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Pobres & Nojentas - Julho de 2006 1
2 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 3
F
oi uma surpresa. De
repente, de lugares
não imaginados fo-
ram surgindo mulhe-
res e pedidos. O que era in-
tuído ficou explícito.As “po-
bres e nojentas” vivem em
todos os rincões deste Bra-
sil, conquistando seus espa-
ços, fazendo arte, provocan-
do rebeliões, existindo, in-
ventando, criando. E o que
era para ser só uma revista
paroquial criou asas, dispa-
rou, rompeu céus e barrei-
ras, alcançando, inclusive, o
coração dos homens.
Agora, aqui estamos no
desafio da revista número
dois. Nela, incluímos ainda
outros seres, tão especiais
quanto homens ou mulheres:
os bichos. Porque a vida que
vive é o que temos de reve-
renciar, sempre na busca da
Eko Porã, vida boa e bonita
para todos. Para todos mes-
mo. Porque sonhamos com
o dia em que os oprimidos
libertarão os opressores, por
obra e graça da luta renhi-
da. Porque aos empobreci-
dos ninguém dá nada. Tudo
é conquistado, inclusive a
nova sociedade que construi-
remos.
Esta edição que agora
entregamos às gentes de
todo o Brasil fala de mulhe-
res do ontem e do hoje, fala
dos povos originários que in-
sistem em resistir, de ho-
mens que lutam, do povo sem
terra, mas com esperança,
dos animais que comparti-
lham a vida conosco, em
comunhão. A P&N se es-
praia, divide poemas, acolhe
as palavras de outros e ou-
tras “compas” que se apres-
saram em enviar seus tex-
tos, doidos por se expressar.
E assim seguimos, criando
espaços para a palavra não-
dita que, agora, aqui, grita.
Nestas páginas, vão os mal-
ditos. Que por força da ou-
sadia se bem-dizem! E as-
sim caminham para o gran-
de meio-dia...
Elaine Tavares
Míriam Santini de Abreu
Editoras
F
www.geocities.com/pobresenojentas
Pobres & Nojentas digital
Por Elaine Tavares
Já está no ar a página di-
gital da nova publicação ca-
tarinense Pobres & Nojentas,
lançada no final do mês de
abril. A revista, que teve em
seuprimeironúmeroumatira-
gem de apenas 500 exempla-
res e foi financiada totalmente
pela equipe da Companhia
dos Loucos, veio para mostrar
aquelas que nunca visitaram a
ilha de Caras, mas que, com
seu trabalho e sua luta, cons-
troem o mundo real.
A proposta dos jornalis-
tas envolvidos no projeto é
justamente mostrar, numa
perspectiva de gênero e
classe, que os empobrecidos
também criam, sonham, re-
alizam e propõem. Na vida
que viceja nas estradas se-
cundárias, longe dos gabine-
tes e do ar-condicionado, as
gentes do Brasil têm agora
um espaço para contar suas
histórias e para refletir os
motivos de seu empobreci-
mento. A desigualdade, que
torna o Brasil uma espécie
de campeão mundial nesse
quesito, não acontece por
acaso nem brota misteriosa-
mente do chão. Ela é fruto
de um modelo de reprodu-
ção da vida em que para um
viver outro precisa morrer.
Esses dramas e dilemas são
os que estão retratados nas
páginas da revista. Histórias
de mulheres e homens, espé-
cimes do gênero humano, que
são o foco do trabalho.
Apáginadigital,desenvol-
vida por Eduardo Mustafa
Vianna, está à disposição da-
queles que quiserem se aven-
turar a mergulhar na vida
mesma, real, profunda, dos
pobres e nojentos. Ou seja,
daqueles que, apesar da sua
condição de classe, não se
dobram, não se rendem, e
caminham, seguros, na dire-
ção do grande meio-dia.
A Pobres & Nojentas di-
gital pode ser vista no ende-
reço: www.geocities.com/
pobresenojentas
eDITORIAL
4 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Carreteiro
a rigor
cARTAS
As revistas chegaram!
É linda, nem um pouco pobre, mas parece bem nojen-
tinha mesmo! PARABÉNS!!!!
Vai ser minha leitura e de minha filha, no fim de sema-
na! E vou repartir com as amigas, as blogueiras, etc, para
divulgar bem! Então vamos em frente!
Ana Maria
Macapá/Amapá
Cerca de 140 revistas
vendidas foi o resultado do
lançamento da primeira edi-
ção da revista Pobres &
Nojentas, no dia 27 de abril,
na sede da Associação dos
Servidores da UFSC.
A preparação do carre-
teiro e das saladas ficou por
conta de José de Assis Fi-
lho. Muita gente apareceu
porque leu sobre a revista
em jornais de Florianópolis
e identificou-se com o per-
fil da nova publicação.
O destaque foi a jorna-
lista do Sindicato dos Ban-
cários de Florianópolis, Ja-
nice Miranda, que alugou
roupas em um brechó e es-
tava vestida no melhor esti-
lo de “pobres e nojentas”.
Prezada Raquel:
A loucura que vocês
estão propondo é a mes-
ma que Erasmo de Rot-
terdam elogiou, meio mi-
lênio atrás. Loucura egré-
gia, vital, oxigenadora de
mentes. Que a revista te-
nha sucesso e vida longa.
Loucamente.
Um abraço,
Lúcio Flávio Pinto -
jornalista e sociólogo,
editor do Jornal Pessoal
Cara Elaine,
Recebi a revista e gos-
tei muito da proposta.
Você e seus companheiros
são, realmente, guerreiros
da palavra. Se numa re-
gião rica como a sua exis-
tem Jussaras, Darcys, Olí-
vias e Idas, imagine na
minha, nesse Nordeste de
tantas injustiças...
Parabéns pela iniciativa!
Vou divulgar ao máximo o
trabalho.
Lourdinha Dantas
João Pessoa/Paraíba
Acabo de ler no Comu-
nique-se a notícia do lan-
çamento da revista Pobres
& Nojentas. A gente tam-
bém acredita na possibili-
dade de um mundo que
não se dobra à religião do
consumismo, mas luta por
valores novos, por trans-
formação social, pela pos-
sibilidade de pensar e dei-
xar pensar. Muito sucesso
com o projeto!
Suzel Tunes
São Paulo
Janice: no
clima
da revista
Foto:RicardoCasariniMuzy
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 5
A cor da pele é vermelha, os olhos são negros e puxados, os cabelos, escuros
e grossos. Quem chega caminhando pela localidade de Conquista - Barra do Sul/
SC, de longe já vê as primeiras crianças à beira da estrada, com roupas bem
simples, artesanato colorido nas mãos. São os Guarani, da aldeia “Tekové Ma-
reã”, que na língua originária significa: “que jamais se acabe”.
A comunidade é uma das tantas espalhadas por Santa Catarina e nela vivem
cerca de trinta pessoas, a maioria formada por crianças e adolescentes. Estão
sempre por ali, brincando, correndo de um lado para outro e conversando em
Guarani, sua língua original, costume que o povo faz questão de preservar. Pare-
cem estar sempre felizes, apesar das inúmeras dificuldades que enfrentam no
dia-a-dia. Aprincipal delas é a falta de alimentos pois muitas das famílias literal-
mente não têm o que comer. Sobrevivem apenas do básico: arroz e feijão. Vez
“Que jamais
se acabe”
Por Ricardo Casarini Muzy
PovoOriginário
Povo guarani resiste na
busca da terra sem males
Fotos: Ricardo Casarini Muzy
6 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
ou outra conseguem algum vegetal ou frutas.
O que segura a fome do povo é o “Budiapé”, um
pão feito só com água e farinha. Muitos dos alimentos
chegam através de doações e a outra parte é compra-
da com o dinheiro do artesanato, já que muito pouco se
tem cultivado no lugar. Faltam boa terra, ferramentas,
sementes e até força para o trabalho, geralmente por
causa da fome.
As famílias que vivem nessa aldeia vieram de ou-
tros lugares: Biguaçu, Morro dos Cavalos, Florianópo-
lis. São nativos de Santa Catarina e a maioria é Guarani
puro, ali não se vêem mestiços. A aldeia é nova, existe
há mais ou menos seis anos e o povo luta pela demarca-
ção e homologação de suas terras, briga igual a que é
travada por outras comunidades autóctones do Estado.
Quem lidera o grupo de Tekové Mareã é uma mu-
lher, a cacique Arminda, que vive numa pequena casa
com filhos e netos. O vice-cacique é Werá-Mirim, Gua-
rani genuíno, nativo da ilha de Florianópolis, e que já
foi cacique em várias aldeias espalhadas pelo Esta-
do. Não faz muito tempo que ele e a família chega-
ram na Tekové Mareã para firmar a nova morada.
Junto à companheira Rose, aos filhos e aos netos ele
se instalou numa das casinhas da aldeia e, agora as-
sociados aos outros moradores, tentam construir uma
nova comunidade.
Desde criança Werá foi guerreiro, o pai era Kraí
(curador ou curandeiro que conhece as ervas medici-
nais e tem conexão com o astral) e cacique da aldeia
em que nasceu. Com ele aprendeu muitas coisas, mas,
infelizmente, o perdeu muito cedo, tal qual a mãe. Aos
12 anos já vivia sozinho e, com a construção da BR-
101, começou a trabalhar para os brancos, que mais
tarde o levaram para estudar e trabalhar na capital.
O garoto Werá nunca se acostumou com a cidade.
Sofria. Ele conta que tinha que trabalhar como escra-
vo - e ainda apanhava - para se manter na cidade e
continuar freqüentando a escola. Essa situação o le-
vou a abandonar os estudos e voltar à aldeia para vi-
ver livre no meio dos Guarani, seus irmãos. Na cidade
aprendeu a ler e escrever o português, além de traba-
lhar com ferramentas e trator.
Como já tinha o conhecimento ancestral das cons-
truções, acabou se tornando um grande construtor no
meio do seu povo. Ele até já perdeu as contas de quan-
tas casas construiu. Sempre lutou para conservar as
tradições típicas do povo Guarani, e sua posição críti-
ca em relação ao comportamento dos índios e à influ-
ência dos brancos em sua cultura já lhe custou entrar
em várias confusões e discordâncias com seu povo.
Por isso, mudou de aldeia muitas vezes. Nunca acei-
tou a posição subalterna dos índios na sociedade.
Werá se diz completamente contra as instituições
que trabalham com os índios porque, segundo ele, a
maioria delas prestam serviços totalmente assistenci-
ais e nada fazem para provocar a verdadeira liberta-
ção dos povos indígenas. Guerreiro que é, nunca de-
siste e, agora, nessa nova proposta na localidade de
Conquista, sonha com uma organização Guarani que
seja capaz de dar condições dignas para seu povo vi-
ver de acordo com suas crenças e tradições. As visi-
tas à cidade já lhe proporcionaram amizade com al-
guns brancos que reconhecem o valor da cultura Gua-
rani e, vira-e-mexe, ele é convidado para dar alguma
palestra em fóruns de educação ambiental e universi-
dades.
Recentemente, no mês de junho, foi o instrutor numa
oficina de etno-construção Guarani, organizada na ci-
dade de Itajaí. O “Koty Nhembóe” (ensinamento so-
bre casas) reuniu, num fim de semana, várias pessoas
dispostas a aprender sobre a cultura desse povo origi-
nário. Mas o que deixa o velho índio feliz mesmo são
as vivências na aldeia. A vida mesma, cotidiana, da
Tekové Mareã.
O sol ainda nem apareceu e os galos já começam a
cantar. São muitos, andando de um lado para o outro
com suas penas coloridas. Circulam livremente entre
os outros bichos: gatos, cães, pássaros e homens. O
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 7
clima é frio neste início de junho, uma névoa densa
toma conta do lugar. Werá se põe de pé e, em silêncio,
caminha para acender a fogueira da qual vai brotar o
café. Rose, as crianças e a maioria dos outros índios
também despertam bem cedo e, prontamente, come-
çam a se ocupar dos afazeres. Uns buscam água, ou-
tros se banham para ir à escola, os pequenos come-
çam a brincar.
O jogo de futebol é engraçado. É cada um por si, e
não existem muitas regras. Vale empurrão, não tem
saída de bola e se não dá para tocar a bola com os
pés vai com as mãos mesmo. Eles estão mais preo-
cupados com a diversão do que em competir. O jogo
é sempre uma gritaria e ouvem-se muitas gargalha-
das. O calendário Guarani nada tem a ver com o gre-
goriano, instituído na maioria do planeta. Eles seguem
a natureza. Sol, lua, estrelas. Há dias em que eles
trabalham, em outros não. Há época de plantio e de
colheita. Eles seguem o ritmo do tempo natural, sem-
pre interagindo com os outros animais, as plantas e
todos os seres da natureza. Os Guarani vivem em
sintonia com o todo.
No fim da tarde Werá reúne a família para con-
versar e contemplar o pôr-do-sol. Ali eles realizam o
ritual com “pentenguá”, que é o cachimbo Guarani,
onde é queimado o tabaco, outra tradição mantida
por eles. Mas emocionante mesmo é a reza que acon-
tece à noite na “Opã”, casa de reza Guarani, uma
hinos que louvam a terra, a água, os animais da flores-
ta e principalmente a “Ñanderú”(Deus). Toda a
noite a Opã fica tomada por fumaça e uma vibra-
ção forte que vem do astral. O calor do fogo aque-
ce as almas e os corações do povo reunido em
oração. As letras em Guarani evocam as suas ori-
gens, e o amor que flui entre todos é o combustí-
vel para enfrentarem todos os dias as dificulda-
des que sofrem, por serem índios, pobres e exclu-
ídos da vida digna deste país.
Os Guarani lá da Conquista, da Tekové Mareã, tal
e qual tantos outros irmãos perdidos pelo Brasil, não
querem muito. Apenas o que lhes pertence por direito:
terra para viver, alimentos e dignidade, o sonho coleti-
vo da Eko Porã - vida boa e bonita para todos.
construção simples,
feita de barro, bambu
e palha. Nela, todos se
reúnem em volta de
uma fogueira, e ali
passam horas com o
petenguá, cantando os
seus hinos ancestrais.
Tekové Mareã tam-
bém é o nome do coral
Guarani formado na
aldeia. Os jovens ho-
mens tocam os instru-
mentos - violão, rabe-
ca e maracá - e pu-
xam os hinos. As mu-
lheres ficam de pé e de
mãos dadas cantam os
8 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Por Marcela Cornelli
A força de
uma mulher
Perfil
Sabe aquelas pessoas que
você encontra pela vida e que
iluminam tudo por onde pas-
sam? Aquelas pessoas que
tinham tudo para “dar erra-
do” na vida? Que podiam se
tornar seres humanos de
alma amargurada devido aos
espinhos que sempre estive-
ram presentes no seu cami-
nho? Mas que - contrariando
a tudo e a todos, a este siste-
ma cruel, frio, egoísta, no
qual as portas se abrem para
os que têm posses e dinheiro
e se fecham, ou ficam mais
distantes, para os pobres, os
humildes - persistem, lutam,
perseveram e vencem. Mais
que isso. São plenamente fe-
lizes e amam a vida. Pois é
este tipo de pessoa que este
perfil retrata. Uma mulher,
mãe, lutadora, pobre, sim,
mastambémumanojenta, da-
quelas que não desistem nun-
ca e que mostram à vida, ao
destino, que o amor e a von-
tade de viver fazem a dife-
rença num mundo de desi-
gualdades e injustiças.
