8), Carvalho Neto e outros (1987), Achutti (1989) (BUCHER, Op. Cit.,
p.9-23).
Na década de 1990 as abordagens interdisciplinares consolidaram sua
legitimidade enquanto perspectivas eficientes para os estudos sobre os usos de
psicoativos e os aspectos sócio-culturais do consumo passaram a ser cada vez mais
levados em consideração nas discussões sobre o tema. Nesse processo, os indivíduos
começam a ser vistos como sujeitos ativos na busca pelas substâncias e responsáveis
pela atualização das práticas e representações que justificam a manutenção desses
hábitos. (Espinheira; Neri Filho; Bucher In: BUCHER et al, 1994). Desde então, as
várias configurações que o uso, os padrões de consumo e os hábitos relacionados
assumem, e como esses têm sido articulados nos mais diversos contextos dentro da
sociedade, têm sido objeto de variados métodos de observação. Assim, populações
com características específicas passaram a ser estudas a luz das determinantes sócio-
culturais que tecem as suas especificidades e ao mesmo tempo indicam as melhores
abordagens.
A partir daí, têm surgido diversos trabalhos estudando situações em que o uso
de substâncias psicoativas não se relaciona necessariamente com problemas sociais
ou à saúde e muitas vezes é parte importante da cultura da população estudada. Entre
os temas estudados estão as práticas de uso tradicional, ritual e religioso de maconha
entre populações indígenas e caboclas13; uso ritual e religioso de Ayahuasca (Daime,
Yagé) entre povos indígenas e populações caboclas e urbanas14; e o uso ritual de
13
Sobre esse assunto ver o trabalho de Anthony Henman (1986).
14
Sobre o tema ver os trabalhos de Beatriz Labate (2002) e as coletâneas “O uso ritual de Ayahuasca”
(LABATE & GOULART, 2004) e “O uso ritual de plantas de Poder” (LABATE & ARAÚJO, 2004).
23
24. fermentados alcoólicos (Mocororó, Cauim)15. Assim, o que se assistiu foi o
reconhecimento da importância de se observar a singularidade de cada uso de drogas,
o que levou, finalmente, a uma preocupação com o contexto sócio-cultural em que o
ato de tomar a substância está inserido, pois é nele que se forma o que poderia ser
chamado de efeito antropológico, ou seja, tudo que uma população se habituou a
esperar de uma droga e de seus usuários (BUCHER, Op. Cit.).
Lima, discutindo as concepções teóricas que das abordagens sobre o tema no
Brasil, considera como sendo três os modelos principais:
1. Modelo Experimental – ligado aos paradigmas posteriores aos trabalhos de
Darwin e Pasteur, fortemente influenciados pelo modelo explicativo da
biomedicina experimental do século XIX, baseando suas análises à substância
usada e aos seus efeitos farmacológicos como principal foco de saber sobre os
fenômenos relacionados ao consumo.
2. Modelo Clínico – baseado na experiência clínica junto a pacientes em
tratamento, e que constrói seu quadro analítico a partir do referencial de um
conjunto de sintomas que apontariam para possíveis desordens. A causalidade
deixaria de ser apenas farmacológica, mas continuaria a perspectiva de que o
uso é um sintoma do vício, doença que teria agora origem biopsicosocial.
3. Modelo Estrutural – associado às perspectivas de Saúde Pública e da Medicina
Social, buscando adotar abordagens sistêmicas, multi e interdisciplinares para
analisar os fenômenos. Esse modelo ainda estaria influenciado pelo paradigma
da biomedicina e o aporte teórico metodológico estaria ainda muito embasado
na epidemiologia, mas também é marcado por uma preocupação em incluir
fatores relativos aos aspectos sociais do consumo. (LIMA, 1997. p. 94-8)
No entanto, essas três vertentes apontadas por Lima dão conta apenas dos
trabalhos preocupados com de que maneira o uso de drogas está sendo realizado,
visando possíveis intervenções no sentido de combater o problema das drogas. Na
perspectiva de Lima, os modelos dariam conta de explicar que paradigmas estariam
informando os estudos sobre drogas de acordo com diferentes referenciais. Mas, para
ele, os modelos experimental, clínico e estrutural seriam permeados constantemente
pelo risco de um determinismo farmacológico intrínseco às abordagens tradicionais
15
Sobre o uso do Cauim e outras bebidas fermentadas tradicionais ver Henrique Carneiro (2005).
24
25. sobre o uso de drogas16. Assim, para ele, nos estudos sobre o uso de substâncias
psicoativas seria recorrente a compreensão de que a substância em si é portadora de
fatores de explicação causal.
Seguindo a sugestão de Richard Bucher, podemos dividir os estudos sobre a
Cannabis no Brasil entre o que ele chama de perspectivas moralista e liberal17. No
primeiro grupo estariam os estudos voltados para discutir os aspectos negativos do
uso da maconha, a partir dos efeitos farmacológicos da substância, focalizando as
análises na discussão dos potencias riscos e danos relacionados com o uso abusivo.
Nesse caso, à ciência caberia não apenas o papel de compreender o fenômeno, mas
também de julgá-lo, considerando-o em si negativo ou positivo e, por isso, ilícito ou
lícito. No segundo, estariam os estudos que entendem a maconha e outras drogas
como sendo objetos de consumo, em si, neutros ou vazios, não podendo ser
analisados fora de seus contextos culturais específicos, e que não atribuem
julgamentos de valor supostamente baseados em conhecimentos científicos
(BUCHER, 1992).
Para os autores inseridos nesse segundo grupo, qualquer que fosse o
“problema das drogas”, este seria expressão de uma configuração específica, num
contexto sócio-cultural determinado, mas que não poderia ser generalizado para
todos os casos, já que as experiências com drogas na maioria das vezes não é
entendida como um problema para o usuário. Seguindo essa linha, na maioria dos
estudos, as práticas relacionadas com uso de drogas não são analisadas como
problemas, uma vez que não seria de grande valia uma ciência da cultura que, a
priori, considerasse como problema uma prática cultural tida como comum para o
grupo estudado.
O antropólogo Oriol Romaní, discutindo o papel do cientista social no campo
de estudo dos fenômenos relacionados ao uso de substâncias psicoativas, afirma que
não apenas tais fenômenos, mas também os próprios paradigmas que orientam as
reflexões sobre eles, precisam ser entendidos à luz das características sócio-culturais
da sociedade da qual são fruto. Assim, para além de constituir conclusões a respeito
das substâncias em si, o antropólogo inserido nesse campo precisa constituir um
discurso sistemático a respeito do maior número de fenômenos relacionados às
16
LIMA, Élson da Silva. Existe um paradigma epidemiológico para o estudo do fenômeno da
drogadição?. In; BAPTISTA, Marcos; INEm, Clara (Orgs.) TOXICOMANIAS – abordagem
multidisciplinar Rio de Janeiro – RJ: Editora Sette Letras, 1997. p. 94.
17
BUCHER, Richard. Drogas e Drogadição no Brasil. Porto Alegre – RS: Editora Artes Médicas,
1992. p. 89-91.
25
26. formas com as quais a sociedade que estuda lida com essas substâncias. Tanto as
concepções válidas que circulam na sociedade a respeito das drogas, seus usos e
usuários (sistemas leigos), quanto os pressupostos epistemológicos, teóricos e
metodológicos que estariam por trás dos discursos científicos sobre o tema (sistemas
especialistas) deveriam ser objetos da atenção do cientista social na área do uso de
psicoativos (ROMANÍ, 1999.p.135-174).
Romaní afirma ainda que, por fazerem parte tão intrínseca da cultura das
sociedades, as drogas devem ser estudadas de uma forma muito especial, voltada
para a compreensão de toda a diversidade e formas singulares de expressão do
fenômeno, ao invés da comum busca obsessiva por uma explicação causal. Em suas
palavras “considerando que en el caso de las drogas estamos ante un fenómeno
expresivo, tendremos una mayor capacidad de entenderlo si lo situamos en el
contexto de los paradigmas científicos que priman la comprensión a la explicación”
(ROMANÍ, Op. Cit.p. 138).
O papel das ciências sociais na produção do conhecimento a respeito dos
fenômenos sobre o uso de drogas estaria, portanto, vinculado não apenas à produção
de dados a respeito da ação das substâncias, ou dos problemas relacionados ao seu
uso, mas, sobretudo, à compreensão crítica da forma como toda sociedade que ele
analisa se relaciona com as drogas, seus usos e usuários. Nesse sentido, ao cientista
social caberia o papel de compreender como a droga é usada social e culturalmente
não apenas por seus usuários, mas por diversos grupos na sociedade, inclusive os que
querem combatê-las ou analisá-las.
Durante essa pesquisa procurei elaborar reflexões críticas não apenas a
respeito do uso da maconha, mas também a respeito da prática científica relacionada
com o tema. Nessa pesquisa, adotei a postura sugerida por Romani e antes dele por
Bucher e muitos outros, procurando utilizar o texto para realizar uma tradução o
mais eficaz possível da realidade estudada, numa linguagem inteligível para
antropólogos e não-antropólogos. Devido a meu lugar especial de nativo-antropólogo,
já mencionado anteriormente, essa postura se fez ainda mais inevitável, devido ao
meu conhecimento sobre quais temas são de maior relevância para os cultivadores e
que precisavam ter maior destaque. Ao me colocar neste papel procurei não criar
julgamento baseados em valores morais ou ideológicos, mas sim me ater à tarefa de
analisar e discutir a respeito da cultura estudada sem “maquiá-la” de forma alguma.
Espero que o papel a que me propus nessa pesquisa tenha sido realmente a melhor
26
27. escolha e que, através desse trabalho, tenha podido realizar boas análises críticas a
respeito do tema e também trazido dados e informações relevantes que ajudem na
compreensão da maconha, seus usos e usuários, no Brasil atual.
4. A Maconha na História do Brasil
“Conheço político, advogado, policial, médico, professora de jardim
de infância, preto, branco, azul e verde. Todo mundo fuma, pô!”
(Fangorn)
As práticas culturais relacionadas com o consumo de maconha no Brasil atual
não poderiam ser discutidas sem antes fazer algumas considerações a respeito dos
usos e papéis que a planta teve na história do país. Também considerei que deveria
discutir de que maneira foi construída a imagem negativa associada à planta e seus
usos e como se deu o processo de criminalização da maconha no Brasil, tendo como
principal fonte de conhecimento os dados encontrados ao longo da pesquisa
bibliográfica.
