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Reflexões breves sobre Espiritualidade e Materialismo Espiritual

       Marcelo L. Pelizzoli1


       Síntese

        Trata-se aqui de refletir livremente sobre aspectos importantes na relação entre
espiritualidade e materialismo espiritual, no sentido de indicar certos usos paradoxais da
espiritualidade nos dias atuais, como ela pode ser dicotômica ou mesmo saudável, bem como a
complexidade do tema.

       Conceitos em jogo

        Espiritualidade não é um conceito tácito, claro. Remete a uma gama de significantes que
denotam a partir dos pressupostos de seu usuário; “pre-conceitos” culturais, históricos, emocionais,
racionais, mentais de ordem diversa. Sabe-se que a palavra remete a espírito, em geral, entendido
como algo imaterial, perene, volátil, etéreo, transparente, fantasmagórico, mas também a essência, a
qual é o “espírito da coisa”; e substância fundamental. Na filosofia moderna era sinônimo de Razão,
de um sentido maior do qual o homem é dotado enquanto consciência cognitiva. Não é o espírito
que possui o ser humano (como para os antigos), mas o contrário. A Razão arrasa a alteridade,
aquilo que ela considera estranho na vida. Pode-se, com certo cuidado, afirmar que a dimensão
espiritual é parte que integra a ontologia do humano – sua essência, dir-se-ia em outras épocas. O
que não tem a ver necessariamente com alguém ser ateu ou agnóstico, mas com um modo de ser das
comunidades humanas que se se encontram em sua jornada em busca da dimensão do simbólico, do
tremendum et fascinans da Natureza e suas energias.
        Alma é correlato de espírito, e remete à anima, algo animado, vivo, que tem vida dentro.
Daí que o animal é a base do vivo; nós somos animais, seres vivos, do mundo. Mas, em geral, quem
fala do espírito exclui o animal. As religiões monoteístas, muitas vezes, sofrem de uma doença
muito séria que é a dicotomia entre corpo e alma, entre mal e bem. A alma liga-se ao bem, e deve
escapar da prisão do corpo, que é decaído (pecado original, queda, terreno), mal. A ideia de espirito,
no ocidente, carrega a dicotomia por vezes quase esquizofrênica de oposição ao nível terreno, ao
corpo. Para além da Idade Média, a carne ainda é sinônimo de pecado.
        Espírito e Alma remetem, em muitas línguas, à ideia de ar e vento, de sopro, de alento. A
palavra pneuma, do grego, indica espírito, mas também ar (daí pneu, de automóvel). Ruah em
hebraico é também sopro. Na literatura religiosa este símbolo-ato é frequente; “Ele expirou”,
“entregou o espírito”; “Deus soprou o espírito no primeiro homem”; “o espírito sopra onde quer”,
etc. Como é que de uma visão tão ligada à realidade vital, natural, pode-se gerar visões tão
fantasmagórico-metafísicas, sem conexão com a natureza ?
        Apesar das muitas opções, podemos entender espiritualidade inicialmente como a prática do
cultivo de si corpo-mental, em direção à potencialidades humanas fundamentais: sexualidade sadia,
socialidade sadia, bem estar e ambiente sadio, saúde mental, minimum de autoconsciência e
autonomia; coragem de viver e morrer, ou mesmo algum sentido razoável para viver a vida em
tempos de crise e durezas. O que não exclui alguns aspectos de transcendência.
        Materialismo espiritual é um conceito novo, e remete ao seu principal promotor, Chogyam
Trungpa, mestre tibetano da crazy wisdom surgida nos EUA, e autor do famoso livro Além do
materialismo espiritual. É um conceito muito poderoso para entender as artimanhas do ego em
tempos narcísico-consumistas, onde a gratificação imediata impera, em que a salvação material e
psíquica, ter-ser-em-seu-poder, impera. É um dos poucos mestres espirituais que conseguem criticar
amplamente a sua própria corrente ou religião, e não apenas as outras. O remédio pode ser veneno,

      1 PhD. Pós-doutor em Bioética. Professor do Mestrado em Saúde Coletiva; do Mestrado em Direitos
Humanos e do Mestrado em Filosofia (UFPE). www.curadores.com.br
e o veneno em certos casos pode servir de remédio. Esta consciência é fundamental para pensar as
formas de espiritualidade e de religião hoje. É preciso considerar também que alguns modos de
viver a religião podem ser anti-espirituais, podem ser neuróticos, escravizantes, alienantes, egoicos,
afirmativos de um status quo violento, ou valores violentadores etc.

        De algum modo, o nosso foco aqui tem a ver com uma crítica ao que alguns autores, muitos
deles conservadores ou paranoides, chamam de New age, Nova era. Não uso este termo mas
entendo parte de seu sentido; e não o uso pois em geral é uma forma destes autores criticarem o que
lhes ameaça em termos de novas visões, diversidade, fusão de ideias, culturas, espiritualidades. O
valor das tradições é incontestável diante da fragilidade de muitas ideias e movimentos
espiritualizantes e psi de hoje; contudo, isto não significa desconhecer a mudança do tempo, da
cultura, das subjetividades e a necessidade de uma ampla liberdade e abertura de caminhos
“estranhos”.
        O meu foco aqui será uma crítica ao materialismo espiritual, presente em formas religiosas
ou não de espiritualidade atuais, além de apontar a complexidade frente às possibilidades para a
reflexão sobre espiritualidade em tempos pós-modernos.

       Pontos e dicotomias a considerar

        Há um tipo de arquétipo, em parte das comunidades ou tradições, que falam de espírito, que
é a ideia de ascensão. Quando eu era pequeno, ficava admirado com as imagens religiosas e de
cemitérios e santinhos e lembrancinhas post mortem, que representavam uma alma ou espírito
saindo do corpo, do caixão, das costas, da terra em direção aos céus, nuvens, paraísos, anjos,
mundos espirituais. São representações muito sintomáticas que povoam a própria base do
pensamento filosófico ocidental, por exemplo quando acentuamos que Platão separava totalmente o
corpo da alma, e o mundo visível do invisível, como se o que contasse fosse a possível realidade
disso e não os elementos simbólicos, filosóficos, que podem nos ensinar algo de nosso mundo
interior e imagético. A ideia de espírito como algo a alcançar, e algo a elevar para cima, “trans-
portar”, transmutar, “trans-substanciar”, é um arquétipo forte e com valores vigentes. Ele remete ao
aspecto simbólico, psíquico, para além da prisão materialista das coisas a que nos apegamos, entre
eles o nosso próprio corpo como se não fosse envelhecer, mudar, apodrecer, adoentar, mutilar,
“monstrificar”, e enfim perecer. Assim, a elevação do sujeito como espírito, tem um valor para além
da neurose dicotômica entre Céu e Terra. Unir céu e terra é um ato simbólico antigo, de bem estar
do sujeito no mundo, encontrando seu lugar, vocação, realização, dentro de um mundo de
sofrimento. É a negação do animal, do sexual, da energia da natureza e corpo, da ontologia da
mulher, do mal etc. que tornam esta operação falseada, frustrada, neurótica. Buscar a transcendência
é algo humano, a questão é: como, a que custo, ou a custas de qual exclusão ?
        A boa transcendência não eleva somente a psique do sujeito, fazendo-o aceitar mais a vida e
a morte, mas a consideração do lugar do Outro, do diferente, da alteridade. Se há um crivo para uma
espiritualidade sadia, o primeiro, sem dúvida, é o grau de aceitação do outro, abertura, acolhimento.
Uma transcendência feita a base do gueto, da autoproteção, da negação do animal, do sexo, da
diversidade, da alteridade, torna-se um perigo coletivo, neurose, infantilidade, intolerância.