Brunildes Hoefelmann da
Silva, ou Bruna, como é cha-
mada por todos, é hoje dire-
tora de uma escola na qual
desenvolve vários trabalhos
que buscam resgatar a iden-
tidade e a dignidade de pais
e alunos de uma comunidade
“Lá estão elas rompendo a estrada.
Deixam distantes dias risonhos.
Já desistiram dos contos de fadas.
Hoje cultivam os seus próprios sonhos.”
Augusto Cacá
Fotos:MarcelaCornelli
Bruna forjou sonhos com determinação
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 9
humilde no interior da cida-
de de Brusque, no Vale do
Itajaí, em Santa Catarina.
Mas para chegar até onde
está hoje, percorreu um lon-
go caminho. Desde a infân-
cia pobre, marcada por ce-
nas de violência protagoni-
zadas pelo pai alcoólatra,
passando por diversas difi-
culdades, trabalhando desde
os nove anos na lida na roça,
como empregada doméstica,
lavadeira, até alcançar um
sonho de menina: ser profes-
sora, ensinar, cuidar de cri-
anças especiais, reerguer
uma escola e fazer da edu-
cação um bem para todos.
“Sempre dizia aos meus fi-
lhos desde pequenos, quan-
do os levava a bibliotecas,
que dinheiro, riquezas nós
não tínhamos, mas que o
conhecimento poderíamos
adquirir e que este ninguém
tiraria deles”.
Hoje é mãe de quatro fi-
lhos. O mais novo, filho de
um de seus irmãos, também
com problemas com a bebi-
da, foi adotado por Bruna
quando a mãe faleceu. Bru-
na sempre teve pouco, mas
este pouco se multiplica di-
ante dos pedidos de ajuda
dos irmãos, da família, dos
amigos e até de desconhe-
cidos. Aos 34 anos, já mãe e
trabalhando como lavadeira
no Sesi da cidade, tendo so-
mente a quarta série do pri-
meiro grau completa, ela vol-
tou a estudar. Terminou o pri-
mário fazendo supletivo à
noite e, ao mesmo tempo,
iniciou o magistério pela ma-
nhã. A estrada percorrida
por Bruna foi longa. Duas
vezes por semana ela fazia
uma distância de 10 quilôme-
tros de bicicleta até a escola
onde cursava magistério. À
tarde, trabalhava e, à noite,
cursava o supletivo. Os fi-
lhos já adolescentes se vira-
vam como podiam na ausên-
cia da mãe, muitas vezes não
compreendida pelo marido.
Da infância pobre na lo-
calidade de Rio Branco, in-
terior de Brusque, ela lem-
bra que nunca brincava.Aju-
dava a mãe na roça, no plan-
tio de milho, para fazer a fa-
rinha de fubá, e da batata
doce, alimentos que ameni-
zavam as dificuldades para
saciar a fome dos dez ir-
mãos. Vivia numa casa sim-
ples, de madeira, que tinha
cinco camas de palha, divi-
didas por 13 pessoas, Bru-
na, os irmãos e irmãs, a mãe,
dona de casa, e o pai, o pri-
meiro motorista de caminhão
da localidade, que ensinou a
quase todos os vizinhos seu
ofício. “Na casa também ti-
nha um fogão a lenha e um
guarda-comidas. O guarda-
comidas era muito sagrado
e valioso para nós, mas na
maioria das vezes estava
vazio. Num quarto ficava
uma gamela onde tomáva-
mos banho, com água de
poço”.
Aos sete anos, Bruna fre-
qüentava uma escolinha da
localidade. Mas a menina
pobre, que ajudava a criar os
irmãos, a capinar na lavou-
ra, a limpar a casa, que pro-
tegia a mãe da violência do
pai, não sabia ler nem escre-
ver e nem falava uma só
palavra em português. A
exemplo de muitas famílias
da localidade, na casa de
Bruna só se falava o alemão.
Na época, por volta de 1962,
o alemão foi proibido e, na-
quela pequena colônia de ale-
mães, em Brusque, as crian-
ças começaram a aprender
o português em sala de aula.
“Meu pai alcoólatra mui-
tas vezes chegava do traba-
lho bêbado e fazia todos cor-
rerem pra fora de casa”.
Mas Bruna sempre voltava
para proteger a mãe. Uma
cena marcou seus oito anos.
O pai tentou pôr fogo na
casa com a mãe dentro. Bru-
na então disse que primeiro
ele teria que pôr fogo nela
e ameaçou ela mesma ate-
ar-se fogo. O pai desistiu.
“Não sei o que é brincar,
não tive infância. Recuperei
a vontade de brincar quan-
do nasceram meus filhos.
Mesmo nos tempos mais di-
fíceis nunca deixei de abra-
çá-los, beijá-los e brincar
com eles todo tempo que eu
podia”.
Aos nove anos foi traba-
lhar como empregada do-
méstica para a família mais
abastada da região. Daí lar-
gou os estudos na quarta sé-
rie, só vindo a retomá-los
anos mais tarde. O dinheiro
que ganhava dava para com-
prar o trigo e açúcar do mês.
A infância dura e as
dificuldades nunca
impediram
Bruna de sonhar
10 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Como empregada, além de
limpar a casa e cuidar das
crianças, selava os cavalos,
tirava o leite das vacas, capi-
nava o terreno, ajudava na
roça. Um verdadeiro traba-
lho escravo para a menina de
nove anos que sonhava em
ser professora. Para que seus
sonhos fossem atendidos, ela
rezava no porão de casa, di-
ante de um pilar de madeira,
pois o pai proibia a mãe e os
filhos de irem à igreja. Reli-
giosa, hoje freqüentadora da
igreja evangélica luterana,
Bruna diz que na sua vida
“aconteceram alguns mila-
gres”. E ela tem razão.
Dos 11 aos 15 anos, tra-
balhou como empregada do-
méstica para outra família,
desta vez no centro da cida-
de. A escola, a infância, o
sonho de ser professora, tudo
parecia ficar cada vez mais
distante. A casa era de três
andares. Bruna limpava tudo
e ainda tomava conta de um
bebê que levava, como as ín-
dias, amarrado em suas cos-
tas, para que ele não choras-
se muito. Aos 14 anos ela di-
vidiu o trabalho de domésti-
ca com outro emprego como
operária numa empresa de
cigarros da região.
Aos 17 anos se casou e
aos 18 teve o primeiro filho.
Mais tarde Bruna adotou seu
sobrinho. Quando se casou,
Bruna e o marido foram ser
zeladores da Apae da cidade
e ali viveram, num quartinho
nos fundos da entidade, por
muitos anos. “Éramos felizes
lá. O terreno da Apae era
grande, na época tudo era
muito preservado e tínhamos
vários bichos no quintal de
casa, tartarugas, zurilhos, pa-
tos, marrecos”. De zeladora
da Apae ela foi trabalhar
como lavadeira no Sesi. Nas-
ceram mais dois filhos.Ater-
ceira, uma menina. Grávida
de dois meses da menina,
Bruna descobriu que tinha ru-
béola. Os médicos e familia-
res aconselharam o aborto.
Muitos não aceitavam o fato
de a criança poder nascer
com problemas. A mãe não
queria realizar o aborto e co-
meçou aí uma longa batalha.
Algo parecia avisar que a cri-
ança viria bem. Quando che-
gava ao hospital para fazer o
aborto, o médico nunca esta-
va. Outro médico, no dia de
realizar o aborto, perdeu a
mãe num acidente de carro
e desmarcou. Finalmente um
terceiro médico disse para ela
ter o bebê. Contrariando a
tudoeatodos,elaresolveunão
abortar e acolher sua filha.
Bruna não chorou durante o
parto, porque havia prometi-
do que não derramaria uma
lágrima se a criança viesse
com saúde. Emocionada, diz
que a filha veio não só com
saúde, mas era um lindo bebê.
Já com 34 anos, em 1983,
Bruna ainda não havia perdi-
do as esperanças de voltar a
estudar e melhorar de vida.
“Às vezes não tinha dinheiro
para dar uma bala aos meus
filhos, mas amor nunca fal-
tou. Eu sabia que não podia
desistir, porque senão o bar-
co todo afundava comigo”.
Mais uma vez, contrariando
quem achava que ela não
podia ir mais longe, Bruna
escreveu num papel: “1986.
Sou uma professora forma-
da,” e iniciou mais uma jor-
nada de superação. Traba-
lhando, cuidando dos filhos,
fazendo o supletivo para
completar o primeiro grau e
ao mesmo tempo iniciar o
magistério. Em 86 terminou
o supletivo e conseguiu, atra-
vés de um professor da rede
pública, seu primeiro empre-
go como professora, auxilian-
do as crianças da primeira
série de uma escolinha do in-
Em 1986, a profecia
estava cumprida:
Bruna era professora
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 11
terior, dando aulas de refor-
ço. Como uma profecia cum-
prida, em 1986 Bruna era,
sim, professora. Em 88 for-
mou-se no magistério.
Educadora e sonhadora,
Bruna diz que ainda falta
muito a fazer pela educação
na sua cidade, no bairro da
Limeira onde trabalha, no
país. Mas a resposta, quan-
do se busca mais apoio finan-
ceiro para investir na escola,
é quase sempre a mesma:
não tem dinheiro. Ela sabe
que o trabalho que faz hoje
como diretora da escola e
com as famílias da comuni-
dade – muitos pais jovens de
25, 27 anos mal conseguem
ler e escrever – ainda enga-
tinha até porque falta com-
promisso do poder público.
Mesmo com verbas escas-
sas, a escola, que tinha 66
alunos quando Bruna assu-
miu a direção, hoje já aten-
de 178 crianças, desenvolve
programas de educação am-
biental e de alfabetização e
aulas de 5ª a 8ª séries para
adultos. Através destes pro-
jetos e de outros desenvol-
vidos pela escola, Bruna, os
professores e os funcionári-
os vão ajudando a construir
um futuro melhor, com mais
oportunidades para crianças
e adolescentes da comunida-
de, oferecendo também au-
las de teatro, poesia e arte-
sanato com material recicla-
do na própria escola.
Seria impossível aqui con-
tar toda a luta desta mulher
que, mesmo com dificulda-
des em casa, separada do
companheiro que muitas ve-
zes não compreendeu o ob-
jetivo de sua jornada, nunca
desistiu de seus sonhos.
Quando assumiu como dire-
tora, ela fez graduação e es-
pecialização em Pedagogia.
Com 51 anos, vaidosa como
toda mulher, desfilou recen-
temente como modelo para
uma marca de roupa da ci-
dade.
Pergunto a ela se isto
basta, se está realizada.
Olhando orgulhosa as duas
monografias encadernadas
em preto com letras doura-
das que segura no colo, ela
diz: “Não, ainda não. Agora
sonho em fazer Psicologia”.
E alguém duvida que ela con-
siga? “Compramos um ter-
reno maior e agora já come-
çamos a construir uma nova
escola no local, onde quere-
mos fazer uma horta e plan-
tar árvores frutíferas, para,
além de incentivar o cuida-
do com o meio ambiente,
usar esses alimentos na me-
renda dos alunos. Ainda há
muito o que fazer”.
Questiono se ela nunca
pensou em desistir, em lar-
gar tudo. “Pensei várias ve-
zes em desistir. Mas uma for-
ça dessas que a gente tira
não sei da onde, creio que da
fé e do amor aos filhos, me
fez seguir. Muitos dos meus
objetivos foram alcançados.
Hoje me realizo principal-
mente vendo meus filhos se
formando em faculdades,
como eu sempre sonhei”.
Foi nas férias de verão que comecei a notar. A
manhã se embalava como numa rede, naquele nada-
tudo por fazer. Então chegavam as 11 horas e vinha,
dumas casas lá perto do cemitério São Cristóvão, o
canto de um galinho. E desde então eu sei: ele ama-
nhece comigo.
O calor passou, foi-se também o outono, e nas
manhãs em que posso sair tarde da cama, eu espero
aquele cocorocóóó singrando o ar para atravessar a
pracinha e entrar pela minha janela. E sorrio toda vez
que isso acontece: o meu galinho não me falha. Eu e
ele gostamos de acordar tarde, bem tarde.
Madrugada dessas, umas quatro da manhã, o sono
sumiu e despertei. Encantada, ouvi o som familiar, só
que rouco, decerto também insone. Passados uns
minutos, o silêncio. Às vezes, tenho vontade de des-
cer a rua e procurar o dorminhoco. Bater nas portas
das casas e perguntar: - Olá, é aqui que mora um
galo? Mas penso melhor e fico a olhar pela janela, só
escutando. Gosto de pensar que eu e o meu galinho
somos estranhos personagens de um conto de fadas
urbano.
Minicrônica
O galinho das onze
Por Míriam de Abreu
12 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
A nave dos inocentes
Por Urda Alice Klueger
Crônica
A estrada era de barro e
depedraedepó,mastudoisso
desaparecia numa baixa nu-
vem de bruma, bem rasinha
com o chão, a ponto de a gen-
te se esquecer de pensar se os
velhos pneus da Kombi iriam
resistiraospedregulhospontu-
dos ou não – na Kombi velha,
que já deveria estar aposenta-
da se cá não fosse o mais legí-
timo terceiro mundo (e está
cheinhodegentequeachaque
o Sul é diferente, pitéu de pri-
meiro mundo), um bando de
pequenos anjos como que agi-
tavam suas tênues asas em
forma de sorrisos, e ao olhar
para eles, quem é que ainda ia
pensar em coisas como pneus
e pedregulhos?
Ela viajava adiante do car-
roaondeeuestava,aNavedos
Inocentes, e apesar de ser
mais de três horas da madru-
gada e da estrada inóspita,
cada pequeno anjo daqueles
sorria e abanava para nós, e a
Kombi tinha as luzes internas
acesas, decerto para que ne-
nhum anjinho chegasse a sen-
tir medo, e eles eram tantos,
mas tantos, que não sei como
cabiamtodosali,meninoseme-
ninas de 3, de 4, de 6 anos, tal-
vez, anjinhos com carinhas ca-
boclas, com carinhas italianas,
comcarinhasalemãs,verdadei-
rosanjinhosbrasileirosflutuan-
do na névoa dentro daquela
Nave que os levava em dire-
ção do Futuro, e sua alegria e
farra eram coisas impressio-
nantes! No carro onde eu via-
javaalguémlembrouquesetra-
tavamdeanjinhosquerarasve-
zes andavam de carro, que de-
certo dali vinha sua alegria – e
nósabanávamoseelesnosaba-
navam e riam, e aquela Nave
dos Inocentes era como que
umacoisairrealaflutuarnanoi-
te,comosefosseumsonholin-
do que alguém estivesse tendo,
e na verdade, era um Sonho.
Quando eu contar qual era
o Sonho, metade dos leitores
não vai mais querer ler o resto
da crônica, mas, vá lá: eu se-
guia a Nave dos Inocentes, e
nosdirigíamostodos,numcom-
boioquesóaumentava,emdi-
reção de uma das fazendas de
terras arrasadas (há fotos para
comprovar o arrasamento das
terras) que fazia parte do mai-
or latifúndio do meu Estado,
para ocupá-lo. E, diante de
nós, como numa irrealidade, a
Nave dos Inocentes navega-
va em direção ao Sonho e ao
Futuro.
