4. 4 ´
SUMARIO
2.15 Coroa Negra e Rosa Negra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
2.16 Instru¸˜es para Kali Yuga . . . . . . . . . . . . . . . . . .
co . . . . . . . . . 52
2.17 Contra a Reprodu¸˜o da Morte . . . . . . . . . . . . . . .
ca . . . . . . . . . 54
2.18 Sonora Den´ncia do Surrealismo . . . . . . . . . . . . . . .
u . . . . . . . . . 57
2.19 Por um Congresso de Religi˜es Estranhas . . . . . . . . . .
o . . . . . . . . . 58
2.20 Terra Oca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
2.21 Nietzsche e os Dervixes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
2.22 Resolu¸˜o para os anos 1990: Boicote ` Cultura Policial!!!
ca a . . . . . . . . . 64
Este livro foi lan¸ado pela Conrad Editora do Brasil – 2003.
c
Tradu¸˜o de Patricia Decia & Renato Resende
ca
www.conradeditora.com.br
Vers˜o digital baseada em uma c´pia do livro publicada pelo CMI:
a o
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/12/296700.shtml
Esta vers˜o foi revisada de acordo com o original em inglˆs dispon´vel em:
a e ı
http://www.hermetic.com/bey/taz cont.html
Setembro de 2007.
http://catarse.co.nr/hakimbey/
(Dedicado a Ustad Mahmud Ali Abd al-Khabir)
5. Cap´
ıtulo 1
Caos: Os Panfletos do Anarquismo
Ontol´gico
o
1.1 Caos
O Caos nunca morreu. Bloco intacto e primordial, unico monstro digno de adora¸˜o,
´ ca
inerte e espontˆneo, mais ultravioleta do que qualquer mitologia (como as sombras `
a a
Babilˆnia), a original e indiferenciada unidade-do-ser ainda resplandece, imperturb´vel
o a
como as flˆmulas negras fren´tica e perpetuamente embriagada dos Assassinos1 .
a e
O caos ´ anterior a todos os princ´
e ıpios de ordem e entropia, n˜o ´ nem um deus nem
a e
uma larva, seu desejos primais englobam e definem todas coreografia poss´ ıvel, todos ´teres
e
e flog´
ısticos sem sentido algum: suas m´scaras, como nuvens, s˜o cristaliza¸˜es da sua
a a co
pr´pria ausˆncia de rosto.
o e
Tudo na natureza, inclusive a consciˆncia, ´ perfeitamente real: n˜o h´ absolutamente
e e a a
nada com o que se preocupar. As correntes da Lei n˜o foram apenas quebradas, elas
a
nunca existiram. Demˆnios nunca vigiaram as estrales, o Imp´rio nunca come¸ou, Eros
o e c
nunca deixou a barba crescer.
N˜o. Ou¸a, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe id´ias de bem e mal,
a c e
infundiram-lhe a desconfian¸a de seu pr´prio corpo e a vergonha pela sua condi¸˜o de
c o ca
profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-
no com a falta de aten¸˜o, entediaram-no com a civiliza¸˜o e todas as suas emo¸˜es
ca ca co
mesquinhas.
N˜o h´ transforma¸˜o, revolu¸˜o, luta, caminho. Vocˆ j´ ´ o monarca de sua pr´pria
a a ca ca e ae o
pele – sua liberdade inviol´vel espera ser completa apenas pelo amor de outros monarcas:
a
uma pol´ ıtica se sonho, urgente como o azul do c´u.
e
Para lograr abrir m˜o de todos os acentos e hesita¸˜es ilus´ria da hist´ria, ´ preciso
a co o o e
evocar a economia de uma Idade da Pedra lend´ria – xamˆs e n˜o padres, bardos e n˜o
a a a a
senhores, ca¸adores e n˜o policiais, coletores paleoliticamente pregui¸osos, gentis como
c a c
sangue, que ficam nus para simbolizar algo ou se pintam como p´ssaros, equilibrados
a
1
O autor refere-se aos Hassasin ou Hassisin (“consumidores de haxixe”), membros de uma seita islˆmica
a
secreta que durante as Cruzadas emboscavam l´ ıderes crist˜os. Eles agiam supostamente sob a influˆncia
a e
de haxixe, da´ seu nome. Ver p´gina 12 (N.T)
ı a
5
6. 6 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
sobre a onda da presen¸a expl´
c ıcita, o agora-sempre atemporal.
Agentes do caos lan¸am olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa capaz de suportar
c
ser testemunha de sua condi¸˜o, sua febre por lux et voluptas. Estou desperto apenas
ca
no que amo e at´ o limite do terror – todo o resto ´ apenas mob´ coberta, anestesia
e e ılia
di´ria, merda para c´rebros, t´dio sub-r´ptil de regimes totalit´rios, censura banal e dor
a e e e a
desnecess´ria.
a
Avatares do caos agem com espi˜es, sabotadores, criminosos do amor louco, nem ge-
o
nerosos nem generosos nem ego´ ıstas, acess´
ıveis como crian¸as, semelhantes a b´rbaros,
c a
perseguidos por obsess˜es, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terr´
o ıveis, espe-
lhos para a contempla¸˜o, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos e sentidos.
ca
Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entres as paredes da Igreja, do Estado, da
Escola e da Empresa, todos os monolitos paran´icos. Arrancados da tribo pela nostalgia
o
selvagem, escavamos em busca de mundos perdidos, bombas imagin´rias.
a
A ultima proeza poss´ ´ aquela que define a pr´pria percep¸˜o, um invis´ cord˜o
´ ıvel e o ca ıvel a
de ouro que nos conecta: dan¸a ilegal pelos corredores do tribunal. Seu eu fosse beijar vocˆ
c e
aqui, chamariam isso de um ato de terrorismo – ent˜o vamos levar nossos rev´lveres para
a o
a cama e acordar a cidade ` meia-noite como bandidos bˆbados celebrando a mensagem
a e
do sabor do caos com um tiroteio.
1.2 Terrorismo Po´tico (TP)
e
Dan¸ar de forma bizarra durante a noite inteira nos caixas eletrˆnicos dos banco.
c o
2
Apresenta¸˜es pirot´cnicas n˜o autorizadas. Land-art , pe¸as de argila que sugerem es-
co e a c
tranhos artefatos alien´
ıgenas espalhados em parques estaduais. Arrombe apartamentos,
mas, em vez de roubar, deixe objetos Po´tico-Terroristas. Seq¨estre algu´m e o fa¸a feliz.
e u e c
Escolha algu´m ao acaso e o conven¸a de que ´ herdeiro de uma enorme, in´til e
e c e u
impressionante fortuna – digamos, 5 mil quilˆmetros quadrados na Ant´rtica, um velho
o a
elefante de circo, um orfanato em Bombaim ou uma cole¸˜o de manuscritos de alquimia.
ca
Mais tarde, essa pessoa perceber´ que por alguns momentos acreditou em algo extraor-
a
din´rio e talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existˆncia.
a e
Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (p´blicos ou privados) onde vocˆ
u e
teve uma revela¸˜o ou viveu uma experiˆncia sexual particularmente inesquec´ etc.
ca e ıvel
Fique nu para simbolizar algo.
Organize uma greve em sua escola ou trabalho em protesto por eles n˜o satisfazerem
a
a sua necessidade de indolˆncia e beleza espiritual.
e
A arte do grafite emprestou alguma gra¸a aos horr´
c ıveis vag˜es do metrˆ e s´brios
o o o
monumentos p´blicos – a arte-TP tamb´m pode ser criada para lugares p´blicos: poemas
u e u
rabiscados nos lavabos dos tribunais, pequenos fetiches abandonados em parques e restau-
rantes, arte-xerox sob o limpador de p´ra-brisas de carros estacionados, slogans escritos
a
com letras gigantes nas paredes de playgrunds, cartas anˆnimas enviadas a destinat´rios
o a
2
Corrente que pretende utilizar os espa¸os naturais de cria¸˜o art´
c ca ıstica. Para isso, fazem coisas como
empilhar pedras, tra¸ar imensas linhas de gesso em desertos, cavar tumbas etc. (N.E.)
c
7. 1.3. AMOR LOUCO (AL) 7
previamente eleitos ou escolhidos ao acaso (fraude postal), transmiss˜es de r´dio piratas.
o a
Cimento fresco...
A rea¸˜o do p´blico ou choque-est´tico produzido pelo TP tem de ser uma emo¸˜o
ca u e ca
menos t˜o forte quanto o terror – profunda repugnˆncia, tes˜o sexual, temor supersticioso,
a a a
s´bitas revela¸˜es intuitivas, ang´stia dad´ – n˜o importa se o TP ´ dirigido a apenas
u co u ısta a e
uma ou v´rias pessoas, se ´ “assinado” ou anˆnimo: se n˜o mudar a vida de algu´m (al´m
a e o a e e
da do artista), ele falhou.