       A mulher é mais “dada à carne”, diz esta tradição androcêntrica ou machocêntrica. No
judaísmo bíblico antigo, é a mulher, como símbolo da natureza selvagem, que leva o homem, como
símbolo do espírito e depois da razão, a decair, a pecar, a errar. A mulher tem sido um problema
para o monoteísmo masculinizado. Ela não pode ser padre. Ela não tem o poder que os pastores
têm, mas lhes serve e obedece. Ela não é rabino, nem Deus, nem Cristo, nem Moisés, nem Maomé,
nem Zaratustra. Há uma falha ontológica na mulher. A mulher é pedaço de homem; falta-lhe algum
órgão de poder, falta-lhe inteligência, além de força física certamente. Escorre impureza da mulher
todo mês, como alguém que é “de Lua”, menstrual. 75 % das pessoas queimadas na fogueira da
Inquisição medieval eram mulheres, e destas boa parte parteiras – ou seja, as que estão mais
próximas tanto do sexo, da Lua impura, bruxarias, do mistério da vida, do saber não médico-oficial
purgativo e “purificador”.
        Não obstante, quando vamos estudar a Mitologia como raiz junto com as formas mais
antigas de religiosidade e religiões, o Deus-mulher vem muito antes do masculino, e logo em
seguida encontramos o Deus que completa os opostos, homem e mulher ao mesmo tempo, dois em
um. O feminino vem antes como formas de deusas e da Natureza, mãe, mater natura, acqua
mater.... O Deus homem e monoteísta é uma criação relativamente nova na história da humanidade,
afirmada no judaísmo javeísta e depois no cristianismo. Em 90% do tempo do humanus não havia
monoteísmo nem Deus homem exclusivo ou preponderante, mas outros modelos2.

        Quando se fala em espiritualidade, em geral as pessoas pensam em religião. È assim. As
religiões são em geral os espaços constituídos para viver a espiritualidade; porém, não podem se
considerar o monopólio dela. Há um tipo de prisão que pode se formar desta ideia, remetendo ao
extra ecclesia nulla salus, prisão dicotômica entre o dentro e o fora; se estou dentro da religião, ou
na missa, ou no retiro, no templo etc. estou na presença, no espírito; se estou fora, estou no mundo,
mundano. E assim, marca-se a fissão entre um e outro, bem como a sua oposição; o é assim quando
tenho que combater um dos lados. Se sou religioso, combato o mundo, tanto quanto o “mal”, se sou
antirreligioso, posso querer combater o religioso, não o aceitando, e achando que o ateísmo é o
certo. Infelizmente, hoje a neurose maior esta do lado de grupos religiosos que – a semelhança de
tempos de trevas – começa a combater o diferente: homossexual, religiões afro, certas danças,
símbolos, etc. Cria um bode expiatório para projetar seu mal estar, sua unilateralidade, pois não
reconhece o mal dentro de si, e como parte da vida; não reconhece as emoções negativas, a raiva, o
ódio, a vontade de matar etc., não reconhece a loucura como parte de si, vendo-a então apenas no
outro. E é justamente por isto que se a vê, porque se tem ligação com ela, precisa-se dela, ou seja, é
a nossa Sombra atuando3.

        O conceito de Sombra deve ser um aprendizado essencial para todo aquele que enceta o
caminho espiritual - que na verdade não é apenas um caminho especial, religioso, mas de
individuação, de maturação da psique, como dizia Jung. A espiritualidade, para muitos, é um modo
de camuflar, muitas vezes de modo inconsciente, sua fragilidade, seu lado mal, mortal, fracassado,
seus medos e a raiva. Um forma de sublimação, diria Freud. Um engrandecimento espiritualizante
do ego. Uma fuga da carne trêmula e ambígua. O cultivo da espiritualidade, para ser sadio, precisa
encontrar-se com o “Eu sem defesas”, e com a Sombra que se manifesta no ódio oculto ao outro, ao
diferente, na inveja, na estratégia de vitimização de si ou de outrem, na crueldade com a natureza e
no consumo dos animais; no olhar preconceituoso para com a mulher, ou os homossexuais; nas
depressões etc. A Sombra pode ser bastante perigosa, mais ainda para quem não lida com ela, não a
torna algo consciente, não ouve de algum modo seus apelos, sejam eles considerados “selvagens”
ou instituais, animais. A repressão grosseira da Sombra e do Desejo volta como “retorno do
reprimido”, contra si e contra outrem. È preciso pagar algumas contas para estar de bem com a
espiritualidade. Além do que, está não é somente romântica, divinizante, mas precisa as vezes
passar pelo inferno humano de cada um e sua história pessoal.

       Deus, em tese, poderia ser visto não apenas como o lado bom do espírito, mas a base de
onde se ergue tudo, bem e mal – aquilo que chamamos de mal vem também de Deus. Assim, Ele se
torna maior do que a nossa dicotomia e nossas neuroses, e incorpora as energias da natureza, vida e
morte, sem oposição. Neste viés, a importante simbologia e Mito em torno de Lúcifer são
reveladores, pois preserva ainda pontos de sabedoria não dicotômica quando preconiza em especial
que o ele é filho de Deus, ou seja, um anjo. E não qualquer anjo, mas um ser especial, que tinha um
lugar especial ao lado de Deus. E decai. Apresenta-se, aqui, um lado terreno e natural do próprio
Deus, como sua Sombra. O Mal vem do Bem; se é assim, obviamente há uma forte familiaridade

2 Sobre isto, excelente livro é o de Karen Armstrong, Uma história de Deus.
3 Cf. Pelizzoli, 2009.
entre os pólos. A crença de molde dicotômico e projetivo, quando acirrada, canalizou muitas
sombras – males, emoções negativas, lados obscuros, violências e ruindades de todo tipo humanas –
para cima de uma figura imaginária, em forma de espírito(s) e todo um reino chamado “do mal”,
que passa a ser o culpado último por trás dos pecados e maldades humanas, bem como do fato de
que nós somos mortais, afinal de contas foi o demônio em forma de cobra (natureza terrena) que
estimulou nossa queda do “paraíso”. Para um crente fanático, é muito difícil aceitar este fato
simples, de que o mal que ele condena vem do Deus onisciente e bondoso em que ele acredita na
pureza; de igual modo, aceitar o fato simples de que todos, crentes ou não crentes, têm perdas,
sofrimentos, fracassos, depressões, doenças e todas estas coisas dos humanóides ou terráqueos.