Andei quebrando um bra-
ço e ele ainda não está bem
bom; assim, sabia que apesar
de estar fazendo parte de uma
equipe de apoio, pouco pode-
ria ajudar a carregar e fazer
outras coisas para aquelas 500
famílias que seguiam para a
ocupação. Então pensei nos
anjinhos que abanavam na ve-
lha Kombi – e se, na hora em
queaKombiparasse,seuspais
nãoestivessemapostos?Qua-
tro horas da manhã é um ho-
rário muito tardio para meni-
nos e meninas tão pequenos
estarem naquela farra toda –
havia que se pensar no que
aconteceria se algum sobras-
se na Nave. E já que estava
sem muita força física, pensei
em usar a força do coração, e
ficar de guarda para quando a
Nave dos Inocentes parasse,
amparar junto ao peito algum
anjinho que começasse a cho-
rar. E foi o que fiz.
Assim que chegamos à
área que estava sendo ocupa-
da, tratei de sair do carro onde
estava e ir ver o que acontecia
na Kombi. Como eu, um ma-
gote de adultos seguiu para a
mesma porta, e todos eram ca-
sais, e muitos tinham bebezi-
nhos ao colo, e quase todos
eramfeios,mal-vestidos,judia-
dospelavida,envelhecidospre-
maturamente, sem nada de seu
alémdaquelascriançasqueco-
meçaram a sair da Nave. E en-
tão eles gritavam coisas assim:
- Segura na mão do Luizi-
nho, e tu na mão do Antonio,
não se soltem!
E cada casal arrebanhava
alguns anjinhos, às vezes três,
às vezes quatro, e os coloca-
vam numa enfiada de mãos
dadas,preciososcolaresdecri-
anças que eram as suas jóias
mais preciosas, as únicas jóias
dassuasvidassofridas.Emcoi-
sa de um instante a Nave dos
Inocentes estava vazia – não
sobrara nenhum anjinho para
eu acalentar junto ao coração.
E então eu soube que aquela
gentejamaissairiadalianãoser
poralgumacordofeitoporum
bom juiz; que não haveria sol-
dado, cachorro ou canhão que
enfrentasse gente que tinha
colares de tais preciosidades,
gente determinada a tudo para
garantir as suas jóias.
Blumenau, 20deabrilde2004.
Rumo ao Sonho e ao Futuro
12 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 13
Era uma festa particular, na cidade de Rio Branco, Acre.
Nela, encontrei um homem baixo, de longos cabelos bran-
cos e cacheados. Já tínhamos nos visto mais cedo, naquele
mesmo dia, numa apresentação musical chamada “Boca
de Mulher”, que acontecera no Teatro Plácido de Castro.
Lá, ele havia me cumprimentado como se me conhecesse,
e eu respondi, sentindo que havia uma certa conexão.
Então, mais tarde, na festa, ele veio até mim e explicou
que, no teatro, achou que eu fosse outra pessoa. Mas aí a
conversa fluiu e ele começou a contar suas histórias. Disse
que era artesão e vendia “trampo” (colares, pulseiras, etc.)
para sobreviver, até que teve um sério problema na vista
que o obrigou a abandonar a profissão. Naqueles dias de
confusão, pediu a Deus que o orientasse quanto ao que fa-
zer da vida. Como poderia, naquela altura, mudar de profis-
são? O que faria? Foi quando veio a “resposta”: ele deveria
compor canções. Esse sentimento soou estranho, pois até
então não sabia tocar nenhum instrumento musical, apesar
de já ter composto belas canções para sua religião. Mas, o
fato é que Zé Kleuber, hoje com 56 anos, entendeu a men-
sagem, se sustenta como compositor e até já ganhou alguns
prêmios em festivais, em diferentes partes do Brasil.
Desde o começo da conversa algo me chamou muito a
atenção em Kleuber: o seu colar. Parecia feito com semen-
tes de aguaí. Ao longo do papo eu fiquei examinando para
ver se realmente eram essas sementes. Então lhe pergun-
tei. Ele deu uma risada, tirou o colar e o colocou em minhas
mãos, indagando se eu conhecia a história desta semente.
Zé Klueber
e a semente
Por Thomas Bisinger
“Castanha elétrica” revela o
poder dos frutos da floresta
Compositor se
protege das cobras
com sementes de
aguaí amarradas
num cordão
de palha
Fotos: Thomas Bisinger
Natureza
14 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Respondi que não, mas que sabia de sua força. E
também disse que nunca havia visto aquela varieda-
de, “mini”, aliás, muito charmosa.
Kleuber seguiu contando sua história. Que nas-
ceu em Pernambuco e cresceu no Maranhão. Lá pelo
ano de 1974 saiu a viajar com amigos e foram an-
dando desde Rio Branco, no leste do Acre, até Cru-
zeiro do Sul, no oeste. Diz ele que, pela estrada, en-
contraram uma cobra que fazia movimentos amea-
çadores. Na dúvida, a mataram com uma pequena
espingarda que tinham. Foi quando apareceu um
menino.
Eles nem tinham percebido que havia casas ali
por perto - era muita mata. As casas eram de serin-
gueiros. O menino indicou como chegar numa casa e
eles foram até lá, sendo muito bem recebidos. Já lá
dentro, conversando, contaram que haviam matado
uma cobra no caminho e o menino, que fora ver o
bicho, disse que aquela lá não era venenosa, e sim do
tipo que come as venenosas. Kleuber lembra que fi-
cou bem mal com isso. Não gostava de matar ani-
mais, ainda mais sendo inofensivos. Mas nada havia
para fazer. Almoçaram e continuaram a viagem.
Mais adiante encontraram índios que acampavam
no caminho e, numa conversa, Kleuber contou da
cobra e do sentimento que o incomodava. Então uma
índia levantou e foi buscar algo. Voltou com uma se-
mente de aguaí amarrada num cordão de palha. Dis-
se que por conta do feito, as cobras iriam lhe perse-
guir e, por isso, deveria usar aquele cordão amarrado
na cintura, abaixo do umbigo, para proteção. Sem
discutir, ele o fez. Além do quê aquela semente o
fazia lembrar da infância, no Maranhão, quando brin-
cava com o fruto verde e macio, fincando graveti-
nhos em sua carne para imitar animais.
No dia seguinte, estavam andando pela trilha, em
fila indiana, quando Kleuber ouviu o ruído de uma
cobra se aproximando. Vinha na sua direção, mas,
de repente, deu meia volta e sumiu na mata. Era o
sortilégio da índia fazendo efeito.
Tempos depois ele ouviu falar de um certo doutor
Henrique Smith que estudou esta semente e seus po-
deres, e chegou a escrever um livro chamado Aguaí-
Zen. O doutor, ao fazer a foto kirlian (foto da aura)
da semente, verificou que ela tinha mesmo uma aura
muito poderosa. Aquilo ficou marcado na sua lem-
brança e, então, certo dia, quando encontrou, sob uma
árvore, estas mini-sementes de aguaí, conhecidas no
Acre como “castanha elétrica”, não hesitou e imedi-
atamente fez um colar. Disse que já ouviu histórias
sobre esse tipo de semente mini, que só aparece a
cada sete anos, mas ainda não conseguiu comprovar,
de fato, qual a história desta variedade. Até hoje só
encontrou uma árvore que as produz assim, deste
tamanho. O certo é que pouco tempo atrás estava
numa situação onde apareceu outra cobra e ele re-
solveu fazer um teste: rodeou a cobra com as “cas-
tanhas elétricas”. Diz Kleuber que foi como mágica.
A cobra ficou parada com a cabeça erguida até que
veio alguém e a recolheu.
Zé Kleuber conta ainda que há várias maneiras
de usar a semente, além de servir como espanta-
cobra, inclusive utilizando o óleo que tem dentro dire-
tamente sobre áreas doloridas do corpo. Mas deve-
se tomar cuidado para não ingeri-la, pois o líquido da
semente e do fruto é venenoso. Outra coisa que ele
descobriu com o tempo é que, para usar a semente
em contato com o corpo, é melhor que seja em áreas
onde não há ossos muito expostos, pois isso pode pro-
vocar dor. Foi aí que entendeu porque a índia disse
para usá-la abaixo do umbigo. Esse povo da floresta
tem mesmo sabedoria. Hoje, Zé Kleuber, assim como
muitos outros que conhecem o poder desta semente,
sempre que pode a carrega no bolso ou no pescoço.
É muito poder.
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 15
Por Amberson
Vieira de Assis
Cardiologista
O que
nos leva a
conside-
rar que a
m u l h e r
cuida me-
nos que o homem do seu
coração? A cada ano, no
mundo, mais de 8 milhões
de mulheres morrem devi-
do a uma doença ou ataque
do coração.
• 8 vezes mais que o nú-
mero total de mortes por cân-
cer de mama;
• 6 vezes mais que as
mortes relacionadas com a
AIDS;
• nos países em desenvol-
vimento, a metade das mor-
tes de mulheres de mais de
50 anos se deve a doenças
ou ataque do coração.
Na verdade as mulheres
têm suas doenças cardíacas
menos estudadas e menos
compreendidas. Um estudo
mostra, que 60% dos médi-
cos acreditam que os ho-
mens têm mais chances de
Menos estudadas,
mais incompreendidas
morrerem subitamente devi-
do a um ataque cardíaco,
quando na verdade as mu-
lheres morrem mais nessa si-
tuação.Amelhor maneira de
prevenir essas doenças (an-
gina, infarto) seria identifi-
cando aqueles indivíduos
com maior risco de desen-
volvê-las. Mudando hábitos
de vida, combatendo a obe-
sidade, fazendo uma ativi-
dade física, deixando de fu-
mar e, quando indicado,
usando remédios (aspirina,
redutores da pressão e do
colesterol, etc) podemos di-
minuir as possibilidades de
sofrer um ataque cardíaco.
Entretanto, um terço das
mulheres não se beneficiam
das medidas preventivas
contra estas doenças.
Cerca de 10% da popu-
lação brasileira é portadora
de pressão alta. Esta doen-
ça é perigosa, porque muito
freqüentemente é silenciosa
- não apresenta sintomas. A
manutenção de níveis des-
controlados de pressão por
longos períodos pode acar-
retar alterações importantes
Saúde
Doenças cardíacas nas mulheres são deixadas em segundo
em vasos - artérias - de todo
o organismo, podendo levar
a lesões cardíacas, renais,
derrames cerebrais e altera-
ções visuais. Outra medida
fundamental para o contro-
le da pressão é a redução
do sal na dieta. Entre ½ a 1
colher de chá de sal por dia
é uma quantidade suficien-
te para as necessidades or-
gânicas. No Brasil muitos
consomem até cinco vezes
mais do que isso. Por isso,
dispense o saleiro de mesa,
cozinhe com pouco sal e
evite alimentos industrializa-
dos salgados. O controle de
peso é também uma medida
fundamental para o controle
da hipertensão.
O diabetes é outra doen-
ça crônica que leva a pro-
blemas semelhantes, em vá-
rios aspectos, aos descritos
para a hipertensão. Seu con-
trole envolve medidas dieté-
ticas; medicações, quando
indicado, e atividade física
regular. Uma dieta com pou-
co açúcar pode diminuir os
níveis de glicose - açúcar no
sangue - e diminuir os trigli-
cerídeos - um dos tipos de
gorduras do sangue. Prefira
adoçantes, refrigerantes e
alimentos dietéticos.
O colesterol é uma gor-
dura presente nos alimentos
de origem animal que des-
sa forma não deve ser con-
sumido em excesso. Mas
atenção, algumas pessoas
produzem mais colesterol
que os demais, mesmo que
tenham uma dieta pobre em
gorduras.
O tabagismo, uma “auto
intoxicação” voluntária,
com milhares de substânci-
as nocivas, tem relação cla-
ra com um sem número de
doenças pulmonares; cardí-
acas; gastrintestinais; uriná-
rias, dentre outras.
Os exercícios físicos re-
gulares envolvem disciplina e
determinação. Comprovada-
mente trazem grandes bene-
fícios ao organismo - princi-
palmente ao coração - porém
devem ser orientados, regu-
lares e preferencialmente
aeróbicos - caminhadas, ci-
clismo, natação, hidroginásti-
ca, ciclismo dentre outros.
16 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Seu nome: Samuel. O en-
contramos meio escondido
debaixo de um enorme cami-
nhão que carrega papel. Es-
tava quase marrom, da mes-
ma cor que cobre tudo na
perdida cidade de Susques,
na puna argentina. Com um
pano sujo, tocava aqui e ali
no coração da máquina, bus-
Rumoaodeserto
Com Samuel,
pelos Andes...
Por Elaine Tavares
cando achar o problema que
o prendia naquele lugar. Es-
tava atrasado e mal-humora-
do. Susques é o portal dos
Andes, cidade fronteiriça
onde está o posto da alfân-
dega, e todos os caminhões
que cruzam a fronteira entre
Chile e Argentina têm que,
obrigatoriamente, parar ali.
Por isso, era ali que também
estávamos, na busca de uma
carona para San Pedro de
Atacama. Samuel já era o
quarto caminhoneiro a ser
consultado sobre a tal caro-
na. “Não dá, tô quebrado”, foi
a resposta seca e incisiva.
Já eram onze da manhã,
e a possibilidade de outros
caminhões passarem se es-
vaía. O movimento maior
era sempre de manhãzinha.
“Até o meio dia ainda pode
aparecer alguém”, dizia Fer-
nando, um dos fiscais da adu-
ana, ansioso por nos ajudar.
Mas, nos olhos dele, se per-
cebia que as chances eram
pequenas. Teríamos que fi-
car mais um dia em Susques
e nosso sonho de chegar ao
deserto ficava mais distan-
te. Dali não saía ônibus nem
nada. A única chance era
mesmo um caminhão.
Os viajantes dividiram o pão e as
dificuldades na subida ao Atacama
O argentino Horácio fez a foto do grupo: Marcela, Elaine, Samuel e Míriam
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 17
Às onze e meia Samuel
apareceu na aduana para
acertar os papéis. Iria arris-
car atravessar a cordilheira
com o caminhão ruim. Não
podia mais ficar ali. Estava
igual a nós. Com pressa de
chegar ao Chile. Mas tinha
medo de levar caronas.Acoi-
sa podia ficar ruim. A cordi-
lheira é traiçoeira e havia no-
tícias de que estava nevando
mais acima. “É arriscado”,
balbuciava, enquanto Fernan-
do insistia em convencê-lo a
nos levar. Então, foi vencido.
E lá fomos nós, levando a re-
boque o argentino Horácio,
que voltava para a fronteira
com um galão de gasolina.
Seu carro havia ficado lá, sem
combustível. Seríamos cinco
a subir osAndes no caminhão
avariado.
A intensa fumaça branca
que saia do “possante” deixa-
va claro que, sem óleo, não
chegaríamos a lugar nenhum.
Poucos quilômetros depois de
Susques paramos num posto,
o último de toda a travessia
da cordilheira. Só havia qua-
tro litros de óleo disponíveis.
