O documento discute como a filosofia da ciência pode melhorar o ensino de ciências nas escolas. Aborda as ideias de pensadores como Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend sobre a natureza dinâmica do desenvolvimento científico e como isso pode ser usado para mostrar aos alunos que a ciência não é um conjunto de fatos imutáveis. Também discute como contextualizar historicamente as teorias para evitar distorções e desmotivar os alunos.
Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária
1. OPINIÃO
OPINIÃO
Adolfo Ricardo Calor
Programa de Pós-graduação em Entomologia (doutorando),
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP)
Charles Morphy Dias dos Santos
Programa de Pós-graduação em Entomologia (doutorando), USP
Filosofia e ensino de ciências:
uma convergência necessária
O ensino de ciências,
principalmente nos níveis
A importância da filosofia para
o ensino de ciências tem sido
há muito negligenciada. Muitas
parte da ciência (ou seja, a ciên-
cia avança não pela comprovação
de sentenças básicas, mas por sua
das discussões de pensadores co- rejeição, que exige novas hipóte-
fundamental e médio, mo Popper, Kuhn, Lakatos e Feye- ses). Contrariando a linha posi-
rabend permitem sugerir modelos tivista da indução, ele afirma que
é em geral prejudicado pela visão
pedagógicos que rompam com o o pensamento científico é basea-
tradicional caráter linear e atem- do em hipóteses e experimentos/
de que o conhecimento científico
poral do ensino, substituindo-as deduções: “Não há, pois, indução
é um conjunto de invenções por uma visão mais dinâmica do (...), nunca argumentamos pas-
processo ensino-aprendizagem. sando dos fatos para as teorias.”
e descobertas individuais, O filósofo austríaco Karl Pop- Todo experimento ou observação
per (1902-1994) considera a ima- é influenciado por hipóteses
profundas e imutáveis, o que é ginação o princípio motor da existentes.
ciência. Assim, cientistas formu- Esse conceito popperiano – o
reforçado por livros didáticos lam hipóteses que são testadas falseacionismo – é tido como in-
através da experimentação. Se gênuo por alguns pensadores, que
e pela mídia. Pode-se evitar essa
tais hipóteses mostram-se inade- não aceitam a existência de ex-
imagem distorcida mostrando quadas, criam-se outras, que se- perimentos com o poder de fal-
rão sujeitas a novos testes, em um sear teorias. O húngaro Imre Laka-
aos alunos que o desenvolvimento contínuo que aumenta o poder tos (1922-1974) propõe uma rein-
explanatório das teorias, aproxi- terpretação de Popper: o falseacio-
da ciência é um processo dinâmico, mando-as da verdade. A ciência nismo sofisticado. Para Lakatos,
é essencialmente transitória pois, as hipóteses são científicas se pu-
sujeito a erros e vinculado ao em um dado momento, a melhor derem ser falseadas não por um
teoria é a que melhor suporta as único experimento, mas por um
contexto histórico. As idéias de tentativas de refutação. Assim, a corpo de idéias que possa substi-
ciência se desenvolve através da tuir a hipótese original. Esse ‘pro-
alguns pensadores sobre a história
relação indissociável entre hipó- grama de pesquisa’, termo criado
e a filosofia da ciência podem teses, confirmações e refutações. por Lakatos, engloba teorias, ex-
A atitude crítica é fundamental: perimentos e a observação.
ajudar a encontrar formas de aprendemos com os erros. Outro austríaco, Paul Feyera-
Para Popper, apenas hipóteses bend (1924-1994) defende que o
realizar essa mudança pedagógica. que podem ser falseadas fazem desenvolvimento das ciências
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2. OPINIÃO
e interações da sociedade. A
desmistificação do cientista tam-
Tratar a ciência como verdade absoluta, bém recairá sobre o professor, a
partir do momento em que ele
resultado do trabalho de cientistas geniais, apresenta seu campo de estudo
como aberto a mudanças e críti-
desestimula e distancia o aluno, desvinculando cas. Para o educador brasileiro
Maurício Tragtenberg (1929-
o ensino de ciências da própria ciência 1998), o professor é dono de um
saber inacabado e o aluno de uma
ignorância transitória.