TP ´ um ato num Teatro da Crueldade sem palco, sem fileiras de poltronas, sem
e
ingressos ou paredes. Pare que funcione, o TP deve afastar-se de forma categ´rica de
o
todas as estruturas tradicionais para o consumo de arte (galerias, publica¸˜es, m´
co ıdia).
Mesmo as t´ticas da guerrilha Situacionista do teatro de rua talvez j´ tenham se tornado
a a
conhecidas e previs´
ıveis demais.
Uma primorosa sedu¸˜o praticada n˜o apenas em busca da satisfa¸˜o m´tua, mas
ca a ca u
tamb´m como um ato consciente de uma vida deliberadamente bela – talvez isso seja o TP
e
em seu alto grau. Os Terroristas-Po´ticos comportam-se como um trapaceiro totalmente
e
confiante cujo objetivo n˜o ´ dinheiro, mas transforma¸˜o.
a e ca
N˜o fa¸a TP Para outros artistas, fa¸a-o para aquelas pessoas que n˜o perceber˜o
a c c a a
(pelo menos n˜o imediatamente) que aquilo que vocˆ fez ´ arte. Evite categorias art´
a e e ısticas
reconhec´ ıveis, evite politicagem, n˜o argumente, n˜o seja sentimental. Seja brutal, assuma
a a
riscos, vandalize apenas o que deve ser destru´ fa¸a algo de que as crian¸as se lembrar˜o
ıdo, c c a
por toda a vida – mas n˜o seja espontˆneo a menos que a musa do TP tenha se apossado
a a
de vocˆ.e
Vista-se de forma intencional. Deixe um nome falso. Torne-se uma lenda. O melhor
TP ´ contra a lei, mas n˜o seja pego. Arte como crime; crime como arte.
e a
1.3 Amor Louco (AL)
O amor louco n˜o ´ uma social-democracia, n˜o ´ um parlamentarismo a dois. As
a e a e
atas de suas reuni˜es secretas lidam com significados amplos, mas precisos demais para a
o
prosa. Nem isso, nem aquilo – seu Livro de Emblemas treme em suas m˜os.a
Naturalmente, ele caga para os professores e para a pol´ıcia. Mas tamb´m despreza
e
os liberais e os ide´logos – n˜o ´ um quarto limpo e bem iluminado. Um top´grafo
o a e o
embusteiro projetou seus corredores e e seus parques abandonados, criou sua decora¸˜o
ca
de emboscada feita de tons pretos lustrosos e vermelhos man´ıacos membranosos.
Cada um de n´s possui metade do mapa – como dois potentados renascentistas, defi-
o
nimos uma nova cultura com a nossa excomungada uni˜o de corpos, fus˜o de l´
a a ıquidos –
as fronteiras imagin´rias da nossa cidade-Estado se borram com o nosso suor.
a
O anarquismo antol´gico nunca retornou de sua ultima viagem de pecas. Conquanto
o ´
ningu´m nos denuncie para o FBI, o Caos n˜o se importa nem um pouco com o futuro da
e a
civiliza¸˜o. O amor louco procria apenas por acidente – seu objetivo principal ´ engolir a
ca e
Gal´xia. Uma conspira¸˜o de transmuta¸˜o.
a ca ca
Seu unico interesse pela Fam´ est´ na possibilidade de incesto (“Amplie o seu
´ ılia a
Eu”, “Toda pessoas ´ um Fara´”) – O,
e o ´ mais sincero dos leitores, semelhante meu, meu
8. 8 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
irm˜o/irm˜ – e na masturba¸˜o de uma crian¸a ele encontra, oculta (como uma caixa-
a a ca c
surpresa japonesa com flores de papel), a imagem do esfarelamento do Estado.
As palavras pertencem `queles que as usam apenas at´ algu´m as roube de volta.
a e e
Os surrealistas se desgra¸aram ao vender o amor louco para a m´quina de sombras do
c a
Abstracionismo – a unica coisa que procuraram em sua inconsciˆncia foi o poder sobre os
´ e
outros, e nisso foram seguidores de Sade (que queria “liberdade” apenas para que homens
brancos e adultos pudessem estripar mulheres e crian¸as).
c
O amor louco ´ saturado de sua pr´pria est´tica, enche-se at´ as bordas com a trajet´ria
e o e e o
de seus pr´prios gestos, vive pelo rel´gio dos anjos, n˜o ´ um destino adequado para
o o a e
comiss´rios ou lojistas. Seu ego evapora-se com a mutabilidade do desejo, seu esp´
a ırito
comunal murcha em contato com o ego´ ısmo da obsess˜o.
a
O amor louco pede uma sexualidade incomum. O mundo anglo-sax˜o p´s-protestante
a o
canaliza toda sua sensualidade reprimida para a publicidade e divide-se entre multid˜es
o
conflitantes: caretas hist´ricos versus clones prom´
e ıscuos e ex-ex-solterios. O AL n˜o quer
a
se alistar no ex´rcito de ningu´m, n˜o toma partido na Guerra dos Sexos, entedia-se
e e a
com os argumentos a favor de iguais oportunidades de trabalho (na verdade, recusa-se
a trabalhar para ganhar a vida), n˜o reclama, n˜o explica, nunca vota e nunca paga
a a
impostos.
O AL gostaria de ver todo bastardo (“filho natural”) chagar ao fim de sua gest˜o e
a
nascer – o AL vive de aparelhos antientr´picos – o AL adora ser molestado por crian¸as
o c
3
– o AL ´ melhor que sensimilla – o AL leva para onde for sua pr´prias palmeiras e sua
e o
pr´pria lua. O AL admira o tropicalismo, a sabotagem, a break dance, Layla e Majnun4 ,
o
o cheiro de p´lvora e de esperma.
o
O AL ´ sempre ilegal, n˜o importa se disfar¸ado de casamento ou de um grupo de
e a c
escoteiros – sempre embriagados do vinho de suas pr´prias secre¸˜es ou do fumo de suas
o co
virtudes polimorfas. N˜o ´ a deteriora¸˜o dos sentidos, mas sim sua apoteose – n˜o ´ o
a e ca a e
resultados da liberdade, mas seu pr´-requisito. Lux et voluptas.
e
1.4 Crian¸as Selvagens
c
O insond´vel rastro de luz da lua cheia – meados de maio, meia-noite em algum Estado
a
americano que come¸as com “I”, t˜o bidimensional que mal se pode dizer que possui uma
c a
geografia – o luar ´ t˜o urgente e tang´ que ´ preciso fechar as cortinas para se poder
e a ıvel e
pensar em palavras.
Nem pense em escrever para as Crian¸as Selvagens. Elas pensam em imagens – para
c
elas a prosa ´ um c´digo ainda n˜o inteiramente digerido e sedimentado, assim como, para
e o a
n´s, ela nunca ser´ totalmente confi´vel.
o a a
Vocˆ pode escrever sobre elas, para que outros, que tenham perdido o cord˜o de prata,
e a
´
possam nos compreender. Ou escrever para elas, fazendo das HISTORIA e do EMBLEMA
3
Tipo de maconha feita a partir dos brotos e das flores da cannabis e que apresenta 7,5% de THC,
seu componente psicoativo. (N.E)
4
Lend´rios amantes do mundo ´rabe. Ver o livro de Nizami Laila & Majnun – A Cl´ssica Hist´ria de
a a a o
Amor da Literatura Persa, Jorge Zahar Editor. (N.E)
9. 1.4. CRIANCAS SELVAGENS
¸ 9
um processo de sedu¸˜o de suas pr´prias mem´rias paleol´
ca o o ıticas, uma b´rbara tenta¸˜o
a ca
para a liberdade (o caos na compreens˜o do pr´prio CAOS).
a o
Para essa esp´cie do outro mundo, ou “terceiro sexo”, les enfants sauvages, ilus˜o e
e a
Imagina¸˜o ainda s˜o indissoci´veis. JOGO licencioso: de uma s´ vez e ao mesmo tempo
ca a a o
a fonte de nossa Arte e de todo o mais precioso erotismo da ra¸a.
c
Abra¸ar a desordem como fonte de estilo e como armaz´m de vol´pia, um fundamento
c e u
de nossa civiliza¸˜o alien´
ca ıgena e oculta, nossa est´tica conspirat´ria, nossa espionagem
e o
lun´tica – essa ´ a a¸˜o (reconhe¸amos) de um certo tipo de artista ou de uma crian¸a de
a e ca c c
10 ou 13 anos.