Compramos.Sim,nós,porque
Samuel estava tão quebrado
quanto o caminhão. Há dias
fora de casa e com o veículo
avariado, já não lhe restava
qualquer tostão. Tossindo e
cuspindo fumaça lá foi o ca-
minhão pelas trilhas das mon-
tanhas.
Atravessia é solitária. Vez
ou outra, muito rara, aparece
alguém. Geralmente os ca-
minhões passam bem cedi-
nho e acaba-se encontran-
do pouquíssimos carros de
passeio. O trotezito do ca-
minhão não saía dos 40, 30
quilômetros por hora. Íamos
rezando para que o óleo não
evaporasse todinho. Mas,
faltou santo. O barulhinho
de pi, pi, pi, no painel dava
conta de que era preciso
parar. Na estrada, o vazio.
Uma chuva forte. Deserto
total. Os cinco desolados.
Por milagre passou um ca-
minhão e compramos mais
quatro litros. Volta todo
mundo para o caminhão e
toca a subir. Marcela come-
ça a ter dor de dente e ri de
nervoso. Eu, que não havia
comido nada aquele dia,
comecei a passar mal por
causa da altura. Na frente,
Míriam seguia, impávida,
de papo com Horácio, que
contava sobre Córdoba,
sua cidade natal.
A duras penas chega-
mos em Paso de Jama, a
fronteira, e ali deixamos o
companheiro argentino.
Seguimos a subida, o pos-
sante cuspindo fumaça.
Agora, na estrada de asfal-
to, o que nos esperava era
a neve. Começou de repen-
te e, num segundo, tudo
estava coberto de gelo, in-
clusive o caminhão. Bem
nessa hora lá veio o baru-
lhinho insistente, pi, pi, pi.
De novo paramos. No meio
da neve. Um frio de rachar.
Só um milagre faria passar
alguém àquela hora. Pois não
demorou 10 minutos e logo
apontou um caminhão. Mais
quatro litros de óleo. Vibrá-
vamos com palmas e gritos.
O caminhão seguiria seu rit-
mo de completa lentidão.
Samuel ria e contava um
pouco de sua vida. Em 27
anos de estrada, sempre fa-
zendo a rota da cordilheira,
nunca havia passado por
aquele tipo de situação. Ca-
sado e com três filhos, que-
ria chegar logo em Calama,
no Chile, onde esperavam
por ele uma comidinha ca-
seira e uma cama quente.
Achava estranho o fato de
nós três sermos casadas e
viajarmos sozinhas. “Lá no
Brasil a gente é moderno”,
brincava Míriam. E ele ria
um riso que deixava antever
que lá no Chile não era as-
sim não.
Como a jornada era lon-
ga, dividíamos a pouca co-
mida que tínhamos: um pão
de sal pequeno que eu com-
prara em Susques, cortado
em quatro pedaços, uma bar-
ra de cereal, também corta-
da em quatro e pedaços de
gengibre. Foi o que nos sus-
tentou até o fim do dia. Não
imaginávamos que levaría-
mos mais de oito horas para
fazer duzentos e poucos
quilômetros até San Pedro.
Já ia caindo a noite e
estávamos a 20 quilôme-
tros de San Pedro. Parecia
que tudo iria dar certo. Che-
garíamos, enfim. Mas o mal-
fadado pi, pi, pi, de novo nos
fez parar. Agora, não seria
possível um novo milagre.
O mal fadado pi,
pi, pi, de novo nos
fez parar. Agora
não seria possível
um novo milagre...
18 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Era pedir demais para os
deuses da cordilheira. Sa-
muel disse que se, por ven-
tura passasse alguém, seria
melhor a gente ir com a nova
carona. Ele passaria a noite
ali. Não aceitamos. Estáva-
mos juntos e chegaríamos
juntos. O vento soprava com
uma força descomunal. De-
víamos estar a mais de qua-
tro mil metros acima do ní-
vel do mar. Ficamos, os qua-
tro, dentro do caminhão, bus-
cando nos aquecer com o
calor um do outro.
Então, no meio da ven-
tania, como num milagre,
assomou um carro branco,
de passeio. Samuel des-
ceu e pediu para que pa-
rasse. Eram dois bolivianos
que vinham na direção con-
trária. Uma conversa rápi-
da e Samuel trouxe a notí-
cia. “Ellos van llevar las
chicas”. Insistimos que se-
ríamos solidárias, ficando,
mas Samuel não quis. “Us-
tedes llegan en los carabi-
nieri y ellos me ven ayu-
dar”. Bom, assim, tudo
bem. Lá fomos nós com as
mochilas para dentro do
carro dos bolivianos, en-
quanto Samuel ficava na
estrada, acenando. Eles
conversavam, nervosos.
Na verdade, o motorista ti-
nha vindo do posto da fron-
teira. Tinha sido mandado
de volta para a Bolívia por-
que trazia um clandestino.
Os guardas o obrigaram a
levar o outro – que era um
primo – até a fronteira da-
quele país. Mas eles havi-
am decidido que o garoto
ficaria ali, no meio do de-
serto, naquela ventania, e
entraria no Chile a pé, de
forma clandestina. “Uste-
des no digan nada”, pedi-
am, assustados. E nós,
concordando, é claro, mais
assustadas do que eles.
E foi assim que chega-
mos ao Chile. No carro do
boliviano, que já estava en-
crencado.Apolícia, normal-
mente mal-humorada, já nos
marcou. Revista total. Abre
mala, abre bolsa, abre bol-
so. Éramos “suspeitas”. Eu,
que trazia um saco de folha
de coca no bolso, corri para
o banheiro e me livrei de
tudo. Foi um momento de
tensão. Mais uma vez, foi
Samuel quem nos salvou.
Pedimos ao carabinieri que
fosse ajudar o companhei-
ro, chileno, que estava pa-
rado a 20 quilômetros dali.
Penso que foi só aí que acre-
ditaram que não éramos
cúmplices do boliviano.
Mochilas nas costas,
entramos a pé em San Pe-
dro de Atacama depois de
oito horas na estrada. Foi
o tempo que levamos para
fazer pouco mais de 200
quilômetros. Ainda estáva-
mos um pouco tensas com
toda a aventura. Então, ao
virar a esquina do pequeno
povoado que era a cara
daquelas vilas de seriado de
Zorro, foi exatamente isso
que vimos. Dentro de um
ônibus que saía da cidade,
o próprio Zorro dirigindo,
mascarado, a acenar. Caí-
mos na gargalhada e entra-
mos na Caracoles – rua
principal – prontas a viver
a mais linda experiência do
deserto chileno. Lá longe,
no meio da noite, Samuel
recebia dos carabinieri
mais quatro litros de óleo,
o que lhe garantiria passar
a noite em casa.
Ficamos, os quatro,
dentro do caminhão,
buscando nos
aquecer com o calor
um do outro
Fernando (à esquerda)
dá dicas para as viajan-
tes chegarem ao deserto
Foto:MarcelaCornelli
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 19
Sobre a
covardia
Por Rosangela Bion de Assis
Poema
Hoje chorei pela covardia que me domina.
Chorar alivia a culpa,
e também relembra que ela existe.
Covardes choram e separam moedas,
roupas velhas,
pequenos presentes,
e até um almoço.
Covardes distribuem
o que não lhes faz falta.
Aliviam a culpa
e desafogam os armários.
Assim, escrevi sobre a fome no mundo,
fotografei a desigualdade,
e comprei cadeados.
Covardes lêem sobre as barbáries,
se emocionam com os excluídos no cinema.
E compram roupas novas,
planejam a viagem,
e abastecem o freezer.
“Não podemos resolver tudo!”
Covardes tentam aliviar a culpa,
comprando a rifa,
levando as doações
e rezando.
Diariamente me junto à multidão de covardes
que acordam,
comem,
trabalham,
e dormem.
Um dia vamos morrer, definitivamente.
Sem fazer falta.
Sem ter colocado
um tijolo sequer,
na construção de uma vida melhor.
Que a maioria não sabe como é.
nem vai saber,
enquanto covardes choram
sem que nada lhes alivie a culpa.
Foto:OsvaldoVicente
20 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
Piores
momentos...
...de Pobres &
Nojentas!
SaiaJusta
• Ganha um bromélia de presente, resolve acariciar as folhas e fica
com os dedos cheios de espinhos. Pior, liga para o hospital da universi-
dade para ver se tem perigo de intoxicação.
• Viaja a Buenos Aires com uma faca dentro da bagagem de mão;
descoberta no raio-x, se recusa a jogar fora o artefato, gritando: - É
para cortar frutas! Quase fica no Brasil.
•Ainda em BuenosAires, assustada com o movimento das ruas, es-
peralongosminutosasinaleira,queestávermelha,ficarverde,esóatra-
vessa quando, passados outros longos minutos, o vermelho aparece no-
vamentenosemáforo.
• Compra uma bota linda, de salto alto, em promoção; usa uns dias,
tem uma crise de dor nas costas, gasta o que não tem em fisioterapia e
manda cortar o salto da bota.
• Chega no quarto do hotel e enche a bolsa com as coisas do frigobar,
achando que estava tudo incluído no valor da diária.
• Procura uma bolsa pequena pa0ra sair à noite e quando acha a dita
cuja ouve essa da filha: “essa que eu uso pra brincar não! Mãe, essa já tá
comavalidadevencida.”
•Vai dar palestra em cidade do Nordeste e fica mais de meia hora na
porta do quarto do hotel tentando abri-la com um cartão magnético.
Tem vergonha de confessar que não conhece essa “novidade”. Mas,
como é nojenta, consegue.
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 21
Por Elaine Tavares
Rebelde
Era 1745 na vastidão do Peru.
Terra de incas, os filhos do sol.
No povoado de Tamburco, em
Abancay, departamento de Apu-
rimac, nascia Micaela Bastidas
Puyucahua, uma guria mestiça
que iria marcar com sangue e
coragem a história da gente pe-
ruana. O pai, Manuel, tinha san-
gue espanhol, mas a mãe, Jose-
fa, era inca da gema. Esta mistu-
ra fez de Micaela uma linda mu-
lher de traços fortes e cabelos ondulados, uma “zam-
ba” que, para as gentes de Abancay, significa al-
guém com características distintas das dos andinos,
mestiça. Mas, ao logo de sua vida, mostrou que –
apesar do sangue espanhol - era verdadeiramente
uma mui digna filha de Tawantisuyo, a grande nação
do povo dos Andes.
E foi em Tamburco que ela cresceu, um povoado
rural, pequeno, pobre, mas rota de passagem dos vi-
ajantes que circulavam pelo país em lentas mulas na
penosa jornada de carregar mantimentos e produ-
ção de um lado para o outro. Foi correndo por aque-
les pastos e observando a crescente pobreza das gen-
tes que ela desenvolveu o aguçado senso de justiça
Vai ser como
queria Micaela
que mais tarde iria se transformar em lenda.
A história de Micaela se mescla com as grandes
lutas de libertação da América Latina quando, em
1760, ainda jovenzinha, casa-se com José Gabriel
Condorcarqui, cacique de seu povo e descendente
do último inca Tupac Amaru, morto em Cuzco no
ano de 1572. É ele quem vai incendiar as paragens
peruanas na revolução que ficou conhecida como a
“revolução de Tupac Amaru II”.
Naqueles anos do final do 700, a exploração dos
trabalhadores indígenas era uma coisa insuportável.
A colônia fazia seus estragos, rapinava riquezas, es-
cravizava os seres. Já tinham passados quase du-
zentos anos desde a invasão e os povos originários
estavam começando a despertar da letargia. Rebe-
liões haviam sido feitas ao longo desses anos, mas
todas tinham sido esmagadas. A mais recente, em
1760, justamente o ano do casório de Gabriel e Mi-
caela, fora liderada por José SantosAtahualpa, bus-
cando restaurar o reino dos incas. Esta última fez
os espanhóis ficarem de cabelo em pé, porque per-
ceberam que, nas comunidades indígenas, algo mui-
to poderoso começava a se fortalecer: o desejo de
liberdade. A parte isso, também os criollos (gente
nascida na terra, mas com sangue espanhol) esta-
vam insatisfeitos com a coroa por causa dos altos
A filha de Tawantisuyo marcou com
sangue e coragem a história da gente peruana
22 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
impostos. Caldo perfeito para mais confusão.
Por conta destes dois elementos incendiários, Tu-
pac Amaru acabou liderando uma revolução vinte
anos depois, em 1780. Homem letrado, já cacique
de seu povoado, o descendente do inca já estava
impregnado dos ares rebeldes que vinham da Fran-
ça, dos Estados Unidos e do Haiti. Seu primeiro ato
revolucionário foi acabar com as obrajes, espécie
de fábricas onde os índios eram explorados até a
morte, ganhando miseráveis salários. Seu propósito
era ir até Cuzco, destruindo todas estas formas de
opressão e instaurando um governo indígena. Não
foi à toa que em poucos dias já tinha juntado mais de
10 mil índios no seu exército. E, nessa caminhada
até o “umbigo do mundo da nação do Tawantisuyo”,
ele ia libertando todos os escravos.
Durante o pouco tempo (cinco meses) que durou
a revolução de Tupac Amaru, Micaela Bastide este-
ve a seu lado. Por várias vezes comandou as tropas
e não foram poucas as suas ações como chefe de
governo. Seu corpo forte e esguio era visto, manhã
cedinho, a cavalgar pelos povoados, arrebanhando
gente para a guerra. Ela era quem administrava as
provisões, mobilizava os destacamentos e adminis-
trava as terras liberadas pela revolução. Era consi-
derada a facção mais radical do movimento. Quan-
do Tupac Amaru vacilava no seu avançar sobre
Cuzco, era Micaela quem o impulsionava, pessoal-
mente ou através de cartas que lhes fazia chegar
amiúde. Por várias vezes se mostrou mais estrate-
gista do que ele como, por exemplo, quando intuiu
que a união com os criollos não ia dar em boa coisa.
A história comprovou que tinha razão. Esperando
por um levante das gentes de Cuzco, Tupac Amaru
demorou a entrar na cidade. Isso fez com que as
tropas reais se rearticulassem e o derrotassem em
março de 1781. Cuzco não foi conquistada e tudo se
perdeu. Numa de suas cartas a Gabriel, Micaela
escreveria: “Chepe, chepe, mi muy querido: bastan-
tes advertencias te dí”. Ela nunca confiara nos bran-
cos e tampouco nos criollos. Sempre acreditou que,
entrando na cidade, venceriam. Gabriel não lhe deu
ouvidos.
Assim, vencidos, os líderes rebeldes foram apri-
sionados. Entre eles estão Gabriel (Tupac Amaru),
Micaela e seu filho Hipólito. No mês de maio do
mesmo ano todos são supliciados na Praça Maior da
cidade. Micaela, Gabriel e o filho chegam arrasta-
dos por cavalos. Irão sofrer todas as torturas possí-
veis. O primeiro a morrer na forca é Hipólito, diante
dos pais. Mas, antes, lhe arrancam a língua. Micaela
assiste impávida. Depois, vários outros rebeldes vão
sendo mortos nas mesmas condições de crueldade,
muitos são parentes, amigos. Micaela é a penúltima.
Sobe no cadafalso com a mesma altivez que lhe va-
lera a formosura. Tem a língua arrancada e depois,
como não morre em seguida, os carrascos ainda lhe
aplicam golpes no estômago e no peito. O filho mais
novo, de nove anos, assiste a tudo. Será levado de-
pois, prisioneiro, para a Espanha.