ocorre por um processo dinâmi- visão contrapõe-se à linearidade Considerar o contexto históri-
co, baseado no não-absolutismo e e à falta de contextualização his- co durante a exposição dos con-
na não-uniformidade das teorias. tórica encontradas nas escolas de teúdos evita a distorção da real
Ou seja, quanto mais teorias, me- nível médio e fundamental, e prática da ciência e permite ao
lhor. Ele considera a ciência um pode ser uma ferramenta útil para professor definir essa atividade
empreendimento anárquico, que a formação de alunos críticos e como a busca pela solução de pro-
não deve seguir princípios fixos com capacidade de reflexão. blemas e geração de tecnologias
ou metodologias específicas. Para dentro de uma sociedade.
Feyerabend, tudo vale na investi- A filosofia popperiana pode ser- Por outro lado, o professor ar-
gação científica. vir como guia para várias etapas risca-se a encenar um monólogo
Já o norte-americano Thomas do processo de ensino-aprendiza- ao propor a troca, por parte dos
Kuhn (1922-1996), no livro A es- gem. Ao assumi-la desde o pre- alunos, da certeza do senso co-
trutura das revoluções científi- paro da aula até a sua exposição, mum pela incerteza científica.
cas, estabelece que o padrão de o professor aproximará o aluno do Nesse caso, o resultado seria um
desenvolvimento da ciência fun- processo de construção da ciên- aumento ainda maior do desinte-
damenta-se na mudança de ‘para- cia, levando-o a desenvolver uma resse do estudante em relação à
digmas’ por meio de ‘revoluções’. concepção própria do mundo na- ciência. É importante considerar
Paradigmas são conjuntos de hi- tural sem perder a noção dos prin- essa possibilidade, embora ela
póteses aceitos pela comunidade cípios científicos. A orientação do signifique um julgamento nega-
científica e que fornecem, por um professor deve deixar claro que a tivo, a priori, das qualidades e
tempo, problemas e soluções às ciência não é apenas o reflexo de potencialidades dos alunos, além
questões levantadas pelos prati- sensações individuais sobre o de uma desconsideração da capa-
cantes da ciência. Segundo Kuhn, mundo, mas uma fusão destas às cidade do docente.
a imagem de realizações científi- hipóteses e teorias construídas na
cas acabadas, desvinculadas de tentativa de explicar a realidade As teorias não podem ser disso-
um contexto histórico, compro- para além do que é percebido por ciadas do ambiente em que foram
mete a compreensão do processo nossos sentidos físicos. criadas, e isso independentemen-
de construção da ciência. O positivismo ainda presente te do modo como surgiram: atra-
A transitoriedade das teorias na prática pedagógica desconsi- vés de insights, sonhos, estudo ou
científicas não é discutida no en- dera o aluno como sujeito da ação trabalho árduo. A evolução é um
sino de ciências nos níveis funda- científica e o transforma em sim- exemplo. Tida como o princípio
mental e médio e, por vezes, se- ples receptor passivo do produto unificador da biologia, ela quase
quer no superior. Há professores ‘final’ dessa atividade. Tratar a sempre é considerada o produto
que tendem a tratar a ciência ciência como verdade absoluta, da mente do naturalista inglês
como um conjunto de invenções e resultado do trabalho de cientis- Charles Darwin (1809-1882),
descobertas individuais, herméti- tas geniais, desestimula e distan- desconsiderando seus predeces-
cas e fixas, visão essa reforçada por cia o aluno, desvinculando o ensi- sores e influências. Vale a pena
parte dos livros didáticos e pela no de ciências da própria ciência. trazer para a aula o histórico da
grande mídia, que se limitam a A ciência deve ser vista como construção da teoria, os proble-
expor as idéias centrais das teo- uma atividade passível de erros – mas e questões levantadas e, prin-
rias e suas aplicações imediatas. fundamentais na construção do cipalmente, os erros cometidos e
No ensino de ciências, a ado- conhecimento – desempenhada suas implicações, da antigüidade
ção de uma perspectiva dinâmi- por pesquisadores atuantes em grega aos tempos atuais.
ca, baseada na idéia de teorias uma comunidade científica que O francês Jean-Baptiste La-
transitórias, seria benéfica. Essa faz parte do complexo de relações marck (1744-1829) teve impor-
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3. OPINIÃO
tância capital no desenvolvimen- aula não pode se ater à apresenta- comum). Certos modelos constru-
to do evolucionismo, apesar de ção superficial dos livros didáti- tivistas, contudo, podem levar
suas hipóteses errôneas referen- cos, mas deve ser acrescida das à desvalorização da prática do
tes ao uso e desuso e à herança discussões filosóficas e históricas ensino de ciências por não incen-
dos caracteres adquiridos. Poucos pertinentes. A leitura é funda- tivarem a construção do conhe-
livros didáticos mostram Lamar- mental para o professor, incluin- cimento fundamentado cientifi-
ck como um pioneiro da crítica do as obras originais e compên- camente, dando demasiado valor
ao ‘fixismo’ na biologia, por ter dios sobre os tópicos estudados. ao senso comum. A supervalo-
enfatizado o papel do tempo para É papel do docente aproximar rização da experiência sensorial
a origem das espécies, hipótese os alunos do conhecimento cien- como fonte única geradora de
aproveitada pelas teorias evolu- tífico moderno, propondo-lhes conhecimento cria problemas
tivas posteriores. que as novas teorias partam do co- tanto para a compreensão quan-
Além de Lamarck, é necessá- nhecimento prévio, em menor ou to para a formulação de concei-
rio destacar o inglês Alfred Wal- maior grau. A ele cabe tratar a tos. A abordagem voltada exces-
lace (1823-1913), também pai da ciência como um processo contí- sivamente para o senso comum
teoria da evolução e o responsá- nuo, não hermético, possibilitan- deve ser evitada pelo professor, o
vel pela descoberta da seleção na- do ao aluno aceitar o novo e esti- que não significa tratar como
tural, mas apesar disso geralmen- mulando, paralelamente, a refle- irrelevantes os saberes trazidos à
te desconhecido do grande públi- xão e a análise crítica, com cria- aula pelos alunos.
co. A contextualização histórica tividade e imaginação. O emba- Assumir que a investigação
mostrará aos alunos que os cien- samento científico-filosófico for- científica não termina com os re-
tistas não são trabalhadores soli- nece ao aluno ferramentas úteis sultados obtidos, mas parte de
tários, fechados em laboratório, e para a compreensão do processo hipóteses de trabalho para se de-
sim homens de um tempo, inse- de construção do conhecimento, senvolver, é um dos caminhos
ridos em um contexto social am- no qual ele também se insere. para um ensino de ciências me-
plo e que recebem influências, Por vezes, nota-se a convergên- nos apático e mais associado à
assim como influenciam outros cia entre o falseacionismo e algu- prática científica. O estímulo à
pesquisadores e personagens de mas correntes do construtivismo, reflexão e à crítica fundamenta-
seu período. uma vez que estas defendem a in- das, a partir de uma abordagem
serção do aluno na prática do en- falseacionista, pode auxiliar, as-
Antes de tudo, a boa formação sino, utilizando e valorizando sim, na propagada formação de
do professor é imprescindível. A seus saberes (ou seja, o senso cidadãos. ■
Einstein Pasteur Da Vinci
Sabin Galileu Newton
Eles não liam
Ciência Hoje das Crianças.
Imagine se tivessem lido...
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novembro de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 61