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Margaret Doody
Aristóteles E os Segredos Da Vida
Tradução de Maria Nóvoa
Círculo de Leitores
Ttítulo original
ARISTOTLE AND THE SECRETS OF LIFE
Capa João Rocha
ISBN 972-42-3164
789724 2316481
Copyright © 2003 by Margaret Doody
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores
por Tilgráfica, SA
Rua da Amarela - Ferreiros, Braga em Abril de 2004 Número de edição
Depósito legal número 207 164/04
Este romance é dedicado a BEPPE BENVENUTO, o ”homem-ressurreição”
e a ROSALIA COCI, ”la tradutrice incomparabile”
LISTA DE PERSONAGENS
FAMÍLIA E conhecidos DE Aristóteles e EStefano
Aristóteles, filho de Nicómaco: filósofo de Atenas, 54 anos.
Pítia, filha de Hérmias de Atárnea: mulher de Aristóteles Pítia a Nova: filha de Aristóteles, quase 6 anos.
Herpílis: escrava que cuida da jovem Pítia.
Foco: chefe dos escravos de Aristóteles, eficiente e responsável.
Olimpo: segundo escravo de Aristóteles.
Calístenes: sobrinho de Aristóteles, cronista de Alexandre.
Estéfano, filho de Niciarco: cidadão de Atenas, quase 26 anos; tenta melhorar de vida e casar.
Eunice, filha de Diogíton: mãe de Estéfano, da tribo dos Erecteus.
Teodoro: irmão mais novo de Estéfano, com quase dez anos.
Filémon: primo de Estéfano, 25 anos; veterano.
Esmicrínes: irascível agricultor da zona de Elêusis, futuro sogro de Estéfano.
Filomela, filha de Esmicrines: futura noiva de Estéfano, 15 anos.
Geta: escrava de Esmicrines, velha ama de Filomela.
Filonice: mulher repudiada de Esmicrines, mãe de Filomela; apicultora do Himeto.
Filocleia: mãe de Filonice e avó de Filomela; gere a quinta da família no Himeto.
Dro hpides: segundo marido de Filocleia, padrasto de Filonice; um homem inválido.
Fílocles: irmão de Filonice e tio de Filomela; herdeiro da propriedade no Himeto, mas de momento a viajar
pelas ilhas orientais.
Mica: escrava idosa da casa do Himeto.
ACADÉMICOS E ESTUDANTES Do LiCEU.
Teofrasto: acadêmico, 40 anos, muito interessado em plantas; braço direito de Aristóteles.
Eudemo de Rodes: académico espirituoso e educado, mais ou menos com a idade de Teofrasto.
Demétrio de Faleros: jovem acadêmico, muito bonito Hiparco de Argos: acadêmico sério quase
com 30 anos, parece um cavalo.
Arcandro de Lâmpsaco: acadêmico sério na casa dos 30, muito pálido.
Mícon: estudante, 14 anos, interessado nos projectos de investigação do Liceu.
Parménion, filho de Arquébio: neto (linha ilegítima) do grande Parménion, general de Alexandre,
14 anos; jovem estudante cujas estranhas perturbações mentais são fonte de preocupações.
CIDADÃOS DE ATENAS E SEUS ASSOCIADOS
Mégacles: importante cidadão de Atenas com a careca queimada pelo sol e modos sérios.
Trasímaco: importante ateniense com veia de orador; pai de Mícon.
Apolónio: cidadão robusto e patriótico a quem não agrada o governo macedónio.
Teosóforo: cidadão de meia-idade e temperamento sardónico, que não morre de amores por
Estéfano.
Epícrates: pequeno cidadão rico, enganado num negócio com um perfumista egípcio.
Hiperides: orador e homem de estado, 61 anos; não gosta dos Macedónios; ajuda Epícrates no seu
processo legal.
Antígona: mulher alforriada, bem-sucedida prostituta de Atenas, proprietária de um bordel;
envolvida num processo judicial com Epícrates.
Euforbo: jovem de boas famílias, bem humorado e jogador.
Cálias: cidadão rico, gosta muito dos seus animais de estimação; tem um macaco.
Eurimedonte: do clã dos Eumólpidas; guardião do culto de Deméter, leva muito a sério o seu cargo
religioso.
Górgias, filho de Lísipo: cidadão teatral com pouco mais de vinte anos, filho de um ourives rico.
PESSOAS ENCONTRADAS NA VIAGEM E NO ORIENTE
Ésquines comandante ateniense da pequena e rápida embarcação.
Eudemónia
Hermipo de Uurio: viajante; trabalha no ramo da prata, proprietário
de um tanque de lavagem e de um forno para fundir minerais.
Ilúva: filha de Hermipo e mãe da pequena Filocleia Filocleia: neta de Hermipo, 7 anos, sofre de asma.
Miltíades: alegre mercador de mármore.
Filócoro: distinto viajante que parece ter um fraquinho pelo seu escravo.
Sósio: escravo de Filócoro.
Dóris: escrava aleijada com um cãozinho Cardaca: ama de Dóris.
Magistrado de Delos.
Lisis: gerente do bordel.
Naumaquia, em Míconos Um mercador de mármore de Paros.
Aristodemo: gentil-homem de Naxos com ligações a Delos; um velho amigo de Aristóteles.
Nícias: natural de Cós, capitão da pequena e rápida embarcação Nice.
Corisco: filho de um velho conhecido de Aristóteles, numa embaixada a Alexandre.
Iátrocles: cirurgião de Cós e descendente de Asclépio; um velho conhecido de Aristóteles.
Nicumedes: sócio de Iátrocles, físico de Cós e descendente de Asclépio.
Oromedonte, filho de Daliocles: importante cidadão de Cós, velho amigo de Aristóteles.
Peleu: militar experiente, habituado a organizar transportes
Diofanto: oficial responsável por um pelotão na Lícia
Menestor: prisioneiro tebano, quase 17 anos; escravo trabalhando para oficiais do exército na Ásia.
Hárpalo: tesoureiro de Alexandre, antigo aluno de Aristóteles.
Pitonice: formosa amante ateniense de Hárpalo, que o acompanha à Ásia.
Nano de Calimne: bonita e rica dama das ilhas, antiga amante de um general macedónio.
Vários viajantes, marinheiros e soldados
Fala comigo, ó Musa, e abre-me a boca para que os meus lábios pronunciem coisas boas e
verdadeiras. Deixa-me Contar com justiça esta história de pilhagens e maldade, sofrimento,
cativeiro e viagens pelo mar imenso.
Louvado seja Asclépio por ter sarado o meu ferimento. Que as bênçãos de Higia me acompanhem
a mim e aos meus, agora e para sempre. Com todas as honras a Asclépio, o médico divino, a Péon,
cantado em hinos nos reinos do alto, e ao nosso senhor Apolo.
PARTE I
PARTES DE ANIMAIS
O SANTUÁRIO DE ASCLÉPIO
Ainda estava escuro quando avançámos com cuidado pelo caminho estreito ao lado da íngreme Acrópole, em
direcção à encosta sul. Quatro homens, dois dos quais escravos transportando uma liteira, que encerrava uma
mulher invisível.
- Cuidado! - exclamou o mais velho com rispidez, quando um dos escravos quase perdeu o equilíbrio no
caminho invisível. Algumas corujas atrasadas ainda piavam em volta do templo. Esforçávamos os olhos na
escuridão à procura do santuário. Ouviu-se um bater de asas. Um dos galos que eu levava debateu-se para
voar, como se quisesse escapar à morte ou apressar o fim que o esperava. Era difícil segurar as aves com
aquelas patas e garras afiadas e os pescoços contorcendo-se, sobretudo porque não as via. Sentia uma delas
picando-me a mão, embora lhes tivéssemos atado os bicos.
O santuário desenhou-se por fim à nossa frente, uma forma escura misteriosamente sólida na noite sem
dimensões. Na manhã de Verão, nesse período estranho antes da madrugada, esperámos à cabeça de uma
pequena fila de suplicantes. O céu ficou menos escuro. Os pássaros trinavam. Nisto, o céu cobriu-se de
vermelho a nascente: parecia sangue jorrando de um corte na pele. Os primeiros raios incidiram na porta do
templo, que se abriu. Nós, peregrinos, juntámo-nos aos sacerdotes e seus assistentes, cantando o hino da
manhã:
Acorda, Péon Asclépio Acorda e ouve teu hino!
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Aristóteles e o escravo ajudaram a mulher a sair da liteira apertada. Ficou de pé, encostada ao marido: era
magra, não havia dúvida de que estava grávida e um véu grosso tapava-lhe o rosto. Avançámos para o altar.
Os poços sagrados com as serpentes achavam-se algures perto de nós, mas eu não conseguia vê-los. Desatei
os galos; Aristóteles e os escravos ajudaram os auxiliares dos oficiantes a levá-los para o altar. Os animais
bateram as asas e cantaram, anunciando a madrugada. O assistente avançou para eles com uma faca afiada e
interrompeu-lhes o ”có-có-ró-có!”. Um jorro de sangue manchou a pedra de mármore e as penas brilhantes.
Um raio róseo incidiu no altar, fazendo cintilar o sangue e os olhos cegos das cabeças decepadas, com as suas
cristas vermelhas.
Rezámos e suplicámos no recinto iluminado pelo pequeno fogo do altar e pela luz fresca da alvorada. Uma
doce brisa matinal entrava pela porta aberta.
- O que te traz aqui? - perguntou o sacerdote-físico.
- A minha mulher tem uma febre baixa e falta de apetite respondeu Aristóteles. - E quando come, muitas vezes
não consegue conservar a comida no estômago.
- Ela está grávida? - indagou rapidamente o sacerdote. Senhora, insisto que respondas por ti própria. Quem
és? Como te chamas?
- Pítia, esposa de Aristóteles de Atenas.
- Estás grávida?
- Estou.
- Asclépio não tem remédios para a gravidez - disse o sacerdote, dirigindo-se aos dois. - É uma coisa natural e
não a tratamos. E é do conhecimento geral que não deve nascer nenhuma criança no recinto consagrado a
Asclépio.
- Mas o mal da minha mulher não tem só a ver com a gravidez - objectou Aristóteles. - Sou filho de um físico
e sei. Ela tem febre e treme. Descreve os teus sintomas - acrescentou, virando-se para Pítia.
Ela respondeu em voz baixa e agradável, com mais do que uma leve pronúncia estrangeira:
- Tenho calor e depois frio. Tremo. Tenho uma fraqueza nos olhos, que vem e vai. Sinto o estômago às voltas
e uma dor surda de lado. Não é como das outras vezes.
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- Já tiveste filhos?
- Dois que nasceram mortos, um que viveu um ano e morreu de uma doença e uma rapariga que está viva.
- E tu, senhor - continuou o sacerdote, dirigindo-se a Aristóteles -, descreve o que te atormenta.
- Dores na perna... ciática. Rigidez e dores na coxa e na perna.
- Mais alguém? - Olhou para mim e abanei a cabeça. Encontrava-me ali para, literalmente, amparar
Aristóteles. De pé à sua esquerda, estava a postos para que ele se apoiasse a mim, caso precisasse. Aristóteles
amparava Pítia, que Teofrasto parente do filósofo, ajudava do outro lado.
Pronunciámos as orações adequadas, acompanhando o sacerdote-físico. Observei o recinto interior, com o
olhar cada vez mais apurado devido ao aumento da luz. Havia muitas imagens. Asclépio, a criança, o recém-
nascido, rodeado por suaves chamas ou raios. Asclépio, o Amado, o Grande Salvador. Examinei uma estátua
realmente boa, representando-o sentado num trono; dos lados da cadeira, as serpentes em relevo parecem
rodas. Asclépio empunha o bastão com a serpente enroscada. O cabelo comprido e ondulado e a luxuriante
barba encaracolada fazem-no parecer ligeiramente estrangeiro, como um fenício. Tem o rosto nobre e os olhos
muito bem esculpidos e profundos. Fitam a distância com uma sugestão de sofrimento e esperança, mas
também parecem observar-nos com um olhar de grande compaixão. Atrás dele, um grande baixo-relevo
votivo mostra Asclépio com os filhos, os dois físicos, Macáon, o cirurgião, e Podalírio, especialista em
doenças internas. E uma imagem alta da sua filha, Higia. Podemos fazer votos para não precisar dos filhos de
Asclépio, mas toda a gente quer a filha, que é a própria Saúde.
De momento, encontrávamo-nos todos ali, Aristóteles, Pítia, eu e Teofrasto, naquele pequeno santuário
apertado. Juntos, vivos e em segurança. A luz deslizou e incidiu na parede, permitindo-me ver os ex-votos
nela pendurados. Alguns eram pedaços de madeira de talhe grosseiro, outros esculturas elaboradas e lustrosas.
Havia bastantes de prata, cintilando com os raios de sol. Uma brilhante imagem de bronze de um dedo
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grande do pé em tamanho natural, adornado com uma grinalda em miniatura. Uma perna, uma mão,
um olho, um pénis, Aqui, um escudo que alguém oferecera em sinal de gratidão por ter saído ileso
da guerra. Ali, parte de uma embarcação em mármore... alguém que se salvou de um naufrágio ou
que recuperou dos danos físicos provocados por um naufrágio. Grinaldas de cabelo verdadeiro
dispostas em cabeças de madeira, imagens de crianças que voltaram a ser saudáveis... tudo
afirmando o poder do médico divino e a força curativa da terra escura, das nascentes sagradas e da
serpente que surge das profundezas.
Depois das instruções do sacerdote-físico, que aconselhou Pítia sobretudo a mudar de alimentação e
a sentar-se num sírio quente ao sol, saímos do santuário. Pítia seguia encostada ao marido. Tivemos
de a ajudar a entrar para a liteira. Partimos de novo. Aristóteles coxeava um pouco por causa da
ciática, o que era especialmente irritante para alguém tão activo como ele: o seu grupo foi chamado
”os peripatéticos” porque ele gostava de falar andando de um lado para o outro. Regra geral,
preferia estar em movimento. Eu não receava que ficasse aleijado para sempre. O filósofo era ainda
espantosamente activo para um homem da sua idade, embora a ciática o atormentasse de vez em
quando, sobretudo quando não tinha cuidado ou se esquecia e passava muito tempo sentado nalgum
banco húmido de mármore. Quanto a Pítia, em breve se veria livre dos seus padecimentos, dando a
Aristóteles o filho que ele há tanto desejava. O sacerdote-físico tivera talvez razão em se alarmar
com o risco de um nascimento no santuário, pois é absolutamente proibido e Pítia evidenciava já
um adiantado estado de gravidez.
Aristóteles parecia aliviado e falador:
Estive aqui muito poucas vezes, mas Pítia quis vir. Por mim, prefiro o Asclépion do Pireu, que
nalguns aspectos é melhor e tem sacerdotes mais competentes do que este. E também mais
tradição... lembras-te do Plutão de Aristófanes? Mas é muito longe para ela... por outro lado, era
perfeitamente possível virmos aqui. Agora vai ficar mais descansada.
O que lhe receitaram? perguntei, mais por delicadeza do que propriamente por curiosidade.
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- O costume. Hidromel se não conseguir aguentar mais nada, porque a mistura de mel e água tira-
lhe a sede e alimenta o bebé. Líquidos, ovos... Mandaram-na sentar-se ao sol... felizmente temos um
pátio onde o pode fazer. Acham que em parte é um problema de olhos. Quando melhorar, tem de
oferecer ao santuário uma imagem de um olho... e eu de uma perna. Acho que vou mandar fazê-las
em prata e que sacrificaremos um porco. Quando as imagens estiverem prontas já teremos o nosso
bebé... o nosso rapaz, espero.
- Pelo menos, já sacrificaste um galo - comentei.
- ”Um galo para Asclépio”: as últimas palavras de Sócrates... como de certeza estás lembrado.
Como o galo canta de madrugada, esta oferenda é feita ao dia, à luz e à própria vida. Quando
nascemos, vemos a luz do dia, a
dádiva da nossa primeira madrugada. Sacrificando um galo, agradecemos o novo dia.
- Mas Sócrates disse isso mesmo antes de morrer.. não teve nenhum novo dia - objectei. - Na altura,
estava a ser executado.
-Mas deve ter agradecido o novo dia, mesmo sendo o último. Creio que na verdade queria era
agradecer toda a sua vida, a dádiva de ter nascido... de ter existido e levado uma vida humana no
mundo. Viver é uma coisa maravilhosa! Quando regressarmos ao Liceu, vamos reler este excerto no
espantoso livro de Platão.
Tínhamos saído da Acrópole e dirigíamo-nos à porta da cidade rodeando a ágora, que já começava a
encher-se de gente. Embora já com a vantagem da luz do dia, os que transportavam a liteira de Pítia
tinham alguma dificuldade em passar pelos becos estreitos com o seu fardo. Homens martelando ou
fazendo cadeiras pareciam determinados a fàzer o seu trabalho no meio da rua, dificultando a
passagem. Crianças corriam ao nosso encontro, tentando vender-nos isto ou aquilo. Uma delas, um
rapazinho embrulhado numa capa com um capuz grosso, teimava em nos impingir umas ervas
pouco frescas. Aristóteles acabou por pegar no funcho amarelecido, atirando-lhe uma moeda.
-É só para me ver livre dele - explicou.
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- O rapaz não me parece muito saudável - disse eu. Assim agasalhado e com capuz quase no solstício de
Verão, se calhar tem alguma doença.
Na verdade, já estava a ficar quente, embora ainda faltassem cerca de vinte dias para o solstício de verão. Fora
da cidade, as searas amadureciam ou até já tinham sido colhidas. O feno já fora cortado. A efémera roseira-
brava desabrochava e cheirava a flores até em Atenas, onde não se vêem os jardins que florescem atrás dos
muros.
Não teria precisado de andar muito para regressar a minha casa, mas a de Aristóteles ficava um bocadinho
mais longe: pelo menos bastante distante para os escravos, que seguiam carregados. (Não que Pítia fosse
pesada, longe disso, mas a liteira não dava jeito nenhum.) Aristóteles vivia fora dos muros da cidade, na
direcção oposta à da Academia de Platão, igualmente situada no exterior. Morava para leste, numa região
banhada pelo Ilisso e coberta de árvores: um sítio magnífico, embora na altura bastante barulhento devido á
construção do novo estádio. A sua famosa escola ficava no recinto que tinha o nome de Apolo Liceu, o deus
dos lobos... que, curiosamente, também afasta os lobos. As pessoas chamavam ”Liceu” á famosa escola de
Aristóteles, bem como ao ginásio que ficava ali perto, onde os jovens faziam o seu treino militar. Aristóteles
aceitava estudantes particulares e tínha uma equipa de académicos a trabalhar com ele. Era um local com
pequenas matas, onde se discutia livremente; os arredores do Liceu eram uma zona de filósofos e amantes da
filosofia. A maioria das famosas conferências de Aristóteles eram públicas, ao jeito dos bons velhos tempos.
Como o local sempre estivera cheio de jovens, era um bom sítio para juntar os que queriam participar em
conversas intelectuais.
Aristóteles teve de alugar tanto a casa como a escola. A lei de Atenas proíbe os estrangeiros, mesmo os
estrangeiros residentes, os
metecos, como Aristóteles, de serem proprietários. Por isso, e embora tivesse sido o melhor e, provavelmente,
o estudante preferido de Platão, este não pôde deixar-lhe a Academia. Depois da morte de Platão, Aristóteles
esteve fora de Atenas durante muito tempo. Quando regressou, casado com
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esta estrangeira, alugou casa na zona do Liceu. Meteu algum dinheiro do seu bolso para a acrescentar e
construir novos edifícios. Uma das suas necessidades básicas era muito espaço para os livros. As alterações
importantes têm de ser aprovadas pela cidade, e claro que os seus melhoramentos representam um prejuízo, já
que não pode vender o local nem deixá-lo aos seus herdeiros.
Quando chegámos ao Liceu, Aristóteles mostrou-se ansioso por ver Pítia instalada no conforto do seu lar:
- Está cansada e precisa de repousar.
- Herpílis tratará de mim - disse uma voz abafada de dentro da liteira.
- Olimpo e Foco ajudar-nos-ão e arrumarão a liteira observou Aristóteles. - Teofrasto, não queres levar
Estéfano lá dentro e mostrar-lhe a nossa ”oficina do pensamento”? Serve-lhe uma das nossas modestas
refeições. Eu já lá vou.
Os escravos pousaram a liteira e ajudaram a sua senhora a sair. Aristóteles pegou-lhe na mão com ternura e
amparou-a com o braço. Subiram os dois o lance de degraus baixos do jardim até à porta.
- Ainda bem que Herpílis está aqui - ouvi-a dizer. Não entres... tens visitas.
- Claro que entro, minha querida - respondeu Aristóteles num tom de voz que eu nunca lhe ouvira antes.
Teofrasto encarregou-se de mim e levou-me para os edifícios principais da escola por um caminho diferente.
Conhecia bem o Liceu: tinha lá estudado, por muito pouco tempo, é certo, atraído pela reputação de
Aristóteles e pela sua inteligência. Mas os negócios do meu pai atrapalharam-se tanto que tive de sair. Pouco
depois, o meu pai morreu e a minha família mergulhou no caos. Como de modo algum era dos melhores
estudantes, a minha ausência não deve ter sido nenhum golpe para Aristóteles. Mas recorri mais tarde ao meu
velho professor. Depois da morte do meu pai, quando o meu primo foi acusado de homicídio, vim pedir ajuda
a Aristóteles, embora nada me desse esse direito. Vim a casa dele pedir conselho no princípio do Outono,
quase três anos antes desta visita
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matinal ao Asclépion. Ainda bem que o fiz: a inteligência e a acção do filósofo salvaram a nossa
família do desastre. Eu e Aristóteles estivemos recentemente a investigar um outro crime curioso,
que nos levou a perseguir uma herdeira raptada até Delfos, Foi na Primavera deste mesmo ano que
nos presenteava agora com um prazenteiro calor de Verão.
Apesar da minha amizade por Aristóteles, no entanto, de modo nenhum conhecia bem o Liceu no
seu estado actual. Como Teofrasto me fez notar, houvera mudanças desde os meus tempos.
Foi preciso arranjar mais espaço... tínhamos tantos livros que tivemos de aumentar a sala dos livros.
Isto sem contar com os que o Aristóteles tem em casa. Assenti, pois já fora aos seus aposentos
pessoais, com a sua surpreendente quantidade de livros. Temos um compartimento especial para
conservar secos e limpos os rolos mais valiosos continuou Teofrasto. Aristóteles chama-lhe a
”despensa dos livros”. Foi ele que a desenhou.
Entrámos numa divisão comprida... com cerca do dobro do comprimento de que me lembrava. A
metade superior de cada parede estava forrada de estantes e compartimentos para os rolos. Pairava
na sala o cheiro agradável da madeira; as estantes, obviamente de muito boa qualidade, deviam ter
sido importadas a bom preço, pois a madeira escasseia muito em Atenas. Na parte central da parede,
abaixo dos compartimentos com os rolos e à altura da cintura, havia uma prateleira larga em toda a
sala, uma espécie de espaço de trabalho. A luz vinha de janelas altas abertas à altura do tecto, para a
chuva não entrar.
Aristóteles chama a esta sala a ”cozinha dos livros”. Escrevemos e lemos aqui. Desenhou as janelas
e mandou fazer protecções de linho para o sol não bater directamente nos rolos, comendo-lhes a cor
explicou Teofrasto. Do lado onde o sol incidia, as janelas estavam tapadas com tiras de tecido. E
agora temos tantas plantas e espécimes mandados por Calístenes que tivemos de arranjar uma
divisão especial. Virou-se para a porta:
- Oh, olha Demétrio.
Apareceu um jovem de enorme e rara beleza. Este Demétrio
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era alto e bem feito, com um nariz admirável... não, perfeito; o cabelo, bastante comprido, tinha o brilho do
sol mesmo numa sala tão agradavelmente obscurecida.
- Demétrio de Faleros - apresentou Teofrasto. - Estéfano de Cidaténion. - De passagem, pensei porque nos
teria Teofrasto apresentado indicando o demo e não o nome do pai; um jovem tão bonito devia ter um pai
importante. Demétrio fez-me um amável sinal com a cabeça. Embora não pudesse ter muito mais de vinte
anos, o aristocrático jovem mostrava um grande aprumo. - Foi Demétrio que fez muitos destes magníficos
desenhos - explicou Teofrasto. - Afasta um bocadinho essas protecções para Estéfano ver melhor, Demétrio.
Vi então num canto da prateleira larga uma série de desenhos e diagramas encostados a uma parede. Mas não
era nada como uma galeria normal! Nem Dafnes nem Andrómedas, mas antes umas coisas muito estranhas. A
imagem da pata de um animal, com a classificação das suas várias partes; um útero e um escroto com
testículos... as figuras isoladas, sem nenhum corpo. Havia uma ilustração de muitos peixes cobertos de
espinhas, com uma tira em baixo mostrando vários crustáceos.
- Excelentes! - exclamei com delicadeza, observando as bizarras imagens de lulas e ouriços-do-mar. - Tens
uma grande variedade de ingredientes na tua ”cozinha dos livros”. Demétrio de Faleros soltou uma
gargalhada:
- Não penses que Aristóteles não gosta que nos refiramos à ”despensa” e à ”cozinha” - garantiu-me. - Diz ele
que o centro do corpo é uma espécie de cozinha ou forno. O estômago está sempre ocupado a cozinhar, tal
como o coração, que alimenta e mantém o calor natural sem o qual a alma não pode funcionar. E a
alimentação...
- É transmitida ao resto do corpo - continuou Teofrasto.