O último a morrer é Tupac Amaru. O cacique
revolucionário é amarrado a quatro cavalos que são
postos a correr em direções opostas para que o cor-
po do índio seja esquartejado. Os cavaleiros esporei-
am os bichos, eles arrancam e o cacique não se par-
te. Por várias vezes é feito o mesmo procedimento e
Tupac Amaru não se parte. Os espanhóis desistem
e desamarrando-o o esquartejam a golpes de ma-
chado, sendo suas partes espalhadas por várias regi-
ões do Peru. Dizem que nessa hora sagrada, em
que o corpo do inca resistiu, uma chuva grossa caiu
do céu.
Talvez seja por isso que até hoje, quando chove
no Peru, as gentes originárias se ponham a sorrir.
Lembram o tempo em que Tupac Amaru incendiou
de novo a caminhada para a liberdade, junto com
Micaela. Lembram que sempre é possível enfrentar
a violência, o terror, o medo. Sorriem e seguem, por-
que há ainda muita estrada para caminhar. O povo
de Tawantisuyo ainda não entrou em Cuzco. Vai en-
trar, e vai ser como queria Micaela. Isso ainda va-
mos ver!!!
Micaela era a alma da rebelião.
Comandante altaneira, era
quem empurrava Tupac
Amaru rumo a Cuzco
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 23
Ueivi era como uma onda de ternura. Abandonado
numa praia do continente, tenro filhote, foi acolhido na
casa de meus pais. Viveu uma vida longa. Brincalhão,
irreverente até demais. Na euforia da brincadeira, às
vezes arranhava com suas garras afiadas. Ele tinha, é
verdade, um jeito quase canino de ser. Quando uma pes-
soa da família chegava em casa, corria para recebê-la,
saltitante como um cachorro. Como todo bicho se apega
de modo especial a uma pessoa, escolheu meu pai, e o
Cuidadores de
bichos e outros seres
Por Raquel Moysés
Companheiros fiéis na comunidade das gentes
Humanidade
Fotos:RaquelMoysés
Os animais
acompanham os
humanos ao
longo dos dias e
noites dos
tempos.
Convivem com a
sua miséria, sua
generosidade,
sua
monstruosidade
24 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
seguia passo a passo. Onde ele estivesse fa-
zendo um serviço, no quintal, no telhado, lá es-
tava o gato da onda: Wave, Ueivi. Com a língua
de fora, postava-se a seus pés enquanto tocava
acordeão, e parecia embevecido, como se fru-
ísse a música. Depois, na hora da leitura, de
assistir televisão, buscava o colo. Repouso com-
partilhado.
Gato abandonado ao sabor das ondas, Ueivi,
sujeito de uma vida, viveu uma existência boa e
bonita. Bem alimentado, amparado na hora da
doença. Quando as forças começaram a lhe fal-
tar e os quadris não suportavam mais o peso de
seu corpo de gato brasileiro, daqueles mancha-
dinhos como uma jaguatirica, ele foi cuidado com
remédios e carinho. Assim foi também na hora
da boa morte. Quando uma manhã amanheceu
sangrando, sofrendo muito, os seus cuidadores,
coração pesado, chamaram a veterinária para
que aliviasse seu sofrer. E assim ele partiu, dei-
xando entre as pessoas uma recordação de ter-
nura. Um acalanto felino.
Ueivi viveu entre gente e dela recebeu amor
e respeito. Sua vida também foi partilhada com
uma comunidade de bichos. Outros gatos, vári-
os cachorros que, ao longo dos quase 15 anos
de sua vida, foram dividindo o quintal, as brin-
cadeiras, os saltos do muro, as fugas para a rua
e as areias da praia, o retorno ao lar. Da comu-
nidade dos bichos, assistimos à morte de uns
poucos: Ueivi, Nina, Neige, Dilan, Benin, Tin-
tim... Os outros partiram sem deixar sinais. Sim-
plesmente sumiram um dia ou uma noite e deles
não ficaram rastros. Como é dito, até entre ve-
terinários de uma certa linha, os animais, quan-
do pressentem a morte, vão embora.
Assim foi com Newar. Eu o trouxera de lon-
ge, da velha Itália dos meus antepassados. Ao
retornar dos estudos, depois de quatro anos vi-
vendo com ele, não poderia deixar, entregue à
própria sorte, o siamês que se conchegara no
meu colo entre livros e apontamentos. Eu o aco-
lhia e ele me oferecia seu calor nas interminá-
veis noites de inverno, debruçada sobre livros e
escritos de jornalismo, tendo por companhia o
crepitar do fogo da lareira acesa.
Na volta para casa, cumpridos todos os ca-
minhos da burocracia humana, ele viajou comi-
go entre os passageiros, abrigado na sua bolsa
de viagem, e entrou em terras brasileiras com
visto de ingresso. Deixou logo de ser estrangei-
ro na comunidade de gente e de bichos. Depois
do primeiro susto com os cães, um dálmata e
um pastor, que o puseram a correr pinheiro aci-
ma, passou a conviver de forma harmoniosa no
quintal junto ao mar. Toda manhã acordava, com
um leve toque de cabeça, minha mãe, a quem
escolhera como especial desde o primeiro en-
contro. Era de uma delicadeza e uma ternura
intangíveis. Tinha uma fala para cada momen-
to, e quando erguia os olhos azuis, neles havia
algo que só podia ser lido como amor. Parecia
carregar a doçura do povo nepalês de quem
herdara o nome.
O pinheiro em que subiu amedrontado não
existe mais. Newar também foi embora antes
de completar 13 anos. Desapareceu uma ma-
Velozes noites, densas trilhas,
paragens do mundo,
ruas e ritos: uma lareira e um
gato...
Pobres & Nojentas - Julho de 2006 25
nhã bem cedo e de nada adiantaram as buscas
e os cartazes espalhados pelas redondezas de
sua casa. Deixou em nossas vidas um sopro de
luz. Para mim, nunca existiu um gato como
Newar. Para alguns, talvez muitos, o que estou
dizendo pode parecer um despropósito. Lirismo
barato, dirão os descrentes. Mas sei que quem
compartilha da comunidade dos iniciados, cui-
dadores de bichos e outros seres, entende o que
estou dizendo.
Por pensar assim, quando vi no jornal a ima-
gem daquele cachorro com a cabeça traspas-
sada por uma faca, e daquela fêmea Pittbull grá-
vida esfaqueada por algum desalmado, e soube
dos cuidados afetuosos que receberam, é que
ainda acredito no gênero humano. Por isso,
quando tive notícia, pela televisão, da pena al-
ternativa a ser cumprida no canil por um jovem
que espancou até a morte um outro cão, ainda
espero algo da justiça dos homens.
Os animais acompanham os humanos ao lon-
go dos dias e noites dos tempos. Convivem com
a sua miséria, sua generosidade, sua monstruo-
sidade. Compartilham o pão e a água com an-
darilhos e recebem túmulos de mármore de ri-
cos “donos” que os tratam como sua proprie-
dade. Mas o despropósito não está em tratar
com dignidade o ser animal, o absurdo é con-
denar o ser humano ao desespero da dor, da
fome, do descuido mais desesperador que é o
abandono. Só quem é capaz de amar e cuidar
com desvelo de um animal enfermo, sujeito de
uma vida, do mesmo modo delicado e compas-
sivo que se debruça sobre o leito de morte de
um homem, uma mulher ou uma criança, é dig-
no de sua humanidade.
Era a primeira vez que Hernán viajava para a Itália.
Seu destino era Milão onde ele, jornalista, faria seu dou-
torado em Comunicação. Ele era colombiano, da cida-
de de Medellín, onde trabalhava no setor de telejorna-
lismo de uma universidade. Durante a longa travessia
atlântica, na hora da refeição, pediu um “palillo” (palito
de dente, em português). A aeromoça da Alitalia (com-
panhia de aviação italiana), que entendia menos espa-
nhol do que Hernán entendia italiano, não compreendeu
bulhufas.
Procurando agradar o passageiro, ela perguntou em
italiano: - O senhor quer lenços de papel? Pão? Açú-
car? E assim ia mostrando objetos, num jogo de tentati-
va e erro. Numa desesperada busca pelo objeto certo,
ela finalmente disse: - “Burro?”
Hernán ficou encabulado, mas nada falou à aero-
moça, que desistiu da inútil caça às palavras. O jorna-
lista pensou com seus botões: - Mal cheguei à Itália e já
estão me chamando de burro?!
Dias depois, em Milão, descobriu o verdadeiro signi-
Caramba!
Me chamam
de burro?!
Por Stefano Roberto Moysés Colucci *
ficado de “burro”, em
italiano, e caiu na gar-
galhada com duas no-
vas amigas, jornalistas
brasileiras. A aeromoça
não o havia chamado de
pessoa pouco inteligen-
te, mas tinha lhe ofere-
cido apenas manteiga.
* É estudante da
4ª. série do ensino
fundamental,
tem 10 anos
26 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
TTTTTempoLLLLLivre
para
quem tempouca grana
$$$$$Por R$3,50 dá para comer um dos melhores cachorros-quen-
tes (completos) da cidade. É o Cachorro Louco, na rua geral de
Coqueiros, duas quadras depois do supermercado Imperatriz.
A van dos vendedores fica parada na frente do posto de gaso-
lina a partir das 19 horas. O comprador pode se sentar em banqui-
nhos de plástico enquanto aguarda o preparo do lanche. Vale a
pena!
$$$$$Quem tira o dia para passear no centro de Florianópolis tem
que dar uma parada na livraria Paulus, na Jerônimo Coelho, 119.
Osatendentessãoinformadoseatenciosos.Oambienteétranqüi-
lo. Nem precisa comprar. Folhear os livros já é um prazer. Mas
quem reservou uma grana pode adquirir um de teologia e estudos
bíblicosemgeral,filosofia,sociologia.Sócoisaboa.
$$$$$ O 24º Festival de Dança de Joinville (SC) começou no dia 19
e encerra-se em 29 de julho no Centreventos Cau Hansen. O pre-
ço dos ingressos é “salgado”, mas dá para assistir de graça a espe-
táculos em locais variados como praças, shoppings, empresas e
outros locais nos chamados Palcos Abertos. Grupos de todo o
paísaproveitamessesespaços para apresentarsua arte.Joinville é
umadelícia,aindamaisnoperíododofestival.
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hora do depósito, nome e endereço completo (com CEP)
A TV de sinal aberto
tem pouca coisa boa para
se ver. Mas tem uma que é
ótima. O nome: Café Filo-
sófico.Oprogramaétrans-
mitidoaosdomingos,às22h,
na TV Cultura. Em julho
deste ano, passou a exibir
novo formato. A atriz Gra-
ziella Moretto apresenta a
série O amor é uma coisa
que se aprende, com cu-
radoriadopsicanalistaCon-
tardoCalligaris.
São séries de palestras
que falam sobre as princi-
pais questões do ser huma-
no contemporâneo: amor,
sexo, os excessos e as ma-
neiras de criar ou recriar
vínculos. Os temas são dis-
cutidos por estudiosos bra-
sileiros do comportamento
e das relações humanas –
psicanalistas,historiadores,
cientistassociaisefilósofos.
No dia 30 de julho, o tema
vai ser “Amar é uma coisa
que se aprende e se
aprende em casa”.
Não dá para perder. O
Café Filosófico faz a gente
pensar, “puxar assunto”
com amigos e saber mais
das coisas do mundo. E é
de graça.