        Entre idealismo-espiritualismo e materialismo-racionalismo balança-se uma das maiores
dicotomias do pensamento ocidental; algo próximo ao peso da dicotomia bem e mal, terra e céu,
homem e mulher. Os idealistas apresentam uma espiritualidade desencarnada, negadora da Sombra,
da sexualidade, da energia animal, das emoções e do que chamam de “irracional”. Temem o caótico,
e por vezes fogem do racional, entrando em verdadeiros fanatismos. Criam mundos ideais,
perfeitos, ao qual os seguidores terão de entregar-se para ascender. Criam outros mundos, criam os
pleiadianos4 (seres extraterrestres), os graus de perfeição em seus guetos míticos, as curas
quânticas. São por vezes canalizadores de energias de Andrômeda, acedem a contatos com
Atlântida, a cidade perdida; dizem ter pressentido UFOs ou OVNIs e que a Nasa tenta “esconder a
verdade”. São “iluminados” que vendem cursos de toda ordem, pois descobriram um filão, o do
sofrimento dos incautos e ingênuos, dos quais os “canalizadores”, “iluminados”, estão acima.

       Materialismo espiritual descarado

        Numa das faces grosseiras do materialismo espiritual, temos o simples e descarado ganho de
capital com a criação de empresas, filiais e franchising de templos, como nas igrejas chamadas
pentecostais, ou crentes (e que pregam universalidade, amor etc.), e uma gama de ramificações que
são criadas como possibilidades novas de mercado para novos “pastores” e agregações pastoreiras
que abrem novos flancos. O enriquecimento livre e alguns problemas com impostos já colocou
alguns destes pastores em maus lençóis; não obstante, em nome da liberdade religiosa e de
agremiação, e do poder do dinheiro sinônimo de boa equipe de advogados, contadores e
estrategistas econômicos, estas entidades conseguem em geral realizar os seus objetivos econômicos
sem problemas. Quando um religioso coloca como ponto fundamental o dinheiro, o sucesso, o ego,
então temos aí a face grosseira do materialismo espiritual, bem visível. Muitos pastores e fieis
tentarão justificar este enriquecimento com o velho chavão calvinista de que quem é rico o é porque
no fundo é “abençoado por Deus”. Deus quer a sua riqueza, e se você sofre, ou está pobre demais, é
que você não tem sido um bom fiel, ou não tem feito expulsões de demônios suficientemente, ou
não tem pago os 10% com seu carnê santo em dia.
        Tecnicamente, isto se chama teologia da prosperidade. Se você prosperar, é porque é bom
fiel e contribuinte, se não, é por sua culpa, falha, erro, pecado, falta de fé e de lastro na sua “igreja”.

       Outro ponto, um pouco mais sutil, mas que em geral não abre mão igualmente do preço a
pagar, são algumas formas de “espiritualidade” esotéricas ou grosseiramente míticas, de modelo
4As Plêiades são um grupo de estrelas na constelação de Touro. Distam 440 anos-luz da Terra. Para ir à
estrela mais próxima, Proxima Centauri (fica a 4 anos-luz da Terra, ou seja, 40 trilhões de km !),
precisaríamos de 100 mil anos viajando com a velocidade de 50 mil Km por hora, com o foguete mais
avançado que temos ! Para alguém vir das Plêiades para a Terra, precisaria de 10 milhões de anos viajando.
Apenas isso. Além do mais, o que vemos no espaço, a maioria dos objetos, não existe mais, pois são imagens
de um passado, de luzes que estão ainda viajando depois de o objeto se modificar ou mesmo ter
desaparecido. A única possibilidade de um “pleiadiano” vir para a Terra é pela imaginação fértil de alguém.
Mesmo se o indivíduo fosse um “espírito de luz”, estaria ele com energia e disposição para viajar 440 anos
sem parar e chegar a um planeta cheio de loucuras e seres tão diferentes dele ?
espiritualista que desencarna da matéria, da carne, de uma base consistente de realidade física e
racional. Vejamos um exemplo típico disso:
        “The Melchizedek method. Este método nos foi presenteado por Toth – um grande Mestre
Ascencionado em 1997, através de (fulano de tal...). Segundo Toth, esta técnica foi praticada na
Terra na antiga Atlântida, dentro dos templos de autoconhecimento superiores. O nome dado a este
trabalho faz referência a Lord Melchizedek, o Logos Universal, um dos responsáveis junto a
Metraton e Arcanjo Miguel pela organização dos mundos celestiais de Deus (YHWH)”.
        E, logo em seguida, vejamos as promessas do referido curso (de preço bem caro):
        “Ativação do corpo de luz Merkaba do Holograma do Amor, Compreensão do tempo
natural (calendário maia), Ativação dos chackras na freqüência 13-20-33, Cura, purificação e
rejuvenescimento dos 7 corpos, Técnicas para regeneração corporal, Consciência de abundância,
O novo mudra de consciência de unidade holográfica, Acesso e avanço do tempo-espaço contínuo,
Equilíbrio holográfico dos chackras, Bi-locação holográfica, Codificação das 5 línguas chaves
sagradas: egípcio, tibetano, chinês, hebraico e sânscrito através da glândula pineal, Ativação da
Ankh (antigo símbolo egípcio) pelo ponto zero do corpo, Técnica de limpeza holográfica através da
Contagem 33.”
        Nem o mais fantasioso filme de ficção científica teria tal capacidade de imaginação; bem
como o mais estratégico vendedor do mundo não teria tal capacidade de invenção sutil de
possibilidades para o seu produto, espiritual, terapêutico e mágico no caso.
        Por outro lado, a atitude racionalista, vigente em especial na academia e centros de pesquisa,
“jogam a criança com a água do banho fora”; extirpam funções humanas importantes, como as
dimensões emocionais, intuitivas, sensitivas, da sabedoria populares, e da experiência não-
metódica, ou mesmo espiritual. A depender de um destes pólos, estamos em um “beco sem saída”,
numa “sinuca de bico”. Gravitar entre estes dois pólos é o mesmo que ir da direita até a esquerda
extremista, ou vice-versa, como temos vários exemplo no Brasil, os quais aos olhos inocentes pode
parecer estranho; contudo, trata-se de uma energia neurótica semelhante. Os racionalistas se
escondem por trás da mascara da razão, da luz racional ou das leis matemático-físicas do mundo. O
idealista põe a cabeça no céu, o racionalista poe o céu e o mundo na cabeça. Os dois representam,
segundo Reich, uma mesma face da moeda doentia do saber ocidental, seja filosofia, seja ciência,
sejam movimentos religiosos ou mitológicos. Um hora adora-se fantasmas, outra, matéria, coisas,
razões, teorias. Teme-se demais perder as referências do ego e seu grupo.
        Este é um tema candente e importante hoje. Trago outro exemplo, o do filme O Segredo
(patrocinado por um grupo espiritualista que aparece no filme), um entre tantos deste tipo que estão
tomando a mídia. Trata-se da invasão sem pudor do materialismo espiritual nas telas, da auto-ajuda
de “alto” nível, já que nos livros entrou bem antes. O filme em pauta promete um verdadeiro
paraíso na mente e na terra, pela confiança em dimensões como a da abundância, prosperidade, a
crença no progresso, pregando que a pobreza no mundo tem como causa base a mentalidade
negativa das pessoas. Trata-se de um filme sem responsabilidade social, desprovido de
argumentação e base em fatos plausível, sem lastro na realidade mundial, abrindo mão da crise
ecológica, política e econômica atual. Trata-se uma negação grosseira da realidade, e dos modos
humanos de agir no mundo, até porque nega a alteridade da vida, caindo num certo determinismo
individualista, acoplado a uma visão quântica de rede. Pegando frases pérolas de autores
consagrados e de grandes tradições espirituais, principalmente orientais, apela para um tipo de
consumo espiritual, energético, mítico, burguês. È feito na base da cultura narcísica norte-
americana, e aposta no pensamento mágico de que se você desejar e mentalizar muito vai conseguir
o que quer, desde uma vaga de estacionamento em lugar lotado, até uma casa, ou o seu primeiro
milhão de dólar. O apelo é tão forte que até pessoas com bom grau de educação caem nestes contos
de fadas. Há elementos disso também presentes em filmes como Quem somos nós (What the bleep
do you know), ou ainda Como conhecer Deus, que sintomaticamente começa mostrando casinos de
Las Vegas, e é carreado por Deepak Chopra, guru de muitos artistas norte-americanos, tal como o
falecido Michel Jackson.
        Assim caminha a humanidade. Toda pessoa tem direito às suas crenças, sem limites; e os
que enxergam nestas crenças algum engodo, perigos ou alienações, têm igualmente o direito de
criticá-las, até mesmo para que elas passem pelo crivo da crítica e da conversação aberta.