- ”Onde cada parte continua o trabalho e cozinha com o seu próprio calor” - remataram os dois em coro,
evidentemente repetindo frases e opiniões do mestre. Um jovem de cabelo encaracolado entrou na sala,
atraído pela sua alegria.
- Mícon! Estéfano, filho de Niciarco. Mícon, filho de
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Trasímaco. - O divertido rapaz de cerca de catorze estios aproximou-se de nós com confiança. A apresentação
formal que Teofrasto fez da criança levou-me a deduzir que era bem-nascido. - Micon tem feito progressos
invulgares. E ajudou na criação destas imagens... foi ele que sombreou e coloriu muitas delas.
- Impressionante - concordei. - Para que servem?
- Vão ser integradas em livros! - exclamou Mícon. Que serão lidos por toda a gente!
- Quando estiverem acabadas - esclareceu Demétrio. Esta ideia... serão copiadas para os livros sobre animais
que Aristóteles anda a escrever.
- E ainda temos muitas plantas novas para examinar acrescentou Mícon.
- Pois é - disse Demétrio. - Queres ver, Estéfano? Calístenes, sobrinho de Aristóteles, que viaja com
Alexandre, mandou-nos plantas novas da Ásia.
- Gostava de as ver - afirmei com delicadeza. Sabia, pelas conversas de Aristóteles, que ele tinha o sobrinho,
Calístenes, em alta estima. Tal como, de resto, Alexandre da Macedónia, que escolhera este distinto
académico e escritor para o acompanhar à Ásia. O sobrinho de Aristóteles viajava agora, com Alexandre e o
seu exército para escrever a história oficial da Grande Guerra com a Pérsia, que de resto era como se já tivesse
terminado. Alexandre já controlava Iersépolis e a Babilónia: só lhe faltava encontrar e matar o rei Dário da
Pérsia. Mas o que eu não sabia era que Calístenes continuava a ser uma espécie de sócio de Aristóteles,
fornecendo-lhe materiais asiáticos para os seus estudos de ciências naturais.
Passámos desta ”cozinha dos livros” para a sala seguinte, atravessando um corredor curto com uma porta em
cada ex- tremidade. Supus que tinham tentado isolar a sala dos espécimes vivos, de modo a que a humidade e
o cheiro não penetrassem na sala dos livros. Inumeráveis (assim parecia) raíes e ramos enchiam a parede e
pendiam de ganchos do tecto. Havia um arbusto com flores rosadas... muito bonito e com um cheiro
interessante. Mas muitas plantas pareciam sem vida, secas e murchas. 24
É difícil conservá-las - disse Demétrio, seguindo O meu olhar. - Calístenes envolve-as em musgo húmido,
mas mesmo assim sofrem. E o ar de Atenas deve ser mais salgado do que aquele a que estas plantas estão
habituadas.
Também havia alguns esqueletos de animais pendurados no tecto (pareceu-me reconhecer um cão). Bocados
de animais flutuavam em vasos altos e grossos. Numa grande mesa de trabalho viam-se os desenhos das
plantas e várias tabuinhas, algumas escritas.
- Esta é a nossa ”cozinha das traseiras” ou ”matadouro” explicou Demétrio. - Agora chamamos-lhe mais ”sala
das plantas”. Mas estamos interessados sobretudo em animais.
- Quem escreve? - perguntei, olhando as tabuinhas.
- Todos nós. Esboçamos uma descrição na placa de cera e depois discutimo-la - esclareceu Demétrio. - Se
todos cuncordarmos, é copiada para o livro que é uma espécie de rascunho do nosso futuro catálogo. Aqui
Hiparco de Argos pode explicar melhor do que eu, especialmente os animaïs.
Hiparco era um homem grande e cheio de vontade de agradar, com um rosto comprido e um nariz direito e
igualmente comprido.
- E trabalhas com cavalos? - indaguei. Como o seu nome significa ”mestre de cavalos”... aliás, Mestre de
Cavalo, ou seja, um chefe de cavalaria, achei que o trocadilho tinha piada. Talvez nem me tivesse lembrado
disso se Hiparco não se parecesse tanto com um cavalo. Mas a minha frívola pergunta fê-lo franzir as
sobrancelhas como um cavalo perplexo.
- Não temos grande variedade de cavalos por aqui. O cavalo comum é um quadrúpede bem conhecido. Se nos
viesse algum tipo diferente da Ásia, claro que gostaríamos. Aristóteles anda à procura de várias espécies de
animais. Eu escrevo as descrições aqui com Eudemo.
- Estéfano, filho de Niciarco de Atenas. - A formalidade de Teofrasto fez-me adivinhar, ainda antes de o ver,
que este recém-chegado era muito bem nascido. - Eudemo de Rodes.
Alto e de cabelo escuro e encaracolado, Eudemo era muito mais bonito do que seria de esperar num
académico, embora
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não tão escultural como o jovem Demétrio. Olhando-me com aristocrático à-vontade, murmurou algumas
frases convencionais sem mudar muito a expressão facial.
- E Arcandro de Lâmpsaco. - Era um jovem pálido, como um bolbo que ficou muito tempo na cave. O cabelo
preto ainda lhe acentuava mais a palidez. - Estes estudiosos colaboram todos no grande projecto de Aristóteles
- continuou Teofrasto. - São os seus principais... hã...
- Chama-nos seus assistentes - rematou Eudemo com amabilidade. - Juntamente com Teofrasto, somos os
académicos em quem o mestre mais confia: os cozinheiros de Aristóteles. Seccionamos animais e plantas.
- Mas é mais do que isso - observou o jovem Mícon. Vamos fazer um plano de tudo o que existe... para que
tudo O que existe seja conhecido.
- Tudo o que existe! Mas isso é muito! - Aristóteles aproximou-se por trás de nós. - É verdad: tentamos
explorar o universo da natureza e criar categorias racionais para os seres vivos.
- Sem as devidas categorias, não é possível pensar acrescentou Arcandro, provavelmente citando alguma frase
que ouvira ao filósofo.
- Estás a ver os grandes passos que damos em direcção ao conhecimento, Estéfano? - disse-me Aristóteles. -
Tenho trabalhado nisto desde rapaz... desde que deixei a Academia de Platão... mas não era possível
completar nada trabalhando sozinho. Agora tenho estes excelentes assistentes e académicos a ajudar-me -
abarcou-os a todos com um gesto da mão - e vamos fazendo progressos. Tal como Heródoto escreveu a sua
gigantesca crónica sobre a natureza inteira e o desenvolvimento da guerra entre persas e gregos, também eu
escrevo um relatório completo dos animais. Aqui, observamos e anotamos todas as diferenças que nos
permitem distribuí-los por classes. Observamos a maravilha da ordem do cosmo, que às vezes nos parece
muito pequena... ou muito grande... para que a possamos ver.
Murmurei qualquer coisa com delicadeza, embora sentisse uma certa repugnância pelo cheiro bafiento das
raízes das plantas e ainda mais pelo conteúdo dos vasos.
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- É estranho um filósofo preocupar-se tanto com animais - comentei.
- Porquê? Platão sugere que somos bípedes sem penas; assim sendo, devíamos respeitar os animais. Se
estudamos a arte, porque não a natureza, que é muito maior do que a arte? Não devemos fazer má cara só
porque a carne, o sangue, as espinhas, os bicos ou os órgãos são desagradáveis... vamos deixar as
exclamações infantis de nojo para as crianças. A questão é: como podemos discutir um mundo que não
conhecemos? Vivemos na ignorância e as nossas descrições são parciais e irregulares. Acontece o mesmo com
os calendários... sabes que estou interessado em reunir narrativas dos Jogos Olímpicos e Pítios. Não é porque
esteja especialmente interessado nos acontecimentos atléticos, mas porque estas listas nos dão medidas de
tempo... ano após ano. Em breve poderemos criar um calendário mundial com todos os acontecimentos
assentes numa linha de tempo, o que nos dará uma imagem uniforme da realidade temporal, sem a qual a
história... o estudo da humanidade... não é possível.
Senti-me um tanto alarmado:
- Mas eu gosto do tempo ateniense.
- Bem, digamos que, tanto no tempo ateniense como no do Liceu, é ”tempo de comer”. Fica connosco - disse
Aristóteles. - Hoje vou comer com os professores e os alunos. Pítia está muito cansada e precisa de ficar
deitada. Felizmente, tem Herpílis. Um verdadeiro tesouro! Uma escrava doméstica da família da minha mãe,
na Eubeia. É uma enfermeira excelente e um prodígio com as crianças. Pítia adora-a. Insisti com ela para que
se deitasse porque não me agradam nada aqueles tornozelos inchados - acrescentou. Senti-me embaraçado ao
ouvir informações tão íntimas. Mas Aristóteles não tinha parentes próximos à mão (excepto talvez Teofrasto,
cujo grau exacto de parentesco permanecia indefinido), e suponho que precisava de partilhar estes detalhes
familiares com alguém.
- Mícon, chama os outros para o refeitório - ordenou Eudemo. - Diz-lhes que a comida está pronta. - Mícon
saiu à pressa.
- Deixa que te diga que é uma refeição muito humilde
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- observou Aristóteles. - Não bebemos vinho quando estamos a trabalhar. O nosso repasto é muito pitagórico.
Mas garanto-te que não vão servir-te nada desses vasos!
Deixámos a sala dos espécimes e entrámos numa divisão comprida, uma sala de conferências onde os
escravos tinham montado tábuas em cima de cavaletes. Havia bancos à volta. Era uma decoração simples para
uma refeição simples. O pequeno grupo de jovens estudantes entrou em fila, com Mícon à cabeça.
Respiravam saúde, estavam bronzeados, falavam e riam; só não faziam mais barulho devido à presença de
Aristóteles e dos professores. A sua tagarelice alegrava a sala. Mas um deles, triste e calado, olhava para o
prato sem comer nada.
- Que te parece? - perguntou-me Aristóteles. Eu ocupava a posição de honra à sua direita, suponho que um
lugar geralmente reservado a Eudemo ou Teofrasto. - Mais ou menos como era no teu tempo, não? Com os
dias tão bonitos, comemos muitas vezes lá fora, mas assim é mais fácil e rápido para os escravos.
- E os teus escravos já foram hoje à Acrópole. Como correu a tua visita ao santuário de Asclépio, Aristóteles?
- perguntou Demétrio.
- Oh... bem, como de costume - respondeu ele. Pareceu-me que não estava muito interessado em que a sua
vida pessoal fosse objecto de conversa naquele momento e lugar, Olhando em volta, acrescentou: - Sabes que
dizem que descendo de Asclépio através do filho, Macáon?
- Então devias ser cirurgião - observou Hiparco. Por falar nisso, como nos vamos arranjar com os nossos
espécimes, agora que está tão quente? Achas que vão sobreviver ao calor?
- O tempo está muito agradável, não é verdade? - comentou Eudemo, sentado à esquerda de Aristóteles. - O
Cirofórion é um mês encantador... especialmente porque só tem festivais antigos e pouco importantes, como
as próprias Cïrofórias. É tão bonito ver a sacerdotisa de Atena e os sacerdotes de Posídon e do Sol
percorrendo a estrada oeste debaixo de um pálio branco! E o melhor é que ninguém sabe o que significa.
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- Também é o mês das Dipólias, o festival de Zeus Polieus, guardião da cidade - fez notar Teofrasto.
- E o maior sacrifício das Dipólias é a Bufónia. Chegou o tempo da matança do boi, um costume ateniense!
Devíamos ir.
- Podemos formar um grupo para ir ver. Queres vir, Estéfano? Se calhar já não assistes à Bufónia há muito
tempo.
- Obrigado - agradeci com amabilidade.
Mudando de assunto, calhou eu falar a Aristóteles do aluno pálido e pouco sociável:
- Quem é aquele rapazinho que parece tão triste?
- Ele? Talvez até já tenhas ouvido o seu nome. Teofrasto falou-me dele quando tu e eu regressávamos de
Delfos no princípio da Primavera. O jovem Parménion costuma ficar choroso e triste, muitas vezes sem
qualquer razão. E às vezes tem ataques. Parecia melhor no fim da Primavera, mas agora tem razões para se
preocupar, pois não sabe do pai. No entanto, os seus problemas parecem estar na cabeça, e temo que agora
piorem. - Virando-se para a minha direita, acrescentou: - Fala-nos mais do estado do jovem Parménion,
Teofrasto.
- É mau e está a piorar - respondeu ele. - Achei que este mau humor começava a desanuviar, mas agora temo
que esteja a deteriorar-se bastante. Receio que tenhamos de o levar para casa. É muito novo para fazer a
viagem sozinho.
- É neto do grande general Parménion, creio? Descendendo dele, é estranho que seja tão fraco da cabeça -
disse Hiparco. - Quanto a levá-lo a casa... pode ser perigoso. As coisas ainda estão complicadas.
- Talvez tivéssemos protecção do exército. A família toda, incluindo o pai, deve estar de muito boas relações
com a casa real. Sobretudo o grande Parménion, outrora grande companheiro do rei Filipe e agora braço
direito de Alexandre observou Teofrasto com o seu amor à precisão e à ordem. É verdade que o pai do rapaz
não é filho legítimo do grande general, mas sempre foi tratado como se fosse da família.
- Se até permitiram ao rapaz ficar com o nome do avô... comentou Hiparco.
- É verdade. E o filho legítimo de Parménion, Filotas, um brilhante general e um dos Companheiros de
Alexandre,
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gosta muito deste sobrinho, que tem muitas razões para esperar favores e ajuda... mas ainda não sabemos
muito bem onde encontrar o pai, Arquébio, que, na qualidade de macedónio, faz parte do exército de
Alexandre. Numa altura em que esteve a ajudar a pacificar a ilha de Roie;. Há a possibilidade de ter sido
transferido para Cós.
- Bem, tu ou Eudemo talvez tenham de fazer uma viagem para oriente - disse Aristóteles com jovïalidade. - Se
calhar Eudemo até vai gostar... afinal de contas, veio de Rodes. É uma pena não podermos fazer nada pelo
rapaz aqui. Provavelmente devia ir a um bom centro de medicina. Alíás, pode ser que até melhore
estando em Cós.
Mudando de assunto, virou-se para mim:
- O que achas do nosso liceu? - perguntou-me. - Está maior desde os teus tempos, não?
- Está - concordei. Não me agradava pensar nos ”meus tempos” como uma época muito distante.
- Agora temos um conjunto de livros bastante considerável. Felizmente, Teofrasto tem um grande amor pelos
livros e trata-os muito bem. Nunca os deixa apanhar pó nem ficar fora do sítio. Tem de voltar tudo para o seu
devido lugar. Como vês, atraímos académicos excelentes para trabalhar connosco. Eudemo é de uma família
muito distinta de Rodes, mas trabalha aqui nas plantas asiáticas tanto com as mãos como com a cabeça. Como
é da região, tem uma familiaridade diferente. Bem, eu também passei algum tempo na costa asiática, primeiro
em Asso e depois em Lesbos. Há uns anos, conhecia muito bem a região costeira da Ásia. Foi lá que comecei
a estudar os animais, observando a vida das costas e examinando as raias, as lulas e os crustáceos.
- Mas diz-me: vais tentar descrever tudo o que vive?
- Gostaríamos de o fazer... mas é um plano muito ambicioso! No entanto, como trabalhamos com uma
variedade tão grande, é possível que tenhamos razão no que dizemos. Todos os homens, incluindo os
académicos, viveram até agora com categorias insuficientes... aliás, até com uma ideia insuficiente do que é
uma categoria. E de facto a nossa investigação tem de ser sistemática. Estudamos as particularidades.
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- Aristóteles pensa que há uma espécie de arte na natureza, até nas pequenas coisas - acrescentou Demétrio.
- Com certeza. Não há nada que não seja importante. Olhem o que Heraclito disse na latrina: ”Entra; até aqui
há deuses.” A complexidade dos corpos, dos corpos vivos, é muito bela. O corpo não é uma simples ”forma”
no sentido vulgar do termo ou até no que lhe dão algumas pessoas com instrução, mas sim um centro de
desenvolvimento e actividade. A natureza é uma especialista em dinâmica. Prefere fazer cada órgão perfeito
para determinado fim. Não é uma trabalhadora medíocre como um humilde ferreiro que, por questões
utilitárias, faz um suporte de iluminação de metal e um espeto num só objecto! Pensem no que vimos nos
vasos com o sangue...
- Bem, é difícil observá-los - interrompeu Demétrio, muito sério. - Não é fácil perscrutar os segredos íntimos
da natureza. Claro que podemos abrir um animal... mas o sangue esguicha e a vida vai-se num ápice.
- Descobrimos que a observação dá mais resultado quando não alimentamos o animal... os vasos sanguíneos
vêem-se melhor. Mas claro que nem assim conseguimos vê-los todos.
- O que vemos, no entanto, é de uma regularidade e uma ordem assombrosas - acrescentou Aristóteles. -
Assemelha-se aos regatos e canais de um jardim bem cuidado e bem irrigado, onde o jardineiro criou um
canal principal e derivou dele muitos pequenos regatos.
- Esse é o tipo de comparação preferido de Teofrasto comentou Eudemo. - Se calhar até foi ele que a sugeriu.
Adora jardins.
Aristóteles ignorou-o e continuou a falar:
- Ao mesmo tempo, não são meras particularidades que fazem as categorias. Claro que não! E não é o nosso
catálogo que vamos publicar. Isso é só um começo. Sem método, sem raciocínio, tudo o que temos são
simples listas. Podia fazer uma lista das vezes em que corto as unhas, e seria verdade... e inútil, a não ser que
tivesse algum propósito. O objectivo não é só o conhecimento do mundo que nos rodeia, mas também uma
verdadeira compreensão do que é a vida. A vida neste mundo transitório, entre a existência e a morte. O nosso
sujeito não é outro senão a própria vida.
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Quase me tirou o fôlego com a imensidade do seu tópico de conversa.
- O mais importante é o poder inerente do raciocínio, que o leva a perceber, adivinhar... e de certa forma gerar
ordem - continuou Aristóteles, entusiasmando-se. - Enquanto parte do intelecto divino do universo, o
raciocínio conhece a ordem; ou seja, já temos dentro de nós o poder de perceber e falar de categorias. A ideia
não é criada por moluscos nem por árvores.
- Oh, mas claro! - concordei, um tanto atabalhoadamente, pois estava a mastigar um pedaço de pão duro ao
mesmo tempo. De resto, não tinha a certeza de conseguir compreender tudo o que ele dizia.
- O corpo existe para a sua perfeição, que é a alma, a capacidade para se mover, procriar e por aí fora. É
absurdo pensar que a alma está ”no corpo” como o marinheiro está ”no barco”. A alma é a forma que o corpo
procura. O intelecto é o principal. Mas a inteligência viva, percebe o mundo usando os órgãos do corpo. A
compreensão precisa de montar as particularidades... de as mastigar, se assim posso exprimir-me. - Os olhos
brilharam-lhe e eu tentei engolir à pressa o pão que estava a comer. - Precisamos dos pormenores, das
particularidades. É possível obter uma compreensão do mundo trabalhando com eles, usando os sentidos para
examinar as particularidades... desde que tenhamos um método. É o intelecto que tem de analisar... senão,
ficamos só com uma lista de curiosidades. Queremos estabelecer características, para podermos agrupar os
animais unidos pelas suas características. E ao analisarmos seres vivos, as produções da natureza, não
procuramos história e sim causas. Na natureza, as causas são fins e não princípios. A natureza cria para o
futuro. Nas ciências teóricas ou no estudo dos objectos que são fruto da arte humana, começamos pelo que já
é. Pensamos da frente para trás. Uma estátua nova tem uma espécie de existência, mas não tem futuro; só um
passado. Falta-lhe vida. Um cachorrinho tem futuro. No estudo da natureza, consideramos sempre o que vai
ser. Nos embriões de todos os tipos, incluindo os ovos, o coração, esse órgão soberano, é formado em
primeiro lugar devido
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ao trabalho que vai fazer. Um embrião
humano tem mãos porque será um homem, que as usará.
Os outros tinham feito silêncio para ouvirem o animado discurso de Aristóteles. Quando ele se calou, Eudemo
disse:
- Portanto, usando o pensamento e um processo de observação completa e regular... nem parcial nem
caprichosa... as particularidades levar-nos-ão às verdades gerais.
- Isso - acrescentou Hiparco. - E estás a ver a vantagem: saberemos realmente o que são as espécies. Assim,
quando se descobrir um animal novo... pop! Vai para a categoria correcta logo
que aparecer.
- Este mundo manifesta uma ordem ao mesmo tempo complexa e muito simples - rematou Aristóteles. A
quantidade de trabalho que ainda havia para fazer não parecia desanimá-lo. Os olhos cintilavam-lhe. A
refeição, constituída apenas por legumes, pão, fruta e água, fora realmente pitagórica mas, a julgar pelo seu
entusiasmo, parecia que Aristóteles bebera um vinho nobre. - Estou muito grato aqui aos meus colegas pelo
seu trabalho incansável e inteligente - acrescentou. Juntos, podemos fazer avançar os nossos conhecimentos.
- Mas de certa forma é estranho - disse eu. - A filosofia não deveria ocupar-se da verdade, do bem, do
comportamento... dessas coisas?
- Ahh! - exclamou Aristóteles. - A filosofia é o amor de toda a verdade. A verdade do universo, aqui e agora.
É, com certeza, muito doce contemplar a verdade e o bem. Mas quem contempla? O ignorante ou o seu
contrário? A mente está aberta para o mundo e abre o mundo. O bom filósofo examina tanto o seu mundo
físico como humano.
- Então, aquilo de que precisamos não é de filósofos-reis e sim de muitos verdadeiros filósofos entre os
cidadãos - observou Demétrio.
- Tens razão. E devemos educar os jovens dando-lhes uma sabedoria vasta e verdadeira, de modo a que
possam criar sociedades melhores, melhores estados. O filósofo devia ser um homem sempre pronto a ajudar
os outros, a misturar-se com os outros e a colaborar. É bem medíocre o filósofo que não dá ouvidos aos gritos
de socorro. Com uma forma de estado
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mais elevada, racional e benevolente e uma vida política cheia, solidária e harmoniosa, os homens poderão
tocar tudo O que os rodeia, num mundo que não é obscuro nem desconhecido para eles. Um homem assim
formado fará mais do que simplesmente existir. Viverá plenamente a vida e não se limitará a existir como uma
planta, uma rocha... ou até um texugo.
- O que Aristóteles diz é que muitos homens vivem na escuridão e precisam de ver - concluiu Hiparco.
- Assim, o nosso trabalho contém em si, as sementes de uma vida melhor para o homem do futuro - disse
Aristóteles. - Sabes, Estéfano, acredito que o estudo da filosofia é um benefício para a humanidade.
Sorriu-me, bem como aos jovens alunos e aos atentos académicos que o rodeavam à mesa, seus amigos e
colegas no grande empreendimento. Pensei depois muitas vezes naquele dia, em que o Liceu parecia um
santuário cheio de vida, reflexões e alegres planos, antes de a dor e até o desespero tocarem a vida do mestre.
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O ASSASSÍNIO DO BOI
A expedição para ver a matança do boi, sugerida por Eudemo, acabou por se concretizar. O escravo de
Aristóteles trouxe-me um convite para me juntar ao grupo do Liceu. Decidi ir e levar comigo o meu irmão
mais pequeno, Teodoro. Encontrámo-nos na encosta da Acrópole, à frente do grande templo da Virgem Atena.
Teodoro corria e saltava à minha volta. Havia bastante gente, mas não grandes multidões. E era-me possível
evitar as pessoas que não queria encontrar, como o cidadão Teosóforo, que tomara decidido partido contra a
minha família na altura em que tivéramos problemas. Vi-o à distância, com o mesmo ar azedo de sempre.
Como era de esperar, Aristóteles encontrava-se rodeado pelo seu pequeno séquito.
- Acho que já conheces toda a gente - disse-me. Era verdade: Hiparco com o seu nariz nobre e equino,
Demétrio de Faleros, de uma beleza prodigiosa e maneiras afáveis, Eudemo, tão bonito, falador e à vontade
que ninguém poderia deixar de reparar nele, e o pálido Arcandro. Estavam encarregues do pequeno grupo de
estudantes, que incluía o triste Parménion e o alegre Mícon.
Depois de apresentar Teodoro e de o entregar temporariamente aos cuidados dos rapazes mais velhos,
aproximámo-nos todos do recinto de Zeus, Protector da Cidade.
Mícon mostrou-se muito útil, abrindo-nos caminho e empurrando-nos para que ficássemos juntos, o que
provocou algumas resmunguices, se não mesmo altercações.
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- Olha lá o que fazes, rapazinho - disse um cidadão. Um outro, mais irascível, advertiu:
- Se tornares a empurrar-me, vais ver o que te acontece! Teofrasto teve de pedir desculpa pelo zelo de Mícon.
Estas desculpas não eram dirigidas aos mais rufiões da multidão. Um grupo de jovens das zonas mais pobres
começou a soltar imprecações, do tipo que indica que alguém gosta muito da própria mãe. Isto atrasou-nos um
bocado, mas os nossos rapazes não se ensaiaram para responder, embora Eudemo os tenha censurado, dizendo
que aquilo não eram maneiras. Um dos rufiões, um miúdo forte e de ombros largos, desafiou Mícon para lutar
com ele. Quando Eudemo impediu o nosso jovem académico de responder, o rufião gritou e saltou em triunfo.
Depois, pôs os dedos em forma de cornos em cima da cabeça e carregou contra nós.
- Sou um touro! - berrou. - Um touro, suas vacas! Vacas de merda! Vaca! - vociferou de novo para Mícon.
- Vais arrepender-te - disse Mícon, furioso. - O meu pai é Trasímaco, um homem muito importante que vai
dar-te uma lição.
- ”O meu pai é Trasso” - macaqueou o rapaz. - Olha, fedelho, o teu papá é uma vaca. Não é uma vaca
importante... só uma vaca. Boo!
O rapaz de pescoço grosso correu para nós várias vezes, batendo os pés e mugindo. Depois mudou de
brincadeira e começou a saltar, agitando no ar uma espada imaginária:
- A mim, homens! Quero ouvir o grito de guerra! Vamos com esta escumalha... ho! Sou Alexandre. Ha... boo!
Venço-vos a todos! Eu digo-vos como é, seus medos e persas!
O rapaz de cara de touro pavoneou-se ao nosso lado durante algum tempo, imitando a nossa maneira de andar
enquanto os seus companheiros aplaudiam. Carregou então outra vez, gritando:
- Sou Alexandre e mando em Atenas! Sou o vosso rei... Cobardes! Iáá!
Fez a Mícon e ao receoso Parménion uma careta pavorosa, torcendo a boca e arreganhando os dentes como a
máscara de um sátiro, e arregalando tanto os olhos que estes pareciam
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prestes a saltar das órbitas. Parménion empalideceu; Mícon e o seu amigo Dórcon tentaram libertar-se para
lhe bater. Os nossos alunos (incluindo Teodoro) desataram também a berrar tão alto como o bando de jovens
que se lhes opunha, e não me agradou que Teodoro ouvisse o que diziam (aimda que certamente fosse
aprender aquilo e muito mais quando ingressasse na escola).
- Sendo bem-nascidos, os nossos garotos não devem lutar contra este bando de sarnentos, mas não vejo razão
para não disciplinarmos estes pirralhos - disse Eudemo em voz alta.
- Tens razão - concordou Hiparco, ainda mais alto. Estão a precisar de umas boas chibatadas.
- Ou de umas bengaladas - acrescentou Eudemo. - Vamos experimentar, meus meninos? - Avançou para eles.
O rapaz de constituição de touro e os amigos afastaram-se, perseguidos pelas sugestões relativas à aplicação
profiláctica e à eficácia prática de bengalas e chibatas. Claro que estas ameaças não poderiam ser
concretizadas, porque os rapazes, embora vulgares e malcriados, deviam ser filhos de cidadãos. É muito grave
atentar contra um cidadão ou o filho de um cidadão agarrando-o ou batendo-lhe, a não ser que se tenha o
consentimento do pai (como no caso de um professor). Com os rapazes longe, o valente Mícon pôde libertar-
se finalmente das mãos dos mais velhos. Continuámos a andar e aproximámo-nos do local onde decorreria o
ritual da manhã.
- De quando data exactamente esta cerimónia? - perguntou Demétrio a Aristóteles.
- Bem, já era antiga no tempo em que Aristófanes escreveu As Nuvens... por falar nisso, devíamos ler a peça
hoje à tarde com os rapazes. O jovem Fidípides, que acredita ser muito mais sábio do que o pai, Estrepsíades,
despreza os mais velhos e os bons conselhos. Esta opinião é encorajada por Raciocínio Errado, que troça do
passado, referindo-se a ”estas velharias como as Dipólias, os alfinetes feitos de cigarras, as danças obscenas
de Cedeides e a Bufónia”. Hoje em dia, nunca usaríamos broches de cigarras, mas a Bufónia sobreviveu.
- Tal como algumas danças obscenas - observou Eudemo.
- Está a começar! - gritou Teodoro. Os acólitos dispunham trigo e cevada sagrados no altar de pedra.
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Um pequeno cortejo de quatro ou cinco bois entrou no espaço sagrado. Pareciam cansados e velhos. Já que
tem de se sacrificar um boi, faz sentido que seja um já perto do fim. Conduzidos pelos seus guardiães e
seguidos por dois sacerdotes de Zeus encapuçados, os animais começaram a dar voltas ao altar, como devia
ser até um deles resolver ser sacrificado. Por fim, um dos bois perdeu o medo, levantou a cabeça pesada e
cheirou a comida. Depois, estendeu o pescoço grosso e dócil por cima do altar de pedra e começou a comer os
cereais. Era o sinal. Um dos sacerdotes aproximou-se; o boi, feliz, continuava a comer. Um comprido fio de
saliva pingava-lhe da boca. O sacerdote encapuçado levantou um machado de bronze... e baixou-o. Bastou um
golpe. O animal caiu logo, soltando um mugido que foi o último. Tombou sem vida.
- Agora é a parte mais interessante - murmurou Aristóteles.
O sacerdote que desferira o golpe fugiu. (Fora aberto um caminho para que os espectadores não impedissem a
fuga ritual.) O outro pegou no machado e disse:
- Declaro que temos de procurar o perpetrador
deste assassínio. E o machado que cometeu o crime deve ser julgado. com o sacerdote e os acólitos do
santuário de Zeus
e entrámos no recinto do tribunal do Pritaneu. O machado apresentado num julgamento ritual.
- De quem é o machado? - Do homem que desferiu o golpe mortal.
- Onde está o homem que matou?
- ser procurado.
- Este é de certeza o machado que desferiu o golpe fatal? É
-
- Como sabes? - Vi com os meus próprios olhos. Peguei nele. Estava ao lado do corpo.
- Então, com o poder deste tribunal, a lei da cidade de Atenas e o direito do assassinado, condeno este
machado. Este instrumento deixa de ter direito a estar aqui e deve deixar Atenas para sempre. Condeno-o a ser
atirado ao mar e nunca mais ser visto. Que nenhum objecto assassino permaneça na nossa cidade.
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O machado foi levado para imediata execução da sentença. Claro, teria havido o mesmo tipo de julgamento
no Pritaneu se qualquer objecto inanimado houvesse matado uma pessoa. O objecto tem de ser julgado e
expulso da cidade mesmo quando mata um homem por acidente, como no caso de um vaso que cai ou de um
tijolo deslocado pelo vento. Seja o que for que mate um homem, está contaminado. Ainda há pouco tempo
houve um homem que morreu com o golpe de um malho. Pois o objecto de madeira foi condenado como
agora este machado. O que a Bufónia tem de extraordinário é que se trata apenas do ”assassínio” de um boi de
lavoura. No entanto, a morte (na realidade levada a cabo por toda a cidade) é tratada como um assassínio
privado e abominável.
- Não faz sentido - comentou Demétrio. - Bem, não faz sentido mas é uma distracção.
- Mas claro que faz. Parece-nos é estranho - retorquiu Aristóteles. - Hoje em dia, consideramos assassínio a
morte deliberada de um ser inteligente, um humano, levada a cabo por outro ser inteligente, também humano.
Este costume faz-nos perceber que nem sempre vimos as coisas assim. Parece que o ritual data do reinado de
Erecteu, no princípio dos tempos, quando Atenas começava a nascer. A melhor explicação que encontrei é que
a Bufónia comemora o momento em que os seres humanos decidiram não só domesticar os animais como
também matá-los... criá-los para os matar e comer. Mas talvez existisse antes qualquer coisa parecida com
este ritual, celebrando com tristeza a decisão de que o homem tem o direito de matar os animais para os
comer.
- E ainda nos sentimos culpados por isso - acrescentou Teofrasto. - É por isso que quero que os nossos rapazes
assistam à Bufónia: para que vejam bem o que fazemos. Tratamos os nossos animais como companheiros e
amigos e depois matamo-los e comemo-los. Conseguimos... quase todos nós... controlar-nos o suficiente para
não assassinarmos ninguém, mas matamos animais inocentes, mesmo os que nos servem, como o boi que
lavra os campos e nos ajuda a cultivar os cereais. Os pitagóricos têm toda a razão em proibir o consumo de
carne.
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- Vamos lá
ver o boi outra vez - sugeriu Mícon. Regressámos ao local do ”crime”. O boi já fora esfolado e o cadáver ou
carcaça encontrava-se agora num espeto, por cima de uma fogueira. Muita gente à volta, especialmente das
zonas mais pobres, aguardava com ansiedade o seu festim. O cheiro a carne assada começou a pairar sobre a
Acrópole. Estavam a usar feno e palha para encher a pele, ainda presa à cabeça e destacada da carcaça com
rapidez e habilidade. Enquanto a sua carne assava, o animal começou a reaparecer nesta imitação, uma boa
reprodução da sua altura e forma, mas não do seu movimento.
- O exemplo não podia ser melhor - começou Aristóteles. - Isto ilustra perfeitamente a diferença entre forma
enquanto entidade viva e apenas forma. Esta última não é suficiente: isto não é o boi. É um simulacro de vida
mas não tem os sinais da vida. A simples forma não faz a vida.
- E o que faz a vida? - perguntei por perguntar. Não apenas no caso deste boi, mas em geral? Qual é a razão de
uma coisa estar morta e outra não?
Aristóteles soltou uma gargalhada:
- Eis o mistério da vida, Estéfano. certeza que uma estátua... ou um cadáver...
A forma viva implica função e movimento. A vida é actividade concretizada materialmente.
O novo ”boi”, sem sinais de vida mas permanecendo em pé, foi preso, obedientemente inerte, a um arado,
como se os acontecimentos do dia tivessem sido uma simples brincadeira e pudesse voltar agora ao trabalho,
como na véspera.
- Olha o papá! - Mícon acenou a um senhor alto e digno, de pé com um pequeno grupo de amigos. Eram,
obviamente, pessoas importantes, com o seu séquito de escravos atrás deles. Estes amigos do papá de Mícon
incluíam, infelizmente, o cidadão Teosóforo do humor azedo, um homem que eu conhecia e de quem não
gostava. Mas estava lá também Euforbo, muito mais novo e bem-humorado, que eu não conhecia mas de
quem achava que gostaria. Trasímaco, o papá de Mícon, era um homem bem-nascido, de feições nobres e
severas. Ocupara alguns cargos públicos e fizera meia dúzia de
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discursos que tinham sido bem-recebidos, valendo-lhe o título de orador. Pertencia a uma das famílias mais
antigas de Atenas mas também era aparentado com o orador estrangeiro Trasímaco da Calcedónia, que
aparece nos diálogos de Platão. Deixando o seu grupo por uns momentos, este distinto ateniense dirigiu-se
cortesmente a nós:
- Bom dia, Aristóteles. Vejo que tomas conta deste meu traquinas de caracóis. Isto é folga ou trabalho?
- As duas coisas. Estudamos o ritual e a sua história.
- E Hiparco disse que hoje à tarde vamos ler As Nuvens acrescentou Mícon.
Sem comentar o facto de o sistema educativo de Aristófanes e a sua crítica satírica a Sócrates serem
convenientes ou não para os jovens lerem, Trasímaco respondeu com uma aprovação simples:
- Muito bem, muito bem. Gosto de ver preservados os verdadeiros costumes atenienses, como a nossa
Bufónia. E quem é esta gente? Conheço Teofrasto, mas não é verdade que não sei quem são estes professores
todos que trabalham na tua escola?
Aristóteles explicou que eu era só um amigo e apresentou o seu grupo: Eudemo de Rodes, Demétrio de
Faleros e os outros. Com ostentosa afabilidade, Trasímaco condescendeu em apresentar-nos aos amigos. Ia
começar por Euforbo (porque era o melhor nascido ou talvez o mais impaciente), mas Aristóteles
interrompeu-o:
- Claro que conheço o meu antigo aluno! - E Euforbo, rindo, disse ao mesmo tempo:
- Claro que conheço o meu velho professor! Querido mestre, como estás? - continuou, abraçando Aristóteles
afectuosamente. - Há quanto tempo! Como vai o Liceu? O que te ocupa agora o tempo: a política ou os
animais?
Sorrindo com afecto a Aristóteles, Euforbo compunha uma imagem muito atraente. Era ligeiramente
esgalgado, mas bem proporcionado. Devia ter um ou dois anos mais do que eu, mas a agilidade e a expressão
de felicidade asseguravam-lhe um ar constantemente jovem. O seu cabelo castanho formava aquela coroa de
caracóis apertados que atrai pintores e escultores.
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Euforbo tinha o porte aristocrático que chama sempre a atenção.
- Então que tal? - inquiriu, virando-se para nós. É como um drama ou uma paródia, não vos parece? - Tinha
um brilhozinho nos olhos. - Coitado do boi! É como um marido triste, velho e enganado. Parece-me ouvir
Clitemnestra dizendo: ”Dai-me o machado!”
Gostei de Euforbo: espirituoso, alegre e apreciando referências literárias, tal como eu. Ocorreu-me que se
calhar fora Aristóteles que lhe pegara o hábito de fazer citações e ironizar com elas.
- Mas tagarelo de mais - desculpou-se Euforbo. - Devia era apresentar a este grupo de letrados o sábio
Teosóforo, o distinto Mégacles de Atenas e outros admiradores e amigos de Trasímaco.
Os outros companheiros de Trasímaco eram, sem dúvida, de meia-idade, mas muito distintos; em comparação
com eles, o nosso grupo parecia sem cor e desmazelado. Teosóforo dignou-se falar quando me foi
apresentado:
- Já conheço Estéfano - disse, indicando que o pouco que me conhecia já vínha de há muito tempo.
- E este é Mégacles de Atenas - continuou Trasímaco. Mégacles tinha o cabelo curto, ligeiramente grisalho e,
no meio da cabeça, uma impressionante careca que começava a ficar vermelha devido ao sol do início do
Verão. Apesar do indesejável escaldão, tinha uma aparência distinta e apresentava-se muito bem vestido, com
um quíton de tecido fino. Cumprimentou-nos com ar aristocrático, cortês, confiante e sério (um senhor não
tem necessidade de sorrir aos seus inferiores).
- É uma grande satisfação para mim conhecer-te pessoalmente. Tenho ouvido falar muito de ti, ó Aristóteles
de Estagira. O teu trabalho é muito importante. Educar os nossos jovens atenienses é um grande privilégio e
uma enorme responsabilidade.
- Tens razão... sinto-o bem! - Aristóteles falava a sério. - Que poderia ser mais importante do que os cidadãos
do futuro?
Passámos alguns minutos dizendo banalidades. Trasímaco
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deu então umas palmadinhas na cabeça encaracolada de Mícon e perguntou se o rapaz podia ficar com ele à
tarde, prometendo levá-lo ao Liceu à noite. Pai e filho afastaram-se, rodeados pelos atentos escravos. O nosso
grupinho separou-se e nós, do Liceu, começámos a preparar-nos para partir. Aristóteles, porém, não tentou
fàzer prevalecer as doutrinas pitagóricas, pois autorizou os rapazes e os professores que assim o quïsessem a
partilhar a carne assada da praça antes de se irem embora. Teodoro não se ensaiou nada para reclamar o seu
quinhão.
E assim se passou o dia. Um dia que juntou o útil ao agradável. Todos tínhamos ficado a saber mais de um
velho costume ateniense. O tempo estava bonito e Atenas muito bela. Além disso, conhecêramos gente nova...
sobretudo 1eodoro, impressionadíssimo com os rapazes da escola, que aos seus dez anos pareciam muito mais
velhos e maduros.
Mas, na verdade, as coisas não foram assim tão agradáveis. Soubemos no dia seguinte que fora morto um
rapaz. Acontecera na costa e não propriamente na cidade de Atenas, o que era um alívio. Mesmo assim, era
um ateniense. Pelos vistos, a vítima era o rapaz que nos insultara e fizera caretas, gritando: Sou Alexandre!”
Este falso Alexandre, o rapaz de cara de touro, fora morto com um objecto estranho: encontrara-se ao lado do
corpo um machado antigo de bronze. Suspeitava-se que se tratava do machado que matara o pobre boi.
Aristóteles foi chamado a investigar e interrogou os sacerdotes responsáveis por atirar o machado ao mar,
obedecendo às ordens do julgamento ritual. Mas parece que, recentemente, se adoptara o costume de não o
atirar de uma vez por todas ao mar. Isto é, era lançado nos baixios e recuperado passados uns dias.
- É um machado antigo e valioso - explicou um sacerdote, em lágrimas. - Não podíamos dar-nos ao luxo de
perdê-lo. Não é a mesma coisa que matar uma pessoa! E só O usamos uma vez por ano. Depois de estar no
mar durante algum tempo, consideramo-lo limpo e recuperamo-lo.
Os sacerdotes e os seus assistentes tinham realmente atirado o machado ao mar. Mas, na verdade, haviam-no
lançado
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com cuidado do barco, depositando-o nos baixios, num local bem assinalado por eles. Como os sacerdotes já
iam para a mesma parte da costa há vários anos, qualquer um que tivesse curiosidade suficiente para
investigar o que faziam ao machado podia encontrá-lo com toda a facilidade. Mas como é que O objecto letal
regressara a terra e perpetrara um crime? Entre a gente do povo, havia quem falasse de um demónio sinistro
erguendo-se das águas com o machado na mão... À medida que o crime foi reconstruído, no entanto, pôs-se a
hipótese de que alguns jovens desconhecidos, provavelmente pobres e vivendo naquela zona perto do mar,
tivessem ”resgatado” o machado e brincado com ele, se calhar imitando a matança do boi, e desferindo um
golpe fatal no rapaz com cara de touro.
Como os pais do garoto eram pobres, não teriam direito a nenhuma compensação generosa, especialmente se
os criminosos também fossem pobres. Por isso, não puderam fazer mais nada. Embora negando qualquer
responsabilidade oficial, a cidade de Atenas deu-lhes, mesmo assim, algum dinheiro. Nenhum jovem se
apresentou a confessar o crime. O machado foi julgado de novo, desta vez por um homicídio a sério, e tornou
a ser condenado a ser atirado ao mar. A sentença foi executada com vigor e muitas pessoas assistiram à cena.
Mas o assassino desconhecido (ou talvez só homicida acidental) não foi julgado.
ENCONTRO COM UM MACACO
Eu pensava muito no futuro. Uma das questões mais importantes era o meu casamento, que depois definiria
uma grande parte da minha vida. Houvera uma altura em que esperara unir-me a uma família distinta,
tomando por mulher Cármia, filha de Calímaco, mas as coisas tinham dado uma reviravolta e encontrava-me
agora noivo da filha de um tal Esmicrines, que cultivava a sua terra perto da estrada para Elêusis. Esmicrines,
cidadão ateniense, nem era de modo nenhum distinto nem uma pessoa simpática; na verdade, o seu
temperamento desagradável era conhecido em toda a região. Mas eu fizera-lhe um pequeno favor e caíra-lhe
no goto. Conhecera a filha graças às coisas estranhas e calamitosas que nos acontecem quando viajamos, mas
claro que tinha de continuar a fazer de conta que não a vira para não lhe manchar a reputação. Filomela, filha
de Esmicrines, era agradável, doce, bem-educada e bondosa. O casamento já não me parecia uma tarefa difícil
e pesada.
Discutira o casamento com Esmicrines quando eu e Aristóteles regressávamos de Delfos na Primavera.
Tínhamos iniciado um longo debate relativo ao dote, mas não ficara nada assente em definitivo. Desde essa
altura que trocávamos mensagens. Segundo o costume e a prática ateniense, eu ainda era novo para casar: a
idade mais própria eram os trinta anos e eu ainda ia fazer vinte e seis. Mas o casamento era uma das poucas
maneiras imediatas de ajudar a minha família, associando-me a outro cidadão e proprietário de terras. Era,
portanto,
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chegada a altura de me mostrar outra vez a Esmicrines. Como queria parecer respeitável, levei comigo um
escravo e um burro carregado de presentes.
- Olha quem ele é! Afinal apareceste outra vez! - A primeira observação de Esmicrines não foi lá muito
amável.
- Mas claro - retorqui o mais calorosamente que pude.
Tentava parecer calmo, masculino e bem-nascido, mas a jornada fora quente e suada. Vi com satisfação que o
mal cheiroso esterco amontoado à frente da porta diminuíra um pouco, sem dúvida porque Esmicrines o usara
no cultivo da terra. Ó Esmicrines, temos de conhecer-nos melhor um ao outro!
- Talvez, talvez - respondeu ele num tom de dúvida. De momento, tenho muito trabalho.
- Deixa-me ajudar - prontifiquei-me. - O meu escravo também pode dar uma mão.
- Não sei se quero estranhos aqui. Provavelmente ias fazer tudo mal. Mas as coisas vão bem... em geral.
Temos uns porquinhos na engorda e um bezerro novo. Anda ver.
Esmicrines estava satisfeito por ter alguém a quem mostrar a quinta, inegavelmente muito bem tratada,
embora na verdade fosse boa ideia haver alguém para ajudar no trabalho. Estava eu a pensar cá comigo como
havia de abordar o assunto com tacto, quando nos dirigimos para casa.
- O tempo está tão bom que podemos sentar-nos cá fora - sugeriu ele. - Talvez Filomela tenha arranjado
alguma coisa para comermos. Não é que cozinhe muito bem... sinto-me envergonhado por apresentar a um
hóspede tão distinto o que ela faz, mas é o melhor que tenho.
Como reconheci nas suas palavras a modéstia, o tacto e as boas maneiras usadas em sociedade, repliquei
elogiando os bolos de aveia, rolos de couve, queijos e doces obviamente preparados para a ocasião. Foi a
velha criada que nos serviu. Pressenti a presença de Filomela atrás da porta da cozinha e fiz votos para
conseguir vê-la. Já sabia que ela era adorável: tinha olhos cinzento-esverdeados e o cabelo castanho, com
reflexos cor de bolota. ”Quando for minha mulher, não trabalhará pensei. Mas claro que não o disse a
Esmicrines, que estava mortinho por começar a negociar.
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- Bem, suponho que vais querer casar-te em Gamélion, como toda a gente, embora não seja nada agradável
andar pelas estradas no Inverno. Na verdade, não sei se posso ir...
- Ó senhor, tens de vir... a minha casa ficaria desonrada para sempre se não viesses. A noiva tem de ser levada
a casa da família do marido na presença de todos os seus parentes. Vai ser um lindo cortejo.
- Os lindos cortejos de pacotilha custam dinheiro, como verás ainda antes de chegar a velho. E de certeza que
vai chover! Tanta roupa fina deitada à rua! Filomela ainda se constipa. O frio ataca-lhe o peito e terás o prazer
e a despesa de a enterrar em vez de dormires com ela. Oh, que triste ver a minha filha, a minha única filha,
baixar à terra antes de mim!
- Não penses em coisas tristes - protestei com suavidade. - A minha família vai gostar muito de a ver. Garanto-
te que a tratará com todo o carinho.
- Pois, mas vou perdê-la, o que é um osso duro de roer. Terei de arranjar um dote e perderei uma trabalhadora.
Quem vai ajudar-me na quinta?
- Já pensei nisso. Deixa-me dar-te um escravo para te ajudar. Posso fazer isso na altura do casamento e...
- Escravos! - Cuspiu no chão. - Quero alguém da família, um cidadão a sério, alguém que se interesse. Não sei
o que pensaram os deuses para não me darem filhos homens... que maldição! E outra praga é a selvagem da
minha mulher, que me abandonou.
- Quem é ela? Onde está? - perguntei de supetão, embora andasse há muito tempo a pensar como poderia
fazer estas duas importantes perguntas. - Suponho que é viva?
- A minha mulher? Que vagueie muito tempo nas margens do Estige e não tenha uma moeda para pagar a
travessia quando chegar a sua hora! A minha mulher é viva e floresce. Pelo menos florescia, da última vez que
soube dela.
- Disseram-me que ela... não sei o nome nem a família... te deixou e foi viver com o filho do primeiro marido.
- Não acrescentei que o meu informador fora um rapazinho que estava de visita a uma casa das redondezas na
altura em que conheci o irascível lavrador.
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- Não sei como se espalham tantas mentiras. Chama-se Filonice e é filha de Filonico do Himeto, um homem
bem-nascido e com propriedades. É verdade que já fora casada antes, mas não por muito tempo, porque o
marido morreu no mar. Não teve filhos desse primeiro casamento. Ainda era nova quando nos casámos: tinha
cerca de dezassete anos e eu mais de trinta e cinco. A minha mulher, Filonice, deu-me uma filha, Filomela -
fez um gesto na direcção da cozinha -, de pois teve um filho que nasceu morto e a seguir deu à luz um rapaz,
que morreu passado pouco tempo. Era um bebé, nunca recebeu o seu khoes.
Assenti. As crianças têm direito a uma comemoração especial quando chegam aos três anos. No festival da
Primavera, as Antestérias, cada uma recebe um khoes ornamentado, um recipiente que comemora o facto de a
criança ser viável e poder considerar-se uma pessoa dali em diante. O irmão de Filomela, tal como tantos
outros, morrera na primeira infância.
- Não é invulgar os bebés morrerem assim tanto - disse Esmicrines, concordando com os meus pensamentos. -
Mas Filonice ficou muito mal. Depois, calou-se: não falava nem comia... uma inútil. O pai dela veio buscá-la
e levou-a para casa ”por uns tempos”, ”até ficar boa”. Suponho que nunca se achou recuperada, porque nunca
mais voltou. Embora o pai já tenha morrido, continua em sua casa.
- Mas... - comecei. - Podias divorciar-te e casar e Talvez tivesses então mais filhos...
- Eu sei. Já quase o fiz - continuou. - Quando era novo, vigoroso e suficientemente estúpido. Não vou casar
outra vez, nem penses. O pai dela não tinha o direito de a levar, pois deu-me uma filha viva. Podia tê-lo
levado a tribunal, exigindo-a de volta. No entanto, nunca soube que dormisse com mais nenhum homem.
Suponho que sempre achei que regressasse. Qualquer dia”, pensava eu, ”recebo uma carta a dizer: ”Chego
daqui a três dias com uma caixa de roupa nova. Beijos, Filonice.”” Mas não, nada disso. Foi uma tonrice da
minha parte ter casado fora do meu demo. Se ela fosse filha de algum vizinho, estaria mais à mão.
A história dava muito que pensar: e se a mulher fosse louca
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e a loucura uma doença de família? Era uma possibilidade desagradável. Por outro lado, não querer viver com
Esmicrines não era sinal certo de insanidade. Pelo menos, não era divorciada: acho que não conseguiria
decidir-me a casar com a filha de uma mãe divorciada. Filonice portara-se muito mal, de facto. Mas o seu
comportamento lamentável era talvez culpa dos pais... e falta de persistência, para já não dizer de afecto, da
parte do marido. Para Filomela é que devia ser duro ter sido abandonada assim. Mas se calhar tivera sorte por
não ser obrigada a conviver com uma madrasta.
- Devia ir ver a tua propriedade - disse Esmicrines. Não a tua casa da cidade, mas a tua quinta.
- Claro - retorqui. - Temos oliveiras excelentes. O resto está talvez um bocado abandonado. Precisamos de
reparar alguns edifícios. Quem toma conta da propriedade é o meu criado Dametas e a mulher, Tamia. São
fiéis e cuidadosos. Mas já estão muito velhos e trémulos. Tenho de arranjar mais alguém... mas claro que lhes
dou casa e que eles continuam a fazer o que podem.
- Pois, quando são abandonadas, as quintas vão-se degradando. Se não temos cuidado, depressa ficamos sem
nada. Bem, mas eras muito novo e ignorante para fazer grande coisa quando o teu pai morreu. E pelo menos é
terra ateniense. Isso é o mais importante. Mas há outro filho homem, não é?
- É. O meu irmão mais novo, Teodoro. Não sou o único herdeiro e ele tem de estar sempre amparado -
expliquei. Era melhor pôr tudo preto no branco. Teodoro teria sempre direito à propriedade da família. -
Espero que não tenha de se preocupar com estas coisas como eu. E muito mais novo. Uma criança.
- Ah, bom, quanto mais rapazes melhor. É mais um par de braços para ajudar. - Esmicrines não parecia
descontente. - Se calhar até é melhor para a minha filha... se te acontecer alguma coisa, e como não tem
irmãos... percebes? Mas... - acrescentou em tom pensativo, olhando a distância -... nunca pode faltar nada a
Filomela e aos filhos.
- Claro! - exclamei.
- Gostaria que arranjássemos as coisas de maneira a que
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os seus filhos ficassem com a minha propriedade, aconteça o que acontecer. Se tu morreres, e visto que o teu
irmão tem parte da propriedade, então ele e Filomela podiam dividir a casa de Atenas. Quer dizer, ele
arrendava a nossa parte e dava-lhe os lucros ou vivia com ela e pagava-lhe a metade que lhe cabe.
- Vou pensar nisso - repliquei com cuidado. - Parece-me justo que os teus netos herdem a tua terra. Quanto às
despesas imediatas, posso dispensar já algum dinheiro da venda do azeite excedente do ano passado... para os
lençóis, alguma mobília nova e uma festa de casamento. Creio que posso garantir comida e roupa a Filomela e
aos filhos.
- Bem, a minha filha e os pequenos não precisarão de roupa enquanto eu for vivo, faças tu o que fizeres. Disso
podes ter a certeza. E... não quero fixar já uma quantia, mas acho que posso prometer-te um bom dote. No
entanto, quero segurança, percebes?
- Com certeza - anuí. - Posso transferir parte da terra do mesmo valor do dote.
- Isso... e tem de ser terra que não é herança nem inalienável, mas que possa ser vendida com facilidade. Se
morreres ou te divorciares dela, ou se ela morrer e deixar filhos, ficaremos garantidos. É sempre melhor jogar
pelo seguro. É por isso que quero ver a tua propriedade antes de adiantar números. Preciso de me certificar de
que tens alguma coisa boa para oferecer. Vê lá, não vás chamar campo a um terreiro coberto de pedras!
Negociar com o meu futuro sogro era um desafio à minha calma, mas engoli em seco e tentei parecer o mais
amável possível.
- É uma pena que ela não possa deitar a mão ao dinheiro da mãe! - exclamou Esmicrines, seguindo os seus
pensamentos. - Ainda me deviam dinheiro do dote, mas tiveram o descaramento de insistir que não, porque
ela regressara... embora não estivesse divorciada, como te disse. E a família tem posses. Alguns dos seus bens
deviam ser para Filomela. Têm uma bonita propriedade no Himeto, e o pai da minha mulher ia muito bem.
Como este avô materno de Filomela já morreu,
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ela devia herdar parte do que ele deixou. Aquela gente do Himeto tem dinheiro, podes ter a certeza!
- Porque não pediste o que lhe cabia por herança? perguntei, um tanto surpreendido.
- Pensei nisso, mas nunca tive tempo. A cidade não é para mim.
- Mas, como cidadão, vais à Eclésia, não? - indaguei.
- De vez em quando. Mas diz-me uma coisa: é razoável esperar que quem trabalha a terra largue tudo de dez
em dez dias e palmilhe tantos estádios até à cidade só para ouvir um bando de cidadãos aperaltados? Fico logo
cansado mesmo quando são grandes oradores como Demades, Demóstenes ou Hiperides. E verdade que agora
nos pagam para lá ir, mas mesmo assim não vale a pena. E a cidade é tão suja e barulhenta! Cheia de carroças
e lixo!
Fiquei um tanto espantado com esta descrição, mas tenho de admitir que nunca tinha pensado no peso da
cidadania para a gente do campo.
- Quanto à lei, o serviço de júri já chega - continuou Esmicrines. - Não me apetece meter-me em acções
judiciais, pois isso implica ter de contratar retóricos... e perder dias e dias em Atenas, arengando pelos
tribunais. Eu não! E às vezes não é nada bom para a reputação de uma pessoa nem da família. Imagina termos
de contar os nossos problemas à cidade toda! Mas tu és novo e tens instrução. Com os da tua laia, é só
conversa e nada de trabalho. Talvez te saias melhor do que eu. Mas não tenhas pressa.
- Realmente, devia tentar - concordei. - Onde tenho de ir?
- A minha mulher Filonice vive onde o pai viveu, na encosta ocidental do Himeto. O pai dela já morreu, como
te disse, mas apareceu outro homem, que desposou a mãe e vive com ela como se fosse o dono da terra! Na
verdade, este padrasto não manda nada, porque Filonice tem um irmão chamado Fílocles. Não me lembro
bem de onde está nem do que faz. Não o vejo sei lá desde quando.
Era uma novidade. Se a mãe de Filomela tinha um irmão, então este tio era da maior importância. Chefe da
família, tinha
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uma relação quase parental com a irmã, Filonice, e, de certa forma, com a própria Filomela. Este Fílocles
devia ser informado do casamento o mais cedo possível. Talvez se mostrasse desagradável e relutante em
deixar sair da família uma parte do dinheiro que tinha, mas a lei e o costume atribuíam-lhe certas obrigações
face à sobrinha. Na verdade, eu devia tentar falar com ele.
Entretanto, combinei com Esmicrines uma visita à nossa quinta e uma ida à casa da cidade, para ele poder vê-
la e conhecer o meu irmão.
- Ainda temos muito que falar - disse Esmicrines. Mas parece-me que agora podemos marcar o noivado
formal para... digamos, Boedrómion? No fim do Verão. Por essa altura, estou em condições de dizer o
montante exacto do dote e já devemos ter combinado tudo entre os dois. Não haverá então qualquer obstáculo
ao casamento.
Parecia-me bem. No engye formal, o pai da rapariga entregar-me-ia a filha, colocando-a sob a minha
protecção e, como é costume entre as melhores famílias, anunciaria ao mesmo tempo o montante do dote.
Depois deste anúncio público e formal, não podíamos voltar atrás. Começar o Outono com esta declaração
parecia-me uma boa ideia, e havia muito tempo para combinar o casamento. Ainda tinha de convencer a
minha mãe. Era verdade que ia desposar a filha de um cidadão de Atenas, nascido num demo ateniense. Isso,
pelo menos, contava em abono do casamento. Mas a minha mãe ia ficar desiludida por eu não contrair laços
matrimoniais com a filha de um dos nossos cidadãos mais abastados, morando numa das zonas mais nobres
de Atenas. Ao contemplar a paz do Verão no campo, no entanto, senti que valia a pena... e mais ainda quando
entrevi o cabelo e o rosto de Filomela atrás da porta.
As coisas não foram muito mais longe dessa vez, embora tenha ficado dois dias em casa de Esmicrines. Os
presentes foram aceites de boa vontade. Eu não me esquecera nem sequer de Geta, a velha criada e antiga ama
de Filomela: são pessoas que podem ser muito úteis. Parti por fim para casa; o animal de carga ia muito mais
leve, mas o meu coração não. Dei uma
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folga ao burro e parti a pé com o meu escravo, que na verdade tinha jeito para os animais: o burro trotava
docilmente ao seu lado. Era uma espécie de compensação pela sua falta de esperteza e habilidade manual.
Perdera um bocado de um dedo; por felicidade, não tinha nada nas pernas, e era bom a fazer recados.
Quando chegámos a Atenas, mandei-o regressar à quinta com o burro e continuei sozinho rumo à ágora. No
fim da tarde, quando o sol é menos sufocante, as pessoas saem à rua a ver o que há para ver. Mas ainda estava
calor. Era o tipo de dia em que os cães andam pelos edifícios públicos em busca de um chão de mármore onde
possam deitar-se no fresquinho e não arranjam melhor sítio para descansar do que algum elegante pórtico ou
os degraus de um templo. Fora ali vaguear para saber novidades, mas o cheiro de uma das lojinhas de comida
atraiu-me a atenção e decidi comer alguma coisa. Estava debruçado na mesa, cismando nos meus assuntos,
quando O vigor da multidão e o calor de uma conversa atrás de mim me obrigaram a deixar os meus
pensamentos de lado.
- Os impostos ainda nos matam! - resmungava um cidadão de cabelo grisalho para um amigo, um
homenzinho enfezado que pareceu concordar. Mas um terceiro, uma criatura forte e careca, tomou a palavra:
- Não, os impostos são a maneira de voltar a fortalecer a nossa cidade. Foram eles que nos permitiram ter
muralhas e navios de guerra novos. Se não queremos estar sob o jugo da Macedónia, temos de pagar impostos
e cara alegre. E o que Atenas faz: nesta Primavera, ficámos a ver Antípatro esmagar os Espartanos.
Foi nesta altura que olhei para o grupo, pensando que aquilo era um atrevimento num sítio onde podia haver
emissários de Antípatro ou outros simpatizantes (para não dizer espiões) macedónios.
- Ora, Apolónio! Que disparate! Ninguém paga impostos de cara alegre - retorquiu o homenzinho, cujos
caracóis escuros sobre a testa pareciam a plumagem de um pássaro. Mas pagamos... esperando que Atenas
volte a ser grande e temida.
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- É só pensarmos na riqueza e nos tesouros de Alexandre - replicou o ousado Apolónio. - A riqueza de
Persépolis! Agora dizem-nos que incendiou Persépolis e guardou tudo na Babilónia.
- Esta confusão e a necessidade de impostos altos devem-se aos desejos ridículos de uma família que se diz
”real” - tornou o homenzinho de caracóis escuros sobre a testa. - Uma família bárbara lá da Macedónia.
Houve tempos em que se discutia se os Macedónios podiam participar nos Jogos Olímpicos. Cá para mim,
não são nada gregos, por mais que se pavoneiem.
- Oh, mas não, são tão gregos! - riu outro homem que se juntou ao grupo. Reconheci Euforbo, o esgalgado e
alegre antigo aluno de Aristóteles, que o saudara calorosamente na matança do boi.
- Como dizes?
- Devem ser... esforçam-se tanto por ser gregos - explicou Euforbo, continuando: - O nosso Alexandre
percorreu as muralhas de Tróia para imitar Aquiles derrotando Heitor. Não é comovente? Alexandre faz tudo
para ser grego... anda com as obras de Homero numa caixa. É mais helénico do que Helena. Coitado, tem de
segurar bem a caixa para não perder a cultura.
- Tens razão quando dizes que ele não é um homem da Ática - concordou o careca. - Atenas tem de voltar a
afirmar-se. A Liga de Atenas devia ter sangue novo. Podíamos suportar o nosso governo e proteger os nossos
colonos com o dinheiro das ilhas e cidades libertadas. Se vai haver um império, que seja de Atenas e não da
Macedónia. Os Atenienses não têm reis. O jovenzinho da Macedónia que vá para Péla dizer que é ”real” no
seu buraco.
- É revoltante a maneira como estes estrangeiros estão a tomar conta da nossa cidade - acrescentou um
cidadão mais novo, juntando-se ao grupo na peugada de Euforbo. Reconheci o recém-chegado, um homem
solene com atitude de sacerdote: Eurimedonte era alto, de corpo frágil, rosto bonito como uma máscara, olhos
muito grandes e nariz direito. Tinha o porte de um aristocrata, mas o rosto distinto, sensível, rígido e sério
parecia mais o de um poeta trágico... embora, que eu
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soubesse, não o fosse. Era um homem muito importante, membro dos Eumólpidas, um dos clãs mais antigos.
Os descendentes de Eumolpos guardam o templo e os rituais de Deméter e Perséfone em Elêusis. Ninguém
pode participar nos mistérios sem a presença de um eumólpida, e os sacerdotes de De méter pertencem a este
clã, que tem alguns membros muito religiosos... mas nem por sombras todos. - O que dizes é verdade -
continuou com a sua voz clara e precisa. - Estes homens da Macedónia que se dizem ”reais” são gente
comum, mesmo quando bem-tencionados. Encorajam a presença de outros estrangeiros e enfraquecem os
nossos costumes, religião e vida política. Nós, Atenienses, devíamos resistir aos seus modos insidiosos. Não
concordas, Hiperides?
Virei-me ao ouvir a pergunta, pois o homem que agora se juntava ao grupo era uma pessoa conhecida.
Hiperides, o famoso orador, já tinha mais de sessenta anos. Era bastante velho, mas tão activo que parecia
mais novo. Os moralistas dizem que muito sexo pode prejudicar a saúde e apressar a velhice, além de nos
dilapidar a fortuna, mas Hiperides conservava tanto a saúde como a fortuna apesar de manter três belas
amantes ao mesmo tempo (desde que a esposa morrera). Era impressionante, se bem que de feições nada
doces (mas o facto é que as mulheres pareciam gostar bastante). Hiperides era facilmente localizável, mesmo
no meio de uma multidão: muito alto, o rosto e as orelhas compridas (como as asas de um vaso decorado)
destacavam-se acima das cabeças dos outros homens.
Na mocidade, estudara com Platão. Ao princípio, escrevia apenas os discursos dos outros, mas depois ficara
famoso como intercessor e até orador. Opusera-se aos Macedónios e perseguira os seus apoiantes no tribunal
ou defendera os simpatizantes antimacedónios. No entanto, Hiperides não era azedo e sarcástico como
Demóstenes, e sim um homem alegre e jovial, que conquistava as pessoas (dentro e fora do tribunal) com a
sua afabilidade e fraquinho por uma boa piada.
- Não é verdade aquilo que Eurimedonte diz, Hiperides? o careca. - Temos de afastar o jugo da Macedónia,
tanto em pensamento como na prática.
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- Agora é
tarde - retorquiu Euforbo, dirigindo-se gravemente a Hiperides. - Atenas foi esmagada... Demades tinha razão
ao dizer que Atenas perdeu um olho quando Tebas foi destruída. Ágis e os seus espartanos cobriram-se de
glória e o rei morreu como um herói no campo de batalha. E nós? Ficámos sentados nas nossas casas a falar
do tempo. Atenas curva-se aos governantes divinos da Macedónia.
- Não - replicou Hiperides. - Estes governantes são simples mortais. Repararás que, apesar das homenagens
prestadas ao rei Filipe e desta moda de lhe chamar ”imortal”, a verdade é que, agora, não passa de um mero
cadáver. Digo-te que nunca nenhum tirano caído se ergueu dos mortos; no entanto, já houve muitas cidades
aparentemente destruídas que recuperaram o seu antigo vigor.
- Mas como podem resistir os atenienses patrióticos? inquiriu o careca. - Tu, Hiperides, exortaste-nos a armar
os escravos e os residentes estrangeiros! Mas isso seria ir contra a constituição. Tal como, outrora, nos
libertámos da tirania, temos de arranjar uma maneira própria de resistir. Talvez Harmódio e
Aristogíton nos mostrem o caminho!
O patriota careca fez um gesto na direcção do famoso grupo de estátuas. Claro que não se viam do sítio onde
estávamos, porque a estrutura do novo templo de Apolo (que finalmente estava a ser reconstruído) tapava-nos
a visão. As famosas estátuas de bronze lembravam os dois heróicos jovens que (gerações antes) tinham
assassinado um tirano. O jovem Harmódio aponta a espada ao tirano enquanto Aristogíton, mais velho e mais
forte, segura a espada por cima da sua cabeça, pronto a decapitá-lo. É um conjunto muito agradável... e ainda
mais porque o escultor não se deu ao trabalho de reproduzir o homem que está prestes a ser morto, poupando-
nos assim a apiedarmo-nos dele.
- Bem, não devemos esquecer que são apenas cópias comentou Euforbo. - Os Persas roubaram as verdadeiras.
Mas agora Alexandre vai mandar-nos as originais de Persépolis. Não é amável? Acho o gesto muito
agradável... não são muitos os tiranos que têm assim consideração pela oposição
Euforbo passou os dedos pelo cabelo e fez uma expressão diferente, uma máscara rídícula de vaidade e
presunção:
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- ”Cidadãos de Atenas, eu, Alexandre Magno, o milagre dos Helenos...”, é o que ele se acha,
”...universalmente enaltecido maravilha entre os jovens, ofereço-vos.., ofereço-vos de graça, sem custos
adicionais... um objecto que é uma lição: primeiro, matai o tirano... se conseguirdes chegar-lhe!”
- Estás sempre a brincar, Euforbo - ralhou o cidadão careca.
Euforbo encolheu os ombros e tirou da manga um par de dados de ouro:
- Não podemos estar sempre sérios. Deixemos a política e joguemos aos dados... assim pelo menos alguns
podem ganhar. Vai uma aposta? - Os dados de ouro giraram no ar e brilharam à luz quente do Sol.
- Desembaraçámo-nos dos tiranos antes e podemos voltar a fazê-lo! - agitou-se Apolónio. - E vamos libertar-
nos dos que aceitam subornos da Macedónia para trair o seu país!
- Calma, Apolónio - disse Hiperides. - Nada de violência, peço-vos. Mais cuidado com o que se diz, meus
senhores. Quanto aos subornos de qualquer tipo, a Eclésia e todos os bons cidadãos sempre foram contra.
- Ó Hiperides - começou Eurimedonte -, não são só os homens da Macedónia que estrangulam Atenas, e sim
os estrangeiros de todos os tipos. Já é mau que a cidade seja metida no mesmo saco dos outros estados gregos
com essa Liga que Filipe cozinhou em proveito próprio. Vê como estamos a ser invadidos por cirenaicos,
fenícios e o resto... assim como mendigos, que chegam vindos dos territórios reconquistados da Ásia.
- E comerciantes... fenícios. Escumalha egípcia! - atirou o homenzinho de caracóis escuros em voz colérica. -
Na minha opinião, temos de nos desembaraçar deles todos, Hiperides!
- Não pode ser - volveu-lhe Euforbo. - Sabes muito bem disso, Epícrates. Há muitos atenienses que adoram os
perfumes egípcios, não é verdade? Nunca nenhum de nós deu um presente bem cheiroso a uma amante Ou... -
virando-se para Epícrates -... a um rapazinho, escravo ou livre?
- Mas há-de fazer-se justiça - teimou o homenzinho
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chamado Epícrates, corando muito. - Há-de fazer-se justiça! Hiperides está a ajudar-me contra aquele porco
egípcio e a prostituta que arranjou para me tentar! Rua com toda essa canalha!
- Isso é comigo, meus senhores? - Um outro homem aproximara-se do grupo. Ao contrário do amontoado de
sérios oradores políticos, parecia satisfeito e bem-disposto. - Somos canalha?
Virei-me e percebi porque usava o plural. O recém-chegado não estava sozinho: tinha ao ombro um macaco,
por sinal nada pequeno.
- Somos canalha? - Falava em voz alta e afectada, como se quisesse imitar um discurso imaginário do
macaco. - Pois que grupo tão canalha... palavra que alguns até cheiram mal!
Como o macaco estava nesse momento a fazer uma careta, palavras condisseram muito bem com a acção. O
animal tirou uma peça de fruta do saco do dono e começou a comê-la, deixando escorrer o sumo.
- Que animal tão grande e mal-educado! - exclamou alguém ao meu lado. Era Teofrasto. - Saudações,
Estéfano acrescentou. - Ainda bem que te encontro. Tenho de falar contigo...
Foi interrompido pelo macaco, que lhe cuspiu para a cabeça um pedaço de polpa molhada. O dono soltou uma
gargalhada. Teofrasto tratou logo de limpar a cabeça com a ponta da capa, que ficou imediatamente manchada
de sumo de fruta. Apesar da arrogância do animal e do azar de que fora vítima Teofrasto, o dono do macaco
pareceu ficar na mesma. Era um homem de aspecto agradável, com o cabelo bem tratado, os dentes brancos e
limpos e a capa de boa qualidade. Naquele momento, o cabelo bem tratado estava a ser alvo da baba do
macaco. O animal saltava-lhe nos ombros: todos os olhos estavam certamente em cima dele. Tendo
conseguido a nossa atenção, o macaco mostrou-nos o corpo com o que parecia ter orgulho.
- Parabéns, Cálias. Acho que nunca vi nenhum tão grande - disse Teofrasto com secura.
- Ahh! - riu Cálias, acariciando o bicho. - Não se arranjam
58
muitos como este. Veio de longe, para lá do Egipto. Os negros levam-nos para o Egipto, até para a nova
cidade que Alexandre está a construir. É lá que se compram.
- Que o teu administrador os compra, queres tu dizer interrompeu Epícrates com azedume. - Tinha-me
esquecido do teu negócio por esse mundo, transportando mel do Himeto para o Egipto, coisas persas para
Atenas e por aí fora.
- Agora há bons mercados - anuiu o dono do macaco. Até melhores desde que as cidades libertadas da Lídia e
da Jónia acalmaram. Um grande volume de negócios. No estrangeiro, pagam bem por todo o tipo de coisas.
Cães, por exemplo. É incrível como os cães são procurados. Então os espartanos! E os de Melita também...
quer dizer, não do meu demo, mas da ilha.
- Melita... que nem sequer é grega! Uma ilha onde os fenícios e os comerciantes de Cartago parecem
formigas!
- Mas tem bons cães. De ossos finos, delgados e pequenos. Foi por isso que chamei Galhinho à minha.
Sentava-se no meu colo. Acho que conhecem o meu cão... cadela preferida de Melita...
- Como está ela? - perguntou Euforbo com delicadeza. Enquanto falava, brincava com os cintilantes dados de
ouro, fazendo-os girar nas costas da mão sem sequer olhar para eles. Devemos sempre inteirar-nos
solicitamente da saúde das cadelas dos amigos.
- Infelizmente, a pobre Galhinho morreu. Uma tristeza. Enterrámo-la com toda a pompa no jardim. Mandei
fazer-lhe uma bonita pedra tumular. Tens de vir vê-la. Diz assim:
Adeus, minha querida.
O teu amo entrega às sombras a sua Galhinho.
Aqui jaz um pedaço de Melita.
- Muito comovente.
- Quando fazes uma coisa, fá-la bem feita - observou Apolónio. - Não fizeste recentemente uma oferenda a
Asclépio por causa do teu dedo grande do pé? Nunca vi bronze de tão boa qualidade nem um dedo tão
perfeito.
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- Ora, uma insignificância - riu o homem do macaco. O animal levantou-se de repente e saltou-lhe dos ombros
para o chão, onde se pavoneou como um sátiro, abanando o comprido pénis. Entretanto, juntara-se uma
pequena multidão, que soltava gargalhadas e gritos de encorajamento:
- Cuidado, Euforbo... parece que o teu traseiro o atraiu!
- Quanto lhe pagas para fazer o trabalhinho em casa, Cálias?
- Ei, o bordel fica aqui perto! Pede a esse senhor que vá lá. Tem mais para oferecer às raparigas do que muitos
clientes!
- Anda, Teseu. - Cálias abanou a pequena corrente de ouro (seria de ouro puro?) e começou a atravessar a
ágora. O macaco resistiu, deitando-se, mas a corrente fez com que fosse arrastado atrás do seu apressado
dono. O animal vingou-se uma última vez. Ao pôr-se em pé, urinou copiosamente, salpicando quem pôde,
incluindo a multidão de espectadores, que foi apanhada desprevenida. O bicho pareceu ficar muito satisfeito
quando viu toda a gente a praguejar e a fugir. Depois, afastou-se com ligeireza, trotando atrás do dono e
fazendo caretas.
- Que bicho horrível! - exclamou Teofrasto. - Já houve grandes aristocratas e generais na família de Cálias.
Agora, olha ao que chegou: um homem que pavoneia cães e macacos!
- Bem, é mais feliz do que os que estavam com ele retorqui. - Muitos daquela família foram ricos e... no
mínimo, bem-dispostos. Um dos antepassados de Cálias não tinha fama de muito extravagante antes de ser
general? Não chegou mesmo a ser acusado de sacrilégio?
- Sacrilégio? Que sacrilégio? - Era o grave cidadão Teosóforo, que eu tentara evitar no dia do assassínio do
boi. Tinha razões para acreditar que não gostava de mim, e fiquei surpreendido quando se me dirigiu
formalmente, ignorando Teofrasto: - Bom dia, Estéfano, filho de Niciarco. - Retribuí-lhe a saudação,
esperando que seguisse o seu caminho, mas ele continuou: - Sacrilégio... palavra terrível. Todos devíamos ter
cuidado. A nossa segurança depende de evitarmos constantemente semelhante ultraje. Tu, ó Estéfano, andas
com filósofos, que nem sempre são imunes a uma tal acusação. Os
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Aristóteles e os segredos da vida
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Aristóteles e os segredos da vida

  • 1. Margaret Doody Aristóteles E os Segredos Da Vida Tradução de Maria Nóvoa Círculo de Leitores
  • 2. Ttítulo original ARISTOTLE AND THE SECRETS OF LIFE Capa João Rocha ISBN 972-42-3164 789724 2316481 Copyright © 2003 by Margaret Doody Impresso e encadernado para Círculo de Leitores por Tilgráfica, SA Rua da Amarela - Ferreiros, Braga em Abril de 2004 Número de edição Depósito legal número 207 164/04
  • 3. Este romance é dedicado a BEPPE BENVENUTO, o ”homem-ressurreição” e a ROSALIA COCI, ”la tradutrice incomparabile”
  • 4. LISTA DE PERSONAGENS FAMÍLIA E conhecidos DE Aristóteles e EStefano Aristóteles, filho de Nicómaco: filósofo de Atenas, 54 anos. Pítia, filha de Hérmias de Atárnea: mulher de Aristóteles Pítia a Nova: filha de Aristóteles, quase 6 anos. Herpílis: escrava que cuida da jovem Pítia. Foco: chefe dos escravos de Aristóteles, eficiente e responsável. Olimpo: segundo escravo de Aristóteles. Calístenes: sobrinho de Aristóteles, cronista de Alexandre. Estéfano, filho de Niciarco: cidadão de Atenas, quase 26 anos; tenta melhorar de vida e casar. Eunice, filha de Diogíton: mãe de Estéfano, da tribo dos Erecteus. Teodoro: irmão mais novo de Estéfano, com quase dez anos. Filémon: primo de Estéfano, 25 anos; veterano. Esmicrínes: irascível agricultor da zona de Elêusis, futuro sogro de Estéfano. Filomela, filha de Esmicrines: futura noiva de Estéfano, 15 anos. Geta: escrava de Esmicrines, velha ama de Filomela. Filonice: mulher repudiada de Esmicrines, mãe de Filomela; apicultora do Himeto. Filocleia: mãe de Filonice e avó de Filomela; gere a quinta da família no Himeto. Dro hpides: segundo marido de Filocleia, padrasto de Filonice; um homem inválido. Fílocles: irmão de Filonice e tio de Filomela; herdeiro da propriedade no Himeto, mas de momento a viajar pelas ilhas orientais. Mica: escrava idosa da casa do Himeto. ACADÉMICOS E ESTUDANTES Do LiCEU. Teofrasto: acadêmico, 40 anos, muito interessado em plantas; braço direito de Aristóteles.
  • 5. Eudemo de Rodes: académico espirituoso e educado, mais ou menos com a idade de Teofrasto. Demétrio de Faleros: jovem acadêmico, muito bonito Hiparco de Argos: acadêmico sério quase com 30 anos, parece um cavalo. Arcandro de Lâmpsaco: acadêmico sério na casa dos 30, muito pálido. Mícon: estudante, 14 anos, interessado nos projectos de investigação do Liceu. Parménion, filho de Arquébio: neto (linha ilegítima) do grande Parménion, general de Alexandre, 14 anos; jovem estudante cujas estranhas perturbações mentais são fonte de preocupações. CIDADÃOS DE ATENAS E SEUS ASSOCIADOS Mégacles: importante cidadão de Atenas com a careca queimada pelo sol e modos sérios. Trasímaco: importante ateniense com veia de orador; pai de Mícon. Apolónio: cidadão robusto e patriótico a quem não agrada o governo macedónio. Teosóforo: cidadão de meia-idade e temperamento sardónico, que não morre de amores por Estéfano. Epícrates: pequeno cidadão rico, enganado num negócio com um perfumista egípcio. Hiperides: orador e homem de estado, 61 anos; não gosta dos Macedónios; ajuda Epícrates no seu processo legal. Antígona: mulher alforriada, bem-sucedida prostituta de Atenas, proprietária de um bordel; envolvida num processo judicial com Epícrates. Euforbo: jovem de boas famílias, bem humorado e jogador. Cálias: cidadão rico, gosta muito dos seus animais de estimação; tem um macaco. Eurimedonte: do clã dos Eumólpidas; guardião do culto de Deméter, leva muito a sério o seu cargo religioso. Górgias, filho de Lísipo: cidadão teatral com pouco mais de vinte anos, filho de um ourives rico. PESSOAS ENCONTRADAS NA VIAGEM E NO ORIENTE Ésquines comandante ateniense da pequena e rápida embarcação. Eudemónia Hermipo de Uurio: viajante; trabalha no ramo da prata, proprietário
  • 6. de um tanque de lavagem e de um forno para fundir minerais. Ilúva: filha de Hermipo e mãe da pequena Filocleia Filocleia: neta de Hermipo, 7 anos, sofre de asma. Miltíades: alegre mercador de mármore. Filócoro: distinto viajante que parece ter um fraquinho pelo seu escravo. Sósio: escravo de Filócoro. Dóris: escrava aleijada com um cãozinho Cardaca: ama de Dóris. Magistrado de Delos. Lisis: gerente do bordel. Naumaquia, em Míconos Um mercador de mármore de Paros. Aristodemo: gentil-homem de Naxos com ligações a Delos; um velho amigo de Aristóteles. Nícias: natural de Cós, capitão da pequena e rápida embarcação Nice. Corisco: filho de um velho conhecido de Aristóteles, numa embaixada a Alexandre. Iátrocles: cirurgião de Cós e descendente de Asclépio; um velho conhecido de Aristóteles. Nicumedes: sócio de Iátrocles, físico de Cós e descendente de Asclépio. Oromedonte, filho de Daliocles: importante cidadão de Cós, velho amigo de Aristóteles. Peleu: militar experiente, habituado a organizar transportes Diofanto: oficial responsável por um pelotão na Lícia Menestor: prisioneiro tebano, quase 17 anos; escravo trabalhando para oficiais do exército na Ásia. Hárpalo: tesoureiro de Alexandre, antigo aluno de Aristóteles. Pitonice: formosa amante ateniense de Hárpalo, que o acompanha à Ásia. Nano de Calimne: bonita e rica dama das ilhas, antiga amante de um general macedónio. Vários viajantes, marinheiros e soldados
  • 7. Fala comigo, ó Musa, e abre-me a boca para que os meus lábios pronunciem coisas boas e verdadeiras. Deixa-me Contar com justiça esta história de pilhagens e maldade, sofrimento, cativeiro e viagens pelo mar imenso. Louvado seja Asclépio por ter sarado o meu ferimento. Que as bênçãos de Higia me acompanhem a mim e aos meus, agora e para sempre. Com todas as honras a Asclépio, o médico divino, a Péon, cantado em hinos nos reinos do alto, e ao nosso senhor Apolo.
  • 9. O SANTUÁRIO DE ASCLÉPIO Ainda estava escuro quando avançámos com cuidado pelo caminho estreito ao lado da íngreme Acrópole, em direcção à encosta sul. Quatro homens, dois dos quais escravos transportando uma liteira, que encerrava uma mulher invisível. - Cuidado! - exclamou o mais velho com rispidez, quando um dos escravos quase perdeu o equilíbrio no caminho invisível. Algumas corujas atrasadas ainda piavam em volta do templo. Esforçávamos os olhos na escuridão à procura do santuário. Ouviu-se um bater de asas. Um dos galos que eu levava debateu-se para voar, como se quisesse escapar à morte ou apressar o fim que o esperava. Era difícil segurar as aves com aquelas patas e garras afiadas e os pescoços contorcendo-se, sobretudo porque não as via. Sentia uma delas picando-me a mão, embora lhes tivéssemos atado os bicos. O santuário desenhou-se por fim à nossa frente, uma forma escura misteriosamente sólida na noite sem dimensões. Na manhã de Verão, nesse período estranho antes da madrugada, esperámos à cabeça de uma pequena fila de suplicantes. O céu ficou menos escuro. Os pássaros trinavam. Nisto, o céu cobriu-se de vermelho a nascente: parecia sangue jorrando de um corte na pele. Os primeiros raios incidiram na porta do templo, que se abriu. Nós, peregrinos, juntámo-nos aos sacerdotes e seus assistentes, cantando o hino da manhã: Acorda, Péon Asclépio Acorda e ouve teu hino! 15
  • 10. Aristóteles e o escravo ajudaram a mulher a sair da liteira apertada. Ficou de pé, encostada ao marido: era magra, não havia dúvida de que estava grávida e um véu grosso tapava-lhe o rosto. Avançámos para o altar. Os poços sagrados com as serpentes achavam-se algures perto de nós, mas eu não conseguia vê-los. Desatei os galos; Aristóteles e os escravos ajudaram os auxiliares dos oficiantes a levá-los para o altar. Os animais bateram as asas e cantaram, anunciando a madrugada. O assistente avançou para eles com uma faca afiada e interrompeu-lhes o ”có-có-ró-có!”. Um jorro de sangue manchou a pedra de mármore e as penas brilhantes. Um raio róseo incidiu no altar, fazendo cintilar o sangue e os olhos cegos das cabeças decepadas, com as suas cristas vermelhas. Rezámos e suplicámos no recinto iluminado pelo pequeno fogo do altar e pela luz fresca da alvorada. Uma doce brisa matinal entrava pela porta aberta. - O que te traz aqui? - perguntou o sacerdote-físico. - A minha mulher tem uma febre baixa e falta de apetite respondeu Aristóteles. - E quando come, muitas vezes não consegue conservar a comida no estômago. - Ela está grávida? - indagou rapidamente o sacerdote. Senhora, insisto que respondas por ti própria. Quem és? Como te chamas? - Pítia, esposa de Aristóteles de Atenas. - Estás grávida? - Estou. - Asclépio não tem remédios para a gravidez - disse o sacerdote, dirigindo-se aos dois. - É uma coisa natural e não a tratamos. E é do conhecimento geral que não deve nascer nenhuma criança no recinto consagrado a Asclépio. - Mas o mal da minha mulher não tem só a ver com a gravidez - objectou Aristóteles. - Sou filho de um físico e sei. Ela tem febre e treme. Descreve os teus sintomas - acrescentou, virando-se para Pítia. Ela respondeu em voz baixa e agradável, com mais do que uma leve pronúncia estrangeira: - Tenho calor e depois frio. Tremo. Tenho uma fraqueza nos olhos, que vem e vai. Sinto o estômago às voltas e uma dor surda de lado. Não é como das outras vezes. 16
  • 11. - Já tiveste filhos? - Dois que nasceram mortos, um que viveu um ano e morreu de uma doença e uma rapariga que está viva. - E tu, senhor - continuou o sacerdote, dirigindo-se a Aristóteles -, descreve o que te atormenta. - Dores na perna... ciática. Rigidez e dores na coxa e na perna. - Mais alguém? - Olhou para mim e abanei a cabeça. Encontrava-me ali para, literalmente, amparar Aristóteles. De pé à sua esquerda, estava a postos para que ele se apoiasse a mim, caso precisasse. Aristóteles amparava Pítia, que Teofrasto parente do filósofo, ajudava do outro lado. Pronunciámos as orações adequadas, acompanhando o sacerdote-físico. Observei o recinto interior, com o olhar cada vez mais apurado devido ao aumento da luz. Havia muitas imagens. Asclépio, a criança, o recém- nascido, rodeado por suaves chamas ou raios. Asclépio, o Amado, o Grande Salvador. Examinei uma estátua realmente boa, representando-o sentado num trono; dos lados da cadeira, as serpentes em relevo parecem rodas. Asclépio empunha o bastão com a serpente enroscada. O cabelo comprido e ondulado e a luxuriante barba encaracolada fazem-no parecer ligeiramente estrangeiro, como um fenício. Tem o rosto nobre e os olhos muito bem esculpidos e profundos. Fitam a distância com uma sugestão de sofrimento e esperança, mas também parecem observar-nos com um olhar de grande compaixão. Atrás dele, um grande baixo-relevo votivo mostra Asclépio com os filhos, os dois físicos, Macáon, o cirurgião, e Podalírio, especialista em doenças internas. E uma imagem alta da sua filha, Higia. Podemos fazer votos para não precisar dos filhos de Asclépio, mas toda a gente quer a filha, que é a própria Saúde. De momento, encontrávamo-nos todos ali, Aristóteles, Pítia, eu e Teofrasto, naquele pequeno santuário apertado. Juntos, vivos e em segurança. A luz deslizou e incidiu na parede, permitindo-me ver os ex-votos nela pendurados. Alguns eram pedaços de madeira de talhe grosseiro, outros esculturas elaboradas e lustrosas. Havia bastantes de prata, cintilando com os raios de sol. Uma brilhante imagem de bronze de um dedo 17
  • 12. grande do pé em tamanho natural, adornado com uma grinalda em miniatura. Uma perna, uma mão, um olho, um pénis, Aqui, um escudo que alguém oferecera em sinal de gratidão por ter saído ileso da guerra. Ali, parte de uma embarcação em mármore... alguém que se salvou de um naufrágio ou que recuperou dos danos físicos provocados por um naufrágio. Grinaldas de cabelo verdadeiro dispostas em cabeças de madeira, imagens de crianças que voltaram a ser saudáveis... tudo afirmando o poder do médico divino e a força curativa da terra escura, das nascentes sagradas e da serpente que surge das profundezas. Depois das instruções do sacerdote-físico, que aconselhou Pítia sobretudo a mudar de alimentação e a sentar-se num sírio quente ao sol, saímos do santuário. Pítia seguia encostada ao marido. Tivemos de a ajudar a entrar para a liteira. Partimos de novo. Aristóteles coxeava um pouco por causa da ciática, o que era especialmente irritante para alguém tão activo como ele: o seu grupo foi chamado ”os peripatéticos” porque ele gostava de falar andando de um lado para o outro. Regra geral, preferia estar em movimento. Eu não receava que ficasse aleijado para sempre. O filósofo era ainda espantosamente activo para um homem da sua idade, embora a ciática o atormentasse de vez em quando, sobretudo quando não tinha cuidado ou se esquecia e passava muito tempo sentado nalgum banco húmido de mármore. Quanto a Pítia, em breve se veria livre dos seus padecimentos, dando a Aristóteles o filho que ele há tanto desejava. O sacerdote-físico tivera talvez razão em se alarmar com o risco de um nascimento no santuário, pois é absolutamente proibido e Pítia evidenciava já um adiantado estado de gravidez. Aristóteles parecia aliviado e falador: Estive aqui muito poucas vezes, mas Pítia quis vir. Por mim, prefiro o Asclépion do Pireu, que nalguns aspectos é melhor e tem sacerdotes mais competentes do que este. E também mais tradição... lembras-te do Plutão de Aristófanes? Mas é muito longe para ela... por outro lado, era perfeitamente possível virmos aqui. Agora vai ficar mais descansada. O que lhe receitaram? perguntei, mais por delicadeza do que propriamente por curiosidade. 18
  • 13. - O costume. Hidromel se não conseguir aguentar mais nada, porque a mistura de mel e água tira- lhe a sede e alimenta o bebé. Líquidos, ovos... Mandaram-na sentar-se ao sol... felizmente temos um pátio onde o pode fazer. Acham que em parte é um problema de olhos. Quando melhorar, tem de oferecer ao santuário uma imagem de um olho... e eu de uma perna. Acho que vou mandar fazê-las em prata e que sacrificaremos um porco. Quando as imagens estiverem prontas já teremos o nosso bebé... o nosso rapaz, espero. - Pelo menos, já sacrificaste um galo - comentei. - ”Um galo para Asclépio”: as últimas palavras de Sócrates... como de certeza estás lembrado. Como o galo canta de madrugada, esta oferenda é feita ao dia, à luz e à própria vida. Quando nascemos, vemos a luz do dia, a dádiva da nossa primeira madrugada. Sacrificando um galo, agradecemos o novo dia. - Mas Sócrates disse isso mesmo antes de morrer.. não teve nenhum novo dia - objectei. - Na altura, estava a ser executado. -Mas deve ter agradecido o novo dia, mesmo sendo o último. Creio que na verdade queria era agradecer toda a sua vida, a dádiva de ter nascido... de ter existido e levado uma vida humana no mundo. Viver é uma coisa maravilhosa! Quando regressarmos ao Liceu, vamos reler este excerto no espantoso livro de Platão. Tínhamos saído da Acrópole e dirigíamo-nos à porta da cidade rodeando a ágora, que já começava a encher-se de gente. Embora já com a vantagem da luz do dia, os que transportavam a liteira de Pítia tinham alguma dificuldade em passar pelos becos estreitos com o seu fardo. Homens martelando ou fazendo cadeiras pareciam determinados a fàzer o seu trabalho no meio da rua, dificultando a passagem. Crianças corriam ao nosso encontro, tentando vender-nos isto ou aquilo. Uma delas, um rapazinho embrulhado numa capa com um capuz grosso, teimava em nos impingir umas ervas pouco frescas. Aristóteles acabou por pegar no funcho amarelecido, atirando-lhe uma moeda. -É só para me ver livre dele - explicou. 19
  • 14. - O rapaz não me parece muito saudável - disse eu. Assim agasalhado e com capuz quase no solstício de Verão, se calhar tem alguma doença. Na verdade, já estava a ficar quente, embora ainda faltassem cerca de vinte dias para o solstício de verão. Fora da cidade, as searas amadureciam ou até já tinham sido colhidas. O feno já fora cortado. A efémera roseira- brava desabrochava e cheirava a flores até em Atenas, onde não se vêem os jardins que florescem atrás dos muros. Não teria precisado de andar muito para regressar a minha casa, mas a de Aristóteles ficava um bocadinho mais longe: pelo menos bastante distante para os escravos, que seguiam carregados. (Não que Pítia fosse pesada, longe disso, mas a liteira não dava jeito nenhum.) Aristóteles vivia fora dos muros da cidade, na direcção oposta à da Academia de Platão, igualmente situada no exterior. Morava para leste, numa região banhada pelo Ilisso e coberta de árvores: um sítio magnífico, embora na altura bastante barulhento devido á construção do novo estádio. A sua famosa escola ficava no recinto que tinha o nome de Apolo Liceu, o deus dos lobos... que, curiosamente, também afasta os lobos. As pessoas chamavam ”Liceu” á famosa escola de Aristóteles, bem como ao ginásio que ficava ali perto, onde os jovens faziam o seu treino militar. Aristóteles aceitava estudantes particulares e tínha uma equipa de académicos a trabalhar com ele. Era um local com pequenas matas, onde se discutia livremente; os arredores do Liceu eram uma zona de filósofos e amantes da filosofia. A maioria das famosas conferências de Aristóteles eram públicas, ao jeito dos bons velhos tempos. Como o local sempre estivera cheio de jovens, era um bom sítio para juntar os que queriam participar em conversas intelectuais. Aristóteles teve de alugar tanto a casa como a escola. A lei de Atenas proíbe os estrangeiros, mesmo os estrangeiros residentes, os metecos, como Aristóteles, de serem proprietários. Por isso, e embora tivesse sido o melhor e, provavelmente, o estudante preferido de Platão, este não pôde deixar-lhe a Academia. Depois da morte de Platão, Aristóteles esteve fora de Atenas durante muito tempo. Quando regressou, casado com 20
  • 15. esta estrangeira, alugou casa na zona do Liceu. Meteu algum dinheiro do seu bolso para a acrescentar e construir novos edifícios. Uma das suas necessidades básicas era muito espaço para os livros. As alterações importantes têm de ser aprovadas pela cidade, e claro que os seus melhoramentos representam um prejuízo, já que não pode vender o local nem deixá-lo aos seus herdeiros. Quando chegámos ao Liceu, Aristóteles mostrou-se ansioso por ver Pítia instalada no conforto do seu lar: - Está cansada e precisa de repousar. - Herpílis tratará de mim - disse uma voz abafada de dentro da liteira. - Olimpo e Foco ajudar-nos-ão e arrumarão a liteira observou Aristóteles. - Teofrasto, não queres levar Estéfano lá dentro e mostrar-lhe a nossa ”oficina do pensamento”? Serve-lhe uma das nossas modestas refeições. Eu já lá vou. Os escravos pousaram a liteira e ajudaram a sua senhora a sair. Aristóteles pegou-lhe na mão com ternura e amparou-a com o braço. Subiram os dois o lance de degraus baixos do jardim até à porta. - Ainda bem que Herpílis está aqui - ouvi-a dizer. Não entres... tens visitas. - Claro que entro, minha querida - respondeu Aristóteles num tom de voz que eu nunca lhe ouvira antes. Teofrasto encarregou-se de mim e levou-me para os edifícios principais da escola por um caminho diferente. Conhecia bem o Liceu: tinha lá estudado, por muito pouco tempo, é certo, atraído pela reputação de Aristóteles e pela sua inteligência. Mas os negócios do meu pai atrapalharam-se tanto que tive de sair. Pouco depois, o meu pai morreu e a minha família mergulhou no caos. Como de modo algum era dos melhores estudantes, a minha ausência não deve ter sido nenhum golpe para Aristóteles. Mas recorri mais tarde ao meu velho professor. Depois da morte do meu pai, quando o meu primo foi acusado de homicídio, vim pedir ajuda a Aristóteles, embora nada me desse esse direito. Vim a casa dele pedir conselho no princípio do Outono, quase três anos antes desta visita 21
  • 16. matinal ao Asclépion. Ainda bem que o fiz: a inteligência e a acção do filósofo salvaram a nossa família do desastre. Eu e Aristóteles estivemos recentemente a investigar um outro crime curioso, que nos levou a perseguir uma herdeira raptada até Delfos, Foi na Primavera deste mesmo ano que nos presenteava agora com um prazenteiro calor de Verão. Apesar da minha amizade por Aristóteles, no entanto, de modo nenhum conhecia bem o Liceu no seu estado actual. Como Teofrasto me fez notar, houvera mudanças desde os meus tempos. Foi preciso arranjar mais espaço... tínhamos tantos livros que tivemos de aumentar a sala dos livros. Isto sem contar com os que o Aristóteles tem em casa. Assenti, pois já fora aos seus aposentos pessoais, com a sua surpreendente quantidade de livros. Temos um compartimento especial para conservar secos e limpos os rolos mais valiosos continuou Teofrasto. Aristóteles chama-lhe a ”despensa dos livros”. Foi ele que a desenhou. Entrámos numa divisão comprida... com cerca do dobro do comprimento de que me lembrava. A metade superior de cada parede estava forrada de estantes e compartimentos para os rolos. Pairava na sala o cheiro agradável da madeira; as estantes, obviamente de muito boa qualidade, deviam ter sido importadas a bom preço, pois a madeira escasseia muito em Atenas. Na parte central da parede, abaixo dos compartimentos com os rolos e à altura da cintura, havia uma prateleira larga em toda a sala, uma espécie de espaço de trabalho. A luz vinha de janelas altas abertas à altura do tecto, para a chuva não entrar. Aristóteles chama a esta sala a ”cozinha dos livros”. Escrevemos e lemos aqui. Desenhou as janelas e mandou fazer protecções de linho para o sol não bater directamente nos rolos, comendo-lhes a cor explicou Teofrasto. Do lado onde o sol incidia, as janelas estavam tapadas com tiras de tecido. E agora temos tantas plantas e espécimes mandados por Calístenes que tivemos de arranjar uma divisão especial. Virou-se para a porta: - Oh, olha Demétrio. Apareceu um jovem de enorme e rara beleza. Este Demétrio 22
  • 17. era alto e bem feito, com um nariz admirável... não, perfeito; o cabelo, bastante comprido, tinha o brilho do sol mesmo numa sala tão agradavelmente obscurecida. - Demétrio de Faleros - apresentou Teofrasto. - Estéfano de Cidaténion. - De passagem, pensei porque nos teria Teofrasto apresentado indicando o demo e não o nome do pai; um jovem tão bonito devia ter um pai importante. Demétrio fez-me um amável sinal com a cabeça. Embora não pudesse ter muito mais de vinte anos, o aristocrático jovem mostrava um grande aprumo. - Foi Demétrio que fez muitos destes magníficos desenhos - explicou Teofrasto. - Afasta um bocadinho essas protecções para Estéfano ver melhor, Demétrio. Vi então num canto da prateleira larga uma série de desenhos e diagramas encostados a uma parede. Mas não era nada como uma galeria normal! Nem Dafnes nem Andrómedas, mas antes umas coisas muito estranhas. A imagem da pata de um animal, com a classificação das suas várias partes; um útero e um escroto com testículos... as figuras isoladas, sem nenhum corpo. Havia uma ilustração de muitos peixes cobertos de espinhas, com uma tira em baixo mostrando vários crustáceos. - Excelentes! - exclamei com delicadeza, observando as bizarras imagens de lulas e ouriços-do-mar. - Tens uma grande variedade de ingredientes na tua ”cozinha dos livros”. Demétrio de Faleros soltou uma gargalhada: - Não penses que Aristóteles não gosta que nos refiramos à ”despensa” e à ”cozinha” - garantiu-me. - Diz ele que o centro do corpo é uma espécie de cozinha ou forno. O estômago está sempre ocupado a cozinhar, tal como o coração, que alimenta e mantém o calor natural sem o qual a alma não pode funcionar. E a alimentação... - É transmitida ao resto do corpo - continuou Teofrasto. - ”Onde cada parte continua o trabalho e cozinha com o seu próprio calor” - remataram os dois em coro, evidentemente repetindo frases e opiniões do mestre. Um jovem de cabelo encaracolado entrou na sala, atraído pela sua alegria. - Mícon! Estéfano, filho de Niciarco. Mícon, filho de 23
  • 18. Trasímaco. - O divertido rapaz de cerca de catorze estios aproximou-se de nós com confiança. A apresentação formal que Teofrasto fez da criança levou-me a deduzir que era bem-nascido. - Micon tem feito progressos invulgares. E ajudou na criação destas imagens... foi ele que sombreou e coloriu muitas delas. - Impressionante - concordei. - Para que servem? - Vão ser integradas em livros! - exclamou Mícon. Que serão lidos por toda a gente! - Quando estiverem acabadas - esclareceu Demétrio. Esta ideia... serão copiadas para os livros sobre animais que Aristóteles anda a escrever. - E ainda temos muitas plantas novas para examinar acrescentou Mícon. - Pois é - disse Demétrio. - Queres ver, Estéfano? Calístenes, sobrinho de Aristóteles, que viaja com Alexandre, mandou-nos plantas novas da Ásia. - Gostava de as ver - afirmei com delicadeza. Sabia, pelas conversas de Aristóteles, que ele tinha o sobrinho, Calístenes, em alta estima. Tal como, de resto, Alexandre da Macedónia, que escolhera este distinto académico e escritor para o acompanhar à Ásia. O sobrinho de Aristóteles viajava agora, com Alexandre e o seu exército para escrever a história oficial da Grande Guerra com a Pérsia, que de resto era como se já tivesse terminado. Alexandre já controlava Iersépolis e a Babilónia: só lhe faltava encontrar e matar o rei Dário da Pérsia. Mas o que eu não sabia era que Calístenes continuava a ser uma espécie de sócio de Aristóteles, fornecendo-lhe materiais asiáticos para os seus estudos de ciências naturais. Passámos desta ”cozinha dos livros” para a sala seguinte, atravessando um corredor curto com uma porta em cada ex- tremidade. Supus que tinham tentado isolar a sala dos espécimes vivos, de modo a que a humidade e o cheiro não penetrassem na sala dos livros. Inumeráveis (assim parecia) raíes e ramos enchiam a parede e pendiam de ganchos do tecto. Havia um arbusto com flores rosadas... muito bonito e com um cheiro interessante. Mas muitas plantas pareciam sem vida, secas e murchas. 24
  • 19. É difícil conservá-las - disse Demétrio, seguindo O meu olhar. - Calístenes envolve-as em musgo húmido, mas mesmo assim sofrem. E o ar de Atenas deve ser mais salgado do que aquele a que estas plantas estão habituadas. Também havia alguns esqueletos de animais pendurados no tecto (pareceu-me reconhecer um cão). Bocados de animais flutuavam em vasos altos e grossos. Numa grande mesa de trabalho viam-se os desenhos das plantas e várias tabuinhas, algumas escritas. - Esta é a nossa ”cozinha das traseiras” ou ”matadouro” explicou Demétrio. - Agora chamamos-lhe mais ”sala das plantas”. Mas estamos interessados sobretudo em animais. - Quem escreve? - perguntei, olhando as tabuinhas. - Todos nós. Esboçamos uma descrição na placa de cera e depois discutimo-la - esclareceu Demétrio. - Se todos cuncordarmos, é copiada para o livro que é uma espécie de rascunho do nosso futuro catálogo. Aqui Hiparco de Argos pode explicar melhor do que eu, especialmente os animaïs. Hiparco era um homem grande e cheio de vontade de agradar, com um rosto comprido e um nariz direito e igualmente comprido. - E trabalhas com cavalos? - indaguei. Como o seu nome significa ”mestre de cavalos”... aliás, Mestre de Cavalo, ou seja, um chefe de cavalaria, achei que o trocadilho tinha piada. Talvez nem me tivesse lembrado disso se Hiparco não se parecesse tanto com um cavalo. Mas a minha frívola pergunta fê-lo franzir as sobrancelhas como um cavalo perplexo. - Não temos grande variedade de cavalos por aqui. O cavalo comum é um quadrúpede bem conhecido. Se nos viesse algum tipo diferente da Ásia, claro que gostaríamos. Aristóteles anda à procura de várias espécies de animais. Eu escrevo as descrições aqui com Eudemo. - Estéfano, filho de Niciarco de Atenas. - A formalidade de Teofrasto fez-me adivinhar, ainda antes de o ver, que este recém-chegado era muito bem nascido. - Eudemo de Rodes. Alto e de cabelo escuro e encaracolado, Eudemo era muito mais bonito do que seria de esperar num académico, embora 25
  • 20. não tão escultural como o jovem Demétrio. Olhando-me com aristocrático à-vontade, murmurou algumas frases convencionais sem mudar muito a expressão facial. - E Arcandro de Lâmpsaco. - Era um jovem pálido, como um bolbo que ficou muito tempo na cave. O cabelo preto ainda lhe acentuava mais a palidez. - Estes estudiosos colaboram todos no grande projecto de Aristóteles - continuou Teofrasto. - São os seus principais... hã... - Chama-nos seus assistentes - rematou Eudemo com amabilidade. - Juntamente com Teofrasto, somos os académicos em quem o mestre mais confia: os cozinheiros de Aristóteles. Seccionamos animais e plantas. - Mas é mais do que isso - observou o jovem Mícon. Vamos fazer um plano de tudo o que existe... para que tudo O que existe seja conhecido. - Tudo o que existe! Mas isso é muito! - Aristóteles aproximou-se por trás de nós. - É verdad: tentamos explorar o universo da natureza e criar categorias racionais para os seres vivos. - Sem as devidas categorias, não é possível pensar acrescentou Arcandro, provavelmente citando alguma frase que ouvira ao filósofo. - Estás a ver os grandes passos que damos em direcção ao conhecimento, Estéfano? - disse-me Aristóteles. - Tenho trabalhado nisto desde rapaz... desde que deixei a Academia de Platão... mas não era possível completar nada trabalhando sozinho. Agora tenho estes excelentes assistentes e académicos a ajudar-me - abarcou-os a todos com um gesto da mão - e vamos fazendo progressos. Tal como Heródoto escreveu a sua gigantesca crónica sobre a natureza inteira e o desenvolvimento da guerra entre persas e gregos, também eu escrevo um relatório completo dos animais. Aqui, observamos e anotamos todas as diferenças que nos permitem distribuí-los por classes. Observamos a maravilha da ordem do cosmo, que às vezes nos parece muito pequena... ou muito grande... para que a possamos ver. Murmurei qualquer coisa com delicadeza, embora sentisse uma certa repugnância pelo cheiro bafiento das raízes das plantas e ainda mais pelo conteúdo dos vasos. 26
  • 21. - É estranho um filósofo preocupar-se tanto com animais - comentei. - Porquê? Platão sugere que somos bípedes sem penas; assim sendo, devíamos respeitar os animais. Se estudamos a arte, porque não a natureza, que é muito maior do que a arte? Não devemos fazer má cara só porque a carne, o sangue, as espinhas, os bicos ou os órgãos são desagradáveis... vamos deixar as exclamações infantis de nojo para as crianças. A questão é: como podemos discutir um mundo que não conhecemos? Vivemos na ignorância e as nossas descrições são parciais e irregulares. Acontece o mesmo com os calendários... sabes que estou interessado em reunir narrativas dos Jogos Olímpicos e Pítios. Não é porque esteja especialmente interessado nos acontecimentos atléticos, mas porque estas listas nos dão medidas de tempo... ano após ano. Em breve poderemos criar um calendário mundial com todos os acontecimentos assentes numa linha de tempo, o que nos dará uma imagem uniforme da realidade temporal, sem a qual a história... o estudo da humanidade... não é possível. Senti-me um tanto alarmado: - Mas eu gosto do tempo ateniense. - Bem, digamos que, tanto no tempo ateniense como no do Liceu, é ”tempo de comer”. Fica connosco - disse Aristóteles. - Hoje vou comer com os professores e os alunos. Pítia está muito cansada e precisa de ficar deitada. Felizmente, tem Herpílis. Um verdadeiro tesouro! Uma escrava doméstica da família da minha mãe, na Eubeia. É uma enfermeira excelente e um prodígio com as crianças. Pítia adora-a. Insisti com ela para que se deitasse porque não me agradam nada aqueles tornozelos inchados - acrescentou. Senti-me embaraçado ao ouvir informações tão íntimas. Mas Aristóteles não tinha parentes próximos à mão (excepto talvez Teofrasto, cujo grau exacto de parentesco permanecia indefinido), e suponho que precisava de partilhar estes detalhes familiares com alguém. - Mícon, chama os outros para o refeitório - ordenou Eudemo. - Diz-lhes que a comida está pronta. - Mícon saiu à pressa. - Deixa que te diga que é uma refeição muito humilde 27
  • 22. - observou Aristóteles. - Não bebemos vinho quando estamos a trabalhar. O nosso repasto é muito pitagórico. Mas garanto-te que não vão servir-te nada desses vasos! Deixámos a sala dos espécimes e entrámos numa divisão comprida, uma sala de conferências onde os escravos tinham montado tábuas em cima de cavaletes. Havia bancos à volta. Era uma decoração simples para uma refeição simples. O pequeno grupo de jovens estudantes entrou em fila, com Mícon à cabeça. Respiravam saúde, estavam bronzeados, falavam e riam; só não faziam mais barulho devido à presença de Aristóteles e dos professores. A sua tagarelice alegrava a sala. Mas um deles, triste e calado, olhava para o prato sem comer nada. - Que te parece? - perguntou-me Aristóteles. Eu ocupava a posição de honra à sua direita, suponho que um lugar geralmente reservado a Eudemo ou Teofrasto. - Mais ou menos como era no teu tempo, não? Com os dias tão bonitos, comemos muitas vezes lá fora, mas assim é mais fácil e rápido para os escravos. - E os teus escravos já foram hoje à Acrópole. Como correu a tua visita ao santuário de Asclépio, Aristóteles? - perguntou Demétrio. - Oh... bem, como de costume - respondeu ele. Pareceu-me que não estava muito interessado em que a sua vida pessoal fosse objecto de conversa naquele momento e lugar, Olhando em volta, acrescentou: - Sabes que dizem que descendo de Asclépio através do filho, Macáon? - Então devias ser cirurgião - observou Hiparco. Por falar nisso, como nos vamos arranjar com os nossos espécimes, agora que está tão quente? Achas que vão sobreviver ao calor? - O tempo está muito agradável, não é verdade? - comentou Eudemo, sentado à esquerda de Aristóteles. - O Cirofórion é um mês encantador... especialmente porque só tem festivais antigos e pouco importantes, como as próprias Cïrofórias. É tão bonito ver a sacerdotisa de Atena e os sacerdotes de Posídon e do Sol percorrendo a estrada oeste debaixo de um pálio branco! E o melhor é que ninguém sabe o que significa. 28
  • 23. - Também é o mês das Dipólias, o festival de Zeus Polieus, guardião da cidade - fez notar Teofrasto. - E o maior sacrifício das Dipólias é a Bufónia. Chegou o tempo da matança do boi, um costume ateniense! Devíamos ir. - Podemos formar um grupo para ir ver. Queres vir, Estéfano? Se calhar já não assistes à Bufónia há muito tempo. - Obrigado - agradeci com amabilidade. Mudando de assunto, calhou eu falar a Aristóteles do aluno pálido e pouco sociável: - Quem é aquele rapazinho que parece tão triste? - Ele? Talvez até já tenhas ouvido o seu nome. Teofrasto falou-me dele quando tu e eu regressávamos de Delfos no princípio da Primavera. O jovem Parménion costuma ficar choroso e triste, muitas vezes sem qualquer razão. E às vezes tem ataques. Parecia melhor no fim da Primavera, mas agora tem razões para se preocupar, pois não sabe do pai. No entanto, os seus problemas parecem estar na cabeça, e temo que agora piorem. - Virando-se para a minha direita, acrescentou: - Fala-nos mais do estado do jovem Parménion, Teofrasto. - É mau e está a piorar - respondeu ele. - Achei que este mau humor começava a desanuviar, mas agora temo que esteja a deteriorar-se bastante. Receio que tenhamos de o levar para casa. É muito novo para fazer a viagem sozinho. - É neto do grande general Parménion, creio? Descendendo dele, é estranho que seja tão fraco da cabeça - disse Hiparco. - Quanto a levá-lo a casa... pode ser perigoso. As coisas ainda estão complicadas. - Talvez tivéssemos protecção do exército. A família toda, incluindo o pai, deve estar de muito boas relações com a casa real. Sobretudo o grande Parménion, outrora grande companheiro do rei Filipe e agora braço direito de Alexandre observou Teofrasto com o seu amor à precisão e à ordem. É verdade que o pai do rapaz não é filho legítimo do grande general, mas sempre foi tratado como se fosse da família. - Se até permitiram ao rapaz ficar com o nome do avô... comentou Hiparco. - É verdade. E o filho legítimo de Parménion, Filotas, um brilhante general e um dos Companheiros de Alexandre, 29
  • 24. gosta muito deste sobrinho, que tem muitas razões para esperar favores e ajuda... mas ainda não sabemos muito bem onde encontrar o pai, Arquébio, que, na qualidade de macedónio, faz parte do exército de Alexandre. Numa altura em que esteve a ajudar a pacificar a ilha de Roie;. Há a possibilidade de ter sido transferido para Cós. - Bem, tu ou Eudemo talvez tenham de fazer uma viagem para oriente - disse Aristóteles com jovïalidade. - Se calhar Eudemo até vai gostar... afinal de contas, veio de Rodes. É uma pena não podermos fazer nada pelo rapaz aqui. Provavelmente devia ir a um bom centro de medicina. Alíás, pode ser que até melhore estando em Cós. Mudando de assunto, virou-se para mim: - O que achas do nosso liceu? - perguntou-me. - Está maior desde os teus tempos, não? - Está - concordei. Não me agradava pensar nos ”meus tempos” como uma época muito distante. - Agora temos um conjunto de livros bastante considerável. Felizmente, Teofrasto tem um grande amor pelos livros e trata-os muito bem. Nunca os deixa apanhar pó nem ficar fora do sítio. Tem de voltar tudo para o seu devido lugar. Como vês, atraímos académicos excelentes para trabalhar connosco. Eudemo é de uma família muito distinta de Rodes, mas trabalha aqui nas plantas asiáticas tanto com as mãos como com a cabeça. Como é da região, tem uma familiaridade diferente. Bem, eu também passei algum tempo na costa asiática, primeiro em Asso e depois em Lesbos. Há uns anos, conhecia muito bem a região costeira da Ásia. Foi lá que comecei a estudar os animais, observando a vida das costas e examinando as raias, as lulas e os crustáceos. - Mas diz-me: vais tentar descrever tudo o que vive? - Gostaríamos de o fazer... mas é um plano muito ambicioso! No entanto, como trabalhamos com uma variedade tão grande, é possível que tenhamos razão no que dizemos. Todos os homens, incluindo os académicos, viveram até agora com categorias insuficientes... aliás, até com uma ideia insuficiente do que é uma categoria. E de facto a nossa investigação tem de ser sistemática. Estudamos as particularidades. 30
  • 25. - Aristóteles pensa que há uma espécie de arte na natureza, até nas pequenas coisas - acrescentou Demétrio. - Com certeza. Não há nada que não seja importante. Olhem o que Heraclito disse na latrina: ”Entra; até aqui há deuses.” A complexidade dos corpos, dos corpos vivos, é muito bela. O corpo não é uma simples ”forma” no sentido vulgar do termo ou até no que lhe dão algumas pessoas com instrução, mas sim um centro de desenvolvimento e actividade. A natureza é uma especialista em dinâmica. Prefere fazer cada órgão perfeito para determinado fim. Não é uma trabalhadora medíocre como um humilde ferreiro que, por questões utilitárias, faz um suporte de iluminação de metal e um espeto num só objecto! Pensem no que vimos nos vasos com o sangue... - Bem, é difícil observá-los - interrompeu Demétrio, muito sério. - Não é fácil perscrutar os segredos íntimos da natureza. Claro que podemos abrir um animal... mas o sangue esguicha e a vida vai-se num ápice. - Descobrimos que a observação dá mais resultado quando não alimentamos o animal... os vasos sanguíneos vêem-se melhor. Mas claro que nem assim conseguimos vê-los todos. - O que vemos, no entanto, é de uma regularidade e uma ordem assombrosas - acrescentou Aristóteles. - Assemelha-se aos regatos e canais de um jardim bem cuidado e bem irrigado, onde o jardineiro criou um canal principal e derivou dele muitos pequenos regatos. - Esse é o tipo de comparação preferido de Teofrasto comentou Eudemo. - Se calhar até foi ele que a sugeriu. Adora jardins. Aristóteles ignorou-o e continuou a falar: - Ao mesmo tempo, não são meras particularidades que fazem as categorias. Claro que não! E não é o nosso catálogo que vamos publicar. Isso é só um começo. Sem método, sem raciocínio, tudo o que temos são simples listas. Podia fazer uma lista das vezes em que corto as unhas, e seria verdade... e inútil, a não ser que tivesse algum propósito. O objectivo não é só o conhecimento do mundo que nos rodeia, mas também uma verdadeira compreensão do que é a vida. A vida neste mundo transitório, entre a existência e a morte. O nosso sujeito não é outro senão a própria vida. 31
  • 26. Quase me tirou o fôlego com a imensidade do seu tópico de conversa. - O mais importante é o poder inerente do raciocínio, que o leva a perceber, adivinhar... e de certa forma gerar ordem - continuou Aristóteles, entusiasmando-se. - Enquanto parte do intelecto divino do universo, o raciocínio conhece a ordem; ou seja, já temos dentro de nós o poder de perceber e falar de categorias. A ideia não é criada por moluscos nem por árvores. - Oh, mas claro! - concordei, um tanto atabalhoadamente, pois estava a mastigar um pedaço de pão duro ao mesmo tempo. De resto, não tinha a certeza de conseguir compreender tudo o que ele dizia. - O corpo existe para a sua perfeição, que é a alma, a capacidade para se mover, procriar e por aí fora. É absurdo pensar que a alma está ”no corpo” como o marinheiro está ”no barco”. A alma é a forma que o corpo procura. O intelecto é o principal. Mas a inteligência viva, percebe o mundo usando os órgãos do corpo. A compreensão precisa de montar as particularidades... de as mastigar, se assim posso exprimir-me. - Os olhos brilharam-lhe e eu tentei engolir à pressa o pão que estava a comer. - Precisamos dos pormenores, das particularidades. É possível obter uma compreensão do mundo trabalhando com eles, usando os sentidos para examinar as particularidades... desde que tenhamos um método. É o intelecto que tem de analisar... senão, ficamos só com uma lista de curiosidades. Queremos estabelecer características, para podermos agrupar os animais unidos pelas suas características. E ao analisarmos seres vivos, as produções da natureza, não procuramos história e sim causas. Na natureza, as causas são fins e não princípios. A natureza cria para o futuro. Nas ciências teóricas ou no estudo dos objectos que são fruto da arte humana, começamos pelo que já é. Pensamos da frente para trás. Uma estátua nova tem uma espécie de existência, mas não tem futuro; só um passado. Falta-lhe vida. Um cachorrinho tem futuro. No estudo da natureza, consideramos sempre o que vai ser. Nos embriões de todos os tipos, incluindo os ovos, o coração, esse órgão soberano, é formado em primeiro lugar devido 32
  • 27. ao trabalho que vai fazer. Um embrião humano tem mãos porque será um homem, que as usará. Os outros tinham feito silêncio para ouvirem o animado discurso de Aristóteles. Quando ele se calou, Eudemo disse: - Portanto, usando o pensamento e um processo de observação completa e regular... nem parcial nem caprichosa... as particularidades levar-nos-ão às verdades gerais. - Isso - acrescentou Hiparco. - E estás a ver a vantagem: saberemos realmente o que são as espécies. Assim, quando se descobrir um animal novo... pop! Vai para a categoria correcta logo que aparecer. - Este mundo manifesta uma ordem ao mesmo tempo complexa e muito simples - rematou Aristóteles. A quantidade de trabalho que ainda havia para fazer não parecia desanimá-lo. Os olhos cintilavam-lhe. A refeição, constituída apenas por legumes, pão, fruta e água, fora realmente pitagórica mas, a julgar pelo seu entusiasmo, parecia que Aristóteles bebera um vinho nobre. - Estou muito grato aqui aos meus colegas pelo seu trabalho incansável e inteligente - acrescentou. Juntos, podemos fazer avançar os nossos conhecimentos. - Mas de certa forma é estranho - disse eu. - A filosofia não deveria ocupar-se da verdade, do bem, do comportamento... dessas coisas? - Ahh! - exclamou Aristóteles. - A filosofia é o amor de toda a verdade. A verdade do universo, aqui e agora. É, com certeza, muito doce contemplar a verdade e o bem. Mas quem contempla? O ignorante ou o seu contrário? A mente está aberta para o mundo e abre o mundo. O bom filósofo examina tanto o seu mundo físico como humano. - Então, aquilo de que precisamos não é de filósofos-reis e sim de muitos verdadeiros filósofos entre os cidadãos - observou Demétrio. - Tens razão. E devemos educar os jovens dando-lhes uma sabedoria vasta e verdadeira, de modo a que possam criar sociedades melhores, melhores estados. O filósofo devia ser um homem sempre pronto a ajudar os outros, a misturar-se com os outros e a colaborar. É bem medíocre o filósofo que não dá ouvidos aos gritos de socorro. Com uma forma de estado 33
  • 28. mais elevada, racional e benevolente e uma vida política cheia, solidária e harmoniosa, os homens poderão tocar tudo O que os rodeia, num mundo que não é obscuro nem desconhecido para eles. Um homem assim formado fará mais do que simplesmente existir. Viverá plenamente a vida e não se limitará a existir como uma planta, uma rocha... ou até um texugo. - O que Aristóteles diz é que muitos homens vivem na escuridão e precisam de ver - concluiu Hiparco. - Assim, o nosso trabalho contém em si, as sementes de uma vida melhor para o homem do futuro - disse Aristóteles. - Sabes, Estéfano, acredito que o estudo da filosofia é um benefício para a humanidade. Sorriu-me, bem como aos jovens alunos e aos atentos académicos que o rodeavam à mesa, seus amigos e colegas no grande empreendimento. Pensei depois muitas vezes naquele dia, em que o Liceu parecia um santuário cheio de vida, reflexões e alegres planos, antes de a dor e até o desespero tocarem a vida do mestre. 34
  • 29. O ASSASSÍNIO DO BOI A expedição para ver a matança do boi, sugerida por Eudemo, acabou por se concretizar. O escravo de Aristóteles trouxe-me um convite para me juntar ao grupo do Liceu. Decidi ir e levar comigo o meu irmão mais pequeno, Teodoro. Encontrámo-nos na encosta da Acrópole, à frente do grande templo da Virgem Atena. Teodoro corria e saltava à minha volta. Havia bastante gente, mas não grandes multidões. E era-me possível evitar as pessoas que não queria encontrar, como o cidadão Teosóforo, que tomara decidido partido contra a minha família na altura em que tivéramos problemas. Vi-o à distância, com o mesmo ar azedo de sempre. Como era de esperar, Aristóteles encontrava-se rodeado pelo seu pequeno séquito. - Acho que já conheces toda a gente - disse-me. Era verdade: Hiparco com o seu nariz nobre e equino, Demétrio de Faleros, de uma beleza prodigiosa e maneiras afáveis, Eudemo, tão bonito, falador e à vontade que ninguém poderia deixar de reparar nele, e o pálido Arcandro. Estavam encarregues do pequeno grupo de estudantes, que incluía o triste Parménion e o alegre Mícon. Depois de apresentar Teodoro e de o entregar temporariamente aos cuidados dos rapazes mais velhos, aproximámo-nos todos do recinto de Zeus, Protector da Cidade. Mícon mostrou-se muito útil, abrindo-nos caminho e empurrando-nos para que ficássemos juntos, o que provocou algumas resmunguices, se não mesmo altercações. 35
  • 30. - Olha lá o que fazes, rapazinho - disse um cidadão. Um outro, mais irascível, advertiu: - Se tornares a empurrar-me, vais ver o que te acontece! Teofrasto teve de pedir desculpa pelo zelo de Mícon. Estas desculpas não eram dirigidas aos mais rufiões da multidão. Um grupo de jovens das zonas mais pobres começou a soltar imprecações, do tipo que indica que alguém gosta muito da própria mãe. Isto atrasou-nos um bocado, mas os nossos rapazes não se ensaiaram para responder, embora Eudemo os tenha censurado, dizendo que aquilo não eram maneiras. Um dos rufiões, um miúdo forte e de ombros largos, desafiou Mícon para lutar com ele. Quando Eudemo impediu o nosso jovem académico de responder, o rufião gritou e saltou em triunfo. Depois, pôs os dedos em forma de cornos em cima da cabeça e carregou contra nós. - Sou um touro! - berrou. - Um touro, suas vacas! Vacas de merda! Vaca! - vociferou de novo para Mícon. - Vais arrepender-te - disse Mícon, furioso. - O meu pai é Trasímaco, um homem muito importante que vai dar-te uma lição. - ”O meu pai é Trasso” - macaqueou o rapaz. - Olha, fedelho, o teu papá é uma vaca. Não é uma vaca importante... só uma vaca. Boo! O rapaz de pescoço grosso correu para nós várias vezes, batendo os pés e mugindo. Depois mudou de brincadeira e começou a saltar, agitando no ar uma espada imaginária: - A mim, homens! Quero ouvir o grito de guerra! Vamos com esta escumalha... ho! Sou Alexandre. Ha... boo! Venço-vos a todos! Eu digo-vos como é, seus medos e persas! O rapaz de cara de touro pavoneou-se ao nosso lado durante algum tempo, imitando a nossa maneira de andar enquanto os seus companheiros aplaudiam. Carregou então outra vez, gritando: - Sou Alexandre e mando em Atenas! Sou o vosso rei... Cobardes! Iáá! Fez a Mícon e ao receoso Parménion uma careta pavorosa, torcendo a boca e arreganhando os dentes como a máscara de um sátiro, e arregalando tanto os olhos que estes pareciam 36
  • 31. prestes a saltar das órbitas. Parménion empalideceu; Mícon e o seu amigo Dórcon tentaram libertar-se para lhe bater. Os nossos alunos (incluindo Teodoro) desataram também a berrar tão alto como o bando de jovens que se lhes opunha, e não me agradou que Teodoro ouvisse o que diziam (aimda que certamente fosse aprender aquilo e muito mais quando ingressasse na escola). - Sendo bem-nascidos, os nossos garotos não devem lutar contra este bando de sarnentos, mas não vejo razão para não disciplinarmos estes pirralhos - disse Eudemo em voz alta. - Tens razão - concordou Hiparco, ainda mais alto. Estão a precisar de umas boas chibatadas. - Ou de umas bengaladas - acrescentou Eudemo. - Vamos experimentar, meus meninos? - Avançou para eles. O rapaz de constituição de touro e os amigos afastaram-se, perseguidos pelas sugestões relativas à aplicação profiláctica e à eficácia prática de bengalas e chibatas. Claro que estas ameaças não poderiam ser concretizadas, porque os rapazes, embora vulgares e malcriados, deviam ser filhos de cidadãos. É muito grave atentar contra um cidadão ou o filho de um cidadão agarrando-o ou batendo-lhe, a não ser que se tenha o consentimento do pai (como no caso de um professor). Com os rapazes longe, o valente Mícon pôde libertar- se finalmente das mãos dos mais velhos. Continuámos a andar e aproximámo-nos do local onde decorreria o ritual da manhã. - De quando data exactamente esta cerimónia? - perguntou Demétrio a Aristóteles. - Bem, já era antiga no tempo em que Aristófanes escreveu As Nuvens... por falar nisso, devíamos ler a peça hoje à tarde com os rapazes. O jovem Fidípides, que acredita ser muito mais sábio do que o pai, Estrepsíades, despreza os mais velhos e os bons conselhos. Esta opinião é encorajada por Raciocínio Errado, que troça do passado, referindo-se a ”estas velharias como as Dipólias, os alfinetes feitos de cigarras, as danças obscenas de Cedeides e a Bufónia”. Hoje em dia, nunca usaríamos broches de cigarras, mas a Bufónia sobreviveu. - Tal como algumas danças obscenas - observou Eudemo. - Está a começar! - gritou Teodoro. Os acólitos dispunham trigo e cevada sagrados no altar de pedra. 37
  • 32. Um pequeno cortejo de quatro ou cinco bois entrou no espaço sagrado. Pareciam cansados e velhos. Já que tem de se sacrificar um boi, faz sentido que seja um já perto do fim. Conduzidos pelos seus guardiães e seguidos por dois sacerdotes de Zeus encapuçados, os animais começaram a dar voltas ao altar, como devia ser até um deles resolver ser sacrificado. Por fim, um dos bois perdeu o medo, levantou a cabeça pesada e cheirou a comida. Depois, estendeu o pescoço grosso e dócil por cima do altar de pedra e começou a comer os cereais. Era o sinal. Um dos sacerdotes aproximou-se; o boi, feliz, continuava a comer. Um comprido fio de saliva pingava-lhe da boca. O sacerdote encapuçado levantou um machado de bronze... e baixou-o. Bastou um golpe. O animal caiu logo, soltando um mugido que foi o último. Tombou sem vida. - Agora é a parte mais interessante - murmurou Aristóteles. O sacerdote que desferira o golpe fugiu. (Fora aberto um caminho para que os espectadores não impedissem a fuga ritual.) O outro pegou no machado e disse: - Declaro que temos de procurar o perpetrador deste assassínio. E o machado que cometeu o crime deve ser julgado. com o sacerdote e os acólitos do santuário de Zeus e entrámos no recinto do tribunal do Pritaneu. O machado apresentado num julgamento ritual. - De quem é o machado? - Do homem que desferiu o golpe mortal. - Onde está o homem que matou? - ser procurado. - Este é de certeza o machado que desferiu o golpe fatal? É - - Como sabes? - Vi com os meus próprios olhos. Peguei nele. Estava ao lado do corpo. - Então, com o poder deste tribunal, a lei da cidade de Atenas e o direito do assassinado, condeno este machado. Este instrumento deixa de ter direito a estar aqui e deve deixar Atenas para sempre. Condeno-o a ser atirado ao mar e nunca mais ser visto. Que nenhum objecto assassino permaneça na nossa cidade. 38
  • 33. O machado foi levado para imediata execução da sentença. Claro, teria havido o mesmo tipo de julgamento no Pritaneu se qualquer objecto inanimado houvesse matado uma pessoa. O objecto tem de ser julgado e expulso da cidade mesmo quando mata um homem por acidente, como no caso de um vaso que cai ou de um tijolo deslocado pelo vento. Seja o que for que mate um homem, está contaminado. Ainda há pouco tempo houve um homem que morreu com o golpe de um malho. Pois o objecto de madeira foi condenado como agora este machado. O que a Bufónia tem de extraordinário é que se trata apenas do ”assassínio” de um boi de lavoura. No entanto, a morte (na realidade levada a cabo por toda a cidade) é tratada como um assassínio privado e abominável. - Não faz sentido - comentou Demétrio. - Bem, não faz sentido mas é uma distracção. - Mas claro que faz. Parece-nos é estranho - retorquiu Aristóteles. - Hoje em dia, consideramos assassínio a morte deliberada de um ser inteligente, um humano, levada a cabo por outro ser inteligente, também humano. Este costume faz-nos perceber que nem sempre vimos as coisas assim. Parece que o ritual data do reinado de Erecteu, no princípio dos tempos, quando Atenas começava a nascer. A melhor explicação que encontrei é que a Bufónia comemora o momento em que os seres humanos decidiram não só domesticar os animais como também matá-los... criá-los para os matar e comer. Mas talvez existisse antes qualquer coisa parecida com este ritual, celebrando com tristeza a decisão de que o homem tem o direito de matar os animais para os comer. - E ainda nos sentimos culpados por isso - acrescentou Teofrasto. - É por isso que quero que os nossos rapazes assistam à Bufónia: para que vejam bem o que fazemos. Tratamos os nossos animais como companheiros e amigos e depois matamo-los e comemo-los. Conseguimos... quase todos nós... controlar-nos o suficiente para não assassinarmos ninguém, mas matamos animais inocentes, mesmo os que nos servem, como o boi que lavra os campos e nos ajuda a cultivar os cereais. Os pitagóricos têm toda a razão em proibir o consumo de carne. 39
  • 34. - Vamos lá ver o boi outra vez - sugeriu Mícon. Regressámos ao local do ”crime”. O boi já fora esfolado e o cadáver ou carcaça encontrava-se agora num espeto, por cima de uma fogueira. Muita gente à volta, especialmente das zonas mais pobres, aguardava com ansiedade o seu festim. O cheiro a carne assada começou a pairar sobre a Acrópole. Estavam a usar feno e palha para encher a pele, ainda presa à cabeça e destacada da carcaça com rapidez e habilidade. Enquanto a sua carne assava, o animal começou a reaparecer nesta imitação, uma boa reprodução da sua altura e forma, mas não do seu movimento. - O exemplo não podia ser melhor - começou Aristóteles. - Isto ilustra perfeitamente a diferença entre forma enquanto entidade viva e apenas forma. Esta última não é suficiente: isto não é o boi. É um simulacro de vida mas não tem os sinais da vida. A simples forma não faz a vida. - E o que faz a vida? - perguntei por perguntar. Não apenas no caso deste boi, mas em geral? Qual é a razão de uma coisa estar morta e outra não? Aristóteles soltou uma gargalhada: - Eis o mistério da vida, Estéfano. certeza que uma estátua... ou um cadáver... A forma viva implica função e movimento. A vida é actividade concretizada materialmente. O novo ”boi”, sem sinais de vida mas permanecendo em pé, foi preso, obedientemente inerte, a um arado, como se os acontecimentos do dia tivessem sido uma simples brincadeira e pudesse voltar agora ao trabalho, como na véspera. - Olha o papá! - Mícon acenou a um senhor alto e digno, de pé com um pequeno grupo de amigos. Eram, obviamente, pessoas importantes, com o seu séquito de escravos atrás deles. Estes amigos do papá de Mícon incluíam, infelizmente, o cidadão Teosóforo do humor azedo, um homem que eu conhecia e de quem não gostava. Mas estava lá também Euforbo, muito mais novo e bem-humorado, que eu não conhecia mas de quem achava que gostaria. Trasímaco, o papá de Mícon, era um homem bem-nascido, de feições nobres e severas. Ocupara alguns cargos públicos e fizera meia dúzia de 40
  • 35. discursos que tinham sido bem-recebidos, valendo-lhe o título de orador. Pertencia a uma das famílias mais antigas de Atenas mas também era aparentado com o orador estrangeiro Trasímaco da Calcedónia, que aparece nos diálogos de Platão. Deixando o seu grupo por uns momentos, este distinto ateniense dirigiu-se cortesmente a nós: - Bom dia, Aristóteles. Vejo que tomas conta deste meu traquinas de caracóis. Isto é folga ou trabalho? - As duas coisas. Estudamos o ritual e a sua história. - E Hiparco disse que hoje à tarde vamos ler As Nuvens acrescentou Mícon. Sem comentar o facto de o sistema educativo de Aristófanes e a sua crítica satírica a Sócrates serem convenientes ou não para os jovens lerem, Trasímaco respondeu com uma aprovação simples: - Muito bem, muito bem. Gosto de ver preservados os verdadeiros costumes atenienses, como a nossa Bufónia. E quem é esta gente? Conheço Teofrasto, mas não é verdade que não sei quem são estes professores todos que trabalham na tua escola? Aristóteles explicou que eu era só um amigo e apresentou o seu grupo: Eudemo de Rodes, Demétrio de Faleros e os outros. Com ostentosa afabilidade, Trasímaco condescendeu em apresentar-nos aos amigos. Ia começar por Euforbo (porque era o melhor nascido ou talvez o mais impaciente), mas Aristóteles interrompeu-o: - Claro que conheço o meu antigo aluno! - E Euforbo, rindo, disse ao mesmo tempo: - Claro que conheço o meu velho professor! Querido mestre, como estás? - continuou, abraçando Aristóteles afectuosamente. - Há quanto tempo! Como vai o Liceu? O que te ocupa agora o tempo: a política ou os animais? Sorrindo com afecto a Aristóteles, Euforbo compunha uma imagem muito atraente. Era ligeiramente esgalgado, mas bem proporcionado. Devia ter um ou dois anos mais do que eu, mas a agilidade e a expressão de felicidade asseguravam-lhe um ar constantemente jovem. O seu cabelo castanho formava aquela coroa de caracóis apertados que atrai pintores e escultores. 41
  • 36. Euforbo tinha o porte aristocrático que chama sempre a atenção. - Então que tal? - inquiriu, virando-se para nós. É como um drama ou uma paródia, não vos parece? - Tinha um brilhozinho nos olhos. - Coitado do boi! É como um marido triste, velho e enganado. Parece-me ouvir Clitemnestra dizendo: ”Dai-me o machado!” Gostei de Euforbo: espirituoso, alegre e apreciando referências literárias, tal como eu. Ocorreu-me que se calhar fora Aristóteles que lhe pegara o hábito de fazer citações e ironizar com elas. - Mas tagarelo de mais - desculpou-se Euforbo. - Devia era apresentar a este grupo de letrados o sábio Teosóforo, o distinto Mégacles de Atenas e outros admiradores e amigos de Trasímaco. Os outros companheiros de Trasímaco eram, sem dúvida, de meia-idade, mas muito distintos; em comparação com eles, o nosso grupo parecia sem cor e desmazelado. Teosóforo dignou-se falar quando me foi apresentado: - Já conheço Estéfano - disse, indicando que o pouco que me conhecia já vínha de há muito tempo. - E este é Mégacles de Atenas - continuou Trasímaco. Mégacles tinha o cabelo curto, ligeiramente grisalho e, no meio da cabeça, uma impressionante careca que começava a ficar vermelha devido ao sol do início do Verão. Apesar do indesejável escaldão, tinha uma aparência distinta e apresentava-se muito bem vestido, com um quíton de tecido fino. Cumprimentou-nos com ar aristocrático, cortês, confiante e sério (um senhor não tem necessidade de sorrir aos seus inferiores). - É uma grande satisfação para mim conhecer-te pessoalmente. Tenho ouvido falar muito de ti, ó Aristóteles de Estagira. O teu trabalho é muito importante. Educar os nossos jovens atenienses é um grande privilégio e uma enorme responsabilidade. - Tens razão... sinto-o bem! - Aristóteles falava a sério. - Que poderia ser mais importante do que os cidadãos do futuro? Passámos alguns minutos dizendo banalidades. Trasímaco 42
  • 37. deu então umas palmadinhas na cabeça encaracolada de Mícon e perguntou se o rapaz podia ficar com ele à tarde, prometendo levá-lo ao Liceu à noite. Pai e filho afastaram-se, rodeados pelos atentos escravos. O nosso grupinho separou-se e nós, do Liceu, começámos a preparar-nos para partir. Aristóteles, porém, não tentou fàzer prevalecer as doutrinas pitagóricas, pois autorizou os rapazes e os professores que assim o quïsessem a partilhar a carne assada da praça antes de se irem embora. Teodoro não se ensaiou nada para reclamar o seu quinhão. E assim se passou o dia. Um dia que juntou o útil ao agradável. Todos tínhamos ficado a saber mais de um velho costume ateniense. O tempo estava bonito e Atenas muito bela. Além disso, conhecêramos gente nova... sobretudo 1eodoro, impressionadíssimo com os rapazes da escola, que aos seus dez anos pareciam muito mais velhos e maduros. Mas, na verdade, as coisas não foram assim tão agradáveis. Soubemos no dia seguinte que fora morto um rapaz. Acontecera na costa e não propriamente na cidade de Atenas, o que era um alívio. Mesmo assim, era um ateniense. Pelos vistos, a vítima era o rapaz que nos insultara e fizera caretas, gritando: Sou Alexandre!” Este falso Alexandre, o rapaz de cara de touro, fora morto com um objecto estranho: encontrara-se ao lado do corpo um machado antigo de bronze. Suspeitava-se que se tratava do machado que matara o pobre boi. Aristóteles foi chamado a investigar e interrogou os sacerdotes responsáveis por atirar o machado ao mar, obedecendo às ordens do julgamento ritual. Mas parece que, recentemente, se adoptara o costume de não o atirar de uma vez por todas ao mar. Isto é, era lançado nos baixios e recuperado passados uns dias. - É um machado antigo e valioso - explicou um sacerdote, em lágrimas. - Não podíamos dar-nos ao luxo de perdê-lo. Não é a mesma coisa que matar uma pessoa! E só O usamos uma vez por ano. Depois de estar no mar durante algum tempo, consideramo-lo limpo e recuperamo-lo. Os sacerdotes e os seus assistentes tinham realmente atirado o machado ao mar. Mas, na verdade, haviam-no lançado 43
  • 38. com cuidado do barco, depositando-o nos baixios, num local bem assinalado por eles. Como os sacerdotes já iam para a mesma parte da costa há vários anos, qualquer um que tivesse curiosidade suficiente para investigar o que faziam ao machado podia encontrá-lo com toda a facilidade. Mas como é que O objecto letal regressara a terra e perpetrara um crime? Entre a gente do povo, havia quem falasse de um demónio sinistro erguendo-se das águas com o machado na mão... À medida que o crime foi reconstruído, no entanto, pôs-se a hipótese de que alguns jovens desconhecidos, provavelmente pobres e vivendo naquela zona perto do mar, tivessem ”resgatado” o machado e brincado com ele, se calhar imitando a matança do boi, e desferindo um golpe fatal no rapaz com cara de touro. Como os pais do garoto eram pobres, não teriam direito a nenhuma compensação generosa, especialmente se os criminosos também fossem pobres. Por isso, não puderam fazer mais nada. Embora negando qualquer responsabilidade oficial, a cidade de Atenas deu-lhes, mesmo assim, algum dinheiro. Nenhum jovem se apresentou a confessar o crime. O machado foi julgado de novo, desta vez por um homicídio a sério, e tornou a ser condenado a ser atirado ao mar. A sentença foi executada com vigor e muitas pessoas assistiram à cena. Mas o assassino desconhecido (ou talvez só homicida acidental) não foi julgado.
  • 39. ENCONTRO COM UM MACACO Eu pensava muito no futuro. Uma das questões mais importantes era o meu casamento, que depois definiria uma grande parte da minha vida. Houvera uma altura em que esperara unir-me a uma família distinta, tomando por mulher Cármia, filha de Calímaco, mas as coisas tinham dado uma reviravolta e encontrava-me agora noivo da filha de um tal Esmicrines, que cultivava a sua terra perto da estrada para Elêusis. Esmicrines, cidadão ateniense, nem era de modo nenhum distinto nem uma pessoa simpática; na verdade, o seu temperamento desagradável era conhecido em toda a região. Mas eu fizera-lhe um pequeno favor e caíra-lhe no goto. Conhecera a filha graças às coisas estranhas e calamitosas que nos acontecem quando viajamos, mas claro que tinha de continuar a fazer de conta que não a vira para não lhe manchar a reputação. Filomela, filha de Esmicrines, era agradável, doce, bem-educada e bondosa. O casamento já não me parecia uma tarefa difícil e pesada. Discutira o casamento com Esmicrines quando eu e Aristóteles regressávamos de Delfos na Primavera. Tínhamos iniciado um longo debate relativo ao dote, mas não ficara nada assente em definitivo. Desde essa altura que trocávamos mensagens. Segundo o costume e a prática ateniense, eu ainda era novo para casar: a idade mais própria eram os trinta anos e eu ainda ia fazer vinte e seis. Mas o casamento era uma das poucas maneiras imediatas de ajudar a minha família, associando-me a outro cidadão e proprietário de terras. Era, portanto, 45
  • 40. chegada a altura de me mostrar outra vez a Esmicrines. Como queria parecer respeitável, levei comigo um escravo e um burro carregado de presentes. - Olha quem ele é! Afinal apareceste outra vez! - A primeira observação de Esmicrines não foi lá muito amável. - Mas claro - retorqui o mais calorosamente que pude. Tentava parecer calmo, masculino e bem-nascido, mas a jornada fora quente e suada. Vi com satisfação que o mal cheiroso esterco amontoado à frente da porta diminuíra um pouco, sem dúvida porque Esmicrines o usara no cultivo da terra. Ó Esmicrines, temos de conhecer-nos melhor um ao outro! - Talvez, talvez - respondeu ele num tom de dúvida. De momento, tenho muito trabalho. - Deixa-me ajudar - prontifiquei-me. - O meu escravo também pode dar uma mão. - Não sei se quero estranhos aqui. Provavelmente ias fazer tudo mal. Mas as coisas vão bem... em geral. Temos uns porquinhos na engorda e um bezerro novo. Anda ver. Esmicrines estava satisfeito por ter alguém a quem mostrar a quinta, inegavelmente muito bem tratada, embora na verdade fosse boa ideia haver alguém para ajudar no trabalho. Estava eu a pensar cá comigo como havia de abordar o assunto com tacto, quando nos dirigimos para casa. - O tempo está tão bom que podemos sentar-nos cá fora - sugeriu ele. - Talvez Filomela tenha arranjado alguma coisa para comermos. Não é que cozinhe muito bem... sinto-me envergonhado por apresentar a um hóspede tão distinto o que ela faz, mas é o melhor que tenho. Como reconheci nas suas palavras a modéstia, o tacto e as boas maneiras usadas em sociedade, repliquei elogiando os bolos de aveia, rolos de couve, queijos e doces obviamente preparados para a ocasião. Foi a velha criada que nos serviu. Pressenti a presença de Filomela atrás da porta da cozinha e fiz votos para conseguir vê-la. Já sabia que ela era adorável: tinha olhos cinzento-esverdeados e o cabelo castanho, com reflexos cor de bolota. ”Quando for minha mulher, não trabalhará pensei. Mas claro que não o disse a Esmicrines, que estava mortinho por começar a negociar. 46
  • 41. - Bem, suponho que vais querer casar-te em Gamélion, como toda a gente, embora não seja nada agradável andar pelas estradas no Inverno. Na verdade, não sei se posso ir... - Ó senhor, tens de vir... a minha casa ficaria desonrada para sempre se não viesses. A noiva tem de ser levada a casa da família do marido na presença de todos os seus parentes. Vai ser um lindo cortejo. - Os lindos cortejos de pacotilha custam dinheiro, como verás ainda antes de chegar a velho. E de certeza que vai chover! Tanta roupa fina deitada à rua! Filomela ainda se constipa. O frio ataca-lhe o peito e terás o prazer e a despesa de a enterrar em vez de dormires com ela. Oh, que triste ver a minha filha, a minha única filha, baixar à terra antes de mim! - Não penses em coisas tristes - protestei com suavidade. - A minha família vai gostar muito de a ver. Garanto- te que a tratará com todo o carinho. - Pois, mas vou perdê-la, o que é um osso duro de roer. Terei de arranjar um dote e perderei uma trabalhadora. Quem vai ajudar-me na quinta? - Já pensei nisso. Deixa-me dar-te um escravo para te ajudar. Posso fazer isso na altura do casamento e... - Escravos! - Cuspiu no chão. - Quero alguém da família, um cidadão a sério, alguém que se interesse. Não sei o que pensaram os deuses para não me darem filhos homens... que maldição! E outra praga é a selvagem da minha mulher, que me abandonou. - Quem é ela? Onde está? - perguntei de supetão, embora andasse há muito tempo a pensar como poderia fazer estas duas importantes perguntas. - Suponho que é viva? - A minha mulher? Que vagueie muito tempo nas margens do Estige e não tenha uma moeda para pagar a travessia quando chegar a sua hora! A minha mulher é viva e floresce. Pelo menos florescia, da última vez que soube dela. - Disseram-me que ela... não sei o nome nem a família... te deixou e foi viver com o filho do primeiro marido. - Não acrescentei que o meu informador fora um rapazinho que estava de visita a uma casa das redondezas na altura em que conheci o irascível lavrador. 47
  • 42. - Não sei como se espalham tantas mentiras. Chama-se Filonice e é filha de Filonico do Himeto, um homem bem-nascido e com propriedades. É verdade que já fora casada antes, mas não por muito tempo, porque o marido morreu no mar. Não teve filhos desse primeiro casamento. Ainda era nova quando nos casámos: tinha cerca de dezassete anos e eu mais de trinta e cinco. A minha mulher, Filonice, deu-me uma filha, Filomela - fez um gesto na direcção da cozinha -, de pois teve um filho que nasceu morto e a seguir deu à luz um rapaz, que morreu passado pouco tempo. Era um bebé, nunca recebeu o seu khoes. Assenti. As crianças têm direito a uma comemoração especial quando chegam aos três anos. No festival da Primavera, as Antestérias, cada uma recebe um khoes ornamentado, um recipiente que comemora o facto de a criança ser viável e poder considerar-se uma pessoa dali em diante. O irmão de Filomela, tal como tantos outros, morrera na primeira infância. - Não é invulgar os bebés morrerem assim tanto - disse Esmicrines, concordando com os meus pensamentos. - Mas Filonice ficou muito mal. Depois, calou-se: não falava nem comia... uma inútil. O pai dela veio buscá-la e levou-a para casa ”por uns tempos”, ”até ficar boa”. Suponho que nunca se achou recuperada, porque nunca mais voltou. Embora o pai já tenha morrido, continua em sua casa. - Mas... - comecei. - Podias divorciar-te e casar e Talvez tivesses então mais filhos... - Eu sei. Já quase o fiz - continuou. - Quando era novo, vigoroso e suficientemente estúpido. Não vou casar outra vez, nem penses. O pai dela não tinha o direito de a levar, pois deu-me uma filha viva. Podia tê-lo levado a tribunal, exigindo-a de volta. No entanto, nunca soube que dormisse com mais nenhum homem. Suponho que sempre achei que regressasse. Qualquer dia”, pensava eu, ”recebo uma carta a dizer: ”Chego daqui a três dias com uma caixa de roupa nova. Beijos, Filonice.”” Mas não, nada disso. Foi uma tonrice da minha parte ter casado fora do meu demo. Se ela fosse filha de algum vizinho, estaria mais à mão. A história dava muito que pensar: e se a mulher fosse louca 48
  • 43. e a loucura uma doença de família? Era uma possibilidade desagradável. Por outro lado, não querer viver com Esmicrines não era sinal certo de insanidade. Pelo menos, não era divorciada: acho que não conseguiria decidir-me a casar com a filha de uma mãe divorciada. Filonice portara-se muito mal, de facto. Mas o seu comportamento lamentável era talvez culpa dos pais... e falta de persistência, para já não dizer de afecto, da parte do marido. Para Filomela é que devia ser duro ter sido abandonada assim. Mas se calhar tivera sorte por não ser obrigada a conviver com uma madrasta. - Devia ir ver a tua propriedade - disse Esmicrines. Não a tua casa da cidade, mas a tua quinta. - Claro - retorqui. - Temos oliveiras excelentes. O resto está talvez um bocado abandonado. Precisamos de reparar alguns edifícios. Quem toma conta da propriedade é o meu criado Dametas e a mulher, Tamia. São fiéis e cuidadosos. Mas já estão muito velhos e trémulos. Tenho de arranjar mais alguém... mas claro que lhes dou casa e que eles continuam a fazer o que podem. - Pois, quando são abandonadas, as quintas vão-se degradando. Se não temos cuidado, depressa ficamos sem nada. Bem, mas eras muito novo e ignorante para fazer grande coisa quando o teu pai morreu. E pelo menos é terra ateniense. Isso é o mais importante. Mas há outro filho homem, não é? - É. O meu irmão mais novo, Teodoro. Não sou o único herdeiro e ele tem de estar sempre amparado - expliquei. Era melhor pôr tudo preto no branco. Teodoro teria sempre direito à propriedade da família. - Espero que não tenha de se preocupar com estas coisas como eu. E muito mais novo. Uma criança. - Ah, bom, quanto mais rapazes melhor. É mais um par de braços para ajudar. - Esmicrines não parecia descontente. - Se calhar até é melhor para a minha filha... se te acontecer alguma coisa, e como não tem irmãos... percebes? Mas... - acrescentou em tom pensativo, olhando a distância -... nunca pode faltar nada a Filomela e aos filhos. - Claro! - exclamei. - Gostaria que arranjássemos as coisas de maneira a que 49
  • 44. os seus filhos ficassem com a minha propriedade, aconteça o que acontecer. Se tu morreres, e visto que o teu irmão tem parte da propriedade, então ele e Filomela podiam dividir a casa de Atenas. Quer dizer, ele arrendava a nossa parte e dava-lhe os lucros ou vivia com ela e pagava-lhe a metade que lhe cabe. - Vou pensar nisso - repliquei com cuidado. - Parece-me justo que os teus netos herdem a tua terra. Quanto às despesas imediatas, posso dispensar já algum dinheiro da venda do azeite excedente do ano passado... para os lençóis, alguma mobília nova e uma festa de casamento. Creio que posso garantir comida e roupa a Filomela e aos filhos. - Bem, a minha filha e os pequenos não precisarão de roupa enquanto eu for vivo, faças tu o que fizeres. Disso podes ter a certeza. E... não quero fixar já uma quantia, mas acho que posso prometer-te um bom dote. No entanto, quero segurança, percebes? - Com certeza - anuí. - Posso transferir parte da terra do mesmo valor do dote. - Isso... e tem de ser terra que não é herança nem inalienável, mas que possa ser vendida com facilidade. Se morreres ou te divorciares dela, ou se ela morrer e deixar filhos, ficaremos garantidos. É sempre melhor jogar pelo seguro. É por isso que quero ver a tua propriedade antes de adiantar números. Preciso de me certificar de que tens alguma coisa boa para oferecer. Vê lá, não vás chamar campo a um terreiro coberto de pedras! Negociar com o meu futuro sogro era um desafio à minha calma, mas engoli em seco e tentei parecer o mais amável possível. - É uma pena que ela não possa deitar a mão ao dinheiro da mãe! - exclamou Esmicrines, seguindo os seus pensamentos. - Ainda me deviam dinheiro do dote, mas tiveram o descaramento de insistir que não, porque ela regressara... embora não estivesse divorciada, como te disse. E a família tem posses. Alguns dos seus bens deviam ser para Filomela. Têm uma bonita propriedade no Himeto, e o pai da minha mulher ia muito bem. Como este avô materno de Filomela já morreu, 50
  • 45. ela devia herdar parte do que ele deixou. Aquela gente do Himeto tem dinheiro, podes ter a certeza! - Porque não pediste o que lhe cabia por herança? perguntei, um tanto surpreendido. - Pensei nisso, mas nunca tive tempo. A cidade não é para mim. - Mas, como cidadão, vais à Eclésia, não? - indaguei. - De vez em quando. Mas diz-me uma coisa: é razoável esperar que quem trabalha a terra largue tudo de dez em dez dias e palmilhe tantos estádios até à cidade só para ouvir um bando de cidadãos aperaltados? Fico logo cansado mesmo quando são grandes oradores como Demades, Demóstenes ou Hiperides. E verdade que agora nos pagam para lá ir, mas mesmo assim não vale a pena. E a cidade é tão suja e barulhenta! Cheia de carroças e lixo! Fiquei um tanto espantado com esta descrição, mas tenho de admitir que nunca tinha pensado no peso da cidadania para a gente do campo. - Quanto à lei, o serviço de júri já chega - continuou Esmicrines. - Não me apetece meter-me em acções judiciais, pois isso implica ter de contratar retóricos... e perder dias e dias em Atenas, arengando pelos tribunais. Eu não! E às vezes não é nada bom para a reputação de uma pessoa nem da família. Imagina termos de contar os nossos problemas à cidade toda! Mas tu és novo e tens instrução. Com os da tua laia, é só conversa e nada de trabalho. Talvez te saias melhor do que eu. Mas não tenhas pressa. - Realmente, devia tentar - concordei. - Onde tenho de ir? - A minha mulher Filonice vive onde o pai viveu, na encosta ocidental do Himeto. O pai dela já morreu, como te disse, mas apareceu outro homem, que desposou a mãe e vive com ela como se fosse o dono da terra! Na verdade, este padrasto não manda nada, porque Filonice tem um irmão chamado Fílocles. Não me lembro bem de onde está nem do que faz. Não o vejo sei lá desde quando. Era uma novidade. Se a mãe de Filomela tinha um irmão, então este tio era da maior importância. Chefe da família, tinha 51
  • 46. uma relação quase parental com a irmã, Filonice, e, de certa forma, com a própria Filomela. Este Fílocles devia ser informado do casamento o mais cedo possível. Talvez se mostrasse desagradável e relutante em deixar sair da família uma parte do dinheiro que tinha, mas a lei e o costume atribuíam-lhe certas obrigações face à sobrinha. Na verdade, eu devia tentar falar com ele. Entretanto, combinei com Esmicrines uma visita à nossa quinta e uma ida à casa da cidade, para ele poder vê- la e conhecer o meu irmão. - Ainda temos muito que falar - disse Esmicrines. Mas parece-me que agora podemos marcar o noivado formal para... digamos, Boedrómion? No fim do Verão. Por essa altura, estou em condições de dizer o montante exacto do dote e já devemos ter combinado tudo entre os dois. Não haverá então qualquer obstáculo ao casamento. Parecia-me bem. No engye formal, o pai da rapariga entregar-me-ia a filha, colocando-a sob a minha protecção e, como é costume entre as melhores famílias, anunciaria ao mesmo tempo o montante do dote. Depois deste anúncio público e formal, não podíamos voltar atrás. Começar o Outono com esta declaração parecia-me uma boa ideia, e havia muito tempo para combinar o casamento. Ainda tinha de convencer a minha mãe. Era verdade que ia desposar a filha de um cidadão de Atenas, nascido num demo ateniense. Isso, pelo menos, contava em abono do casamento. Mas a minha mãe ia ficar desiludida por eu não contrair laços matrimoniais com a filha de um dos nossos cidadãos mais abastados, morando numa das zonas mais nobres de Atenas. Ao contemplar a paz do Verão no campo, no entanto, senti que valia a pena... e mais ainda quando entrevi o cabelo e o rosto de Filomela atrás da porta. As coisas não foram muito mais longe dessa vez, embora tenha ficado dois dias em casa de Esmicrines. Os presentes foram aceites de boa vontade. Eu não me esquecera nem sequer de Geta, a velha criada e antiga ama de Filomela: são pessoas que podem ser muito úteis. Parti por fim para casa; o animal de carga ia muito mais leve, mas o meu coração não. Dei uma 52
  • 47. folga ao burro e parti a pé com o meu escravo, que na verdade tinha jeito para os animais: o burro trotava docilmente ao seu lado. Era uma espécie de compensação pela sua falta de esperteza e habilidade manual. Perdera um bocado de um dedo; por felicidade, não tinha nada nas pernas, e era bom a fazer recados. Quando chegámos a Atenas, mandei-o regressar à quinta com o burro e continuei sozinho rumo à ágora. No fim da tarde, quando o sol é menos sufocante, as pessoas saem à rua a ver o que há para ver. Mas ainda estava calor. Era o tipo de dia em que os cães andam pelos edifícios públicos em busca de um chão de mármore onde possam deitar-se no fresquinho e não arranjam melhor sítio para descansar do que algum elegante pórtico ou os degraus de um templo. Fora ali vaguear para saber novidades, mas o cheiro de uma das lojinhas de comida atraiu-me a atenção e decidi comer alguma coisa. Estava debruçado na mesa, cismando nos meus assuntos, quando O vigor da multidão e o calor de uma conversa atrás de mim me obrigaram a deixar os meus pensamentos de lado. - Os impostos ainda nos matam! - resmungava um cidadão de cabelo grisalho para um amigo, um homenzinho enfezado que pareceu concordar. Mas um terceiro, uma criatura forte e careca, tomou a palavra: - Não, os impostos são a maneira de voltar a fortalecer a nossa cidade. Foram eles que nos permitiram ter muralhas e navios de guerra novos. Se não queremos estar sob o jugo da Macedónia, temos de pagar impostos e cara alegre. E o que Atenas faz: nesta Primavera, ficámos a ver Antípatro esmagar os Espartanos. Foi nesta altura que olhei para o grupo, pensando que aquilo era um atrevimento num sítio onde podia haver emissários de Antípatro ou outros simpatizantes (para não dizer espiões) macedónios. - Ora, Apolónio! Que disparate! Ninguém paga impostos de cara alegre - retorquiu o homenzinho, cujos caracóis escuros sobre a testa pareciam a plumagem de um pássaro. Mas pagamos... esperando que Atenas volte a ser grande e temida. 53
  • 48. - É só pensarmos na riqueza e nos tesouros de Alexandre - replicou o ousado Apolónio. - A riqueza de Persépolis! Agora dizem-nos que incendiou Persépolis e guardou tudo na Babilónia. - Esta confusão e a necessidade de impostos altos devem-se aos desejos ridículos de uma família que se diz ”real” - tornou o homenzinho de caracóis escuros sobre a testa. - Uma família bárbara lá da Macedónia. Houve tempos em que se discutia se os Macedónios podiam participar nos Jogos Olímpicos. Cá para mim, não são nada gregos, por mais que se pavoneiem. - Oh, mas não, são tão gregos! - riu outro homem que se juntou ao grupo. Reconheci Euforbo, o esgalgado e alegre antigo aluno de Aristóteles, que o saudara calorosamente na matança do boi. - Como dizes? - Devem ser... esforçam-se tanto por ser gregos - explicou Euforbo, continuando: - O nosso Alexandre percorreu as muralhas de Tróia para imitar Aquiles derrotando Heitor. Não é comovente? Alexandre faz tudo para ser grego... anda com as obras de Homero numa caixa. É mais helénico do que Helena. Coitado, tem de segurar bem a caixa para não perder a cultura. - Tens razão quando dizes que ele não é um homem da Ática - concordou o careca. - Atenas tem de voltar a afirmar-se. A Liga de Atenas devia ter sangue novo. Podíamos suportar o nosso governo e proteger os nossos colonos com o dinheiro das ilhas e cidades libertadas. Se vai haver um império, que seja de Atenas e não da Macedónia. Os Atenienses não têm reis. O jovenzinho da Macedónia que vá para Péla dizer que é ”real” no seu buraco. - É revoltante a maneira como estes estrangeiros estão a tomar conta da nossa cidade - acrescentou um cidadão mais novo, juntando-se ao grupo na peugada de Euforbo. Reconheci o recém-chegado, um homem solene com atitude de sacerdote: Eurimedonte era alto, de corpo frágil, rosto bonito como uma máscara, olhos muito grandes e nariz direito. Tinha o porte de um aristocrata, mas o rosto distinto, sensível, rígido e sério parecia mais o de um poeta trágico... embora, que eu 54
  • 49. soubesse, não o fosse. Era um homem muito importante, membro dos Eumólpidas, um dos clãs mais antigos. Os descendentes de Eumolpos guardam o templo e os rituais de Deméter e Perséfone em Elêusis. Ninguém pode participar nos mistérios sem a presença de um eumólpida, e os sacerdotes de De méter pertencem a este clã, que tem alguns membros muito religiosos... mas nem por sombras todos. - O que dizes é verdade - continuou com a sua voz clara e precisa. - Estes homens da Macedónia que se dizem ”reais” são gente comum, mesmo quando bem-tencionados. Encorajam a presença de outros estrangeiros e enfraquecem os nossos costumes, religião e vida política. Nós, Atenienses, devíamos resistir aos seus modos insidiosos. Não concordas, Hiperides? Virei-me ao ouvir a pergunta, pois o homem que agora se juntava ao grupo era uma pessoa conhecida. Hiperides, o famoso orador, já tinha mais de sessenta anos. Era bastante velho, mas tão activo que parecia mais novo. Os moralistas dizem que muito sexo pode prejudicar a saúde e apressar a velhice, além de nos dilapidar a fortuna, mas Hiperides conservava tanto a saúde como a fortuna apesar de manter três belas amantes ao mesmo tempo (desde que a esposa morrera). Era impressionante, se bem que de feições nada doces (mas o facto é que as mulheres pareciam gostar bastante). Hiperides era facilmente localizável, mesmo no meio de uma multidão: muito alto, o rosto e as orelhas compridas (como as asas de um vaso decorado) destacavam-se acima das cabeças dos outros homens. Na mocidade, estudara com Platão. Ao princípio, escrevia apenas os discursos dos outros, mas depois ficara famoso como intercessor e até orador. Opusera-se aos Macedónios e perseguira os seus apoiantes no tribunal ou defendera os simpatizantes antimacedónios. No entanto, Hiperides não era azedo e sarcástico como Demóstenes, e sim um homem alegre e jovial, que conquistava as pessoas (dentro e fora do tribunal) com a sua afabilidade e fraquinho por uma boa piada. - Não é verdade aquilo que Eurimedonte diz, Hiperides? o careca. - Temos de afastar o jugo da Macedónia, tanto em pensamento como na prática. 55
  • 50. - Agora é tarde - retorquiu Euforbo, dirigindo-se gravemente a Hiperides. - Atenas foi esmagada... Demades tinha razão ao dizer que Atenas perdeu um olho quando Tebas foi destruída. Ágis e os seus espartanos cobriram-se de glória e o rei morreu como um herói no campo de batalha. E nós? Ficámos sentados nas nossas casas a falar do tempo. Atenas curva-se aos governantes divinos da Macedónia. - Não - replicou Hiperides. - Estes governantes são simples mortais. Repararás que, apesar das homenagens prestadas ao rei Filipe e desta moda de lhe chamar ”imortal”, a verdade é que, agora, não passa de um mero cadáver. Digo-te que nunca nenhum tirano caído se ergueu dos mortos; no entanto, já houve muitas cidades aparentemente destruídas que recuperaram o seu antigo vigor. - Mas como podem resistir os atenienses patrióticos? inquiriu o careca. - Tu, Hiperides, exortaste-nos a armar os escravos e os residentes estrangeiros! Mas isso seria ir contra a constituição. Tal como, outrora, nos libertámos da tirania, temos de arranjar uma maneira própria de resistir. Talvez Harmódio e Aristogíton nos mostrem o caminho! O patriota careca fez um gesto na direcção do famoso grupo de estátuas. Claro que não se viam do sítio onde estávamos, porque a estrutura do novo templo de Apolo (que finalmente estava a ser reconstruído) tapava-nos a visão. As famosas estátuas de bronze lembravam os dois heróicos jovens que (gerações antes) tinham assassinado um tirano. O jovem Harmódio aponta a espada ao tirano enquanto Aristogíton, mais velho e mais forte, segura a espada por cima da sua cabeça, pronto a decapitá-lo. É um conjunto muito agradável... e ainda mais porque o escultor não se deu ao trabalho de reproduzir o homem que está prestes a ser morto, poupando- nos assim a apiedarmo-nos dele. - Bem, não devemos esquecer que são apenas cópias comentou Euforbo. - Os Persas roubaram as verdadeiras. Mas agora Alexandre vai mandar-nos as originais de Persépolis. Não é amável? Acho o gesto muito agradável... não são muitos os tiranos que têm assim consideração pela oposição Euforbo passou os dedos pelo cabelo e fez uma expressão diferente, uma máscara rídícula de vaidade e presunção: 56
  • 51. - ”Cidadãos de Atenas, eu, Alexandre Magno, o milagre dos Helenos...”, é o que ele se acha, ”...universalmente enaltecido maravilha entre os jovens, ofereço-vos.., ofereço-vos de graça, sem custos adicionais... um objecto que é uma lição: primeiro, matai o tirano... se conseguirdes chegar-lhe!” - Estás sempre a brincar, Euforbo - ralhou o cidadão careca. Euforbo encolheu os ombros e tirou da manga um par de dados de ouro: - Não podemos estar sempre sérios. Deixemos a política e joguemos aos dados... assim pelo menos alguns podem ganhar. Vai uma aposta? - Os dados de ouro giraram no ar e brilharam à luz quente do Sol. - Desembaraçámo-nos dos tiranos antes e podemos voltar a fazê-lo! - agitou-se Apolónio. - E vamos libertar- nos dos que aceitam subornos da Macedónia para trair o seu país! - Calma, Apolónio - disse Hiperides. - Nada de violência, peço-vos. Mais cuidado com o que se diz, meus senhores. Quanto aos subornos de qualquer tipo, a Eclésia e todos os bons cidadãos sempre foram contra. - Ó Hiperides - começou Eurimedonte -, não são só os homens da Macedónia que estrangulam Atenas, e sim os estrangeiros de todos os tipos. Já é mau que a cidade seja metida no mesmo saco dos outros estados gregos com essa Liga que Filipe cozinhou em proveito próprio. Vê como estamos a ser invadidos por cirenaicos, fenícios e o resto... assim como mendigos, que chegam vindos dos territórios reconquistados da Ásia. - E comerciantes... fenícios. Escumalha egípcia! - atirou o homenzinho de caracóis escuros em voz colérica. - Na minha opinião, temos de nos desembaraçar deles todos, Hiperides! - Não pode ser - volveu-lhe Euforbo. - Sabes muito bem disso, Epícrates. Há muitos atenienses que adoram os perfumes egípcios, não é verdade? Nunca nenhum de nós deu um presente bem cheiroso a uma amante Ou... - virando-se para Epícrates -... a um rapazinho, escravo ou livre? - Mas há-de fazer-se justiça - teimou o homenzinho 57
  • 52. chamado Epícrates, corando muito. - Há-de fazer-se justiça! Hiperides está a ajudar-me contra aquele porco egípcio e a prostituta que arranjou para me tentar! Rua com toda essa canalha! - Isso é comigo, meus senhores? - Um outro homem aproximara-se do grupo. Ao contrário do amontoado de sérios oradores políticos, parecia satisfeito e bem-disposto. - Somos canalha? Virei-me e percebi porque usava o plural. O recém-chegado não estava sozinho: tinha ao ombro um macaco, por sinal nada pequeno. - Somos canalha? - Falava em voz alta e afectada, como se quisesse imitar um discurso imaginário do macaco. - Pois que grupo tão canalha... palavra que alguns até cheiram mal! Como o macaco estava nesse momento a fazer uma careta, palavras condisseram muito bem com a acção. O animal tirou uma peça de fruta do saco do dono e começou a comê-la, deixando escorrer o sumo. - Que animal tão grande e mal-educado! - exclamou alguém ao meu lado. Era Teofrasto. - Saudações, Estéfano acrescentou. - Ainda bem que te encontro. Tenho de falar contigo... Foi interrompido pelo macaco, que lhe cuspiu para a cabeça um pedaço de polpa molhada. O dono soltou uma gargalhada. Teofrasto tratou logo de limpar a cabeça com a ponta da capa, que ficou imediatamente manchada de sumo de fruta. Apesar da arrogância do animal e do azar de que fora vítima Teofrasto, o dono do macaco pareceu ficar na mesma. Era um homem de aspecto agradável, com o cabelo bem tratado, os dentes brancos e limpos e a capa de boa qualidade. Naquele momento, o cabelo bem tratado estava a ser alvo da baba do macaco. O animal saltava-lhe nos ombros: todos os olhos estavam certamente em cima dele. Tendo conseguido a nossa atenção, o macaco mostrou-nos o corpo com o que parecia ter orgulho. - Parabéns, Cálias. Acho que nunca vi nenhum tão grande - disse Teofrasto com secura. - Ahh! - riu Cálias, acariciando o bicho. - Não se arranjam 58
  • 53. muitos como este. Veio de longe, para lá do Egipto. Os negros levam-nos para o Egipto, até para a nova cidade que Alexandre está a construir. É lá que se compram. - Que o teu administrador os compra, queres tu dizer interrompeu Epícrates com azedume. - Tinha-me esquecido do teu negócio por esse mundo, transportando mel do Himeto para o Egipto, coisas persas para Atenas e por aí fora. - Agora há bons mercados - anuiu o dono do macaco. Até melhores desde que as cidades libertadas da Lídia e da Jónia acalmaram. Um grande volume de negócios. No estrangeiro, pagam bem por todo o tipo de coisas. Cães, por exemplo. É incrível como os cães são procurados. Então os espartanos! E os de Melita também... quer dizer, não do meu demo, mas da ilha. - Melita... que nem sequer é grega! Uma ilha onde os fenícios e os comerciantes de Cartago parecem formigas! - Mas tem bons cães. De ossos finos, delgados e pequenos. Foi por isso que chamei Galhinho à minha. Sentava-se no meu colo. Acho que conhecem o meu cão... cadela preferida de Melita... - Como está ela? - perguntou Euforbo com delicadeza. Enquanto falava, brincava com os cintilantes dados de ouro, fazendo-os girar nas costas da mão sem sequer olhar para eles. Devemos sempre inteirar-nos solicitamente da saúde das cadelas dos amigos. - Infelizmente, a pobre Galhinho morreu. Uma tristeza. Enterrámo-la com toda a pompa no jardim. Mandei fazer-lhe uma bonita pedra tumular. Tens de vir vê-la. Diz assim: Adeus, minha querida. O teu amo entrega às sombras a sua Galhinho. Aqui jaz um pedaço de Melita. - Muito comovente. - Quando fazes uma coisa, fá-la bem feita - observou Apolónio. - Não fizeste recentemente uma oferenda a Asclépio por causa do teu dedo grande do pé? Nunca vi bronze de tão boa qualidade nem um dedo tão perfeito. 59
  • 54. - Ora, uma insignificância - riu o homem do macaco. O animal levantou-se de repente e saltou-lhe dos ombros para o chão, onde se pavoneou como um sátiro, abanando o comprido pénis. Entretanto, juntara-se uma pequena multidão, que soltava gargalhadas e gritos de encorajamento: - Cuidado, Euforbo... parece que o teu traseiro o atraiu! - Quanto lhe pagas para fazer o trabalhinho em casa, Cálias? - Ei, o bordel fica aqui perto! Pede a esse senhor que vá lá. Tem mais para oferecer às raparigas do que muitos clientes! - Anda, Teseu. - Cálias abanou a pequena corrente de ouro (seria de ouro puro?) e começou a atravessar a ágora. O macaco resistiu, deitando-se, mas a corrente fez com que fosse arrastado atrás do seu apressado dono. O animal vingou-se uma última vez. Ao pôr-se em pé, urinou copiosamente, salpicando quem pôde, incluindo a multidão de espectadores, que foi apanhada desprevenida. O bicho pareceu ficar muito satisfeito quando viu toda a gente a praguejar e a fugir. Depois, afastou-se com ligeireza, trotando atrás do dono e fazendo caretas. - Que bicho horrível! - exclamou Teofrasto. - Já houve grandes aristocratas e generais na família de Cálias. Agora, olha ao que chegou: um homem que pavoneia cães e macacos! - Bem, é mais feliz do que os que estavam com ele retorqui. - Muitos daquela família foram ricos e... no mínimo, bem-dispostos. Um dos antepassados de Cálias não tinha fama de muito extravagante antes de ser general? Não chegou mesmo a ser acusado de sacrilégio? - Sacrilégio? Que sacrilégio? - Era o grave cidadão Teosóforo, que eu tentara evitar no dia do assassínio do boi. Tinha razões para acreditar que não gostava de mim, e fiquei surpreendido quando se me dirigiu formalmente, ignorando Teofrasto: - Bom dia, Estéfano, filho de Niciarco. - Retribuí-lhe a saudação, esperando que seguisse o seu caminho, mas ele continuou: - Sacrilégio... palavra terrível. Todos devíamos ter cuidado. A nossa segurança depende de evitarmos constantemente semelhante ultraje. Tu, ó Estéfano, andas com filósofos, que nem sempre são imunes a uma tal acusação. Os 60