Café
Filosófico

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Pobres e Nojentas - número 2

  • 1. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 1
  • 2. 2 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
  • 3. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 3 F oi uma surpresa. De repente, de lugares não imaginados fo- ram surgindo mulhe- res e pedidos. O que era in- tuído ficou explícito.As “po- bres e nojentas” vivem em todos os rincões deste Bra- sil, conquistando seus espa- ços, fazendo arte, provocan- do rebeliões, existindo, in- ventando, criando. E o que era para ser só uma revista paroquial criou asas, dispa- rou, rompeu céus e barrei- ras, alcançando, inclusive, o coração dos homens. Agora, aqui estamos no desafio da revista número dois. Nela, incluímos ainda outros seres, tão especiais quanto homens ou mulheres: os bichos. Porque a vida que vive é o que temos de reve- renciar, sempre na busca da Eko Porã, vida boa e bonita para todos. Para todos mes- mo. Porque sonhamos com o dia em que os oprimidos libertarão os opressores, por obra e graça da luta renhi- da. Porque aos empobreci- dos ninguém dá nada. Tudo é conquistado, inclusive a nova sociedade que construi- remos. Esta edição que agora entregamos às gentes de todo o Brasil fala de mulhe- res do ontem e do hoje, fala dos povos originários que in- sistem em resistir, de ho- mens que lutam, do povo sem terra, mas com esperança, dos animais que comparti- lham a vida conosco, em comunhão. A P&N se es- praia, divide poemas, acolhe as palavras de outros e ou- tras “compas” que se apres- saram em enviar seus tex- tos, doidos por se expressar. E assim seguimos, criando espaços para a palavra não- dita que, agora, aqui, grita. Nestas páginas, vão os mal- ditos. Que por força da ou- sadia se bem-dizem! E as- sim caminham para o gran- de meio-dia... Elaine Tavares Míriam Santini de Abreu Editoras F www.geocities.com/pobresenojentas Pobres & Nojentas digital Por Elaine Tavares Já está no ar a página di- gital da nova publicação ca- tarinense Pobres & Nojentas, lançada no final do mês de abril. A revista, que teve em seuprimeironúmeroumatira- gem de apenas 500 exempla- res e foi financiada totalmente pela equipe da Companhia dos Loucos, veio para mostrar aquelas que nunca visitaram a ilha de Caras, mas que, com seu trabalho e sua luta, cons- troem o mundo real. A proposta dos jornalis- tas envolvidos no projeto é justamente mostrar, numa perspectiva de gênero e classe, que os empobrecidos também criam, sonham, re- alizam e propõem. Na vida que viceja nas estradas se- cundárias, longe dos gabine- tes e do ar-condicionado, as gentes do Brasil têm agora um espaço para contar suas histórias e para refletir os motivos de seu empobreci- mento. A desigualdade, que torna o Brasil uma espécie de campeão mundial nesse quesito, não acontece por acaso nem brota misteriosa- mente do chão. Ela é fruto de um modelo de reprodu- ção da vida em que para um viver outro precisa morrer. Esses dramas e dilemas são os que estão retratados nas páginas da revista. Histórias de mulheres e homens, espé- cimes do gênero humano, que são o foco do trabalho. Apáginadigital,desenvol- vida por Eduardo Mustafa Vianna, está à disposição da- queles que quiserem se aven- turar a mergulhar na vida mesma, real, profunda, dos pobres e nojentos. Ou seja, daqueles que, apesar da sua condição de classe, não se dobram, não se rendem, e caminham, seguros, na dire- ção do grande meio-dia. A Pobres & Nojentas di- gital pode ser vista no ende- reço: www.geocities.com/ pobresenojentas eDITORIAL
  • 4. 4 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 Carreteiro a rigor cARTAS As revistas chegaram! É linda, nem um pouco pobre, mas parece bem nojen- tinha mesmo! PARABÉNS!!!! Vai ser minha leitura e de minha filha, no fim de sema- na! E vou repartir com as amigas, as blogueiras, etc, para divulgar bem! Então vamos em frente! Ana Maria Macapá/Amapá Cerca de 140 revistas vendidas foi o resultado do lançamento da primeira edi- ção da revista Pobres & Nojentas, no dia 27 de abril, na sede da Associação dos Servidores da UFSC. A preparação do carre- teiro e das saladas ficou por conta de José de Assis Fi- lho. Muita gente apareceu porque leu sobre a revista em jornais de Florianópolis e identificou-se com o per- fil da nova publicação. O destaque foi a jorna- lista do Sindicato dos Ban- cários de Florianópolis, Ja- nice Miranda, que alugou roupas em um brechó e es- tava vestida no melhor esti- lo de “pobres e nojentas”. Prezada Raquel: A loucura que vocês estão propondo é a mes- ma que Erasmo de Rot- terdam elogiou, meio mi- lênio atrás. Loucura egré- gia, vital, oxigenadora de mentes. Que a revista te- nha sucesso e vida longa. Loucamente. Um abraço, Lúcio Flávio Pinto - jornalista e sociólogo, editor do Jornal Pessoal Cara Elaine, Recebi a revista e gos- tei muito da proposta. Você e seus companheiros são, realmente, guerreiros da palavra. Se numa re- gião rica como a sua exis- tem Jussaras, Darcys, Olí- vias e Idas, imagine na minha, nesse Nordeste de tantas injustiças... Parabéns pela iniciativa! Vou divulgar ao máximo o trabalho. Lourdinha Dantas João Pessoa/Paraíba Acabo de ler no Comu- nique-se a notícia do lan- çamento da revista Pobres & Nojentas. A gente tam- bém acredita na possibili- dade de um mundo que não se dobra à religião do consumismo, mas luta por valores novos, por trans- formação social, pela pos- sibilidade de pensar e dei- xar pensar. Muito sucesso com o projeto! Suzel Tunes São Paulo Janice: no clima da revista Foto:RicardoCasariniMuzy
  • 5. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 5 A cor da pele é vermelha, os olhos são negros e puxados, os cabelos, escuros e grossos. Quem chega caminhando pela localidade de Conquista - Barra do Sul/ SC, de longe já vê as primeiras crianças à beira da estrada, com roupas bem simples, artesanato colorido nas mãos. São os Guarani, da aldeia “Tekové Ma- reã”, que na língua originária significa: “que jamais se acabe”. A comunidade é uma das tantas espalhadas por Santa Catarina e nela vivem cerca de trinta pessoas, a maioria formada por crianças e adolescentes. Estão sempre por ali, brincando, correndo de um lado para outro e conversando em Guarani, sua língua original, costume que o povo faz questão de preservar. Pare- cem estar sempre felizes, apesar das inúmeras dificuldades que enfrentam no dia-a-dia. Aprincipal delas é a falta de alimentos pois muitas das famílias literal- mente não têm o que comer. Sobrevivem apenas do básico: arroz e feijão. Vez “Que jamais se acabe” Por Ricardo Casarini Muzy PovoOriginário Povo guarani resiste na busca da terra sem males Fotos: Ricardo Casarini Muzy
  • 6. 6 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 ou outra conseguem algum vegetal ou frutas. O que segura a fome do povo é o “Budiapé”, um pão feito só com água e farinha. Muitos dos alimentos chegam através de doações e a outra parte é compra- da com o dinheiro do artesanato, já que muito pouco se tem cultivado no lugar. Faltam boa terra, ferramentas, sementes e até força para o trabalho, geralmente por causa da fome. As famílias que vivem nessa aldeia vieram de ou- tros lugares: Biguaçu, Morro dos Cavalos, Florianópo- lis. São nativos de Santa Catarina e a maioria é Guarani puro, ali não se vêem mestiços. A aldeia é nova, existe há mais ou menos seis anos e o povo luta pela demarca- ção e homologação de suas terras, briga igual a que é travada por outras comunidades autóctones do Estado. Quem lidera o grupo de Tekové Mareã é uma mu- lher, a cacique Arminda, que vive numa pequena casa com filhos e netos. O vice-cacique é Werá-Mirim, Gua- rani genuíno, nativo da ilha de Florianópolis, e que já foi cacique em várias aldeias espalhadas pelo Esta- do. Não faz muito tempo que ele e a família chega- ram na Tekové Mareã para firmar a nova morada. Junto à companheira Rose, aos filhos e aos netos ele se instalou numa das casinhas da aldeia e, agora as- sociados aos outros moradores, tentam construir uma nova comunidade. Desde criança Werá foi guerreiro, o pai era Kraí (curador ou curandeiro que conhece as ervas medici- nais e tem conexão com o astral) e cacique da aldeia em que nasceu. Com ele aprendeu muitas coisas, mas, infelizmente, o perdeu muito cedo, tal qual a mãe. Aos 12 anos já vivia sozinho e, com a construção da BR- 101, começou a trabalhar para os brancos, que mais tarde o levaram para estudar e trabalhar na capital. O garoto Werá nunca se acostumou com a cidade. Sofria. Ele conta que tinha que trabalhar como escra- vo - e ainda apanhava - para se manter na cidade e continuar freqüentando a escola. Essa situação o le- vou a abandonar os estudos e voltar à aldeia para vi- ver livre no meio dos Guarani, seus irmãos. Na cidade aprendeu a ler e escrever o português, além de traba- lhar com ferramentas e trator. Como já tinha o conhecimento ancestral das cons- truções, acabou se tornando um grande construtor no meio do seu povo. Ele até já perdeu as contas de quan- tas casas construiu. Sempre lutou para conservar as tradições típicas do povo Guarani, e sua posição críti- ca em relação ao comportamento dos índios e à influ- ência dos brancos em sua cultura já lhe custou entrar em várias confusões e discordâncias com seu povo. Por isso, mudou de aldeia muitas vezes. Nunca acei- tou a posição subalterna dos índios na sociedade. Werá se diz completamente contra as instituições que trabalham com os índios porque, segundo ele, a maioria delas prestam serviços totalmente assistenci- ais e nada fazem para provocar a verdadeira liberta- ção dos povos indígenas. Guerreiro que é, nunca de- siste e, agora, nessa nova proposta na localidade de Conquista, sonha com uma organização Guarani que seja capaz de dar condições dignas para seu povo vi- ver de acordo com suas crenças e tradições. As visi- tas à cidade já lhe proporcionaram amizade com al- guns brancos que reconhecem o valor da cultura Gua- rani e, vira-e-mexe, ele é convidado para dar alguma palestra em fóruns de educação ambiental e universi- dades. Recentemente, no mês de junho, foi o instrutor numa oficina de etno-construção Guarani, organizada na ci- dade de Itajaí. O “Koty Nhembóe” (ensinamento so- bre casas) reuniu, num fim de semana, várias pessoas dispostas a aprender sobre a cultura desse povo origi- nário. Mas o que deixa o velho índio feliz mesmo são as vivências na aldeia. A vida mesma, cotidiana, da Tekové Mareã. O sol ainda nem apareceu e os galos já começam a cantar. São muitos, andando de um lado para o outro com suas penas coloridas. Circulam livremente entre os outros bichos: gatos, cães, pássaros e homens. O
  • 7. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 7 clima é frio neste início de junho, uma névoa densa toma conta do lugar. Werá se põe de pé e, em silêncio, caminha para acender a fogueira da qual vai brotar o café. Rose, as crianças e a maioria dos outros índios também despertam bem cedo e, prontamente, come- çam a se ocupar dos afazeres. Uns buscam água, ou- tros se banham para ir à escola, os pequenos come- çam a brincar. O jogo de futebol é engraçado. É cada um por si, e não existem muitas regras. Vale empurrão, não tem saída de bola e se não dá para tocar a bola com os pés vai com as mãos mesmo. Eles estão mais preo- cupados com a diversão do que em competir. O jogo é sempre uma gritaria e ouvem-se muitas gargalha- das. O calendário Guarani nada tem a ver com o gre- goriano, instituído na maioria do planeta. Eles seguem a natureza. Sol, lua, estrelas. Há dias em que eles trabalham, em outros não. Há época de plantio e de colheita. Eles seguem o ritmo do tempo natural, sem- pre interagindo com os outros animais, as plantas e todos os seres da natureza. Os Guarani vivem em sintonia com o todo. No fim da tarde Werá reúne a família para con- versar e contemplar o pôr-do-sol. Ali eles realizam o ritual com “pentenguá”, que é o cachimbo Guarani, onde é queimado o tabaco, outra tradição mantida por eles. Mas emocionante mesmo é a reza que acon- tece à noite na “Opã”, casa de reza Guarani, uma hinos que louvam a terra, a água, os animais da flores- ta e principalmente a “Ñanderú”(Deus). Toda a noite a Opã fica tomada por fumaça e uma vibra- ção forte que vem do astral. O calor do fogo aque- ce as almas e os corações do povo reunido em oração. As letras em Guarani evocam as suas ori- gens, e o amor que flui entre todos é o combustí- vel para enfrentarem todos os dias as dificulda- des que sofrem, por serem índios, pobres e exclu- ídos da vida digna deste país. Os Guarani lá da Conquista, da Tekové Mareã, tal e qual tantos outros irmãos perdidos pelo Brasil, não querem muito. Apenas o que lhes pertence por direito: terra para viver, alimentos e dignidade, o sonho coleti- vo da Eko Porã - vida boa e bonita para todos. construção simples, feita de barro, bambu e palha. Nela, todos se reúnem em volta de uma fogueira, e ali passam horas com o petenguá, cantando os seus hinos ancestrais. Tekové Mareã tam- bém é o nome do coral Guarani formado na aldeia. Os jovens ho- mens tocam os instru- mentos - violão, rabe- ca e maracá - e pu- xam os hinos. As mu- lheres ficam de pé e de mãos dadas cantam os
  • 8. 8 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 Por Marcela Cornelli A força de uma mulher Perfil Sabe aquelas pessoas que você encontra pela vida e que iluminam tudo por onde pas- sam? Aquelas pessoas que tinham tudo para “dar erra- do” na vida? Que podiam se tornar seres humanos de alma amargurada devido aos espinhos que sempre estive- ram presentes no seu cami- nho? Mas que - contrariando a tudo e a todos, a este siste- ma cruel, frio, egoísta, no qual as portas se abrem para os que têm posses e dinheiro e se fecham, ou ficam mais distantes, para os pobres, os humildes - persistem, lutam, perseveram e vencem. Mais que isso. São plenamente fe- lizes e amam a vida. Pois é este tipo de pessoa que este perfil retrata. Uma mulher, mãe, lutadora, pobre, sim, mastambémumanojenta, da- quelas que não desistem nun- ca e que mostram à vida, ao destino, que o amor e a von- tade de viver fazem a dife- rença num mundo de desi- gualdades e injustiças. Brunildes Hoefelmann da Silva, ou Bruna, como é cha- mada por todos, é hoje dire- tora de uma escola na qual desenvolve vários trabalhos que buscam resgatar a iden- tidade e a dignidade de pais e alunos de uma comunidade “Lá estão elas rompendo a estrada. Deixam distantes dias risonhos. Já desistiram dos contos de fadas. Hoje cultivam os seus próprios sonhos.” Augusto Cacá Fotos:MarcelaCornelli Bruna forjou sonhos com determinação
  • 9. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 9 humilde no interior da cida- de de Brusque, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Mas para chegar até onde está hoje, percorreu um lon- go caminho. Desde a infân- cia pobre, marcada por ce- nas de violência protagoni- zadas pelo pai alcoólatra, passando por diversas difi- culdades, trabalhando desde os nove anos na lida na roça, como empregada doméstica, lavadeira, até alcançar um sonho de menina: ser profes- sora, ensinar, cuidar de cri- anças especiais, reerguer uma escola e fazer da edu- cação um bem para todos. “Sempre dizia aos meus fi- lhos desde pequenos, quan- do os levava a bibliotecas, que dinheiro, riquezas nós não tínhamos, mas que o conhecimento poderíamos adquirir e que este ninguém tiraria deles”. Hoje é mãe de quatro fi- lhos. O mais novo, filho de um de seus irmãos, também com problemas com a bebi- da, foi adotado por Bruna quando a mãe faleceu. Bru- na sempre teve pouco, mas este pouco se multiplica di- ante dos pedidos de ajuda dos irmãos, da família, dos amigos e até de desconhe- cidos. Aos 34 anos, já mãe e trabalhando como lavadeira no Sesi da cidade, tendo so- mente a quarta série do pri- meiro grau completa, ela vol- tou a estudar. Terminou o pri- mário fazendo supletivo à noite e, ao mesmo tempo, iniciou o magistério pela ma- nhã. A estrada percorrida por Bruna foi longa. Duas vezes por semana ela fazia uma distância de 10 quilôme- tros de bicicleta até a escola onde cursava magistério. À tarde, trabalhava e, à noite, cursava o supletivo. Os fi- lhos já adolescentes se vira- vam como podiam na ausên- cia da mãe, muitas vezes não compreendida pelo marido. Da infância pobre na lo- calidade de Rio Branco, in- terior de Brusque, ela lem- bra que nunca brincava.Aju- dava a mãe na roça, no plan- tio de milho, para fazer a fa- rinha de fubá, e da batata doce, alimentos que ameni- zavam as dificuldades para saciar a fome dos dez ir- mãos. Vivia numa casa sim- ples, de madeira, que tinha cinco camas de palha, divi- didas por 13 pessoas, Bru- na, os irmãos e irmãs, a mãe, dona de casa, e o pai, o pri- meiro motorista de caminhão da localidade, que ensinou a quase todos os vizinhos seu ofício. “Na casa também ti- nha um fogão a lenha e um guarda-comidas. O guarda- comidas era muito sagrado e valioso para nós, mas na maioria das vezes estava vazio. Num quarto ficava uma gamela onde tomáva- mos banho, com água de poço”. Aos sete anos, Bruna fre- qüentava uma escolinha da localidade. Mas a menina pobre, que ajudava a criar os irmãos, a capinar na lavou- ra, a limpar a casa, que pro- tegia a mãe da violência do pai, não sabia ler nem escre- ver e nem falava uma só palavra em português. A exemplo de muitas famílias da localidade, na casa de Bruna só se falava o alemão. Na época, por volta de 1962, o alemão foi proibido e, na- quela pequena colônia de ale- mães, em Brusque, as crian- ças começaram a aprender o português em sala de aula. “Meu pai alcoólatra mui- tas vezes chegava do traba- lho bêbado e fazia todos cor- rerem pra fora de casa”. Mas Bruna sempre voltava para proteger a mãe. Uma cena marcou seus oito anos. O pai tentou pôr fogo na casa com a mãe dentro. Bru- na então disse que primeiro ele teria que pôr fogo nela e ameaçou ela mesma ate- ar-se fogo. O pai desistiu. “Não sei o que é brincar, não tive infância. Recuperei a vontade de brincar quan- do nasceram meus filhos. Mesmo nos tempos mais di- fíceis nunca deixei de abra- çá-los, beijá-los e brincar com eles todo tempo que eu podia”. Aos nove anos foi traba- lhar como empregada do- méstica para a família mais abastada da região. Daí lar- gou os estudos na quarta sé- rie, só vindo a retomá-los anos mais tarde. O dinheiro que ganhava dava para com- prar o trigo e açúcar do mês. A infância dura e as dificuldades nunca impediram Bruna de sonhar