       Espiritualidade encarnada

        Segundo Levinas, a “espiritualidade é a fome do outro”. Em duplo sentido; em primeiro a
necessidade real dos meus próximos ou conterrâneos ou citadinos que encontro na rua de serem
acolhidos, terem o que comer dignamente, terem um cuidado básico para seguir vivendo. Ou seja,
“a fé sem obras é morta”, diz são Tiago no Novo Testamento. O “inferno está cheio de boas
intenções” e de fé, as vezes fé demais. A questão é que tipo de fé é esta, apenas egóica, neurótica,
salvífica, medrosa, desencarnada ? Em segundo lugar, é a fome de outrem, de como precisamos dos
outros, uns dos outros para viver, como o sentido comunitário, gregário, da boa convivência, do
grupo, é fundamental para a vida de cada pessoa. O eu somente se faz eu a partir do outro, do olhar
de outrem (Lacan), que me institui dentro de um lugar dos humanos, a família, minha identidade,
minha narrativa de onde venho, a que pertenço e qual sentido de vida neste contexto em que surgi e
estou. Espiritualidade sem alteridade é, em geral, um fracasso, uma jogada ilusória. A dimensão
social, ecológica, cidadã, política, da espiritualidade é fundamental. Não significa que é necessário
ser um militante da política convencional, mas significa que devo responder ao mundo que me
rodeia, injustiças, consumo insalubre e destrutivo, crise urbana e ecológica etc.
        Algumas religiões conseguem atingir mais os pobres, outras, mais os ricos e classe média.
Exemplo disso é o budismo no Brasil, o qual atinge muito pouco as classes baixas, salvo alguns
poucos e bons exemplos. Isto não é um apenas um desmérito ou mesmo mérito (já que as classes
altas têm mais acesso à educação, cultura e em tese seria mais consciente e menos massificada), mas
algo que deve fazer pensar: por que uma religião se concentra nas classes altas e médias, e por que
outra se concentra nas classes baixas. O catolicismo, neste aspecto, é mais amplo.
        Um bom exemplo do aspecto encarnado e de mística política está na teologia da libertação,
nas CEBs e na igreja popular engajada que surgiu no Brasil nos anos 70 em diante. Significou uma
renovação da arcaica romanização católica, em prol da vida das comunidades oprimidas pelo Brasil
afora. Esta face da igreja católica teve um papel importante também na luta por direitos no país,
além de influenciar positivamente na política em prol da boa cidadania e emancipação. Não
obstante, em vista da crise e assoberbamento do capitalismo atual, esta face diminuiu sua força e
influência. No momento atual, parece que estamos sendo levados por uma avalanche de sociopatia,
que atinge do mundo empresarial aos governos, chegando às religiões e espiritualidades da
prosperidade.
        Já o termo “espirituoso” indica para alguém com espirito lúdico e vivo. Há também a
expressão “presença de espírito”, que indica ter consciência, lucidez no que está acontecendo,
presença de percepção e ação diante dos acontecimentos. Para C. Trungpa, tanto quanto para Freud,
uma espiritualidade que não tem senso de humor corre maior risco de neurose. Poder rir de si
mesmo é um ato sadio, tanto quanto poder rir dos apegos, do que passou. Sinal de leveza e de que
se começa a perceber que tudo muda, passa, nada fica, e que o que damos peso de realidade não tem
todo o peso que damos. Neste espirito, pode-se perceber o uso que se faz das máscaras. Para mim,
poder rir da própria religião, espiritualidade, ou ter representações dos deuses palhaços, indica um
grau de espiritualidade sadia, lúcida, acolhedora da diferença. As formas de espiritualidade têm
muito a contribuir com o nosso crescimento como pessoa, social, sensível, amorosa, de valores,
ecológica etc., desde que se tenha um crivo de consciência e de distanciamento das armadilhas do
ego, por vezes inflado espiritualmente, ou desesperado, ou iludido. Somos buscadores espirituais
pois buscadores da vida diante da imensidão da alteridade.

       Breve conclusão

       Assim, para abordar a questão da espiritualidade é preciso encarar de frente às seguintes
questões problemáticas: materialismo espiritual, exclusão da mulher, afastamento da natureza,
dicotomias, perda do corpo, da sexualidade, jogo da culpa, abandono metafísico da terra,
idealização, ciência e filosofia racionalista, papel das religiões, monoteísmo e politeísmo, em
especial a questão da psicológica da Sombra, entre outros.
        Como breve conclusão, creio que podemos pensar e experimentar a espiritualidade como
individuação, como psiquismo, maturação da psique. O conceito de espírito tem relação com a
psique, em especial aquele elemento ou disposição, ânimo, que remete ao conceito de Self, como o
elemento mais profundo e centro da nossa personalidade, que tantas faces e máscaras apresenta,
pois não somos seres unos e simples, nem máquinas, nem apenas matéria, nem também espírito
fantasmagórico, mas seres complexos, no tempo, que buscam se cultivar a cada momento, seres
abertos, errantes e acertantes, felizes e sofredores. Assim, pode-se pensar a espiritualidade - para
além do materialismo espiritual - como caminho de vida, de dar sentido a sua vida, na luta por
instituições justas e em uma vida boa e pacífica nas comunidades em que vivemos, incluindo o que
chamamos de “meio” ambiente.