As crian¸as, denunciadas por seus pr´prios sentidos purificados, pela brilhante feiti¸aria
c o c
de uma prazer belo, espelham algo de fatal e obsceno na pr´pria natureza da realidade:
o
anarquistas ontol´gicos naturais, anjos do caos – seus gestos e cheiros emanam para
o
seu entorno uma selva de presen¸a, uma floresta de press´gios repleta de cobras, armas
c a
ninja, tartarugas, xamanismo futur´ ıstico, confus˜o incr´
a ıvel, urina, fantasmas, luz do sol,
ejacula¸˜es, ninhos e ovos de p´ssaros – agress˜o cheia de alegria contra os crescentes
co a a
gemidos daquelas Regi˜es Inferiores incapazes de englobar tanto epifanias destruidoras
o
quanto a cria¸˜o, como farsa fr´gil, mas afiadas o bastante para contar o luar.
ca a
No entanto, os habitantes dessas insignificantes prov´
ıncias inferiores acreditam que
realmente controlam os destinos das Crian¸as Selvagens – e aqui embaixo, tais cren¸as
c c
viciadas moldam, de fato, a maior parte da substˆncia da casualidade.
a
Os unicos que realmente desejam compartilhar o destino travesso dos fugitivos selva-
´
gens ou crian¸as guerrilheiras (em vez de tentar control´-lo), os unicos, artistas, anarquis-
c a ´
tas, pervertidos, her´ticos, um bando ` parte (distantes um do outro e do mundo), ou
e a
capazes de se encontrar apenas como as crian¸as selvagens se encontram, trocando olhares
c
secretos ` mesa de jantar enquanto os adultos tagarelam por detr´s de suas m´scaras.
a a a
Jovens demais para helic´pteros de guerra – fracassados na escola, dan¸arinos de
o c
break, poetas p´beres de vilarejos ` beira da estrada – um milh˜o de centelhas caindo
u a a
em cascata dos roj˜es de Rimbaud e Mogli – fr´geis terroristas cujas bombas espalha-
o a
fatosas s˜o amor polimorfo e preciosos fragmentos compactados de cultura popular –
a
franco-atiradores punks sonhando em furar as orelhas, ciclistas animistas deslizando no
crep´sculo cor de estanho pelas ruas com flores acidentais nos bairros mais miser´veis –
u a
mergulhadores ciganos nus fora de temporada, ladr˜es sorridentes, de olhar enviesado, de
o
totens poderosos, troco pequeno e navalhas de pantera – est˜o em todos os lugares, n´s os
a o
vemos – publicamos esta oferta para trocar a corrup¸˜o do nosso pr´prio lux et gaudium
ca o
por sua perfeita e gentil imund´ıcie.
Compreenda: nossa realiza¸˜o, nossa liberta¸˜o depende da deles – n˜o porque imi-
ca ca a
tamos a Fam´ ılia, estes “avaros do amor” que mantˆm ref´ns para um futuro banal, ou
e e
Estado, que nos ensina a afundar num horizonte de eventos de enfadonha “utilidade” –
n˜o – mas porque n´s e eles, os selvagens, somos o espelho um do outro, unidos e limitados
a o
por aquele cord˜o de prata que define as fronteiras entre a sensualidade, a transgress˜o e
a a
a revela¸˜o.
ca
N´s temos os mesmos inimigos e nossos meios para o escapa triunfal tamb´m s˜o os
o e a
mesmos: um jogo delirante e obsessivo, energizado pelo brilho espectral dos lobos e seus
filhotes.
10. 10 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
1.5 Paganismo
Constela¸˜es por onde dirigir o barco da alma.
co
“Se o mu¸ulmano entendesse o Isl˜, ele se tornaria um adorador de ´
c a ıdolos.” – Mahmud
Shabestari.
Elegu´5 , o porteiro horroroso com um gancho na cabe¸a e conchas nos lugar dos olhos,
a c
charutos negros de macumba e copo de rum – como Ganesh6 , o deus dos In´ ıcios, garoto
gordo com cabe¸a de elefante montando num rato.
c
O ´rg˜o que compreende as atrofias numinosas com os sentidos. Aqueles que n˜o
o a a
podem sentir o baraka7 n˜o conhecem as car´
a ıcias do mundo.
Hermes Poimandres8 ensinou a anima¸˜o de ´
ca ıdolos, a permanˆncia m´gica dos esp´
e a ıritos
nos ´ıcones – mas aqueles que n˜o podem realizar esse ritual em si mesmo e em todo o
a
tecido palp´vel do ser material v˜o herdar apenas melancolia, dejetos, decadˆncia.
a a e
O corpo pag˜o torna-se como Corte de Anjos que experimenta este lugar – este arvo-
a
redo – como o para´ (“Se existe um para´ com certeza ´ aqui !” – inscri¸˜o no p´rtico
ıso ıso, e ca o
de um jardim mongol9 ).
Mas o anarquismo ontol´gico ´ paleol´
o e ıtico demais para a escatologia – as coisas s˜o
a
reais, feiti¸aria funciona, os esp´
c ıritos dos arbustos s˜o unos com a Imagina¸˜o, a morte ´
a ca e
um vago desconforto – o enredo das Metamorfoses de Ov´ – um ´pico de mutabilidade.
ıdio e
O cen´rio mitol´gico pessoal.
a o
O paganismo ainda n˜o inventou leis – apenas virtudes. Nenhum maneirismo de
a
padres, nenhuma teologia, ou metaf´
ısica, ou moral – apenas um xamanismo universal no
qual ningu´m obt´m real humanidade sem uma revela¸˜o.
e e ca
Comida dinheiro sexo sono sol areia e sensimilla – amor verdade paz liberdade e justi¸a.
c
Beleza. Dion´ısio, o garoto bˆbado numa pantera – ran¸oso suor adolescente – P˜, meio
e c a
homem, meio cabra, avan¸a pesadamente na terra s´lida at´ a cintura como se fosse o
c o e
mar, com a pele suja de musgo e l´ıquen – Eros se multiplica em uma d´zia de pastorais
u
rapazes nus de uma fazenda do Iowa, com p´s sujos de barro e musgo dos lagos em sua
e
coxas.
Raven, o trapaceiro do potlatch10 , `s vezes um garoto, `s vezes uma velha, um p´ssaro
a a a
que roubou a lua, agulhas de pinho flutuando num lago, totens com cabe¸as da Fa´
c ısca e
Fuma¸a, coral de corvos com olhos prateados dan¸ando sobre uma pilha de lenha – como
c c
Semar, o corcunda albino e hermafrodita, fantoche-sombra patrono da revolu¸˜o javanesa.
ca
Iemanj´, estrela azul deusa-do-mar e padroeira dos homossexuais – como Tara, aspecto
a
5
Nome que em Cuba se d´ a Exu, um dos quatro orix´s guerreiros da religi˜o iorub´. (N.T)
a a a a
6
Um dos deuses mais cultuados do pante˜o hindu´
a ısta, invocado no in´ de qualquer atividade como
ıcio
aquele que retira obst´culos. (N.T)
a
7
Conceito sufista, que significa ben¸˜o, gra¸a, a for¸a vital de toda cria¸˜o. (N.T)
ca c c ca
8
Ou H. Trismegisto, mitol´gico fundador do hermetismo, doutrina ligada ao gnosticismo, no Egito, no
o
s´culo I. (N.T)
e
9
Imp´rio mu¸ulmano na ´
e c India (1526-1857), fortemente influenciado pela est´tica persa. O mais co-
e
nhecido imperador mongol foi Akbar (1542-1605). (N.T)
10
Festival de inverno celebrado pelos ´ındios da costa noroeste dos EUA, com distribui¸˜o e troca de
ca
presentes, e eventual dissipa¸˜o dos bens do anfitri˜o. (N.T)
ca a
11. 1.6. ARTE-SABOTAGEM (AS) 11
azul-acinzentado de Kali11 , colar de crˆnios, dan¸ando no lingam12 enrijecido de Shiva13 ,
a c
lambendo nuvens de mon¸˜es com sua l´
co ıngua comprid´ıssima – como Loro Kidul, deusa-
do-mar verde-jade javanesa que confere o poder da invulnerabilidade aos sult˜os por meio
a
de intercurso tˆntrico em torres e cavernas m´gicas.
a a
Sob um ponto de vista, o anarquismo ontol´gico ´ extremamente nu, despido de todas
o e
as qualidades e possess˜es, podre como o pr´prio CAOS – mas, sob outro ponto de vista,
o o
ele pulula de barroquismos como os templos de foda de Katmandu ou um livro de s´
ımbolos
14
alqu´ımicos – ele se derrama de seu div˜ comendo loukoum e divertidas id´ias her´ticas,
a e e
uma m˜o perdida dentro de suas cal¸as largas.
a c
O casco de seus navios piratas ´ laqueado de preto, as velas triangulares s˜o vermelhas,
e a
as flˆmulas s˜o negras, ostentando o emblema de um ampulheta alada.
a a
Um mar do sul da China dentro da mente, pr´ximo a um litoral selvagem coberto por
o
palmeiras, ru´ınas de templos de ouro constru´ ıdos para deuses desconhecidos e bestiais,
ilha ap´s ilha, a brisa como uma seda amarela e umida sobre a pela nua, navega¸˜o por
o ´ ca
estrelas pante´ıstas, hierologia sobre hierologia, luz sobre luz contra a escurid˜o reluzente
a
e ca´tica.