  • 10. 10 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 Como empregada, além de limpar a casa e cuidar das crianças, selava os cavalos, tirava o leite das vacas, capi- nava o terreno, ajudava na roça. Um verdadeiro traba- lho escravo para a menina de nove anos que sonhava em ser professora. Para que seus sonhos fossem atendidos, ela rezava no porão de casa, di- ante de um pilar de madeira, pois o pai proibia a mãe e os filhos de irem à igreja. Reli- giosa, hoje freqüentadora da igreja evangélica luterana, Bruna diz que na sua vida “aconteceram alguns mila- gres”. E ela tem razão. Dos 11 aos 15 anos, tra- balhou como empregada do- méstica para outra família, desta vez no centro da cida- de. A escola, a infância, o sonho de ser professora, tudo parecia ficar cada vez mais distante. A casa era de três andares. Bruna limpava tudo e ainda tomava conta de um bebê que levava, como as ín- dias, amarrado em suas cos- tas, para que ele não choras- se muito. Aos 14 anos ela di- vidiu o trabalho de domésti- ca com outro emprego como operária numa empresa de cigarros da região. Aos 17 anos se casou e aos 18 teve o primeiro filho. Mais tarde Bruna adotou seu sobrinho. Quando se casou, Bruna e o marido foram ser zeladores da Apae da cidade e ali viveram, num quartinho nos fundos da entidade, por muitos anos. “Éramos felizes lá. O terreno da Apae era grande, na época tudo era muito preservado e tínhamos vários bichos no quintal de casa, tartarugas, zurilhos, pa- tos, marrecos”. De zeladora da Apae ela foi trabalhar como lavadeira no Sesi. Nas- ceram mais dois filhos.Ater- ceira, uma menina. Grávida de dois meses da menina, Bruna descobriu que tinha ru- béola. Os médicos e familia- res aconselharam o aborto. Muitos não aceitavam o fato de a criança poder nascer com problemas. A mãe não queria realizar o aborto e co- meçou aí uma longa batalha. Algo parecia avisar que a cri- ança viria bem. Quando che- gava ao hospital para fazer o aborto, o médico nunca esta- va. Outro médico, no dia de realizar o aborto, perdeu a mãe num acidente de carro e desmarcou. Finalmente um terceiro médico disse para ela ter o bebê. Contrariando a tudoeatodos,elaresolveunão abortar e acolher sua filha. Bruna não chorou durante o parto, porque havia prometi- do que não derramaria uma lágrima se a criança viesse com saúde. Emocionada, diz que a filha veio não só com saúde, mas era um lindo bebê. Já com 34 anos, em 1983, Bruna ainda não havia perdi- do as esperanças de voltar a estudar e melhorar de vida. “Às vezes não tinha dinheiro para dar uma bala aos meus filhos, mas amor nunca fal- tou. Eu sabia que não podia desistir, porque senão o bar- co todo afundava comigo”. Mais uma vez, contrariando quem achava que ela não podia ir mais longe, Bruna escreveu num papel: “1986. Sou uma professora forma- da,” e iniciou mais uma jor- nada de superação. Traba- lhando, cuidando dos filhos, fazendo o supletivo para completar o primeiro grau e ao mesmo tempo iniciar o magistério. Em 86 terminou o supletivo e conseguiu, atra- vés de um professor da rede pública, seu primeiro empre- go como professora, auxilian- do as crianças da primeira série de uma escolinha do in- Em 1986, a profecia estava cumprida: Bruna era professora
  • 11. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 11 terior, dando aulas de refor- ço. Como uma profecia cum- prida, em 1986 Bruna era, sim, professora. Em 88 for- mou-se no magistério. Educadora e sonhadora, Bruna diz que ainda falta muito a fazer pela educação na sua cidade, no bairro da Limeira onde trabalha, no país. Mas a resposta, quan- do se busca mais apoio finan- ceiro para investir na escola, é quase sempre a mesma: não tem dinheiro. Ela sabe que o trabalho que faz hoje como diretora da escola e com as famílias da comuni- dade – muitos pais jovens de 25, 27 anos mal conseguem ler e escrever – ainda enga- tinha até porque falta com- promisso do poder público. Mesmo com verbas escas- sas, a escola, que tinha 66 alunos quando Bruna assu- miu a direção, hoje já aten- de 178 crianças, desenvolve programas de educação am- biental e de alfabetização e aulas de 5ª a 8ª séries para adultos. Através destes pro- jetos e de outros desenvol- vidos pela escola, Bruna, os professores e os funcionári- os vão ajudando a construir um futuro melhor, com mais oportunidades para crianças e adolescentes da comunida- de, oferecendo também au- las de teatro, poesia e arte- sanato com material recicla- do na própria escola. Seria impossível aqui con- tar toda a luta desta mulher que, mesmo com dificulda- des em casa, separada do companheiro que muitas ve- zes não compreendeu o ob- jetivo de sua jornada, nunca desistiu de seus sonhos. Quando assumiu como dire- tora, ela fez graduação e es- pecialização em Pedagogia. Com 51 anos, vaidosa como toda mulher, desfilou recen- temente como modelo para uma marca de roupa da ci- dade. Pergunto a ela se isto basta, se está realizada. Olhando orgulhosa as duas monografias encadernadas em preto com letras doura- das que segura no colo, ela diz: “Não, ainda não. Agora sonho em fazer Psicologia”. E alguém duvida que ela con- siga? “Compramos um ter- reno maior e agora já come- çamos a construir uma nova escola no local, onde quere- mos fazer uma horta e plan- tar árvores frutíferas, para, além de incentivar o cuida- do com o meio ambiente, usar esses alimentos na me- renda dos alunos. Ainda há muito o que fazer”. Questiono se ela nunca pensou em desistir, em lar- gar tudo. “Pensei várias ve- zes em desistir. Mas uma for- ça dessas que a gente tira não sei da onde, creio que da fé e do amor aos filhos, me fez seguir. Muitos dos meus objetivos foram alcançados. Hoje me realizo principal- mente vendo meus filhos se formando em faculdades, como eu sempre sonhei”. Foi nas férias de verão que comecei a notar. A manhã se embalava como numa rede, naquele nada- tudo por fazer. Então chegavam as 11 horas e vinha, dumas casas lá perto do cemitério São Cristóvão, o canto de um galinho. E desde então eu sei: ele ama- nhece comigo. O calor passou, foi-se também o outono, e nas manhãs em que posso sair tarde da cama, eu espero aquele cocorocóóó singrando o ar para atravessar a pracinha e entrar pela minha janela. E sorrio toda vez que isso acontece: o meu galinho não me falha. Eu e ele gostamos de acordar tarde, bem tarde. Madrugada dessas, umas quatro da manhã, o sono sumiu e despertei. Encantada, ouvi o som familiar, só que rouco, decerto também insone. Passados uns minutos, o silêncio. Às vezes, tenho vontade de des- cer a rua e procurar o dorminhoco. Bater nas portas das casas e perguntar: - Olá, é aqui que mora um galo? Mas penso melhor e fico a olhar pela janela, só escutando. Gosto de pensar que eu e o meu galinho somos estranhos personagens de um conto de fadas urbano. Minicrônica O galinho das onze Por Míriam de Abreu
  • 12. 12 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 A nave dos inocentes Por Urda Alice Klueger Crônica A estrada era de barro e depedraedepó,mastudoisso desaparecia numa baixa nu- vem de bruma, bem rasinha com o chão, a ponto de a gen- te se esquecer de pensar se os velhos pneus da Kombi iriam resistiraospedregulhospontu- dos ou não – na Kombi velha, que já deveria estar aposenta- da se cá não fosse o mais legí- timo terceiro mundo (e está cheinhodegentequeachaque o Sul é diferente, pitéu de pri- meiro mundo), um bando de pequenos anjos como que agi- tavam suas tênues asas em forma de sorrisos, e ao olhar para eles, quem é que ainda ia pensar em coisas como pneus e pedregulhos? Ela viajava adiante do car- roaondeeuestava,aNavedos Inocentes, e apesar de ser mais de três horas da madru- gada e da estrada inóspita, cada pequeno anjo daqueles sorria e abanava para nós, e a Kombi tinha as luzes internas acesas, decerto para que ne- nhum anjinho chegasse a sen- tir medo, e eles eram tantos, mas tantos, que não sei como cabiamtodosali,meninoseme- ninas de 3, de 4, de 6 anos, tal- vez, anjinhos com carinhas ca- boclas, com carinhas italianas, comcarinhasalemãs,verdadei- rosanjinhosbrasileirosflutuan- do na névoa dentro daquela Nave que os levava em dire- ção do Futuro, e sua alegria e farra eram coisas impressio- nantes! No carro onde eu via- javaalguémlembrouquesetra- tavamdeanjinhosquerarasve- zes andavam de carro, que de- certo dali vinha sua alegria – e nósabanávamoseelesnosaba- navam e riam, e aquela Nave dos Inocentes era como que umacoisairrealaflutuarnanoi- te,comosefosseumsonholin- do que alguém estivesse tendo, e na verdade, era um Sonho. Quando eu contar qual era o Sonho, metade dos leitores não vai mais querer ler o resto da crônica, mas, vá lá: eu se- guia a Nave dos Inocentes, e nosdirigíamostodos,numcom- boioquesóaumentava,emdi- reção de uma das fazendas de terras arrasadas (há fotos para comprovar o arrasamento das terras) que fazia parte do mai- or latifúndio do meu Estado, para ocupá-lo. E, diante de nós, como numa irrealidade, a Nave dos Inocentes navega- va em direção ao Sonho e ao Futuro. Andei quebrando um bra- ço e ele ainda não está bem bom; assim, sabia que apesar de estar fazendo parte de uma equipe de apoio, pouco pode- ria ajudar a carregar e fazer outras coisas para aquelas 500 famílias que seguiam para a ocupação. Então pensei nos anjinhos que abanavam na ve- lha Kombi – e se, na hora em queaKombiparasse,seuspais nãoestivessemapostos?Qua- tro horas da manhã é um ho- rário muito tardio para meni- nos e meninas tão pequenos estarem naquela farra toda – havia que se pensar no que aconteceria se algum sobras- se na Nave. E já que estava sem muita força física, pensei em usar a força do coração, e ficar de guarda para quando a Nave dos Inocentes parasse, amparar junto ao peito algum anjinho que começasse a cho- rar. E foi o que fiz. Assim que chegamos à área que estava sendo ocupa- da, tratei de sair do carro onde estava e ir ver o que acontecia na Kombi. Como eu, um ma- gote de adultos seguiu para a mesma porta, e todos eram ca- sais, e muitos tinham bebezi- nhos ao colo, e quase todos eramfeios,mal-vestidos,judia- dospelavida,envelhecidospre- maturamente, sem nada de seu alémdaquelascriançasqueco- meçaram a sair da Nave. E en- tão eles gritavam coisas assim: - Segura na mão do Luizi- nho, e tu na mão do Antonio, não se soltem! E cada casal arrebanhava alguns anjinhos, às vezes três, às vezes quatro, e os coloca- vam numa enfiada de mãos dadas,preciososcolaresdecri- anças que eram as suas jóias mais preciosas, as únicas jóias dassuasvidassofridas.Emcoi- sa de um instante a Nave dos Inocentes estava vazia – não sobrara nenhum anjinho para eu acalentar junto ao coração. E então eu soube que aquela gentejamaissairiadalianãoser poralgumacordofeitoporum bom juiz; que não haveria sol- dado, cachorro ou canhão que enfrentasse gente que tinha colares de tais preciosidades, gente determinada a tudo para garantir as suas jóias. Blumenau, 20deabrilde2004. Rumo ao Sonho e ao Futuro 12 Pobres & Nojentas - Julho de 2006
  • 13. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 13 Era uma festa particular, na cidade de Rio Branco, Acre. Nela, encontrei um homem baixo, de longos cabelos bran- cos e cacheados. Já tínhamos nos visto mais cedo, naquele mesmo dia, numa apresentação musical chamada “Boca de Mulher”, que acontecera no Teatro Plácido de Castro. Lá, ele havia me cumprimentado como se me conhecesse, e eu respondi, sentindo que havia uma certa conexão. Então, mais tarde, na festa, ele veio até mim e explicou que, no teatro, achou que eu fosse outra pessoa. Mas aí a conversa fluiu e ele começou a contar suas histórias. Disse que era artesão e vendia “trampo” (colares, pulseiras, etc.) para sobreviver, até que teve um sério problema na vista que o obrigou a abandonar a profissão. Naqueles dias de confusão, pediu a Deus que o orientasse quanto ao que fa- zer da vida. Como poderia, naquela altura, mudar de profis- são? O que faria? Foi quando veio a “resposta”: ele deveria compor canções. Esse sentimento soou estranho, pois até então não sabia tocar nenhum instrumento musical, apesar de já ter composto belas canções para sua religião. Mas, o fato é que Zé Kleuber, hoje com 56 anos, entendeu a men- sagem, se sustenta como compositor e até já ganhou alguns prêmios em festivais, em diferentes partes do Brasil. Desde o começo da conversa algo me chamou muito a atenção em Kleuber: o seu colar. Parecia feito com semen- tes de aguaí. Ao longo do papo eu fiquei examinando para ver se realmente eram essas sementes. Então lhe pergun- tei. Ele deu uma risada, tirou o colar e o colocou em minhas mãos, indagando se eu conhecia a história desta semente. Zé Klueber e a semente Por Thomas Bisinger “Castanha elétrica” revela o poder dos frutos da floresta Compositor se protege das cobras com sementes de aguaí amarradas num cordão de palha Fotos: Thomas Bisinger Natureza
  • 14. 14 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 Respondi que não, mas que sabia de sua força. E também disse que nunca havia visto aquela varieda- de, “mini”, aliás, muito charmosa. Kleuber seguiu contando sua história. Que nas- ceu em Pernambuco e cresceu no Maranhão. Lá pelo ano de 1974 saiu a viajar com amigos e foram an- dando desde Rio Branco, no leste do Acre, até Cru- zeiro do Sul, no oeste. Diz ele que, pela estrada, en- contraram uma cobra que fazia movimentos amea- çadores. Na dúvida, a mataram com uma pequena espingarda que tinham. Foi quando apareceu um menino. Eles nem tinham percebido que havia casas ali por perto - era muita mata. As casas eram de serin- gueiros. O menino indicou como chegar numa casa e eles foram até lá, sendo muito bem recebidos. Já lá dentro, conversando, contaram que haviam matado uma cobra no caminho e o menino, que fora ver o bicho, disse que aquela lá não era venenosa, e sim do tipo que come as venenosas. Kleuber lembra que fi- cou bem mal com isso. Não gostava de matar ani- mais, ainda mais sendo inofensivos. Mas nada havia para fazer. Almoçaram e continuaram a viagem. Mais adiante encontraram índios que acampavam no caminho e, numa conversa, Kleuber contou da cobra e do sentimento que o incomodava. Então uma índia levantou e foi buscar algo. Voltou com uma se- mente de aguaí amarrada num cordão de palha. Dis- se que por conta do feito, as cobras iriam lhe perse- guir e, por isso, deveria usar aquele cordão amarrado na cintura, abaixo do umbigo, para proteção. Sem discutir, ele o fez. Além do quê aquela semente o fazia lembrar da infância, no Maranhão, quando brin- cava com o fruto verde e macio, fincando graveti- nhos em sua carne para imitar animais. No dia seguinte, estavam andando pela trilha, em fila indiana, quando Kleuber ouviu o ruído de uma cobra se aproximando. Vinha na sua direção, mas, de repente, deu meia volta e sumiu na mata. Era o sortilégio da índia fazendo efeito. Tempos depois ele ouviu falar de um certo doutor Henrique Smith que estudou esta semente e seus po- deres, e chegou a escrever um livro chamado Aguaí- Zen. O doutor, ao fazer a foto kirlian (foto da aura) da semente, verificou que ela tinha mesmo uma aura muito poderosa. Aquilo ficou marcado na sua lem- brança e, então, certo dia, quando encontrou, sob uma árvore, estas mini-sementes de aguaí, conhecidas no Acre como “castanha elétrica”, não hesitou e imedi- atamente fez um colar. Disse que já ouviu histórias sobre esse tipo de semente mini, que só aparece a cada sete anos, mas ainda não conseguiu comprovar, de fato, qual a história desta variedade. Até hoje só encontrou uma árvore que as produz assim, deste tamanho. O certo é que pouco tempo atrás estava numa situação onde apareceu outra cobra e ele re- solveu fazer um teste: rodeou a cobra com as “cas- tanhas elétricas”. Diz Kleuber que foi como mágica. A cobra ficou parada com a cabeça erguida até que veio alguém e a recolheu. Zé Kleuber conta ainda que há várias maneiras de usar a semente, além de servir como espanta- cobra, inclusive utilizando o óleo que tem dentro dire- tamente sobre áreas doloridas do corpo. Mas deve- se tomar cuidado para não ingeri-la, pois o líquido da semente e do fruto é venenoso. Outra coisa que ele descobriu com o tempo é que, para usar a semente em contato com o corpo, é melhor que seja em áreas onde não há ossos muito expostos, pois isso pode pro- vocar dor. Foi aí que entendeu porque a índia disse para usá-la abaixo do umbigo. Esse povo da floresta tem mesmo sabedoria. Hoje, Zé Kleuber, assim como muitos outros que conhecem o poder desta semente, sempre que pode a carrega no bolso ou no pescoço. É muito poder.