       Bibliografia

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Espiritualidade e Materialismo Espiritual

  • 1. Reflexões breves sobre Espiritualidade e Materialismo Espiritual Marcelo L. Pelizzoli1 Síntese Trata-se aqui de refletir livremente sobre aspectos importantes na relação entre espiritualidade e materialismo espiritual, no sentido de indicar certos usos paradoxais da espiritualidade nos dias atuais, como ela pode ser dicotômica ou mesmo saudável, bem como a complexidade do tema. Conceitos em jogo Espiritualidade não é um conceito tácito, claro. Remete a uma gama de significantes que denotam a partir dos pressupostos de seu usuário; “pre-conceitos” culturais, históricos, emocionais, racionais, mentais de ordem diversa. Sabe-se que a palavra remete a espírito, em geral, entendido como algo imaterial, perene, volátil, etéreo, transparente, fantasmagórico, mas também a essência, a qual é o “espírito da coisa”; e substância fundamental. Na filosofia moderna era sinônimo de Razão, de um sentido maior do qual o homem é dotado enquanto consciência cognitiva. Não é o espírito que possui o ser humano (como para os antigos), mas o contrário. A Razão arrasa a alteridade, aquilo que ela considera estranho na vida. Pode-se, com certo cuidado, afirmar que a dimensão espiritual é parte que integra a ontologia do humano – sua essência, dir-se-ia em outras épocas. O que não tem a ver necessariamente com alguém ser ateu ou agnóstico, mas com um modo de ser das comunidades humanas que se se encontram em sua jornada em busca da dimensão do simbólico, do tremendum et fascinans da Natureza e suas energias. Alma é correlato de espírito, e remete à anima, algo animado, vivo, que tem vida dentro. Daí que o animal é a base do vivo; nós somos animais, seres vivos, do mundo. Mas, em geral, quem fala do espírito exclui o animal. As religiões monoteístas, muitas vezes, sofrem de uma doença muito séria que é a dicotomia entre corpo e alma, entre mal e bem. A alma liga-se ao bem, e deve escapar da prisão do corpo, que é decaído (pecado original, queda, terreno), mal. A ideia de espirito, no ocidente, carrega a dicotomia por vezes quase esquizofrênica de oposição ao nível terreno, ao corpo. Para além da Idade Média, a carne ainda é sinônimo de pecado. Espírito e Alma remetem, em muitas línguas, à ideia de ar e vento, de sopro, de alento. A palavra pneuma, do grego, indica espírito, mas também ar (daí pneu, de automóvel). Ruah em hebraico é também sopro. Na literatura religiosa este símbolo-ato é frequente; “Ele expirou”, “entregou o espírito”; “Deus soprou o espírito no primeiro homem”; “o espírito sopra onde quer”, etc. Como é que de uma visão tão ligada à realidade vital, natural, pode-se gerar visões tão fantasmagórico-metafísicas, sem conexão com a natureza ? Apesar das muitas opções, podemos entender espiritualidade inicialmente como a prática do cultivo de si corpo-mental, em direção à potencialidades humanas fundamentais: sexualidade sadia, socialidade sadia, bem estar e ambiente sadio, saúde mental, minimum de autoconsciência e autonomia; coragem de viver e morrer, ou mesmo algum sentido razoável para viver a vida em tempos de crise e durezas. O que não exclui alguns aspectos de transcendência. Materialismo espiritual é um conceito novo, e remete ao seu principal promotor, Chogyam Trungpa, mestre tibetano da crazy wisdom surgida nos EUA, e autor do famoso livro Além do materialismo espiritual. É um conceito muito poderoso para entender as artimanhas do ego em tempos narcísico-consumistas, onde a gratificação imediata impera, em que a salvação material e psíquica, ter-ser-em-seu-poder, impera. É um dos poucos mestres espirituais que conseguem criticar amplamente a sua própria corrente ou religião, e não apenas as outras. O remédio pode ser veneno, 1 PhD. Pós-doutor em Bioética. Professor do Mestrado em Saúde Coletiva; do Mestrado em Direitos Humanos e do Mestrado em Filosofia (UFPE). www.curadores.com.br
  • 2. e o veneno em certos casos pode servir de remédio. Esta consciência é fundamental para pensar as formas de espiritualidade e de religião hoje. É preciso considerar também que alguns modos de viver a religião podem ser anti-espirituais, podem ser neuróticos, escravizantes, alienantes, egoicos, afirmativos de um status quo violento, ou valores violentadores etc. De algum modo, o nosso foco aqui tem a ver com uma crítica ao que alguns autores, muitos deles conservadores ou paranoides, chamam de New age, Nova era. Não uso este termo mas entendo parte de seu sentido; e não o uso pois em geral é uma forma destes autores criticarem o que lhes ameaça em termos de novas visões, diversidade, fusão de ideias, culturas, espiritualidades. O valor das tradições é incontestável diante da fragilidade de muitas ideias e movimentos espiritualizantes e psi de hoje; contudo, isto não significa desconhecer a mudança do tempo, da cultura, das subjetividades e a necessidade de uma ampla liberdade e abertura de caminhos “estranhos”. O meu foco aqui será uma crítica ao materialismo espiritual, presente em formas religiosas ou não de espiritualidade atuais, além de apontar a complexidade frente às possibilidades para a reflexão sobre espiritualidade em tempos pós-modernos. Pontos e dicotomias a considerar Há um tipo de arquétipo, em parte das comunidades ou tradições, que falam de espírito, que é a ideia de ascensão. Quando eu era pequeno, ficava admirado com as imagens religiosas e de cemitérios e santinhos e lembrancinhas post mortem, que representavam uma alma ou espírito saindo do corpo, do caixão, das costas, da terra em direção aos céus, nuvens, paraísos, anjos, mundos espirituais. São representações muito sintomáticas que povoam a própria base do pensamento filosófico ocidental, por exemplo quando acentuamos que Platão separava totalmente o corpo da alma, e o mundo visível do invisível, como se o que contasse fosse a possível realidade disso e não os elementos simbólicos, filosóficos, que podem nos ensinar algo de nosso mundo interior e imagético. A ideia de espírito como algo a alcançar, e algo a elevar para cima, “trans- portar”, transmutar, “trans-substanciar”, é um arquétipo forte e com valores vigentes. Ele remete ao aspecto simbólico, psíquico, para além da prisão materialista das coisas a que nos apegamos, entre eles o nosso próprio corpo como se não fosse envelhecer, mudar, apodrecer, adoentar, mutilar, “monstrificar”, e enfim perecer. Assim, a elevação do sujeito como espírito, tem um valor para além da neurose dicotômica entre Céu e Terra. Unir céu e terra é um ato simbólico antigo, de bem estar do sujeito no mundo, encontrando seu lugar, vocação, realização, dentro de um mundo de sofrimento. É a negação do animal, do sexual, da energia da natureza e corpo, da ontologia da mulher, do mal etc. que tornam esta operação falseada, frustrada, neurótica. Buscar a transcendência é algo humano, a questão é: como, a que custo, ou a custas de qual exclusão ? A boa transcendência não eleva somente a psique do sujeito, fazendo-o aceitar mais a vida e a morte, mas a consideração do lugar do Outro, do diferente, da alteridade. Se há um crivo para uma espiritualidade sadia, o primeiro, sem dúvida, é o grau de aceitação do outro, abertura, acolhimento. Uma transcendência feita a base do gueto, da autoproteção, da negação do animal, do sexo, da diversidade, da alteridade, torna-se um perigo coletivo, neurose, infantilidade, intolerância. A mulher é mais “dada à carne”, diz esta tradição androcêntrica ou machocêntrica. No judaísmo bíblico antigo, é a mulher, como símbolo da natureza selvagem, que leva o homem, como símbolo do espírito e depois da razão, a decair, a pecar, a errar. A mulher tem sido um problema para o monoteísmo masculinizado. Ela não pode ser padre. Ela não tem o poder que os pastores têm, mas lhes serve e obedece. Ela não é rabino, nem Deus, nem Cristo, nem Moisés, nem Maomé, nem Zaratustra. Há uma falha ontológica na mulher. A mulher é pedaço de homem; falta-lhe algum órgão de poder, falta-lhe inteligência, além de força física certamente. Escorre impureza da mulher todo mês, como alguém que é “de Lua”, menstrual. 75 % das pessoas queimadas na fogueira da Inquisição medieval eram mulheres, e destas boa parte parteiras – ou seja, as que estão mais
  • 3. próximas tanto do sexo, da Lua impura, bruxarias, do mistério da vida, do saber não médico-oficial purgativo e “purificador”. Não obstante, quando vamos estudar a Mitologia como raiz junto com as formas mais antigas de religiosidade e religiões, o Deus-mulher vem muito antes do masculino, e logo em seguida encontramos o Deus que completa os opostos, homem e mulher ao mesmo tempo, dois em um. O feminino vem antes como formas de deusas e da Natureza, mãe, mater natura, acqua mater.... O Deus homem e monoteísta é uma criação relativamente nova na história da humanidade, afirmada no judaísmo javeísta e depois no cristianismo. Em 90% do tempo do humanus não havia monoteísmo nem Deus homem exclusivo ou preponderante, mas outros modelos2. Quando se fala em espiritualidade, em geral as pessoas pensam em religião. È assim. As religiões são em geral os espaços constituídos para viver a espiritualidade; porém, não podem se considerar o monopólio dela. Há um tipo de prisão que pode se formar desta ideia, remetendo ao extra ecclesia nulla salus, prisão dicotômica entre o dentro e o fora; se estou dentro da religião, ou na missa, ou no retiro, no templo etc. estou na presença, no espírito; se estou fora, estou no mundo, mundano. E assim, marca-se a fissão entre um e outro, bem como a sua oposição; o é assim quando tenho que combater um dos lados. Se sou religioso, combato o mundo, tanto quanto o “mal”, se sou antirreligioso, posso querer combater o religioso, não o aceitando, e achando que o ateísmo é o certo. Infelizmente, hoje a neurose maior esta do lado de grupos religiosos que – a semelhança de tempos de trevas – começa a combater o diferente: homossexual, religiões afro, certas danças, símbolos, etc. Cria um bode expiatório para projetar seu mal estar, sua unilateralidade, pois não reconhece o mal dentro de si, e como parte da vida; não reconhece as emoções negativas, a raiva, o ódio, a vontade de matar etc., não reconhece a loucura como parte de si, vendo-a então apenas no outro. E é justamente por isto que se a vê, porque se tem ligação com ela, precisa-se dela, ou seja, é a nossa Sombra atuando3. O conceito de Sombra deve ser um aprendizado essencial para todo aquele que enceta o caminho espiritual - que na verdade não é apenas um caminho especial, religioso, mas de individuação, de maturação da psique, como dizia Jung. A espiritualidade, para muitos, é um modo de camuflar, muitas vezes de modo inconsciente, sua fragilidade, seu lado mal, mortal, fracassado, seus medos e a raiva. Um forma de sublimação, diria Freud. Um engrandecimento espiritualizante do ego. Uma fuga da carne trêmula e ambígua. O cultivo da espiritualidade, para ser sadio, precisa encontrar-se com o “Eu sem defesas”, e com a Sombra que se manifesta no ódio oculto ao outro, ao diferente, na inveja, na estratégia de vitimização de si ou de outrem, na crueldade com a natureza e no consumo dos animais; no olhar preconceituoso para com a mulher, ou os homossexuais; nas depressões etc. A Sombra pode ser bastante perigosa, mais ainda para quem não lida com ela, não a torna algo consciente, não ouve de algum modo seus apelos, sejam eles considerados “selvagens” ou instituais, animais. A repressão grosseira da Sombra e do Desejo volta como “retorno do reprimido”, contra si e contra outrem. È preciso pagar algumas contas para estar de bem com a espiritualidade. Além do que, está não é somente romântica, divinizante, mas precisa as vezes passar pelo inferno humano de cada um e sua história pessoal. Deus, em tese, poderia ser visto não apenas como o lado bom do espírito, mas a base de onde se ergue tudo, bem e mal – aquilo que chamamos de mal vem também de Deus. Assim, Ele se torna maior do que a nossa dicotomia e nossas neuroses, e incorpora as energias da natureza, vida e morte, sem oposição. Neste viés, a importante simbologia e Mito em torno de Lúcifer são reveladores, pois preserva ainda pontos de sabedoria não dicotômica quando preconiza em especial que o ele é filho de Deus, ou seja, um anjo. E não qualquer anjo, mas um ser especial, que tinha um lugar especial ao lado de Deus. E decai. Apresenta-se, aqui, um lado terreno e natural do próprio Deus, como sua Sombra. O Mal vem do Bem; se é assim, obviamente há uma forte familiaridade 2 Sobre isto, excelente livro é o de Karen Armstrong, Uma história de Deus. 3 Cf. Pelizzoli, 2009.
  • 4. entre os pólos. A crença de molde dicotômico e projetivo, quando acirrada, canalizou muitas sombras – males, emoções negativas, lados obscuros, violências e ruindades de todo tipo humanas – para cima de uma figura imaginária, em forma de espírito(s) e todo um reino chamado “do mal”, que passa a ser o culpado último por trás dos pecados e maldades humanas, bem como do fato de que nós somos mortais, afinal de contas foi o demônio em forma de cobra (natureza terrena) que estimulou nossa queda do “paraíso”. Para um crente fanático, é muito difícil aceitar este fato simples, de que o mal que ele condena vem do Deus onisciente e bondoso em que ele acredita na pureza; de igual modo, aceitar o fato simples de que todos, crentes ou não crentes, têm perdas, sofrimentos, fracassos, depressões, doenças e todas estas coisas dos humanóides ou terráqueos. Entre idealismo-espiritualismo e materialismo-racionalismo balança-se uma das maiores dicotomias do pensamento ocidental; algo próximo ao peso da dicotomia bem e mal, terra e céu, homem e mulher. Os idealistas apresentam uma espiritualidade desencarnada, negadora da Sombra, da sexualidade, da energia animal, das emoções e do que chamam de “irracional”. Temem o caótico, e por vezes fogem do racional, entrando em verdadeiros fanatismos. Criam mundos ideais, perfeitos, ao qual os seguidores terão de entregar-se para ascender. Criam outros mundos, criam os pleiadianos4 (seres extraterrestres), os graus de perfeição em seus guetos míticos, as curas quânticas. São por vezes canalizadores de energias de Andrômeda, acedem a contatos com Atlântida, a cidade perdida; dizem ter pressentido UFOs ou OVNIs e que a Nasa tenta “esconder a verdade”. São “iluminados” que vendem cursos de toda ordem, pois descobriram um filão, o do sofrimento dos incautos e ingênuos, dos quais os “canalizadores”, “iluminados”, estão acima. Materialismo espiritual descarado Numa das faces grosseiras do materialismo espiritual, temos o simples e descarado ganho de capital com a criação de empresas, filiais e franchising de templos, como nas igrejas chamadas pentecostais, ou crentes (e que pregam universalidade, amor etc.), e uma gama de ramificações que são criadas como possibilidades novas de mercado para novos “pastores” e agregações pastoreiras que abrem novos flancos. O enriquecimento livre e alguns problemas com impostos já colocou alguns destes pastores em maus lençóis; não obstante, em nome da liberdade religiosa e de agremiação, e do poder do dinheiro sinônimo de boa equipe de advogados, contadores e estrategistas econômicos, estas entidades conseguem em geral realizar os seus objetivos econômicos sem problemas. Quando um religioso coloca como ponto fundamental o dinheiro, o sucesso, o ego, então temos aí a face grosseira do materialismo espiritual, bem visível. Muitos pastores e fieis tentarão justificar este enriquecimento com o velho chavão calvinista de que quem é rico o é porque no fundo é “abençoado por Deus”. Deus quer a sua riqueza, e se você sofre, ou está pobre demais, é que você não tem sido um bom fiel, ou não tem feito expulsões de demônios suficientemente, ou não tem pago os 10% com seu carnê santo em dia. Tecnicamente, isto se chama teologia da prosperidade. Se você prosperar, é porque é bom fiel e contribuinte, se não, é por sua culpa, falha, erro, pecado, falta de fé e de lastro na sua “igreja”. Outro ponto, um pouco mais sutil, mas que em geral não abre mão igualmente do preço a pagar, são algumas formas de “espiritualidade” esotéricas ou grosseiramente míticas, de modelo 4As Plêiades são um grupo de estrelas na constelação de Touro. Distam 440 anos-luz da Terra. Para ir à estrela mais próxima, Proxima Centauri (fica a 4 anos-luz da Terra, ou seja, 40 trilhões de km !), precisaríamos de 100 mil anos viajando com a velocidade de 50 mil Km por hora, com o foguete mais avançado que temos ! Para alguém vir das Plêiades para a Terra, precisaria de 10 milhões de anos viajando. Apenas isso. Além do mais, o que vemos no espaço, a maioria dos objetos, não existe mais, pois são imagens de um passado, de luzes que estão ainda viajando depois de o objeto se modificar ou mesmo ter desaparecido. A única possibilidade de um “pleiadiano” vir para a Terra é pela imaginação fértil de alguém. Mesmo se o indivíduo fosse um “espírito de luz”, estaria ele com energia e disposição para viajar 440 anos sem parar e chegar a um planeta cheio de loucuras e seres tão diferentes dele ?
  • 5. espiritualista que desencarna da matéria, da carne, de uma base consistente de realidade física e racional. Vejamos um exemplo típico disso: “The Melchizedek method. Este método nos foi presenteado por Toth – um grande Mestre Ascencionado em 1997, através de (fulano de tal...). Segundo Toth, esta técnica foi praticada na Terra na antiga Atlântida, dentro dos templos de autoconhecimento superiores. O nome dado a este trabalho faz referência a Lord Melchizedek, o Logos Universal, um dos responsáveis junto a Metraton e Arcanjo Miguel pela organização dos mundos celestiais de Deus (YHWH)”. E, logo em seguida, vejamos as promessas do referido curso (de preço bem caro): “Ativação do corpo de luz Merkaba do Holograma do Amor, Compreensão do tempo natural (calendário maia), Ativação dos chackras na freqüência 13-20-33, Cura, purificação e rejuvenescimento dos 7 corpos, Técnicas para regeneração corporal, Consciência de abundância, O novo mudra de consciência de unidade holográfica, Acesso e avanço do tempo-espaço contínuo, Equilíbrio holográfico dos chackras, Bi-locação holográfica, Codificação das 5 línguas chaves sagradas: egípcio, tibetano, chinês, hebraico e sânscrito através da glândula pineal, Ativação da Ankh (antigo símbolo egípcio) pelo ponto zero do corpo, Técnica de limpeza holográfica através da Contagem 33.” Nem o mais fantasioso filme de ficção científica teria tal capacidade de imaginação; bem como o mais estratégico vendedor do mundo não teria tal capacidade de invenção sutil de possibilidades para o seu produto, espiritual, terapêutico e mágico no caso. Por outro lado, a atitude racionalista, vigente em especial na academia e centros de pesquisa, “jogam a criança com a água do banho fora”; extirpam funções humanas importantes, como as dimensões emocionais, intuitivas, sensitivas, da sabedoria populares, e da experiência não- metódica, ou mesmo espiritual. A depender de um destes pólos, estamos em um “beco sem saída”, numa “sinuca de bico”. Gravitar entre estes dois pólos é o mesmo que ir da direita até a esquerda extremista, ou vice-versa, como temos vários exemplo no Brasil, os quais aos olhos inocentes pode parecer estranho; contudo, trata-se de uma energia neurótica semelhante. Os racionalistas se escondem por trás da mascara da razão, da luz racional ou das leis matemático-físicas do mundo. O idealista põe a cabeça no céu, o racionalista poe o céu e o mundo na cabeça. Os dois representam, segundo Reich, uma mesma face da moeda doentia do saber ocidental, seja filosofia, seja ciência, sejam movimentos religiosos ou mitológicos. Um hora adora-se fantasmas, outra, matéria, coisas, razões, teorias. Teme-se demais perder as referências do ego e seu grupo. Este é um tema candente e importante hoje. Trago outro exemplo, o do filme O Segredo (patrocinado por um grupo espiritualista que aparece no filme), um entre tantos deste tipo que estão tomando a mídia. Trata-se da invasão sem pudor do materialismo espiritual nas telas, da auto-ajuda de “alto” nível, já que nos livros entrou bem antes. O filme em pauta promete um verdadeiro paraíso na mente e na terra, pela confiança em dimensões como a da abundância, prosperidade, a crença no progresso, pregando que a pobreza no mundo tem como causa base a mentalidade negativa das pessoas. Trata-se de um filme sem responsabilidade social, desprovido de argumentação e base em fatos plausível, sem lastro na realidade mundial, abrindo mão da crise ecológica, política e econômica atual. Trata-se uma negação grosseira da realidade, e dos modos humanos de agir no mundo, até porque nega a alteridade da vida, caindo num certo determinismo individualista, acoplado a uma visão quântica de rede. Pegando frases pérolas de autores consagrados e de grandes tradições espirituais, principalmente orientais, apela para um tipo de consumo espiritual, energético, mítico, burguês. È feito na base da cultura narcísica norte- americana, e aposta no pensamento mágico de que se você desejar e mentalizar muito vai conseguir o que quer, desde uma vaga de estacionamento em lugar lotado, até uma casa, ou o seu primeiro milhão de dólar. O apelo é tão forte que até pessoas com bom grau de educação caem nestes contos de fadas. Há elementos disso também presentes em filmes como Quem somos nós (What the bleep do you know), ou ainda Como conhecer Deus, que sintomaticamente começa mostrando casinos de Las Vegas, e é carreado por Deepak Chopra, guru de muitos artistas norte-americanos, tal como o falecido Michel Jackson. Assim caminha a humanidade. Toda pessoa tem direito às suas crenças, sem limites; e os
  • 6. que enxergam nestas crenças algum engodo, perigos ou alienações, têm igualmente o direito de criticá-las, até mesmo para que elas passem pelo crivo da crítica e da conversação aberta. Espiritualidade encarnada Segundo Levinas, a “espiritualidade é a fome do outro”. Em duplo sentido; em primeiro a necessidade real dos meus próximos ou conterrâneos ou citadinos que encontro na rua de serem acolhidos, terem o que comer dignamente, terem um cuidado básico para seguir vivendo. Ou seja, “a fé sem obras é morta”, diz são Tiago no Novo Testamento. O “inferno está cheio de boas intenções” e de fé, as vezes fé demais. A questão é que tipo de fé é esta, apenas egóica, neurótica, salvífica, medrosa, desencarnada ? Em segundo lugar, é a fome de outrem, de como precisamos dos outros, uns dos outros para viver, como o sentido comunitário, gregário, da boa convivência, do grupo, é fundamental para a vida de cada pessoa. O eu somente se faz eu a partir do outro, do olhar de outrem (Lacan), que me institui dentro de um lugar dos humanos, a família, minha identidade, minha narrativa de onde venho, a que pertenço e qual sentido de vida neste contexto em que surgi e estou. Espiritualidade sem alteridade é, em geral, um fracasso, uma jogada ilusória. A dimensão social, ecológica, cidadã, política, da espiritualidade é fundamental. Não significa que é necessário ser um militante da política convencional, mas significa que devo responder ao mundo que me rodeia, injustiças, consumo insalubre e destrutivo, crise urbana e ecológica etc. Algumas religiões conseguem atingir mais os pobres, outras, mais os ricos e classe média. Exemplo disso é o budismo no Brasil, o qual atinge muito pouco as classes baixas, salvo alguns poucos e bons exemplos. Isto não é um apenas um desmérito ou mesmo mérito (já que as classes altas têm mais acesso à educação, cultura e em tese seria mais consciente e menos massificada), mas algo que deve fazer pensar: por que uma religião se concentra nas classes altas e médias, e por que outra se concentra nas classes baixas. O catolicismo, neste aspecto, é mais amplo. Um bom exemplo do aspecto encarnado e de mística política está na teologia da libertação, nas CEBs e na igreja popular engajada que surgiu no Brasil nos anos 70 em diante. Significou uma renovação da arcaica romanização católica, em prol da vida das comunidades oprimidas pelo Brasil afora. Esta face da igreja católica teve um papel importante também na luta por direitos no país, além de influenciar positivamente na política em prol da boa cidadania e emancipação. Não obstante, em vista da crise e assoberbamento do capitalismo atual, esta face diminuiu sua força e influência. No momento atual, parece que estamos sendo levados por uma avalanche de sociopatia, que atinge do mundo empresarial aos governos, chegando às religiões e espiritualidades da prosperidade. Já o termo “espirituoso” indica para alguém com espirito lúdico e vivo. Há também a expressão “presença de espírito”, que indica ter consciência, lucidez no que está acontecendo, presença de percepção e ação diante dos acontecimentos. Para C. Trungpa, tanto quanto para Freud, uma espiritualidade que não tem senso de humor corre maior risco de neurose. Poder rir de si mesmo é um ato sadio, tanto quanto poder rir dos apegos, do que passou. Sinal de leveza e de que se começa a perceber que tudo muda, passa, nada fica, e que o que damos peso de realidade não tem todo o peso que damos. Neste espirito, pode-se perceber o uso que se faz das máscaras. Para mim, poder rir da própria religião, espiritualidade, ou ter representações dos deuses palhaços, indica um grau de espiritualidade sadia, lúcida, acolhedora da diferença. As formas de espiritualidade têm muito a contribuir com o nosso crescimento como pessoa, social, sensível, amorosa, de valores, ecológica etc., desde que se tenha um crivo de consciência e de distanciamento das armadilhas do ego, por vezes inflado espiritualmente, ou desesperado, ou iludido. Somos buscadores espirituais pois buscadores da vida diante da imensidão da alteridade. Breve conclusão Assim, para abordar a questão da espiritualidade é preciso encarar de frente às seguintes questões problemáticas: materialismo espiritual, exclusão da mulher, afastamento da natureza,
  • 7. dicotomias, perda do corpo, da sexualidade, jogo da culpa, abandono metafísico da terra, idealização, ciência e filosofia racionalista, papel das religiões, monoteísmo e politeísmo, em especial a questão da psicológica da Sombra, entre outros. Como breve conclusão, creio que podemos pensar e experimentar a espiritualidade como individuação, como psiquismo, maturação da psique. O conceito de espírito tem relação com a psique, em especial aquele elemento ou disposição, ânimo, que remete ao conceito de Self, como o elemento mais profundo e centro da nossa personalidade, que tantas faces e máscaras apresenta, pois não somos seres unos e simples, nem máquinas, nem apenas matéria, nem também espírito fantasmagórico, mas seres complexos, no tempo, que buscam se cultivar a cada momento, seres abertos, errantes e acertantes, felizes e sofredores. Assim, pode-se pensar a espiritualidade - para além do materialismo espiritual - como caminho de vida, de dar sentido a sua vida, na luta por instituições justas e em uma vida boa e pacífica nas comunidades em que vivemos, incluindo o que chamamos de “meio” ambiente. Bibliografia PELIZZOLI, Marcelo L. A emergência do paradigma ecológico. Petrópolis: Vozes, 1999. _____________. Levinas: a reconstrução da subjetividade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. _____________. O eu e a diferença: Husserl e Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. _____________. Homo ecologicus. Caxias do Sul: EDUCS, 2011. _____________(Org.). Bioética como novo paradigma. Petrópolis: Vozes, 2007. _____________(Org.) Cultura de paz – educação do novo tempo. Recife: EDUFPE, 2008. _____________(Org.) Cultura de paz – a alteridade em jogo. Recife: EDUFPE, 2009. _____________(Org.) Cultura de paz – restauração e direitos. Recife: EDUFPE, 2010. _____________(Org.). Caminhos da saúde – a integração mente-corpo. Petrópolis: Vozes, 2010. _____________(Org.) Novos paradigmas em saúde. Recife: EDUFPE, 2011. _____________(Org.) Diálogo, mediação e práticas restaurativas. Recife: EDUFPE, 2012. _____________(Org.) Novas visões em saúde. Recife: EDUFPE, 2012. _____________& SAYÃO, Sandro. (Orgs.) Fragmentos do humano. Recife: EDUFPE, 2012. _____________In: Sayão, Sandro. (Org.) Faces do humano: mascarados, sofredores, consumidores. Recife: EDUFPE, 2010. TRUNGPA, Chogyam. Além do materialismo espiritual. SP: Cultrix, 2002. www.curadores.com.br