No Brasil, as práticas sociais associadas ao consumo Cannabis sativa e seus
derivados sempre foram bastante comuns, desde o inicio da colonização, e
incorporadas junto com outros elementos culturais de diferentes grupos étnicos que
vieram ou foram trazidos para o país (Dória, 1915; Iglesias, 1918; Moreno, 1946;
Mott, 1986; In; HENMAN & PESSOA Jr, 1986). Embora a maioria dos registros
históricos aponte que, nesse período inicial essas práticas fossem quase
exclusivamente restritas aos escravos, sabe-se que com o passar dos anos, assumiram
as mais variadas configurações, com uma maior ou menor penetração em diferentes
camadas sociais.
Certamente, os colonizadores, agentes do Império Lusitano, já estavam
habituados, desde o período denominado como Expansão Marítima, ao
relacionamento com diferentes culturas consumidoras da planta. Além de
conhecerem os usos lúdicos e medicinais de sua resina, a partir do seu contato com
populações de países asiáticos e africanos, onde mantinham outras colônias, também
conheciam as utilidades de sua fibra. Denominada na Europa mais comumente de
Linho-cânhamo, ou somente Cânhamo, as fibras da planta eram amplamente
utilizadas na indústria têxtil, sendo reconhecidamente um dos produtos centrais à
27
28. economia e sociedade da época (HERER, 1985; BOOTH, 2003; BENTO, 1992).
Apesar dos dados históricos apontarem que as contribuições dos africanos e
seus descendentes à cultura do uso da maconha no país sejam bem antigas, tudo
indica que as contribuições dos colonizadores também foram bastante relevantes
para a disseminação dessa espécie vegetal em todo país. Se por um lado a introdução
e utilização de Cannabis seguiram a mesma lógica que outros aspectos da vida das
populações de escravos e ex-escravos, estando restritas às determinações das elites
econômicas, sociais e políticas, por outro, os colonizadores cultivaram oficialmente
variedades da planta de diversas origens, em diferentes regiões do país.
Pesquisas evidenciam a existência de fazendas e benfeitorias com plantio de
maconha, instaladas no sul do país, em regiões que atualmente ficam entre os
municípios de Canguçu e Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul ainda no século
XVIII. Também foi a partir desse período que ocorreu um amplo movimento,
inserido num projeto de fortalecimento do Estado através da busca por riquezas
naturais que pudesses ser exploradas economicamente, de cultivo da planta no Brasil,
com ações oficiais entre as quais se destacam a importação de sementes da Índia e
Europa para serem distribuídas e cultivadas em diferentes pontos do país, tradução
de manuais de cultivo para o português, e estudos e investimento na adaptação
climática de variedades da planta. Os Hortos Botânicos Imperiais trabalharam na
produção desse conhecimento e alguns relatórios e correspondências apontam para
as discussões sobre o desempenho das plantas em solo nacional, sendo que para
alguns, era um cultivo considerado altamente promissor (SANTOS & VIDAL, 2009).
Fora esse período de iniciativas oficiais de usos e os registros de usos entre
africanos, há ainda poucos registros encontrados sobre as práticas de uso da
maconha, anteriores ao século XX. Mas, ainda assim, sabe-se que já no início do
século XIX, havia um cenário de usos distinto do que havia no início da colonização, e
nesse contexto, apesar de ainda bastante limitado às populações rurais, os usos já
eram identificados também entre brancos, indígenas e mestiços, com os quais os
antigos fumadores possivelmente mantiveram algum contato (HENMAN e PESSOA
Jr., Op. Cit).
Do século XIX é o primeiro documento proibindo o uso da maconha, uma
Postura18 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, de 1830, penalizando a venda e o
uso do denominado pito do pango, sem, no entanto obter quaisquer repercussões
18
Nome dado à época aos decretos de validade municipal.
28
29. significativas. Foi somente no início do século XX, com a intensificação do processo
de urbanização, quando o hábito ganhou adeptos entre os habitantes das zonas
urbanas, que ele passou a figurar entre as preocupações das autoridades
governamentais.
Apesar de sua ampla utilização como matéria-prima para fibra têxtil,em
determinado período, principalmente pelas populações ligadas às elites econômicas e
sociais, a imagem da planta ficou marcada permanente por sua associação com o uso
por parte das populações pobres, negras e indígenas. Até o final do séc. XIX e as
primeiras décadas do séc. XX, a planta era bastante difundida nas regiões norte e
nordeste do país, sendo consumida por ex-escravos, mestiços e grupos indígenas,
principalmente nas zonas rurais, mas com o avanço do processo de urbanização, as
populações migrantes passam a ser vistas como fonte de problema sociais e
sanitários. Os hábitos de consumo e higiene desses grupos tornaram-se objeto de
estudo e controle das instituições e autoridades médicas e sanitárias. Foram criadas
delegacias e outras instituições específicas para tratar do assunto, a exemplo da
Inspetoria de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificações, que também era responsável
pela repressão às práticas religiosas de origem africana, afro-brasileira e afro-
indígenas, em geral consideradas feitiçaria, curandeirismo ou magia-negra.
(MACRAE & SIMÕES, 2000; ADIALA, 2006).
A partir de 1910, alguns cientistas, como Rodrigues Dória e Francisco Iglesias,
passaram a divulgar e descrever, em artigos e congressos científicos internacionais,
suas teorias relacionando o comportamento considerado por eles, e outros
eugenistas, como natural19 das populações de origem africana, com os efeitos
farmacológicos da Cannabis. Segundo essa perspectiva, a maconha causaria em seus
consumidores “degeneração mental e moral”, “analgesia/entorpecimento”,
“vício/compulsão”, “loucura, psicose e crime”. Esses efeitos seriam os responsáveis
pelo comportamento atribuído por esses cientistas à natureza das populações de
origem africana, que seriam caracterizadas pela “ignorância”, “resistência física”,
“intemperança”, “fetichismo” e “criminalidade” (ADIALA, 1986, 2006; RODRIGUES,
19
A eugenia é um paradigma científico que se ampara na teoria evolucionista para afirmar que é
importante atuar rigorosamente de forma seletiva na reprodução para garantir a “evolução” das
espécies. Durante o final do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX, ela foi amplamente utilizada
como justificativa para políticas de controle social e cultural, como base científica de diversas
iniciativas de cunho racista e de perseguição à práticas culturais de populações consideradas
“inferiores”. Um dos maiores exemplos históricos desse tipo de uso do paradigma eugenista foram
as políticas de controle das populações “indesejáveis”, como Judeus, ciganos, imigrantes, dentre
outros, durante os regimes nazistas na Alemanha, na primeira metade do séc. XX.
29
30. 2004).
Essas idéias se difundiram facilmente no ambiente acadêmico da época,
quando muitos dos conceitos ligados às teses eugênicas estavam no auge de sua
influência nos meios científicos do país. As drogas foram consideradas “venenos
sociais” e o hábito de consumi-las uma doença socialmente transmissível. (STEPAN,
2005). Bem aceita no meio acadêmico e na sociedade em geral, essa tese alcançou
repercussões nacionais e internacionais. As posições do Dr. Dória sobre o que ele
chamou de “a vingança dos vencidos” podem ser resumidas no trecho que encerra
sua comunicação no Segundo Congresso Científico Pan-americano, realizado em
Washington, 1915:
“A raça preta, selvagem e ignorante, resistente,
mas intemperante, se em determinadas circunstâncias
prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais
adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho
corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto
organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que,
nos estases fantásticos, lhe faria rever talvez as areais
ardentes e os desertos sem fim de sua adorada e saudosa
pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da
terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe
sugaram a seiva reconstrutiva” (DÓRIA, 1915. p.37)
A partir dos esforços do Dr. Dória e seus colaboradores, as práticas e
representações sobre o uso, plantio e preparo de Cannabis, tradicionalmente
transmitidas e socialmente validadas através das diversas gerações de brasileiros que
a consumiam há séculos, passaram a ser oficialmente desqualificadas, deslegitimadas
e consideradas sintomas de uma doença social (MACRAE e SIMÕES, 2000). Foi
como doença transmissível de população para população que o hábito de consumir
Cannabis foi introduzido nos meios científicos da época, e foi dessa forma que passou
a ser discutido e pensado dentro de boa parte da comunidade científica.
Interpretadas como sintomas de uma “psicose hetero-tóxica” e compreendidas a
partir das categorias “maconhismo” ou “canabismo”, essas práticas passaram a ser
objeto de estudos e pesquisas em grande parte fomentadas ou promovidas pelas
autoridades oficialmente legitimadas sobre o assunto. (ADIALA, 1986, 2006).
Em 1921, as autoridades brasileiras que lidavam com as questões das drogas se
alinharam às posições repressoras dos EUA, seu principal aliado comercial e político,
aderindo aos acordos firmados na reunião da Liga das Nações Unidas através da
30
31. aprovação da Lei Federal nº 4.294, de 6 de julho de 1921, que “estabelecia medidas
penais mais rígidas para os vendedores ilegais, fortalecia a polícia sanitária nas
suas prerrogativas e reafirmava a restrição do uso legal de substâncias psicoativas
para fins terapêuticos” (RODRIGUES, 2004, p. 135).
Com essa lei, o país estabeleceu os primeiros passos para a burocratização da
repressão e do controle das substâncias proscritas. Essa norma previa
encarceramento para os traficantes, mas interpretava os consumidores como doentes,
vítimas das substâncias, prevendo para eles o tratamento compulsório. Apesar dos
esforços das autoridades ligadas ao aparelho de repressão estatal, o ordenamento
jurídico brasileiro em relação ao tema só voltaria a sofrer alterações significativas na
década de 1930, período de promulgação de uma nova Constituição.
A partir da década de 1930, a repressão ao uso da maconha, no Brasil, ganhou
força e se intensificou, principalmente devido à postura adotada pelo representante
brasileiro na reunião da Liga das Nações, em 1924, que, de forma arbitrária e
contradizendo importantes estudos científicos realizados no país, incluindo os dele
próprio, comparou os perigos da maconha aos do ópio, exigindo equivalência na lista
classificatória da Convenção20 (CARLINI, 2004; MILLS, 2005). A equivalência
solicitada pelas autoridades brasileiras foi aceita, a após isso houve a inclusão da
planta como substância proscrita no país e a promoção de uma campanha para
erradicação do seu cultivo e consumo, com a implantação do Decreto 20.930, em
1932, onde os crimes de “vender, ministrar, dar, trocar, ceder ou, de qualquer modo,
proporcionar substâncias entorpecentes, sem a devida autorização” passaram a ser
previstas penas de 1 a 5 anos.
O mesmo Decreto passou a incluir a maconha na lista de substâncias
proscritas, sob a denominação de Cannabis indica, descrevendo o uso como doença
passível de internação e notificação compulsórias, inaugurando ainda a prisão para
usuários, ao prever penas de até nove meses para “[...] quem for encontrado tendo
consigo, em sua casa, ou sob sua guarda” (RODRIGUES, Op. Cit.).
Em 1934, foi promulgada uma nova Constituição, em meio a muitas agitações
políticas e sociais e, um ano depois, o Poder Executivo decretou a Lei de Segurança
Nacional (LSN), através da qual passou a vigorar um Estado de Exceção, com
20
É importante informar que no dia 2 de março de 2008, em Reunião do Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas, o Brasil aprovou o encaminhamento à Organização das Nações Unidas de
um documento no qual se retrata oficialmente pela postura dos seus representantes nas Reuniões
Internacionais de 1924 e 1961, e no qual sugere que, em reparação às consequências desse erro a
Cannabis seja retirada da Lista IV da Convenção Única de 1961.
31
32. restrições às liberdades individuais e direitos constitucionais. Em 1937, o então
presidente Getúlio Vargas fechou o Congresso, prendeu parlamentares e decretou o
estabelecimento de uma ditadura que vigoraria até 1945, conhecida como Estado
Novo.
Um ano após a instauração do Estado Novo, Getúlio Vargas impôs o Decreto-
lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, que punia com penas ainda mais severas o
comércio não-autorizado e os usuários, ao prever pena de até quatro anos de prisão
para a conduta de “ter consigo [...] sem prescrição do médico ou cirurgião-dentista
[...] ou sem observância das prescrições legais ou regulamentares”. Segundo o
Cientista Político Thiago Rodrigues:
“A condenação moral de fundo religioso, que criou um caldo de
pressão política na sociedade da década de 1910, é absorvido
pelo Estado; o saber médico, da mesma forma, é capturado
pelas instâncias sanitárias estatais, que com essa apropriação
passam a determinar quais drogas são permitidas e quais não
são, indicando aquelas que poderiam ser receitadas [...]
Mesmo modificada, a lei de 1938 lança as bases de um
ordenamento repressivo moderno, afinado com as
determinações internacionais e fundante do controle ampliado
do Estado sobre a sociedade e a conduta individual, tônica da
estratégia de controle social condensada nas leis antidrogas a
partir de então” (RODRIGUES, Op. Cit.,p. 148-9).
O Decreto-lei n. 891 tinha como principais pontos a regulamentação e
definição das atribuições da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes
(CNFE), criada em 1936 e o estabelecimento de penalidades de encarceramento para
condenados por uso ou porte para consumo pessoal. Além de introduzir o
entendimento de que o usuário não era mais um doente e sim um criminoso, a lei
regulamentou no ordenamento jurídico o papel da CNFE, órgão centralizador de
todos as ações anti-drogas. A partir disso, outras instituições estaduais e municipais
passaram a ser formadas especificamente para tratar das questões relacionadas ao
consumo e comércio das substâncias proscritas, que passaram a ser chamadas
genericamente de tóxicas ou entorpecentes. Houve um crescimento do número de
delegacias, departamentos de polícias, clínicas e outros órgãos e instituições que
passaram a ter como principal atividade designar aos usuários e comerciantes não-
autorizados das drogas tornadas ilícitas um tratamento burocrático-legal21.
21
É interessante notar que, apesar de prever exceções para uso medicinal e científico, as leis anti-
drogas foram tão parcialmente e erroneamente utilizadas, que esses usos também foram
32
33. A CNFE surgiu para centralizar todos os esforços anti-drogas em uma só
agência Federal, e a Cannabis e seus usuários entraram nesse processo como o elo de
caráter nacional que faltava para a unificação das iniciativas de combate às drogas.
Como planta psicoativa de uso bastante difundido em todo território nacional, a
maconha se transformou no estandarte unificador dessas iniciativas, e em mito
explorável para promover e justificar as “medidas enérgicas de profilaxia”
recomendadas pelos especialistas. (ADIALA, Op. Cit.; CARDOSO, 1994).
Em 1943, uma expedição científica foi destacada para visitar comunidades
onde se fazia uso nos estados da Bahia, Sergipe e Alagoas, principalmente nos
povoados às margens do Rio São Francisco. Ao término da expedição um relatório foi
encaminhado à CNFE alertando que a planta era cultivada e consumida
principalmente entre as “classes baixas”, mas que na Bahia, o uso também ocorria
nas “classes altas”. É importante ressaltar o fato de que, a despeito das leis vigentes, o
relatório aponta que quase a totalidade dos cultivadores e consumidores visitados
desconhecia a proibição da planta, que era vendida livremente por mateiros e
herboristas em feiras e mercados sob a denominação de “fumo bravo”. O relatório
recomendava a CNFE que promovesse uma intensa campanha mostrando os
“malefícios do cultivo e do uso da maconha”, e buscasse maior articulação entre os
diversos Estados da Nação com o objetivo de erradicação da planta e de seu uso.
(CNFE, 1951).
Para isso, a CNFE promoveu a realização do Convênio Interestadual da
Maconha, em 1946, reunindo em Salvador representantes das Comissões de
Fiscalização de Entorpecentes dos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco.
Após dezenas de palestras e outras exposições de agrônomos, médicos, autoridades
policiais e outros especialistas, os trabalhos foram encerrados com a publicação do
Relatório Final, redigido pelo Dr. Pernambuco, e com o lançamento da Campanha
Nacional de Repressão ao Uso e Comércio da Maconha. O Relatório estabeleceu as
seguintes normas, que deveriam passar a ser seguidas rigidamente em todo o
Território Nacional:
1) Planejamento de ações e padronização de estudos visando a promoção
de uma intensa campanha educativa contra o uso e plantio;
paulatinamente exterminados no processo de criminalização da maconha. Atualmente, apesar da
Lei 11.343 também prever tais exceções, não há conhecimento de cidadão ou instituição que
tenham conseguido autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária para sequer cultivar a
planta.
33
34. 2) Organização de cursos práticos para as autoridades policiais e sanitárias
para ampliar os conhecimentos sobre a botânica e os “males” da planta, buscando
principalmente facilitar o trabalho de identificação dos “criminosos e viciados”;
3) Estímulo a classe médica para promover estudos sobre os “males da
maconha” e sobre as características dos usuários;
4) Promoção da inclusão do tema nos congressos e reuniões de psiquiatria;
5) Incentivo a cooperação e articulação entre as Comissões de Fiscalização
dos estados onde o uso e plantio seriam mais disseminados – Bahia, Sergipe, Alagoas,
Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas – promovendo o estabelecimento de
convênios e a obrigatoriedade do intercâmbio de todo tipo de informações (relatórios,
dados estatísticos, fichas criminais, dentre outros);
6) Criação nos Departamento de Segurança Pública, em nível federal e
estadual, de órgãos especializados na repressão e combate ao uso;
7) Registro de indivíduos e grupos ligados a cultos afro-brasileiros onde se
fazia uso da planta, a partir de fontes médicas e sociológicas, e encaminhamento dos
dados às autoridades responsáveis;
8) Estabelecimento de gratificações aos membros das Comissões de
Fiscalização de Entorpecentes do país, “em vista dos extraordinários serviços
prestados por eles à sociedade”. (CNFE, op. cit.; 237-9).
Apesar de toda repressão, a partir da segunda metade da década de 1960 a
maconha deixou de ser apenas hábito de negros, pobres e marginalizados (se é que
algum dia esteve restrito a eles), para ser cada vez mais consumida nas chamadas
classes médias e altas. Os inimigos da saúde pública, da moral e dos bons costumes
deixaram de ser habitantes das favelas e das camadas baixas dos estados do Norte e
Nordeste, para serem os jovens adeptos da contra-cultura, do movimento hippie, das
experimentações psicodélicas e de outras manifestações culturais alternativas,
oriundos das camadas médias e altas urbanas.
Em 1964 foi publicado o Decreto-lei nº 54.216, incorporando ao ordenamento
interno do país os acordos firmados na Convenção Única sobre Entorpecentes,
realizada em Nova York (1961). Em 1968, um novo Decreto passou a estabelecer
equivalência penal entre condenados por tráfico e por uso. Mais uma vez as leis de
controle sobre hábitos culturais voltaram a ser utilizadas para controlar populações
específicas. Para manter sob constante vigilância grupos considerados como
potencialmente ameaçadores as ordem social, cultural, política mantida à força, as
34
35. leis sobre drogas foram uma oportunidade de ampliar os controles sobre a sociedade.
Mas as principais mudanças foram inseridas com a Lei 6368, de 1976,
conhecida como Lei de Tóxico, que passou a reunir todos os ordenamentos jurídicos
relacionados com tema em apenas um documento. Os poderes de repressão do
Estado em relação ao uso da maconha e outras drogas ganharam novas dimensões e,
na prática, passaram a marginalizar ainda mais os consumidores, submetendo-os a
violência e arbitrariedades maiores que antes. Um exemplo de uma das principais
distorções dessa legislação é a tipificação do crime de “apologia ao uso de drogas”,
que também tornaria possível a condenação de qualquer um que falasse dos aspectos
positivos de uma substância ou da sua legalização, mesmo que não estivesse
vendendo ou consumindo, como foi o caso dos integrantes do grupo musical Planet
Hemp, que ficaram presos por 5 dias, em 1997, acusados de infração à Lei 6368/76
(MUNDIM, 2006, p.151-174).
6.A Maconha no Brasil Atual
“Chega de subsidiar o tráfico de drogas punindo brasileiros que
querem apenas se libertar desses mesmos traficantes!” (Beque)
Apesar de proibida no Brasil desde 1932, a maconha é uma das plantas mais
antigas cultivadas pelos seres humanos e, atualmente, é a droga ilícita mais
consumida em todo o mundo. Há, pelo menos, 12.000 anos, pessoas de diferentes
países e tradições culturais de todo o planeta fazem uso tanto das partes psicoativas
quanto das partes não-psicoativas da planta (ABEL, 1980). Seja por suas
potencialidades medicinais, nutricionais, pelas utilidades de suas fibras têxteis, de
seu óleo combustível, ou ainda por suas propriedades psicoativas, consumir
derivados de Cannabis sempre foi algo natural às sociedades humanas. No entanto,
como vimos, desde o início do séc. XX e, principalmente, a partir da década de 1960,
o hábito de fumar a planta vem se intensificando em diversos países, tornando-se um
fenômeno de massa bastante integrado à sociedade capitalista de consumo. Ao
mesmo no tempo, a partir da década de 1970, se ampliaram os esforços repressivos
em todo o mundo e, no Brasil, isso se traduziu em operações de erradicação de
cultivos no norte e nordeste do país e aumento da repressão em centros urbanos.
Por outro, lado também houve o surgimento dos movimentos
35
36. antiproibicionistas e as lutas por mudanças nas leis. Os primeiros movimentos
antiproicionistas podem ser datados do final da década de 1960 e inicio dos anos
1970. Em 1967, foi lançado na capa do New York Times o primeiro manifesto
internacional pela legalização da maconha, assinado por diversos artistas, entre os
quais os Beatles. Na década de 1970, surgiram organizações pela legalização da planta
e a primeira revista de cultura canábica, a High Times22, nos EUA, que desde 1974
publica mensalmente matérias sobre a cultura da planta, técnicas de cultivo, ativismo
pró-legalização, dando um exemplo da extensa rede antiproibicionista que já estava
em crescimento nesse período.
No Brasil, os primeiros movimentos pela revisão das leis anti-drogas também
centravam o discurso no pedido de legalização da Cannabis sativa. Em 1976,
estudantes da USP organizaram um encontro para debater o tema que reuniu cerca
de 400 pessoas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. A partir dali,
diversas outras iniciativas do gênero passaram a ocorrer com maior frequência. Outra
forma de organização do movimento antiproibicionista brasileiro passou a ser a
publicação de revistas e jornais sobre o tema. Nessa época, circulavam no Rio de
Janeiro, por exemplo, publicações como o Ato Vapor, Panflema, o Jornal da Massa e
o Patuá, esse último editado por estudantes de Ciências Sociais da UFRJ.
Em 1982, na PUC, foi organizado um evento que reuniu cerca de 200 pessoas e
resultou no que pode ser considerado o 1º Manifesto Brasileiro pela Legalização da
Cannabis. O documento pedia a descriminalização total da Cannabis, do seu uso,
posse e cultivo para consumo próprio. Assinavam o documento diversas
personalidades, entre as quais músicos como Jorge Mautner e Hermeto Paschoal e
parlamentares como Fernando Gabeira, José Genoíno e Lúcia Arruda.
Em 1983, alguns estudantes e jovens intelectuais que formavam o denominado
Coletivo Maria Sabina, em homenagem à curandeira mexicana que utilizava
cogumelos psicodélicos em seus rituais de cura, organizaram um debate de 5 dias no
qual filósofos, advogados, antropólogos, juízes, escritores, deputados e outros
debatedores de diferentes áreas discutiram variados aspectos do tema. As
perspectivas giravam em torno do respeito aos direitos individuais, à pluralidade
cultural e não deixaram de abordar as consequências negativas das políticas
proibicionistas. O debate foi transcrito e em 1985, a editora Brasiliense publicou o
livro Maconha em Debate, com o texto das exposições no evento, dando maior
22
Atualmente, além dos EUA e diversos países da Europa, existem publicações desse tipo na
Argentina, Chile e Peru.
36
37. divulgação aos conteúdos debatidos.
A década de 1980 foi marcada por muita discussão na Academia e na chamada
“imprensa nanica” a respeito do tema. O pesquisador Pedro Mundim, em sua análise
sobre o discurso produzido pelo grupo musical Planet Hemp, realizou uma detalhada
historiografia a respeito do debate público sobre o tema nas décadas de 1970 a 1990.
Segundo ele, além dos espaços nas universidades e em algumas publicações
impressas, o debate também ganhou os espaços políticos ao ser usado por diversos
candidatos em diferentes momentos a partir da década de 1980. Isso tudo revela que,
desde o momento da abertura política em 1978, a demanda oprimida por discutir a
questão passou a ser atendida de diferentes maneiras (MUNDIM, 2006).
O debate antiproibicionista no Brasil parece ter ficado um pouco apagado na
década de 1990. Apesar de existirem alguns trabalhos a respeito de décadas
anteriores, nenhum dos autores estudados ao longo da pesquisa discutem maiores
informações a respeito desse período, no máximo chamando atenção para o papel
desempenhado pelo Deputado Fernando Gabeira e a atuação da banda Planet Hemp.
Mesmo Mundim, que analisa detalhadamente a história do grupo e o contexto sócio-
político da época com relação ao tema, atém sua análise do período à atuação do
grupo, algumas pesquisas de opinião sobre o tema e suas repercussões na imprensa e
na sociedade. Isso não significa que os trabalhos estejam falhando em suas análises,
mas que talvez a década de 1990 realmente tenha apresentado um vácuo importante
e preocupante, nas discussões sobre legalização.
Alguns pesquisadores com quem tenho dialogado admitem a possibilidade de
que o estabelecimento de espaços de tolerância ao consumo em certos ambientes e
circunstâncias dentro da sociedade brasileira tenha feito com que o consumo tenha se
normalizado, sem ser legalizado, em alguns espaços específicos. Ou seja, ainda que
ilícito, o consumo de maconha, como outras práticas sociais ilícitas a exemplo do
“jogo do bixo”, a pirataria de Cd's e DVD's, etc, passou a ser mais socialmente aceito.
Não que o preconceito e a estigmatização das pessoas que fumam maconha tenha
diminuído, ou mesmo que tenha diminuído a quantidade de presos por consumo ou
porte da planta, mas passou a ser mais aceita a existência de rodas de fumo em festas,
e outros ambientes. Assim, as pessoas que fumam maconha puderam seguir com seus
hábitos sem sentirem a necessidade de se engajar na luta pela legalização.
Essa tese ajuda entender um pouco, mas não explica completamente o fato do
movimento antiproibicionista ter diminuído suas atividades nesse período. Até
37
38. porque, apesar disso, o discurso pró-legalização retomou forças a partir da segunda
metade dos anos 90, através das músicas de grupos como o Planet Hemp e outros .
Nos anos 2000, o debate ganhou força novamente com algumas iniciativas.
Em 2002 surgiu o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP),
primeiro grupo de cientistas brasileiros antiproibicionistas (www.neip.info). E, no
mesmo ano surgiu o Growroom, um centro de convivência e redução de danos para
usuários de Cannabis na Internet. A partir do Growroom muitos usuários puderam se
conhecer e começar a ser articular para organizar passeatas e outras formas de
manifestação e ativismo. Um dos exemplos foram as Passeatas Verde, realizadas de
2003 a 2006, em São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades. Além disso, muitos dos
organizadores das Marchas da Maconha, que ocorrem todos os anos desde 2004, em
diversas cidades do país, também se conheceram e começaram suas atividades de
militância através do Growroom.
Atualmente existem dezenas de sites e blogs a respeito do tema, abordando-o a
partir das mais variadas perspectivas, num claro exemplo do avanço da
democratização da produção e difusão de informações sobre o assunto, num contexto
em que cresce o uso da planta. Em 2006, o Relatório Mundial da Agência das Nações
Unidas para o Combate às Drogas e à Criminalidade – UNODC, baseado nos dados
enviados pelas autoridades policiais brasileiras, apontou o país como o principal
consumidor de maconha da América do Sul (UNODC, 2006). Segundo o Relatório, a
produção brasileira de maconha se concentraria nas regiões Norte e Nordeste do país,
em áreas onde os períodos de sol possibilitam um maior número de colheitas por ano,
e onde tradicionalmente se cultiva a planta desde o início da colonização. O valor
final da produção é de U$ 30,00 o quilo, custando até U$ 220,00 nas zonas urbanas,
chegando ao consumidor final por um preço de até U$ 2.000 o quilo, ou U$ 2,00 a
grama (UNODC, 2006, p.167-168).
O Relatório apontou ainda que as autoridades do Paraguai relataram que 85%
da produção do país foi destinada ao mercado brasileiro, 12% ao mercado do Cone
Sul e apenas 3% ao mercado paraguaio. Além disso, a forte demanda brasileira fez
com que os cultivadores paraguaios contratassem agrônomos para lhes ensinar
técnicas de cultivo, colheita e preparo, e a utilizar variedades melhores adaptadas ao
clima do país, ganhando em rendimento e potência. Com isso, os cultivadores do
Paraguai têm conseguido uma produção maior e até desenvolveram uma técnica de
confecção de haxixe de qualidade apreciada em toda na América Latina,
38
39. principalmente no Brasil. O relatório ainda chama atenção para o fato de que o país
produz apenas 20% do que consome, importando o restante de países vizinhos,
principalmente do Paraguai. (UNODC, Op. Cit.).
Já as estatísticas do II Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas
Psicotrópicas no Brasil, afirmam que cerca de 2,6% de brasileiros entre 12 e 65 anos
fumaram maconha no ano 2005 (CARLINI et al., 2005, p. 23). Esse mesmo trabalho
apontou que cerca de 8,8% das pessoas entrevistadas havia fumado maconha pelo
menos 1 vez em toda a vida, um crescimento em relação aos 6,9% encontrados em
2001 (CARLINI et al, 2001). Nesse mesmo ano, segundo Relatório do Departamento
Penitenciário Nacional, existiam 296.919 mil detentos em presídios, dividindo as
apenas 206.347 vagas existentes (DEPEN, 2006, p. 34). À época estavam em vigor, as
Leis nº 6.368, de 1976 e 10.409, de 11 de janeiro de 2002, essa última não
substituindo completamente a anterior por ter tido grande parte de seu conteúdo
vetado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ainda que a forma de coleta dessas informações torne questionável o alcance
dos seus dados a respeito dos detalhes sobre os padrões e frequências de consumo
para substâncias ilícitas23, eles são importantes fontes de informações sobre a atual
magnitude do uso de maconha no Brasil. Além disso, em relação ao uso de maconha e
outras drogas atualmente consideradas ilícitas, eles nos ajudam a pensar qual seria o
impacto no Sistema Penitenciário, caso todas as quase seis milhões de pessoas
estimadas que, em 2005, afirmaram já ter fumado maconha ao menos uma vez na
vida, por exemplo, tivessem sido responsabilizadas penalmente pelo crime de portar
maconha (à época sob pena de 6 meses a 2 anos), e tivessem que cumprir pena no
Sistema Penitenciário, já sobrecarregado.
Esses dados nos ajudam a refletir um pouco sobre o atual cenário do uso de
maconha no Brasil e a relevância de discutir esse tema e de propor que as políticas e
leis relacionadas sejam mais justas, humanas e eficientes. Além disso, ajudam-nos a
avaliar se os objetivos propostos pela atual política proibicionista realmente têm sido
alcançados, ajudando a medir a eficácia das leis e políticas públicas que priorizam a
repressão às condutas de porte e cultivo sem intenção de comercializar.
Mesmo que, em suas origens, essas leis e políticas tivessem a intenção de
proteger a saúde e a ordem públicas, atualmente, essas estratégias têm conseguido
23
Os conceitos conhecidos como dependência e, uso indevido, abuso, uso crônico são utilizados de
forma pouco homogênea e, muitas vezes, bastante ambígua, pelos autores que tratam do tema. Para
uma discussão crítica sobre o conceito de dependência utilizado nos levantamentos
epidemiológicos sobre o uso de drogas, ver FIORE (2006); MACRAE; VIDAL (2007).
39