  • 15. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 15 Por Amberson Vieira de Assis Cardiologista O que nos leva a conside- rar que a m u l h e r cuida me- nos que o homem do seu coração? A cada ano, no mundo, mais de 8 milhões de mulheres morrem devi- do a uma doença ou ataque do coração. • 8 vezes mais que o nú- mero total de mortes por cân- cer de mama; • 6 vezes mais que as mortes relacionadas com a AIDS; • nos países em desenvol- vimento, a metade das mor- tes de mulheres de mais de 50 anos se deve a doenças ou ataque do coração. Na verdade as mulheres têm suas doenças cardíacas menos estudadas e menos compreendidas. Um estudo mostra, que 60% dos médi- cos acreditam que os ho- mens têm mais chances de Menos estudadas, mais incompreendidas morrerem subitamente devi- do a um ataque cardíaco, quando na verdade as mu- lheres morrem mais nessa si- tuação.Amelhor maneira de prevenir essas doenças (an- gina, infarto) seria identifi- cando aqueles indivíduos com maior risco de desen- volvê-las. Mudando hábitos de vida, combatendo a obe- sidade, fazendo uma ativi- dade física, deixando de fu- mar e, quando indicado, usando remédios (aspirina, redutores da pressão e do colesterol, etc) podemos di- minuir as possibilidades de sofrer um ataque cardíaco. Entretanto, um terço das mulheres não se beneficiam das medidas preventivas contra estas doenças. Cerca de 10% da popu- lação brasileira é portadora de pressão alta. Esta doen- ça é perigosa, porque muito freqüentemente é silenciosa - não apresenta sintomas. A manutenção de níveis des- controlados de pressão por longos períodos pode acar- retar alterações importantes Saúde Doenças cardíacas nas mulheres são deixadas em segundo em vasos - artérias - de todo o organismo, podendo levar a lesões cardíacas, renais, derrames cerebrais e altera- ções visuais. Outra medida fundamental para o contro- le da pressão é a redução do sal na dieta. Entre ½ a 1 colher de chá de sal por dia é uma quantidade suficien- te para as necessidades or- gânicas. No Brasil muitos consomem até cinco vezes mais do que isso. Por isso, dispense o saleiro de mesa, cozinhe com pouco sal e evite alimentos industrializa- dos salgados. O controle de peso é também uma medida fundamental para o controle da hipertensão. O diabetes é outra doen- ça crônica que leva a pro- blemas semelhantes, em vá- rios aspectos, aos descritos para a hipertensão. Seu con- trole envolve medidas dieté- ticas; medicações, quando indicado, e atividade física regular. Uma dieta com pou- co açúcar pode diminuir os níveis de glicose - açúcar no sangue - e diminuir os trigli- cerídeos - um dos tipos de gorduras do sangue. Prefira adoçantes, refrigerantes e alimentos dietéticos. O colesterol é uma gor- dura presente nos alimentos de origem animal que des- sa forma não deve ser con- sumido em excesso. Mas atenção, algumas pessoas produzem mais colesterol que os demais, mesmo que tenham uma dieta pobre em gorduras. O tabagismo, uma “auto intoxicação” voluntária, com milhares de substânci- as nocivas, tem relação cla- ra com um sem número de doenças pulmonares; cardí- acas; gastrintestinais; uriná- rias, dentre outras. Os exercícios físicos re- gulares envolvem disciplina e determinação. Comprovada- mente trazem grandes bene- fícios ao organismo - princi- palmente ao coração - porém devem ser orientados, regu- lares e preferencialmente aeróbicos - caminhadas, ci- clismo, natação, hidroginásti- ca, ciclismo dentre outros.
  • 16. 16 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 Seu nome: Samuel. O en- contramos meio escondido debaixo de um enorme cami- nhão que carrega papel. Es- tava quase marrom, da mes- ma cor que cobre tudo na perdida cidade de Susques, na puna argentina. Com um pano sujo, tocava aqui e ali no coração da máquina, bus- Rumoaodeserto Com Samuel, pelos Andes... Por Elaine Tavares cando achar o problema que o prendia naquele lugar. Es- tava atrasado e mal-humora- do. Susques é o portal dos Andes, cidade fronteiriça onde está o posto da alfân- dega, e todos os caminhões que cruzam a fronteira entre Chile e Argentina têm que, obrigatoriamente, parar ali. Por isso, era ali que também estávamos, na busca de uma carona para San Pedro de Atacama. Samuel já era o quarto caminhoneiro a ser consultado sobre a tal caro- na. “Não dá, tô quebrado”, foi a resposta seca e incisiva. Já eram onze da manhã, e a possibilidade de outros caminhões passarem se es- vaía. O movimento maior era sempre de manhãzinha. “Até o meio dia ainda pode aparecer alguém”, dizia Fer- nando, um dos fiscais da adu- ana, ansioso por nos ajudar. Mas, nos olhos dele, se per- cebia que as chances eram pequenas. Teríamos que fi- car mais um dia em Susques e nosso sonho de chegar ao deserto ficava mais distan- te. Dali não saía ônibus nem nada. A única chance era mesmo um caminhão. Os viajantes dividiram o pão e as dificuldades na subida ao Atacama O argentino Horácio fez a foto do grupo: Marcela, Elaine, Samuel e Míriam
  • 17. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 17 Às onze e meia Samuel apareceu na aduana para acertar os papéis. Iria arris- car atravessar a cordilheira com o caminhão ruim. Não podia mais ficar ali. Estava igual a nós. Com pressa de chegar ao Chile. Mas tinha medo de levar caronas.Acoi- sa podia ficar ruim. A cordi- lheira é traiçoeira e havia no- tícias de que estava nevando mais acima. “É arriscado”, balbuciava, enquanto Fernan- do insistia em convencê-lo a nos levar. Então, foi vencido. E lá fomos nós, levando a re- boque o argentino Horácio, que voltava para a fronteira com um galão de gasolina. Seu carro havia ficado lá, sem combustível. Seríamos cinco a subir osAndes no caminhão avariado. A intensa fumaça branca que saia do “possante” deixa- va claro que, sem óleo, não chegaríamos a lugar nenhum. Poucos quilômetros depois de Susques paramos num posto, o último de toda a travessia da cordilheira. Só havia qua- tro litros de óleo disponíveis. Compramos.Sim,nós,porque Samuel estava tão quebrado quanto o caminhão. Há dias fora de casa e com o veículo avariado, já não lhe restava qualquer tostão. Tossindo e cuspindo fumaça lá foi o ca- minhão pelas trilhas das mon- tanhas. Atravessia é solitária. Vez ou outra, muito rara, aparece alguém. Geralmente os ca- minhões passam bem cedi- nho e acaba-se encontran- do pouquíssimos carros de passeio. O trotezito do ca- minhão não saía dos 40, 30 quilômetros por hora. Íamos rezando para que o óleo não evaporasse todinho. Mas, faltou santo. O barulhinho de pi, pi, pi, no painel dava conta de que era preciso parar. Na estrada, o vazio. Uma chuva forte. Deserto total. Os cinco desolados. Por milagre passou um ca- minhão e compramos mais quatro litros. Volta todo mundo para o caminhão e toca a subir. Marcela come- ça a ter dor de dente e ri de nervoso. Eu, que não havia comido nada aquele dia, comecei a passar mal por causa da altura. Na frente, Míriam seguia, impávida, de papo com Horácio, que contava sobre Córdoba, sua cidade natal. A duras penas chega- mos em Paso de Jama, a fronteira, e ali deixamos o companheiro argentino. Seguimos a subida, o pos- sante cuspindo fumaça. Agora, na estrada de asfal- to, o que nos esperava era a neve. Começou de repen- te e, num segundo, tudo estava coberto de gelo, in- clusive o caminhão. Bem nessa hora lá veio o baru- lhinho insistente, pi, pi, pi. De novo paramos. No meio da neve. Um frio de rachar. Só um milagre faria passar alguém àquela hora. Pois não demorou 10 minutos e logo apontou um caminhão. Mais quatro litros de óleo. Vibrá- vamos com palmas e gritos. O caminhão seguiria seu rit- mo de completa lentidão. Samuel ria e contava um pouco de sua vida. Em 27 anos de estrada, sempre fa- zendo a rota da cordilheira, nunca havia passado por aquele tipo de situação. Ca- sado e com três filhos, que- ria chegar logo em Calama, no Chile, onde esperavam por ele uma comidinha ca- seira e uma cama quente. Achava estranho o fato de nós três sermos casadas e viajarmos sozinhas. “Lá no Brasil a gente é moderno”, brincava Míriam. E ele ria um riso que deixava antever que lá no Chile não era as- sim não. Como a jornada era lon- ga, dividíamos a pouca co- mida que tínhamos: um pão de sal pequeno que eu com- prara em Susques, cortado em quatro pedaços, uma bar- ra de cereal, também corta- da em quatro e pedaços de gengibre. Foi o que nos sus- tentou até o fim do dia. Não imaginávamos que levaría- mos mais de oito horas para fazer duzentos e poucos quilômetros até San Pedro. Já ia caindo a noite e estávamos a 20 quilôme- tros de San Pedro. Parecia que tudo iria dar certo. Che- garíamos, enfim. Mas o mal- fadado pi, pi, pi, de novo nos fez parar. Agora, não seria possível um novo milagre. O mal fadado pi, pi, pi, de novo nos fez parar. Agora não seria possível um novo milagre...
  • 18. 18 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 Era pedir demais para os deuses da cordilheira. Sa- muel disse que se, por ven- tura passasse alguém, seria melhor a gente ir com a nova carona. Ele passaria a noite ali. Não aceitamos. Estáva- mos juntos e chegaríamos juntos. O vento soprava com uma força descomunal. De- víamos estar a mais de qua- tro mil metros acima do ní- vel do mar. Ficamos, os qua- tro, dentro do caminhão, bus- cando nos aquecer com o calor um do outro. Então, no meio da ven- tania, como num milagre, assomou um carro branco, de passeio. Samuel des- ceu e pediu para que pa- rasse. Eram dois bolivianos que vinham na direção con- trária. Uma conversa rápi- da e Samuel trouxe a notí- cia. “Ellos van llevar las chicas”. Insistimos que se- ríamos solidárias, ficando, mas Samuel não quis. “Us- tedes llegan en los carabi- nieri y ellos me ven ayu- dar”. Bom, assim, tudo bem. Lá fomos nós com as mochilas para dentro do carro dos bolivianos, en- quanto Samuel ficava na estrada, acenando. Eles conversavam, nervosos. Na verdade, o motorista ti- nha vindo do posto da fron- teira. Tinha sido mandado de volta para a Bolívia por- que trazia um clandestino. Os guardas o obrigaram a levar o outro – que era um primo – até a fronteira da- quele país. Mas eles havi- am decidido que o garoto ficaria ali, no meio do de- serto, naquela ventania, e entraria no Chile a pé, de forma clandestina. “Uste- des no digan nada”, pedi- am, assustados. E nós, concordando, é claro, mais assustadas do que eles. E foi assim que chega- mos ao Chile. No carro do boliviano, que já estava en- crencado.Apolícia, normal- mente mal-humorada, já nos marcou. Revista total. Abre mala, abre bolsa, abre bol- so. Éramos “suspeitas”. Eu, que trazia um saco de folha de coca no bolso, corri para o banheiro e me livrei de tudo. Foi um momento de tensão. Mais uma vez, foi Samuel quem nos salvou. Pedimos ao carabinieri que fosse ajudar o companhei- ro, chileno, que estava pa- rado a 20 quilômetros dali. Penso que foi só aí que acre- ditaram que não éramos cúmplices do boliviano. Mochilas nas costas, entramos a pé em San Pe- dro de Atacama depois de oito horas na estrada. Foi o tempo que levamos para fazer pouco mais de 200 quilômetros. Ainda estáva- mos um pouco tensas com toda a aventura. Então, ao virar a esquina do pequeno povoado que era a cara daquelas vilas de seriado de Zorro, foi exatamente isso que vimos. Dentro de um ônibus que saía da cidade, o próprio Zorro dirigindo, mascarado, a acenar. Caí- mos na gargalhada e entra- mos na Caracoles – rua principal – prontas a viver a mais linda experiência do deserto chileno. Lá longe, no meio da noite, Samuel recebia dos carabinieri mais quatro litros de óleo, o que lhe garantiria passar a noite em casa. Ficamos, os quatro, dentro do caminhão, buscando nos aquecer com o calor um do outro Fernando (à esquerda) dá dicas para as viajan- tes chegarem ao deserto Foto:MarcelaCornelli
  • 19. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 19 Sobre a covardia Por Rosangela Bion de Assis Poema Hoje chorei pela covardia que me domina. Chorar alivia a culpa, e também relembra que ela existe. Covardes choram e separam moedas, roupas velhas, pequenos presentes, e até um almoço. Covardes distribuem o que não lhes faz falta. Aliviam a culpa e desafogam os armários. