A Articulação Entre a Tradição e a Inovação a Partir do Trabalho com Gêner…
Representações de docentes sobre seu papel no processo de ensino de Língua Portuguesa: atores ou agentes?
1. REPRESENTAÇÕES DE DOCENTES SOBRE SEU PAPEL NO PROCESSO DE
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ATORES OU AGENTES?
Alessandra Preussler de Almeida (UNISINOS)1
almeida.alessandra@gmail.com
O presente trabalho é uma apresentação parcial da pesquisa a respeito da atuação profissional
de professores de língua portuguesa no ensino fundamental de escolas públicas de uma cidade
do Vale do Rio dos Sinos, RS, a qual decorre de um projeto bem mais amplo de formação
continuada e cooperativa para professores graduados em Letras. Pretendemos identificar os
fatores relevantes para a constituição do docente como um ator no processo de ensino, a partir
da observação do trabalho real (Bronckart, 2006) desenvolvido com turmas dos anos finais do
ensino fundamental. Para abordar a realidade do trabalho educacional, valemo-nos do
arcabouço teórico-metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo, o qual lança o olhar
científico para as questões pertinentes ao agir vinculadas à situação de trabalho. Sob essa
perspectiva, entendemos que o trabalho de ensinar requer a incorporação, por parte dos
trabalhadores da educação, dos atributos, do preparo e do esforço necessários para a execução
do agir nas relações de sala de aula, o que os torna atores no contexto em questão. Para
Bronckart (2008), o termo ator indica aquele que possui capacidades, motivos e intenções,
enquanto o termo agente está associado àquele que é desprovido de tais atributos. Para que o
professor possa assumir o seu papel de ator na interação de sala de aula e para que os alunos
desenvolvam as habilidades linguísticas da leitura e da escrita, propomos que o ensino de
língua na escola aconteça através de um projeto pedagógico embasado no conhecimento e na
produção de diversos gêneros textuais. Com o intuito de apresentar parte da pesquisa que esta
em processo, trazemos um recorte que se refere à terceira dimensão do plano geral de
pesquisa bronckartiano, o trabalho representado pelos actantes, que se configura pela
avaliação do trabalho feita pelos próprios profissionais, através de uma entrevista respondida
antes da aplicação do projeto pedagógico. A entrevista faz com que os professores reflitam e
comentem sobre sua prática, sobre concepção de língua e de ensino de língua materna, sobre
currículo escolar, sobre metodologia de ensino e sobre avaliação discente.
PALAVRAS-CHAVE: ensino de língua materna - Interacionismo Sociodiscursivo, trabalho
representado
Introdução
O presente trabalho está diretamente atrelado ao projeto Por uma formação
continuada cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e
produção textual escrita no Ensino Fundamental2, desenvolvido pelo Programa de Pós-
Graduação em Linguística Aplicada da UNISINOS, o qual conta com o apoio da
CAPES/Programa Observatório da Educação. A intenção da pesquisa é de produzir
conhecimento e proporcionar interação no processo educativo com foco na leitura e na escrita,
em escolas do ensino fundamental e público de um município do Vale do Rio dos Sinos. Tal
iniciativa prevê um programa de formação continuada, cooperativa e reflexiva, com o
objetivo de qualificar e renovar o trabalho docente através da interação do letramento
1
Doutoranda da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS.
2
O projeto é coordenado pela Profª. Drª. Ana Maria de Mattos Guimarães.
2. acadêmico dos formadores e a prática social dos professores e seus alunos, com o
desenvolvimento de propostas didático-pedagógicas de gênero, que favoreçam a qualificação
do ensino e o aumento dos índices de aprovação.
O ensino e a aprendizagem têm sido amplamente abordados por leigos, que criticam
os baixos índices de aprendizagem dos alunos no nosso país; pelos professores, que enfrentam
inúmeras dificuldades para desenvolverem bem o seu papel; por pesquisadores, que apontam
as deficiências da nossa educação à luz de diversas correntes teóricas. Considerando que os
problemas de aprendizado estão diretamente relacionados às condições de ensino a que são
expostos os alunos, é premente que o trabalho educacional precisa ser ainda mais o alvo das
atenções de educadores e pesquisadores, com o intuito de transpor os obstáculos que impedem
o sucesso na aprendizagem dos nossos alunos.
Bronckart (2006, p. 207) aponta a necessidade de desviar o olhar científico e didático
que esteve voltado para os alunos e seus processos de aprendizagem, e redirecioná-lo para a
realidade do trabalho educacional, ou seja, o que requer a atenção dos pesquisadores é a ação
dos professores em sala de aula e como ela repercute no processo de aprendizagem dos
alunos. O autor ressalta a necessidade de verificar quais capacidades e conhecimentos estão
implicados no fazer docente e que viabilizam as especificidades inerentes da sala de aula, com
o intuito de atender às demandas de aprendizagem e de verificar as possibilidades de sucesso,
mas sem perder a ciência de que é uma empreitada desafiadora e também recompensadora.
Segundo Bronckart (2006, p. 227), o professor é um ator ao exercer a sua função, no sentido
de que é ele que conduz
(...) um projeto de ensino predeterminado, negociando
permanentemente com as reações, os interesses e as motivações
dos alunos, (...) considerando múltiplos aspectos (sociológicos,
materiais, afetivos, disciplinares, etc.), frequentemente
subestimados e que, portanto, constituem o “real” mais concreto da
vida de uma classe”.
Ao compreender as formas de agir do professor, recorremos ao aporte teórico-
metodológico do Interacionismo Socio-Discursivo (ISD), que tem como especificidade a
questão de que “o problema da linguagem é totalmente central ou decisivo, tanto no
desenvolvimento humano quanto em relação aos conhecimentos e aos saberes em relação às
capacidades do agir e à identidade das pessoas” (Bronckart, 2006, p. 10). Para compreender
melhor as questões sobre o papel da linguagem no desenvolvimento humano para o agir,
Bronckart toma como pressuposto que as intenções, as motivações, as capacidades e a
responsabilidade dos indivíduos podem ser apreendidas através de interpretações ou
avaliações de textos feitas por observadores externos (pesquisadores) ou pelos próprios
pesquisados. Nesta perspectiva, considera-se que o agir verbal (agir linguageiro) está sempre
associado ao agir não-verbal (agir geral) (Bronckart, 2006). Ao verbalizar sobre o trabalho,
emerge o papel crucial da linguagem que acessa à memória, organiza, comenta, regula as
ações e as interações humanas. Isso tudo é possível uma vez que a linguagem extrapola a
condição de um mero código, pois ela é uma atividade, uma prática relacionada ao discurso.
Para analisar os dados, valemo-nos do arcabouço teórico do plano geral de pesquisa
(Bronckart, 2008) e suas dimensões do trabalho, mais especificamente, a terceira dimensão: o
trabalho representado pelos actantes. A partir dos textos produzidos por professores,
orientamo-nos pelo modelo de análise textual intitulado arquitetura textual (ou folhado
textual), uma vez que toda interação se constitui em um texto que pertence a um determinado
gênero textual. Este estudo faz um recorte das entrevistas sobre o trabalho docente realizadas
3. com as duas professoras, nas quais analisamos alguns elementos linguísticos dos níveis ou
camadas da arquitetura interna que se mostram reveladores da representação que as
professoras fazem do seu próprio agir. Contamos com os mecanismos enunciativos do texto
(tomada de responsabilidade enunciativa) que favorecem a coerência pragmática do texto,
esclarecem os posicionamentos enunciativos e expressam avaliações – modalizações - sobre o
conteúdo temático, bem como trazem as vozes que se responsabilizam pelo enunciado
(Bronckart, 1999/2006).
No discurso dos professores sobre o seu trabalho, de imediato emergem questões que
demonstram os conflitos intrínsecos ao cotidiano escolar, o que é tratado pela Clínica da
Atividade quando Roger, Ruelland e Clot (2007) expressam a necessidade de estender a
análise do desenvolvimento da atividade profissional para além da ação realizada, uma vez
que esse é um “lugar de conflitos entre e no interior de diversos pólos dentro dos quais aquele
que atua dirige a sua atividade” (p. 134). Existem três pólos que estruturam os conflitos os
quais se referem ao objeto de trabalho - “simultaneamente os conhecimentos, as afinações e as
práticas destinadas a serem apropriadas pelos alunos, as modalidades de ligação a si próprio,
aos outros e ao mundo que estas práticas supõem para os alunos, e que se trata de fazer
adotar” (2007, p. 134); à atividade dos outros participantes com relação ao mesmo objeto – a
atividade dos alunos, mas igualmente daqueles que organizam os documentos reguladores do
ensino, dos gestores, dos colegas, da hierarquia pedagógica e dos pais, e outros; e a si mesmo
– a maneira como lida com os saberes científicos, escolares, pedagógicos, com a escola e com
a sociedade.
Este exercício reflexivo seleciona questões pertinentes à prática docente emergentes
de entrevistas feitas com dois professores de Português de anos finais do ensino fundamental
de escolas públicas, os quais comentam sobre as suas experiências no ensino de língua
materna3. A partir dos seus comentários, destacamos alguns tópicos sobre o trabalho docente
para serem discutidos, com o propósito de dialogar com a literatura sobre educação e
linguagem e vislumbrar possibilidades de lidar com as questões que angustiam os professores.
1. Um olhar inicial para os dados: elementos enunciativos
Ao olhar para os dados gerados a partir da entrevistas, identificamos alguns
elementos enunciativos (vozes e modalizadores) para serem destacados nesta breve análise
inicial. Tanto as vozes quanto a modalizações podem revelar como o enunciador, no caso o
docente, assume o enunciado e como se constitui como tal. Parece-nos adequado atentar para
as marcas de pessoa, pois segundo Machado e Bronckart (2009, p. 59), este fator evidencia
“como o texto representa o enunciador no seu agir representado”. Além disso, é possível colocar
em evidência o estatuto individual ou coletivo (em diferentes graus) que é atribuído a um
determinado agir quando se usa diferentes pronomes pessoais alternadamente (eu, a gente, nós).
D4.: Olha, pra mim, ensinar é fazer eles chegarem e... facilitar pra que eles
entendam determinada, determinado conteúdo. Como eu vou explicar... por
exemplo, tem um texto lá pra interpretar. Se eu for falando direto, o que eu
achei do texto, eu vou dar a minha interpretação, então eu procuro, nas
minhas aulas, fazer com que eles cheguem à conclusão. Então, às vezes, eles
3
Foi utilizada uma entrevista semiestruturada com duração de mais de 60 minutos para o levantamento de dados.
4
As duas professoras são identificadas como D. e S.
4. vêm me perguntar uma coisa, daí eu devolvo outra pergunta pra eles
pensarem porque é difícil... o mais difícil, eu acho, é fazer eles pensarem, é
eles chegarem à conclusão porque é muito mais fácil tu dares a resposta, né,
conduzir pra que eles consigam encontrar a resposta.
Ao conceituar o que é ensinar, a professora D. se remete ao seu agir em sala de aula e
faz soar a sua voz quando utiliza o pronome eu consecutivamente, ou seja, assume uma
postura de quem se responsabiliza pelo que é anunciado e demonstra o controle do papel
docente, especialmente, ao desafiar seus alunos para que eles consigam superar a sua maior
dificuldade: que é fazer com que eles sejam autônomos e reflexivos. A introdução do
pronome tu, afasta o procedimento de dar a resposta que é rejeitado pela professora. Desta
forma, o pronome referente indicativo da segunda pessoa do singular representa qualquer
outro professor que talvez faça o que a professora entrevistada diz não fazer.
O excerto da fala da professora S suscita uma análise mais apurada, no entanto,
destacamos alguns elementos que refletem a postura da entrevistada como participante de um
projeto de formação continuada para professores, no qual há a expectativa de que os
professores sejam participativos e autônomos, bem como levem essas características para a
sua prática em sala de aula. A professora S. comenta e avalia as suas expectativas sobre a
elaboração dos projetos didático-pedagógicos que foram elaborados por cada professor,
depois de alguns meses de encontros semanais em que se estudam questões relacionadas à
prática docente. Ao dizer achei, lança mão das modalizações epistêmicas (Lousada, 2006)
para demonstrar que não está de acordo com o que está sendo proposto:
S.: Bom no projeto, foi assim: eu entrei assim, como é que é... com aquela
expectativa de criança... mas aí teve um pouquinho de decepção ao longo do
processo, né... depois assim eu achei que nós haveríamos ter mais apoio dos
outros, achei que não era eu fazendo o projeto, mas seria eu e mais um
grupo... eu achei que todos iriam fazer um projeto então pra nós
apresentarmos juntos... e aí a gente fosse fazer aquela coisa, né, justamente o
fora do comum que eu estava esperando assim, né. Aí quando é, ah, não é tu
mesma que vai fazer, tu mesma que corre atrás, tu mesma que vai bolar
tudo... eu meio que pensei: ah, que coisa! Até porque eu fiquei de certa
forma insegura, bem insegura, né. No começo, eu estava completamente
perdida... e aí eu fiquei meio decepcionada com tudo, porque daí, continua
sendo eu então né...
A voz da enunciadora é identificada pelo pronome eu como quem critica a dinâmica
das atividades desenvolvidas no projeto em questão. Também, ao empregar nós, eu e mais
um grupo e a gente, assume a sua decepção e insegurança ao perceber que seu desejo de
contar com o apoio coletivo constante para a elaboração das suas aulas não se realizaria. Por
sua vez, a sequência de orações com o pronome tu se refere ao agir esperado de qualquer um
dos participantes do projeto e que é pertinente ao metiê do professor, mas que não é assumido
pela professora S., que também não percebe que a iniciativa de fazer as proposições
pedagógicas integra não apenas a proposta para aquele grupo de formação de professores, mas
da sua prática cotidiana na escola.
2. Conflitos emergentes no discurso
5. Entre os conflitos expressos pelos professores entrevistados, surgem questões
relacionadas ao objeto de trabalho, tais como: interpretação e produção de textos são
importantes, mas “será que eu não deveria dar um pouco mais de gramática” (professora D.);
é preciso eleger os conteúdos a serem trabalhados e que sejam significativos para aqueles
alunos naquele contexto; e o que se ensina na escola pode ser muito distante da realidade e
das necessidades dos alunos.
A respeito dos conflitos gerados devido aos demais participantes, é possível identificar que:
• os alunos têm dificuldade de compreensão de textos, não querem pensar e estão
acostumados com respostas prontas, “ Os alunos têm muita dificuldade de
compreender, entender os textos...”;
• eles são desinteressados e há falta de vontade para fazer as atividades, “Eles não
gostam de muita coisa, tudo que se propõe é ruim inicialmente, depois alguns até
mudam de idéia.”;
• há indisciplina muitas vezes que atrapalha o aproveitamento escolar, “Um dia é bom,
um dia é ruim, fazem de tudo pra me incomodar, mas não é sempre”;
• e faltam recursos materiais para que as aulas sejam mais interessantes, “A dificuldade
é que não tem recursos materiais para fazer aulas mais interessantes”.
Quando os conflitos estão ligados a si mesmo, ou seja, ao professor, percebe-se que:
• o professor se sente solidário com os alunos diante das dificuldades sociais a que são
expostos e, ao mesmo tempo, reconhece sua impotência por não poder intervir nessa
realidade, “ Às vezes tu até entende porque eles vem aqui e não querem aprender... é
um círculo vicioso, é um monte de coisas, assim que não é só a escola que vai dá, né, a
escola assim é só uma parte, mas tem toda uma estrutura que tem que ser mudada”;
• a responsabilidade de refletir sobre o uso da língua materna recai totalmente para o
professor de português, “Eu acho que não cabe só pra gente que fala, que corrige a
ortografia, que eles escrevam o nome com letra maiúscula... É uma cultura tão forte de
só a gente cobrar... Eles estavam se recusando a fazer (texto na aula de matemática)
porque texto é responsabilidade... porque texto é só na aula de português.”
• muitas vezes, o professor prepara uma aula e a receptividade não é unânime, “Nem
sempre dá pra atingir todo mundo...” ;
• também outra questão que angustia é a falta de domínio dos meios digitais ou a
dificuldade para acessá-los, o que impede de adotar outros meios para qualificar sua
aula “Ah, a sala de informática, esse ano está difícil de usar porque como não tinha
professor, a professora de lá tinha que atender as outras turmas...”
Não há como evitar o conflito e, ao deparar-se com as situações conflituosas, o
professor precisa identificar o seu problema e buscar soluções para resolvê-lo. A quem
6. recorrer? Onde buscar? Como amenizar os conflitos e gerir essas dificuldades, especialmente
aquelas que são do alcance do professor?
Os docentes podem se abastecer de soluções históricas no gênero profissional
(sugerido por Clot, inspirado por Bakhtin), o qual é “um patrimônio coletivo, tecido de
suporte incorporado como recurso e que dá resposta à atividade pessoal e permite a quem atua
responder à profissão” (2007, p.135). Por sua vez tal patrimônio é “o produto da história das
soluções que permitiram coletivamente libertar-se dos conflitos de atividades, do stock de ma-
neiras de fazer, técnicas e simbólicas, acumuladas, fossilizadas na história de uma profissão”.
(2007, p.135). Os autores indicam a validade dos debates profissionais e da confrontação das
experiências entre os docentes, a fim de que a profissão possa se adaptar às inovações e
necessidades. Justamente a proposta de formação continuada e cooperativa é uma
possibilidade para que se criem oportunidades a fim de que a gestão dos conflitos e dos
dilemas não se restrinja apenas ao indivíduo uma vez que, muitas vezes, não há tempo nem
com quem compartilhá-los no cotidiano da escola. Acredita-se que o gênero profissional
dificilmente é transformado se não houver o momento de troca e de análise para que o
coletivo partilhe soluções e estas sejam incorporadas pela instituição, para serem devidamente
prescritas, documentadas, e para que novamente retornem aos professores e sejam postas em
prática pelo coletivo.
Um dos comentários da professora D. expõe como o fato de trabalhar sozinho
desmotiva e desfavorece a implementação de novas possibilidades, pois segundo ele: “A
tendência da gente é reproduzir o que a gente viveu, então pra tu mudares certas práticas, é
complicado, mas acho que o projeto está sendo bem legal porque gradualmente eu já estou
mudando algumas coisas..”. Sem dúvida, a cooperação entre os participantes do processo é
um elemento que diferencia e que repercute de forma positiva no trabalho do professor de
língua que, muitas vezes, sente-se sozinho na sua escola e não consegue trocar ideias e
experiências com os seus colegas, e como consequência disso, os alunos perdem, o professor
perde, uma vez que, segundo Wells (2009, p. 39), a qualificação do trabalho docente passa
pela colaboração que se dá através do que se faz e o que se diz conjuntamente: “... the quality
of their experience is dependent on ‘the company they keepand what they do and say
together”.
3. Pesquisa e envolvimento dos participantes
A possibilidade de tratar de questões que nos sensibilizam, que se referem ao nosso
trabalho e às nossas crenças, que fazem parte do nosso cotidiano, motiva e dá sentido para
destinarmos nosso tempo à pesquisa sobre o trabalho do professor. Wells (2009) traz uma
questão muito relevante ao questionar o quanto as pesquisas em educação, que visam à
qualificação dos processos de ensino e de aprendizagem, realmente conseguem contribuir
para melhorar as práticas dos participantes da pesquisa. O projeto do qual estamos
participando tem compromisso com o sucesso na aprendizagem e, desde que iniciou, traz
possibilidades de atingir os envolvidos neste estudo, na medida que garante a formação
contínua de seus participantes através de insumo teórico e reflexão sobre suas práticas, bem
como confere aos docentes a condição de pesquisadores com a finalidade de aguçar o olhar
para a sua sala de aula e ampliar as condições de desenvolvimento da leitura e da escrita de
seus alunos.
7. O professor assume o seu papel de pesquisador do seu próprio trabalho, olha para o
seu objeto de pesquisa, que é o aluno e sua aprendizagem, com o intuito de compreender a
situação da sua sala de aula, que é única, cujos conflitos não podem ser resolvidos através de
fórmulas ou modelos prescritos em manuais. Da mesma maneira, é possível propor que o
aluno também se torne um pesquisador de questões que são pertinentes à sua vida e fique
responsável pelo seu conhecimento, ao indagar sobre o quê e como está aprendendo. Esse
comportamento inquiridor e reflexivo do aluno é incentivado pela postura do professor que
questiona, sugere, estimula, desafia, elogia...
4. Linguagem e interesse
Muitas vezes, ouvimos o que a professora S. diz: “Os alunos não se interessam por
nada”. O que fazer então para estimulá-los? A linguagem exerce um papel fundamental no
desenvolvimento intelectual, social e emocional das crianças uma vez que é a interação entre
crianças ao desenvolverem atividades conjuntas com o adulto como mediador, que ocorre a
apropriação de conceitos, habilidades e valores próprios da sua cultura (Vigotsky, 1978).
Neste processo, também está presente o que Bakhtin (1986) chama de dialogismo em que os
indivíduos assimilam as palavras e as ideias do outro. Enfim, é consenso que o diálogo com
outras crianças e adultos desencadeia recursos para a constituição do pensamento individual
ou discurso interno, segundo Vigotsky. Por isso, a importância da rodinha, que ocorre
diariamente na educação infantil e que desaparece no decorrer do ensino fundamental. É
possível resgatar a dinâmica desta atividade para produzir seus efeitos positivos na
aprendizagem de alunos do ensino fundamental.
Existem estratégias, segundo Wells (2009, p.46), para ampliar as condições de
diálogo sobre as questões pensadas coletivamente, as quais podem favorecer as oportunidades
de aprendizagem. Entre elas, estão: eleger tópicos que interessem aos alunos; incentivar a
expressão de ideias, opiniões e experiências de cada aluno; estimular o hábito de ouvir e
criticar; fazer com que a avaliação seja uma tarefa compartilhada. É interessante que Dewey,
em 1938 (em Experience and Education), já propunha que houvesse a preocupação de
escolher temas que despertassem o interesse dos pupilos ou que apresentassem questões que
desafiassem a sua exploração. Portanto, não se trata de sempre e apenas ancorar o trabalho de
sala de aula no que os alunos querem fazer, mas de trazer assuntos que instiguem conhecê-los
porque são significativos para o grupo de alunos ou para a comunidade.
Os dois professores reproduzem o que muitos outros comentam a respeito do descaso
de alguns alunos, senão todos, diante das atividades escolares, que são cumpridas por alguns
para se “verem livres daquilo” ou são rechaçadas por outros (“É muita mão, sora!”) que
deixam de completá-las. Contudo, também é possível verificar que o investimento em um
projeto significativo pode surpreender, segundo a professora D.: “...saíram coisas que eu
pensei que não fossem sair. Saiu melhor do que eu esperava. Eu acho que o fato é que eles
gostam dessas histórias de detetive, que eles adoram contar tragédia, eles amam contar
tragédia”. Portanto, o que se quer propor é que se retomem atividades que favoreçam o
aprendizado através de questões que suscitem o interesse dos alunos e que viabilizem a
expressão de suas ideias e opiniões.
Wells (2009, p.48) traz uma questão determinante para o andamento e o
planejamento das aulas de qualquer disciplina e que, muitas vezes, devido às demandas do
cotidiano escolar, não é levada em consideração: ouvir. O professor precisa ouvir o que os
alunos têm a dizer para poder conhecê-los, questioná-los e levá-los a refletir sobre o que estão
aprendendo e a arriscarem-se a ir além dos seus conhecimentos. Assim como os alunos
8. também precisam ouvir a si mesmos e perceberem que o que dizem é importante e
responsabilizarem-se por aquilo que é dito; além disso, é um exercício também ouvir o outro
para saber o que ele tem a dizer, que é uma postura que confere respeito à situação e aos
participantes. A valorização e o aperfeiçoamento dessa habilidade pode ser um fator crucial
para que as interações em sala de aula sejam favoráveis para o aprendizado.
Considerações finais
Existe a premência da investigação do trabalho docente para compreender sua
complexidade e fazer proposições para qualificar a atuação dos profissionais da educação e
produzir resultados favoráveis ao aprendizado. O presente artigo mostra um panorama breve
da pesquisa iniciada recentemente a respeito da atuação profissional de professores de língua
portuguesa de uma rede pública de ensino. Ao pensar na docência, apostamos que é possível
identificar elementos que fortaleçam as práticas profissionais e indiquem quais os caminhos
para que o professor possa ser um ator do seu próprio agir, ainda que circunstâncias externas
adversas, que fogem da alçada do professor, façam parte do cotidiano escolar.
A formação continuada e cooperativa tem sido um das possibilidades para que os
professores encontrem uma oportunidade de interação, de incorporação dos atributos, do
preparo e do esforço no sentido de qualificar a sua prática, conferindo-lhes autonomia para a
elaboração de um projeto pedagógico embasado no conhecimento e na produção de diversos
gêneros textuais. Espera-se que esta empreitada desafiadora repercuta diretamente no sucesso
de aprendizagem dos alunos e, consequentemente, na elevação dos índices de aproveitamento
escolar.
Referências bibliográficas
BAKTHIN, M. M. Speech genres and other late essays. Austin, University of Texas Press,
1986.
BRONCKART, J. P. Atividade de Linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo
sócio-discursivo. Trad. Anna R. Machado e apoio técnico Péricles Cunha. SP: EDUC, 1999.
__________. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Org. e trad. Anna
Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matêncio [et al.]. – Campinas, SP: Mercado
de Letras – (Coleção idéias sobre linguagem), 2006.
__________. O Agir nos Discursos. Das concepções teóricas às concepções dos
trabalhadores. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
COOK-GUMPERZ, J.; GUMPERZ, J. Narrative accounts in gatekeeping interviews:
Intercultural differences or common misunderstandings? Language and Intercultural
Communication. Oxford University Press, 2(1), 2002. p.25-36.
DEWEY, J. Experience and Education, New York: Collier Books. (Collier edition first
published 1963), 1938. In: Buzzo, M.G. Os professores diante de um novo trabalho com a
leitura: modos de fazer semelhantes ou diferentes? (tese). São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Handbook of Educational Action Research 2008.
LOUSADA, E.G. Entre o trabalho prescrito e o realizado: um espaço para a emergência do
trabalho real do professor. Tese de Doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 2006.
ROGER, J.-L.; RUELLAND, D. & CLOT, Y. De l’action à la transformation du métier :
l’activité enseignante au quotidien. Éducation et Sociétés, 19, 2007. p. 133-146.
9. VYGOTSKY, L. S. Mind in society: The development of higher psychological
processes. Cambridge, MA, Harvard University Press, 1978. In: Wells, G. , Dialogic inquiry
as collaborative action research. S. Noffke & B. Somekh. London, Sage, 2009. p. 39-48.
WELLS, G. Dialogic inquiry as collaborative action research. Handbook of Educational
Action Research S. Noffke & B. Somekh. London, Sage, 2009. 39-48.