o
1.6 Arte-Sabotagem (AS)
A arte-sabotagem aspira ser perfeitamente exemplar, mas, ao mesmo tempo, ret´m
e
um elemento de opacidade – n˜o propaganda, mas choque est´tico – aterradoramente
a e
direta, mas ainda assim sutilmente transversal – a¸˜o-como-met´fora.
ca a
A Arte-Sabotagem ´ o lado negro do Terrorismo Po´tico – cria¸˜o-atrav´s-da-destrui¸˜o
e e ca e ca
–, mas n˜o pode servir a nenhum partido ou niilismo, nem mesmo ` pr´pria arte. Assim
a a o
como a destrui¸˜o da ilus˜o eleva a consciˆncia, a demoli¸˜o da praga est´tica ado¸a o ar
ca a e ca e c
no mundo do discurso, do Outro. A Arte-Sabotagem serve apenas ` percep¸˜o, aten¸˜o,
a ca ca
consciˆncia.
e
A AS vai al´m da paran´ia, al´m de desconstru¸˜o – a cr´
e o e ca ıtica definitiva – ataque f´
ısico
a
` arte ofensiva – cruzada est´tica. O menor ind´ de um egotismo mesquinho ou mesmo
e ıcio
de um gosto pessoal estraga sua pureza e vicia sua for¸a. A AS n˜o pode nunca procurar
c a
o poder – apenas renunciar a ele.
Obras de arte individuais (mesmo as piores) s˜o amplamente irrelevantes – a AS
a
procura causar danos `s institui¸˜es que usam a arte para diminuir a consciˆncia e lucrar
a co e
com a ilus˜o. Este ou aquele poeta ou pintor pode ser condenado por falta de vis˜o – mas
a a
Id´ias malignas podem ser atacadas atrav´s dos artefatos que eles criam. O MUZAK15
e e
foi feito para hipnotizar e controlar – seu mecanismo pode ser destru´
ıdo.
Queima p´blica de livros – porque caipiras reacion´rios e funcion´rios das alfˆndegas
u a a a
11
No hindu´ısmo, a forma da M˜e Divina em seu aspecto dissoluto e destruidor. (N.T)
a
12
O mais importante dos s´ ımbolos de Shiva, que tem a forma de um falo, e representa o aspecto
impessoal de Deus. (N.T)
13
Nome da Realidade Suprema para o shaivismo da Caxemira; ou, no hindu´ ısmo, um dos trˆs deuses
e
principais (ao lado de Vishnu e Brahma), representando Deus em sua forma destruidora. (N.T)
14
Doce turco. (N.T)
15
Sistema de distribui¸˜o de m´sica ambiente. (N.T)
ca u
12. 12 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
devem monopolizar essa arma? Livros sobre crian¸as possu´
c ıdas pelo demˆnio; a lista
o
de best sellers do The New York Times; tratados feministas contra a pornografia; livros
escolares (especialmente de estudos Sociais, Educa¸˜o Moral e C´
ca ıvica e Sa´de); pilhas
u
do New York Post, Village Voice e outros jornais de supermercado; uma compila¸˜o de
ca
editoras crist˜s; alguns romances populares – uma atmosfera festiva, garrafas de vinho e
a
baseados numa tarde clara de outono.
Jogar dinheiro para o alto no meio da bolsa de valores seria um Terrorismo Po´tico
e
bastante razo´vel – mas destruir o dinheiro seria uma excelente Arte-Sabotagem. Inter-
a
ferir numa transmiss˜o de TV e colocar no ar alguns minutos de arte incendi´ria ca´tica
a a o
seria uma grande feito de TP – mas simplesmente explodir a torre de transmiss˜o seria
a
uma ato de Arte-Sabotagem perfeitamente adequado.
Se certas galerias e museus merecem, de vez em quando, receber uma tijolada pela
Janela – n˜o a destrui¸˜o, mas sim uma sacudida na sua complacˆncia –, ent˜o o que dizer
a ca e a
dos BANCOS? Galerias transformam beleza em mercadoria, mas bancos transmutam a
Imagina¸˜o em vezes e d´
ca ıvida. O mundo n˜o ganharia um pouco mais de beleza com cada
a
banco que tremesse... ou ca´ ısse? Mas como? A Arte-Sabotagem provavelmente deve ficar
longe da pol´
ıtica (´ t˜o chata!) – mas n˜o dos bancos.
e a a
N˜o fa¸a piquetes – vandalize. N˜o proteste – desfigure. Quando fei´ra, design podre
a c a u
e desperd´ıcios est´pidos estiverem sendo impostos a vocˆ, transforme-se num luddita16 ,
u e
jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmague os s´ ımbolos do Imp´rio, mas n˜o o fa¸a
e a c
em nome de nada que n˜o seja a busca do cora¸˜o pela gra¸a.
a ca c
1.7 Os Assassinos
Atravessando o brilho do deserto e ganhando as montanhas policromadas, nuas e ocre,
violeta pardo e terracota, no alto de um vale dissecado azul, os viajantes encontram um
o´sis artificial, um castelo fortificado em estilo sarraceno, guardando um jardim escondido.
a
Como convidados de Hassan-i Sabbah, o Velho da Montanha, eles sobem os degraus
cortados na pedra que levam at´ o castelo. Aqui, o Dia da Ressurrei¸˜o veio e passou –
e ca
os do lado de dentro vivem fora do Tempo profano, que ´ mantido a distˆncia com lan¸as
e a c
e veneno.
Por tr´s de torres crenuladas e de longas janelas talhadas, estudiosos e fedains velam
a
em estreitas celas monol´ ıticas. Mapas do c´u, astrol´bios, destiladores e retortas, pilhas
e a
de livros abertos sob a luz da manh˜ – uma cimitarra descoberta.
a
Cada um dos que entram no reino do Im˜-de-seu-pr´prio-ser transforma-se num sult˜o
a o a
de revela¸˜o inversa, num monarca da anula¸˜o e da apostasia. Num aposento central,
ca ca
entrecortado pela luz e adornado com uma tape¸aria de arabescos, eles se recostam em
c
almofadas e fumam longos narguil´s de haxixe perfumado com ´pio e ˆmbar.
e o a
Para eles, a hierarquia do ser compactou-se num ponto adimensional do real – as
correntes da Lei foram quebradas – eles terminam seu jejum com vinho. Para eles, o ex-
terior de todas as coisas ´ o interior delas, sua face verdadeira revela-se diretamente. Mas
e
16
Membro dos grupos de trabalhadores ingleses que, no in´ıcio da revolu¸˜o industrial, revoltaram-se
ca
contra o desemprego causado pelo novo maquin´rio tˆxtil, procurando destru´
a e ı-lo. (N.T)
13. 1.8. PIROTECNIA 13
os port˜es do jardim est˜o camuflados com terrorismo, espelhos, rumores de assassinos,
o a
trompe l’oeil, lendas.
Ram˜s, v´rios tipos de amoras, caquis, a melancolia er´tica dos ciprestes, rosas de
a a o
Shiraz de delicadas p´talas cor-de-rosa, jardineiras com alo´ e benjoim de Meca, os caules
e e
r´
ıgidos das tulipas otomanas, tapetes abertos como jardins artificiais sobre gramados
verdadeiros – um pavilh˜o inteiro decorado com um mosaico de caligramas – um salgueiro,
a
um riacho repleto de agri˜es do brejo – uma fonte sob cristais geom´tricos – o escˆndalo
o e a
metaf´ısico que s˜o as odaliscas banhando-se os criados negros brincando de esconde-
a
esconde, molhados, por entre a folhagem – “´gua, verdura, belos rostos”.
a
Ao cair da noite, Hassan-i Sabbah, como um lobo civilizado de turbante, debru¸a-se c
no parapeito sobre o jardim e contempla o c´u, estudando pequenos asterismos de heresia
e
´
no ar fresco e sem rumo do deserto. E verdade que nesse mito alguns disc´ ıpulos aspirantes
podem receber o comando de arremessarem-se do alto das muralhas para a escurid˜o – a
mas tamb´m ´ verdade que alguns deles v˜o aprender a voar como feiticeiros.
e e a
O emblema de Alamut persiste em nossas mentes, uma mandala ou circulo m´gico per-
a
dido na hist´ria, mas entalhado ou impresso na consciˆncia. O Velho passa rapidamente,
o e
como um fantasma, por dentro das tendas dos reis e dos aposentos dos te´logos, atravessa
o
todas as trancas e passa por todas as sentinelas que usam t´cnicas ninja/mu¸ulmanas j´
e c a
esquecidas, deixando pesadelos, estiletes sobre os travesseiros, subornos poderosos.
O perfume de sua propaganda embebe-se nos sonhos criminosos do anarquismo on-
tol´gico, a her´ldica de nossas obsess˜es exibe as lustrosas bandeiras negras dos Assas-
o a o
sinos... todos pretendentes ao trono de um Egito Imagin´rio, um cont´
a ınuo espa¸o/luz
c
oculto consumido por liberdades ainda n˜o imaginadas.
a
1.8 Pirotecnia
Inventadas pelos chineses, mas nunca desenvolvida para a guerra – um bom exemplo de
Terrorismo Po´tico – uma arma usada para disparar choques est´ticos em vez de matar
e e
– os chineses odiavam a guerra e costumavam entrar em luto quando os ex´rcitos se e
levantavam – a p´lvora era mais util para espantar demˆnios malignos, deleitar crian¸as,
o ´ o c
saturar o ar com uma bruma de bravura e com o cheiro de perigo.
Roj˜es de terceira categoria da prov´
o ıncia de Kwantung, foguetes, borboletas, M-80’s,
girass´is, “Uma Floresta na Primavera” – clima de revolu¸˜o – acenda seu cigarro com
o ca
a espoleta chamuscada de um roj˜o negro – imagine o ar repleto de lˆmures e ´
a e ıncubos,
esp´ıritos opressores, policiais fantasmas.
Chame um garoto com um bast˜o em brasa ou um f´sforo aceso – ap´stolo-xam˜ de
a o o a
enredos de ver˜o de p´lvora – estilhace a noite escura com pitadas e cascatas de estrelas
a o
infladas, arsˆnico e antimˆnio, s´dio e calomelano, um corisco de magn´sio e um silvo
e o o e
estridente de picrato de potassa.
Mande brasa (negro-de-fumo e salitre) a ferro e fogo – ataque o banco ou a horr´ ıvel
igreja de seu bairro com velas romanas e foguetes p´rpura-dourados, de sopet˜o e anoni-
u a
mamente (talvez lan¸ados da carroceria de uma picape em movimento).
c
Construa estruturas entrela¸adas com vigas de metal nos tetos dos edif´
c ıcios de com-
panhias de seguro ou escola – serpente cundalini ou drag˜o do Caos verde-b´rio enrolado
a a
14. 14 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
contra um fundo de amarelo-s´dio – N˜o Pise em Mim – ou monstros copulando e arre-
o a
messando bolas de fogo na casa de velhos batistas.
Escultura de nuvens, escultura de fuma¸a e bandeiras = Arte do Ar. Obras de Terra.
c
´
Fontes = Arte da Agua. E fogos de artif´ ıcio. N˜o se apresente patrocinando pelos
a
Rockefeller e com a autoriza¸˜o da pol´ para uma audiˆncia de amantes da cultura.
ca ıcia e
Evanescentes bombas-mentais incendi´rias, mandalas assustadoras inflamando-se em es-
a
fuma¸adas noites suburbanas, alien´
c ıgenas nuvens verdades da peste emocional detonadas
por raios vajra17 azuis de orgˆnio18 , feux d’artifice a laser.
o
Cometas que explodem com odor de haxixe e carv˜o radioativo – demˆnios do pˆntano
a o a
e fogos-f´tuos assombrando os parques p´blicos – falso fogo-de-santelmo piscando sobre
a u
a arquitetura da burguesia – correntes de pequenos fogos de artif´ caindo no ch˜o da
ıcio a
19
Assembl´ia Legislativa – salamandras-elementais atacando conhecidos reformados de
e
moral.
Goma-laca flamejante, a¸ucar do leite, estrˆncio, piche, ´gua viscosa, fogo chinˆs –
c´ o a e
por alguns momentos o ar ´ puro ozˆnio – uma nuvem opala de pungente fuma¸a de
e o c
drag˜o/fˆnix se espalhando. Por um instante, o Imp´rio cai, seus pr´
a e e ıncipes e governadores
fogem para sua podrid˜o satˆnica e nebulosa, penachos de enxofre dos elfos atiradores de
a a
chamas queimando suas bundas chamuscadas, enquanto eles recuam. O Assassino-crian¸a, c
psique de fogo, mant´m o poder por uma breve noite escaldante da estrela S´
e ırio.
1.9 Mitos do Caos
Caos invis´ (po-te-kitea)
ıvel
Indom´vel, intranspon´
a ıvel
Caos da escurid˜o absoluta
a
Intocado e intoc´vel
a
— canto Maori
O Caos empoleira-se numa montanha de c´u: um p´ssaro gigantesco, como uma asa-
e a
delta amarela ou uma bola de fogo vermelha, com seis p´s e quatro asas – ele n˜o tem
e a
rosto, mas dan¸a e canta.
c
Ou o Caos ´ um c˜o negro de pˆlos compridos, cego e surdo, sem as cinco v´
e a e ısceras.
Caos, o Abismo, ´ anterior a tudo, depois vem a Terra/Gaia, e ent˜o o Desejo/Eros.
e a
´ ´
Desses trˆs surgiram dois pares – Erebo e Noite ancestral, Eter e Luz diurna.
e
Nem Ser, nem N˜o-ser
a
Nem ar, nem terra, nem espa¸o:
c
o que estava escondido? onde? sob a prote¸˜o de quem?
ca
17
No budismo e no hindu´ ısmo, um raio ou arma m´ ıtica, geralmente controlado pelo deus Indra (N.E)
18
Na teoria desenvolvida por William Reich, orgˆnio ´ a energia vital, a energia a que ´ a fonte da vida.
o e e
(N.E)
19
Desde a Antig¨idade, a salamandra tem sido reconhecida como a personifica¸˜o do fogo, um animal
u ca
que sobreviveria ileso no fogo. (N.E)
15. 1.9. MITOS DO CAOS 15
O que era a ´gua, profunda, insond´vel?
a a
Nem morte, nem imortalidade, dia ou noite...
mas o UNO soprado por si mesmo, sem vento.
Nada mais. Escurid˜o envolvendo escurid˜o,
a a
a
´gua n˜o-manifesta.
a
O UNO, escondido pelo vazio,
sentiu a gera¸˜o do calor, tornou-se ser
ca
na forma de Desejo, primeira semente da Mente...
O que estava por cima e o que, por baixo?
Existiam semeadores, existiam poderes:
energia embaixo, impulso em cima.
Mas quem pode ter certeza?
— Rig Veda
Tiamar, o Oceano de Caos, expele lentamente de seu ventre Lama e Saliva, os Hori-
zontes, o C´u e Sabedoria l´
e ıquida. Esses rebentos crescem barulhentos e pretensiosos –
ela pensa em destru´ ı-los.
Mas Marduk, o deus da guerra babilˆnico, levanta-se em rebeli˜o contra a Velha Bruxa
o a
e seus Monstros do Caos, totens infernais – o Verme, a Ogre Fˆmea, o Grande Le˜o, o
e a
Cachorro Louco, o Homem Escorpi˜o, a Tempestade Trovejante – drag˜es vestindo suas
a o
gl´rias como deuses – e a pr´pria Tiamat ´ uma serpente marinha gigante.
o o e
Marduk a acusa de fazer os filhos se rebelarem contra os pais – ela ama Neblina e
Nuvens, princ´ ıpios da desordem. Marduk ser´ o primeiro a reinar, a inventar o governo.
a
Durante a batalha, ele trucida Tiamat e com o seu corpo encomenda o universo material.
Inaugura o imp´rio da Babilˆnia – e ent˜o, com os mi´dos e as tripas sangrentas do filho
e o a u
incestuoso de Tiamat, ele cria a ra¸a humana para servir aos deuses para sempre e aos
c
altos sacerdotes e reis sacramentados.
Zeus Pai e os deuses do Olimpo travam guerra contra M˜e Gaia e os Tit˜s, esses
a a
partid´rios do Caos, da velhas formas de ca¸a e coleta, das longas andan¸as sem destino,
a c c
da androginia e da licenciosidade das bestas.
Amon-Ra (Ser) senta-se sozinho no Oceano do Caos primordial da MADRE masturbando-
se e criando todo os outros deuses – mas o Caos tamb´m se manifesta como o drag˜o
e a
Apophis a quem Ra deve destruir (juntamente com seu estado de gl´ria, sua sombra e
o
sua m´gica) para que o fara´ possa governar com seguran¸a – um ritual de vit´ria recri-
a o c o
ado diariamente nos templos Imperiais para confundir os inimigos do Estado, da Ordem
c´smica.
o
Caos ´ Hun Tun, Imperador do Centro. Um dia, o Mar do Sul, Imperador Shu, e
e
o Mar do Norte, Imperador Hu (shu hu – relˆmpago), visitaram Hun Tun, que sempre
a
os recebeu bem. Desejando retribuir sua gentileza, eles disseram: “Todos os seres tˆm e
sete orif´
ıcios para ver, ouvir, comer, cagar etc. – mas o pobre velho Hun Tun n˜o tem
a
16. 16 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
nenhuma! Vamos perfurar alguns nele!” E assim fizeram – um orif´ por dia – at´ que,
ıcio e
no s´timo dia, o Caos morreu.
e
Mas... o Caos tamb´m ´ um enorme ovo de galinha. Dentro dele, P’an-ku nasce e
e e
cresce por 18 mil anos – finalmente o ovo se abre, divide-se entre c´u e terra, yin e yang.
e
Ent˜o P’an-ku transforma-se na coluna que sustenta o universo – ou talvez se torna o
a
universo (respira¸˜o –> vento, olhos –> sol e lua, sangue e flu´
ca ıdos –> rios e mares, cabelo
e c´
ılios –> estrelas e planetas, esperma –> p´rolas, medula –> jade, suas pulgas –> seres
e
humanos etc.).
Ou, ainda, transforma-se no homem/monstro, Imperador Amarelo. Ou transforma-se
em Lao-ts´, profeta do Tao. Na verdade, o pobre velho Hun Tun ´ o pr´prio Tao.
e e o
“A m´sica da natureza n˜o existe al´m das coisas. As v´rias aberturas, gaitas, flautas,
u a e a
todos os seres vivos, juntos, formam a natureza. O ‘EU’ n˜o pode produzir coisas e as
a
coisas n˜o podem produzir o ‘EU’, que existe por si mesmo. As coisas s˜o o que s˜o
a a a
espontaneamente, n˜o por causa de alguma outra coisa. Tudo ´ natural sem saber por
a e
que o ´. As 10 mil coisas tem 1o mil estados diferentes, todos em movimento como se
e
existisse um Senhor Verdadeiro para movˆ-las – mas, se procuramos por evidˆncias desse
e e
Senhor, n˜o conseguimos encontr´-las.” (Kuo Hsiang).
a a
Cada consciˆncia iluminada ´ um “imperador”, cuja unica forma de reinado ´ n˜o
e e ´ e a
fazer nada para n˜o atrapalhar a espontaneidade da natureza, o Tao. O “s´bio” n˜o ´ o
a a a e
pr´prio Caos, mas um dos seus servidores leais – uma das pulgas de P’an-ku, um peda¸o
o c
de carne do filho monstruoso de Tiamat. “C´u ´ Terra”, diz Chunag-ts´, “nasceram no
e e e
mesmo momento em que eu nasci, e eu e as 10 mil coisas formamos um ser unico”.
´
O Anarquismo Ontol´gico tende a discordar apenas da total quietude do tao´
o ısmo. Em
nosso mundo, o aos tem sido destitu´ por jovens deuses, moralistas, falocratas, padres-
ıdo
banqueiros, senhores adequados para escravos. Se a rebeli˜o provar-se imposs´
a ıvel, pelo
menos algum tipo de guerra santa clandestina deve ser iniciada. Que ela siga as bandeiras
da guerra do drag˜o negro anarquistas, Tiamat, Hun Tun.
a
O Caos nunca morreu.
1.10 Pornografia
Na P´rsia eu vi que a poesia ´ feita para ser musicada e cantada – por uma raz˜o
e e a
simples – porque funciona.
Uma combina¸˜o perfeita de imagem e melodia coloca o p´blico num hal (algo entre
ca u
um estado de esp´ ırito emocional/est´tico e um transe de supraconsciˆncia), explos˜es de
e e o
choro, impulsos de dan¸a – uma mensur´vel resposta f´
c a ısica ` arte. Para n´s, a liga¸˜o
a o ca
entre poesia e corpo morreu junto com a ´poca dos bardos – lemos sob influˆncia de um
e e
g´s anestesiante cartesiano.
a
No norte de ´ India, mesmo a recita¸˜o n˜o-musical provoca barulho e movimento,
ca a
todo bom verso ´ aplaudido, “Bravo!” com elegantes movimentos de m˜os, e r´pias s˜o
e a u a
lan¸adas – enquanto n´s ouvimos poesia como um daqueles c´rebros de fic¸˜o cient´
c o e ca ıfica
em um vidro – na melhor das hip´teses, um sorriso amarelo ou uma careta, vest´
o ıgios dos
rituais s´
ımios – o resto do corpo longe, em algum outro planeta.
17. 1.10. PORNOGRAFIA 17
No Oriente, `s vezes os poetas s˜o presos – uma esp´cie de elogio, j´ que sugere que o
a a e a
autor fez algo t˜o real quanto um roubo, em estupro ou uma revolu¸˜o. Aqui, os poetas
a ca
podem publicar qualquer coisa que quiserem – o que em si mesmo ´ uma esp´cie de e e
puni¸˜o, uma pris˜o em paredes, sem eco, sem existˆncia palp´vel – reino de sombras do
ca a e a
mundo impresso, ou do pensamento abstrato – um mundo sem risco ou eros.
A poesia est´ morta novamente – e mesmo que a m´mia do seu cad´ver possua ainda
a u a
algumas de suas propriedades medicinais, a auto-ressurei¸˜o n˜o ´ uma delas.
ca a e
Se os legisladores se recusam a considerar poemas como crimes, ent˜o algu´m precisa
a e
cometer os crimes que funcionem como poesia, ou textos que possuam a ressonˆncia a
do terrorismo. Reconectar a poesia ao corpo a qualquer pre¸o. N˜o crimes contra o
c a
corpo, mas contra Id´ias (e Id´ias-dentro-das-coisas) que sejam letais e asfixiantes. N˜o
e e a
libertinagem est´pida, mas crimes exemplares, est´ticos, crimes por amor.
u e
Na Inglaterra, alguns livros pornogr´ficos ainda est˜o banidos. A pornogr´fica produz
a a a
um efeito f´ ısico mensur´vel em seus leitores. Como propaganda, ela `s vezes muda vidas
a a
por revelar desejos secretos.
Nossa cultura gera a maior parte de sua pornografia motivada pelo ´dio ao corpo –
o
mas, como em certas obras orientais, a arte er´tica em si mesma cria um ve´
o ıculo elevado
para o aprimoramento do ser/consciˆncia/gl´ria. Um esp´cie de pornˆ tˆntrico ocidental
e o e o a
poderia ajudar a galvanizar os cad´veres, fazˆ-los brilhar com uma pitada de glamour do
a e
crime.
Os Estados Unidos oferecem liberdade de express˜o porque todas as palavras s˜o
a a
consideradas igualmente ins´ ıpidas. Apenas as imagens contam – os censores amam cenas
de morte e mutila¸˜o, mas horrorizam-se diante de uma crian¸a se masturbando – para
ca c
eles, aparentemente, isso ´ uma invas˜o de seu fundamento existencial, sua identifica¸˜o
e a ca
com o Imp´rio e seus gestos mais sutis.
e
Sem d´vida, nem mesmo o pornˆ mais po´tico faria o cad´ver sem rosto reviver,
u o e a
dan¸ar e cantar (como o p´ssaro do Caos chinˆs) – mas... imagine o roteiro de uma filme
c a e
de trˆs minutos ambientados numa ilha m´
e ıtica povoada por crian¸as fugitivas que moram
c
nas ru´ ınas de antigos castelos ou em cabanas-totens e ninhos constru´ ıdos com detritos
– uma mistura de anima¸˜o, efeitos especiais, computa¸˜o gr´fica e v´
ca ca a ıdeo – editado de
forma compacta, como um comercial de fast-food...
... mas ins´lito e nu, penas e ossos, tendas abotoadas com cristais, cachorros negros,
o
sangue de pombos – vislumbres de membros cor de ˆmbar enrolados em len¸´is – ros-
a co
tos, cobertos por m´scaras cheias de estrelas, beijando dobras macias de pele – piratas
a
andr´ginos, faces abandonadas de colombinas dormindo em altas flores brancas – piadas
o
sujas de se mijar de tanto rir, lagartos de estima¸˜o lambendo leite derramado – pessoas
ca
nuas dan¸ando break – banheiras vitorianas com patos de borracha e pintos cor-de-rosa
c
– Alice viajando no p´... o
... punk reggae atonal para gamel˜o, sintetizadores, saxofones e baterias – boogies
a
el´tricos cantados por um et´reo coro de crian¸as – antol´gicas can¸˜es anarquistas, um
e e c o co
misto de Hafiz20 & Pancho Villa, Li Po21 e Bakunin, Kabir22 e Tzara – chame-o de
20
At´ hoje, um dos mais queridos e lidos poetas m´
e ısticos da P´rsia (1320-1389) (N.T)
e
21
Ou Li Pai, poeta chinˆs (701-762 a.C.) (N.T)
e
22
Poeta santo cultuado tanto por mu¸ulmanos quanto por hindu´
c ıstas, viveu em Benares (1440-1518).
(N.T)
18. 18 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
“CHAOS – The Rock Video!”
N˜o... provavelmente ´ s´ um sonho. Muito caro para produzir e, al´m disso, quem o
a e o e
assistiria? N˜o as crian¸as a quem ele gostaria de seduzir. A TV pirata ´ uma fan-
a c e
tasia f´til; o rock, outra mera mercadoria – esque¸a o gesamtkunstwerk23 malandro,
u c
ent˜o. Inunde um playground com obscenos folhetos inflamat´rios – propaganda pornˆ,
a o o
excˆntricos manuscritos clandestinos para libertar o Desejo dos seus grilh˜es.
e o
1.11 Crime
A justi¸a n˜o pode ser obtida sob nenhuma Lei que seja – uma a¸˜o que est´ de com
c a ca a
a natureza espontˆnea, uma a¸˜o justa, n˜o pode ser definida por dogmas. Os crimes
a ca a
defendidos nestes panfletos n˜o podem ser cometidos contra o “si mesmo” ou o “outro”,
a
mas apenas contra a mordaz cristaliza¸˜o de Id´ias em estruturas de Tronos e Domina¸˜es
ca e co
venenosas.
Ou seja, n˜o crimes contra a natureza ou contra a humanidade, mas contra a ordem
a
legal. Mais cedo ou mais tarde, o descobrimento e a revela¸˜o de ser/natureza transfor-
ca
mam uma pessoa num bandoleiro – como se ela visitasse outros mundos e, ao retornar,
descobrisse que foi declarada traidora, herege, um ser exilado.
A Lei espera at´ que vocˆ tropece num modo de ser, uma alma diferente do padr˜o de
e e a
“carne apropriada para consumo” aprovado pelo Sistema de Inspe¸˜o Federal – e, assim
ca
que vocˆ come¸a a agir de acordo com a natureza, a Lei o garroteia e o estrangula –
e c
portanto, n˜o dˆ uma de m´rtir aben¸oado e liberal da classe m´dia – aceite o fato de
a e a c e
que vocˆ ´ um criminoso e esteja preparado para agir como tal.
ee
Paradoxo: adotar o Caos n˜o ´ escorregar para a entropia, mas emergir para uma
a e
energia semelhante ` das estrelas, um esp´cime de gra¸a instantˆnea – uma organiza¸˜o
a e c a ca
orgˆnica espontˆnea completamente diferente das pirˆmides sociais putrefatas dos sult˜o,
a a a a
muftis, c´dis e carrascos.
a
Depois do Caos, vem o Eros – o princ´ ıpio da ordem impl´ ıcito no vazio do Uno inqua-
lific´vel. O amor ´ estrutura, sistema, o unico c´digo n˜o contaminado pela escravid˜o
a e ´ o a a
e pelo sono drogado. Precisamos nos tornar vigaristas e persuasivos para proteger sua
beleza espiritual num bisel de clandestinidade, num secreto jardim de espionagem.
N˜o apenas sobreviva, enquanto espera que a revolu¸˜o de algu´m ilumine as suas
a ca e
id´ias, n˜o se aliste no ex´rcito da anorexia ou bulimia – aja como se j´ fosse livre,
e a e a
calcule as probabilidades, pule fora, lembre-se das regras de duelo – Fume Maconha/Coma
Galinha/Tome Ch´. Todo homem tem sua pr´pria vinha e sua figueira (Circle Seven
a o
24
Koran, Noble Drew Ali ) – carregue seu passaporte mouro com orgulho, n˜o fique parado
a
no meio do fogo cruzado, proteja-se – mas arrisque-se, dance antes que fique calcificado.
O modelo social natural para o anarquismo ontol´gico ´ uma gangue de crian¸as
o e c
ou um bando de ladr˜es de banco. O dinheiro ´ uma mentira – esta aventura deve
o e
ser poss´ıvel sem ele – o resultado das pilhagens e saques deve ser gasto antes que se
23
Termo alem˜o contemporˆneo que, grosso modo, implica diferentes formas simultˆneas de se apreciar
a a a
algo, especialmente um obras de arte computacional ou uma instala¸˜o. (N.T)
ca
24
L´
ıder religioso norte–americano, fundador do Templo da Ciˆncia Islˆmica em 1913, em Chicago.
e a
(N.T)
19. 1.12. FEITICARIA
¸ 19
torne p´ novamente. Hoje ´ o Dia da Ressurrei¸˜o – o dinheiro gasto com a beleza
o e ca
ser´ alquimicamente transformado num elixir. Como o meu tio Melvin dizia, melancias
a
roubadas s˜o mais doces.
a
O mundo j´ foi recriado segundo o desejo do cora¸˜o – mas a civiliza¸˜o ´ dona de
a ca ca e
todas as loca¸˜es e da maioria das armas. Nossos anjos ferozes exigem que invadamos a
co
propriedade alheia, porque se manifestam apenas em solo proibido. O Ladr˜o de Estrada.
a
A ioga da clandestinidade, o assalto relˆmpago, o desfrute do tesouro.
a
1.12 Feiti¸aria
c
O universo quer brincar. Aqueles que por ganˆncia espiritual se recusam a jogar
a
e escolhem a pura contempla¸˜o negligenciam sua humanidade – aqueles que evitam
ca
a brincadeira por causa de uma ang´stia tola, aqueles que hesitam, desperdi¸am sua
u c
oportunidade de divindade – aqueles que fabricam para si m´scaras cegas de Id´ias e
a e
vagam por a´ ` procura de uma prova para sua pr´pria solidez acabam vendo o mundo
ıa o
atrav´s dos olhos de um morto.
e
Feiti¸aria: o cultivo sistem´tico de uma consciˆncia aprimorada ou de uma percep¸˜o
c a e ca
incomum e sua aplica¸˜o no mundo das a¸˜es e objetos a fim de se conseguir os resultados
ca co
desejados.
O aumento da amplitude da percep¸˜o gradualmente bane os falsos eus, nossos fantas-
ca
mas cacofˆnicos – a “magia negra” da inveja e da vingan¸a volta-se contra o autor porque
o c
o Desejo n˜o pode ser for¸ado. Quando o nosso conhecimento da beleza harmoniza-se
a c
com o ludus naturae, a feiti¸aria come¸a.
c c
N˜o, n˜o se trata de entortar colheres ou fazer hor´scopos, n˜o ´ a “Aurora Dourada”
a a o a e
nem um xamanismo de brincadeira, proje¸˜o astral ou uma Missa Satˆnica – se vocˆ quer
ca a e
mistifica¸˜o, procure as coisas reais, bancos, pol´
ca ıtica, ciˆncia social – n˜o esta baboseira
e a
barata da Madame Blavatsky.
A feiti¸aria funciona criando ao redor de si um espa¸o f´
c c ısico/ps´ ıquico ou aberturas
para um espa¸o de express˜o sem barreiras – a metamorfose do lugar cotidiano numa
c a
esfera angelical. Isso envolve a manipula¸˜o de s´
ca ımbolos (que tamb´m s˜o coisas) e de
e a
pessoas (que tamb´m s˜o simb´licas) – os arqu´tipos fornecem um vocabul´rio para esse
e a o e a
processo e portanto, s˜o tratados ao mesmo tempo como reais e irreais, como as palavras.
a
Ioga da Imagem.
O feiticeiro ´ um Autˆntico Realista: o mundo ´ real – mas a consciˆncia tamb´m o
e e e e e
deve ser, j´ que seus efeitos s˜o t˜o tang´
a a a ıveis. Um obtuso acha que at´ mesmo o vinho
e
n˜o tem gosto, mas o feiticeiro pode se embriagar simplesmente olhando para a ´gua. A
a a
qualidade da percep¸˜o define o mundo do inebriamento – mas, sustent´-lo e expandi-lo,
ca a
para incluir os outros, exige um certo tipo de atividade – feiti¸aria.
c
A feiti¸aria n˜o infringe nenhuma lei da natureza porque n˜o existe nenhuma Lei
c a a
Natural, apenas a espontaneidade da natura naturans, o Tao. A feiti¸aria viola as leis
c
que procuram deter se fluxo – padres, reais, hierofantes, m´ ısticos, cientistas e vendedores
consideram a feiti¸aria uma inimiga porque ela representa uma amea¸a ao poder de suas
c c
charadas e ` resistˆncia de sua teia ilus´ria.
a e o
Um poema pode agir como um feiti¸o e vice-versa – mas a feiti¸aria recusa-se a ser
c c
20. 20 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
uma met´fora para uma mera literatura – ela insiste que os s´
a ımbolos devem provocar
incidentes assim como epifanias particulares. N˜o ´ uma cr´
a e ıtica, mas um refazer. Ela
rejeita toda escatologia e metaf´ ısica da remo¸˜o, tudo que ´ apenas nostalgia turva e
ca e
futurismo estridente, em favor de um paroxismo ou captura da presen¸a. c
Incenso e cristal, adaga e espada, certo, t´nicas, rum, charutos, velas, ervas como
u
sonhos secos – o garoto virgem com olhar fixo num pote de tinta – vinho e haxixe, carne,
iantras e rituais de prazer, o jardim de huris e sag¨is – o feiticeiro escala essas serpentes e
u
escadas at´ o momento totalmente saturado por sua pr´pria cor, em que montanhas s˜o
e o a
montanhas e ´rvores s˜o ´rvores, em que o corpo torna-se eternidade e o amado torna-se
a a a
vastid˜o.
a
As t´ticas do anarquismo ontol´gico est˜o enraizadas nesta Arte secreta – os objetivos
a o a
ao anarquismo ontol´gico aparecem no seu florescimento. O Caos enfeiti¸a seus inimigos
o c
e recompensa seus devotos... este estranho panfleto amarelado, pseudon´ ımico e manchado
de p´, revela tudo... passe-o adiante por um segundo de eternidade.
o
1.13 Publicidade
O que isso diz a vocˆ n˜o ´ prosa. Pode ser pendurado no quadro de avisos, mas ainda
e a e
est´ vivo e retorcendo-se. N˜o pretende seduzi-lo, a n˜o ser que vocˆ seja de extrema
a a a e
juventude e beleza (anexe uma foto recente).
Hakim Bey mora num decadente hotel chinˆs onde os propriet´rios balan¸am a cabe¸a
e a c c
de um lado para o outro enquanto lˆem os jornais e escutam transmiss˜es estridentes da
e o
´
Opera de Pequim. O ventilador de teto gira como um dervixe indolente – suor pinga sobre
a p´gina – o cafet˜ do poeta est´ encardido, seus cinzeiros derramam cinzas no tapete –
a a a
seus mon´logos parecem desconexos e levemente sinistros – por tr´s das janelas fechadas,
o a
o gueto desaparece entre palmeiras, o ingˆnuo oceano azul, a filosofia do tropicalismo.
e
Numa estrada em algum lugar a leste de Baltimore, vocˆ passa por um trailer Airs-
e
tream, e enxerga uma grande placa plantada na grama: LEITURAS ESPIRITUAIS, com
a imagem de uma rude m˜o negra sobre um fundo vermelho. L´ dentro, vocˆ encontra
a a e
livros sobre sonhos e numerologia, panfletos sobre vodu e macumba, revistas de nudismo
velhas e empoeiradas, um pilha de Boy’s Life, tratados sobre briga de galos... e este livro,
Caos. Como palavras ditas num sonho, portentosas, evanescentes, transformando-se em
perfumes, p´ssaros, cores, m´sica esquecida.
a u
Este livro se mant´m a distˆncia por uma certa impassibilidade em sua superf´
e a ıcie,
quase que vis´ atrav´s de um vidro. Ele n˜o abana o rabo e n˜o grunhe, mas morde e
ıvel e a a
estraga a mob´ ılia. Ele n˜o tem um n´mero ISBN e n˜o o quer como disc´
a u a ıpulo, mas pode
seq¨estrar seus filhos.
u
Este livro ´ nervoso como o caf´ ou a mal´ria – ele cria, entre si e seus leitores, uma
e e a
rede de desertores e outsiders – mas ´ t˜o cara-de-pau eliteral que praticamente se codifica
e a
– fuma a si pr´prio em estupor.
o
Uma m´scara, uma automitologia, um mapa sem nome de lugar algum – hirto como
a
uma pintura eg´ ıpcia que, no entanto, logra acariciar o rosto de algu´m e, de repente,
e
encontra-se na rua, num corpo, envolvido em luz, andando, acordado, quase satisfeito.
22. 22 CAP´ ´
ITULO 1. CAOS: OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLOGICO
23. Cap´
ıtulo 2
Comunicados da AAO
2.1 Comunicado #1 (Primavera de 1986)
I. Slogans e Motes para Pichar no Metrˆ e para Outros Prop´sitos
o o
COSMOPOLITISMO DESENRAIZADO
´
TERRORISMO POETICO
(para rabiscar ou carimbar em outdoors publicit´rios:)
a
´
ESTE E O SEU VERDADEIRO DESEJO
MARXISMO-STIRNERISMO
ˆ
ENTRE EM GREVE PELA INDOLENCIA e BELEZA ESPIRITUAL
ˆ ´
CRIANCINHAS TEM PES LINDOS
AS CORRENTES DA LEI FORAM QUEBRADAS
ˆ
PORNOGRAFIA TANTRICA
ARISTOCRATISMO RADICAL
¸˜
GUERRILHA URBANA PARA A LIBERTACAO DAS CRIANCAS
¸
´ ´
XIITAS FANATICOS IMAGINARIOS
BOLO’BOLO1
SIONISMO GAY
(SODOMA PARA OS SODOMITAS)
UTOPIAS PIRATAS
O CAOS NUNCA MORREU
Alguns desses slogans da Associa¸˜o para a Anarquia Ontol´gica (AAO) s˜o “sinceros”
ca o a
– outros tˆm como objetivo despertar temores e apreens˜o p´blica – mas n˜o sabemos
e a u a
bem qual ´ qual. Nossos agradecimentos a Stalin, Anon, Bob Black, Pir Hassan (ao seu
e
1
Espa¸o de convivˆncia libert´ria descrito na obra de mesmo nome publicada no Brasil nos anos 1990
c e a
pela Editora Correcotia. (N.E)
23
24. 24 CAP´
ITULO 2. COMUNICADOS DA AAO
nome ser mencionado, que reine em paz), F. Nietzsche, Hank Purcell Jr., “P.M.” e irm˜os
a
Abu Jehad al-Salah do Templo Islˆmico de Dagon.
a
II. Algumas Id´ias Po´tico-Terroristas que ainda Continuam em
e e
Triste Languidez no Reino da “Arte Conceitual”
1. Entre na ´rea dos caixas eletrˆnicos do Citibank ou do Chembank numa hora de
a o
muito movimento, cague no ch˜o e v´ embora.
a a
2. Chicago, Maio de 1886: organize uma prociss˜o “religiosa” para os “m´rtires” do
a a
2
Haymarket – grandes faixas com retratos sentimentais coroados com flores e trans-
bordando de fitas e lantejoulas, carregadas por penitentes vestidos em trajes com
capuzes negros no estilo KKKat´lico – escandalosos e efeminados ac´litos de TV bor-
o o
rifam a multid˜o com ´gua benta e incenso – anarquistas com rostos emplastrados
a a
de cinzas flagelam-se com pequenos relhos e chicotes – um “Papa” de t´nica negra
u
aben¸oa min´sculos caix˜es simb´licos carregados reverentemente para o cemit´rio
c u o o e
por punks chorosos. Um espet´culo desse tipo deve ofender quase todo mundo.
a
3. Cole em lugares p´blicos um cartaz xerocado com a foto de um lindo garoto de 12
u
anos, nu e se masturbando, com o t´
ıtulo bem ` vista: A FACE DE DEUS.
a
4. Envie elaboradas e requintadas “bˆn¸˜os” m´gicas pelo correio, anonimamente, para
e ca a
pessoas ou os grupos que vocˆ admira, por exemplo, por sua capacidade pol´
e ıtica ou
espiritual, por sua beleza f´
ısica ou por seu sucesso no mundo do crime etc. Siga o
mesmo procedimento descrito no item 5 a seguir, mas utilize uma est´tica de bons
e
votos, amor ou felicidade, o que for mais apropriado.
5. Rogue uma praga horr´ contra uma institui¸˜o maligna, tal como o New York
ıvel ca
Post ou a empresa MUZAK. Aqui, uma t´cnica adaptada dos feiticeiros da Mal´sia:
e a
envie para a empresa um pacote com uma garrafa tampada e selada com cera negra.
E dentro dela: insetos mortos, escorpi˜es, lagartos e coisas do tipo; um saco com
o
terra de cemit´rio (“gris-gris” na terminologia vodu), junto com outras substˆncias
e a
nocivas; um ovo perfurado por pregos e alfinetes de ferro; um pergaminho onde est´ a
desenhado um emblema (veja p´gina 78).
a
(Esse iantra ou veve invoca o Djim3 Negro, a sombra do Eu. Detalhes completos
podem ser obtidos na AAO.) Um bilhete explica que a bruxaria ´ contra a institui¸˜o e
e ca
n˜o contra os indiv´
a ıduos – mas, a menos que a institui¸˜o deixe de ser maligna, a praga
ca
(como um espelho) come¸ar´ a infectar as dependˆncias com um destino terr´
c a e ıvel, um
miasma de negatividade. Prepare um “comunicado” explicando a maldi¸˜o e atribuindo
ca
a sua autoridade ` Sociedade Po´tica Americana. Envie c´pias para todos os empregados
a e o
2
Pra¸a em Chicago onde ocorreu o grande confronto descrito no livro A Bomba, de Frank Harris
c
(Conrad Livros, 2003), entre pol´ e oper´rios que faziam uma demonstra¸˜o pela jornada de trabalho
ıcia a ca
´
de oito horas, em maio de 1886. E o evento que deu origem ao 1o de Maio como Dia dos Trabalhadores.
(N.E)
3
Ser lend´rio mu¸ulmano que pode tomar qualquer forma humana ou animal e influir na vida das
a c
pessoas. (N.T)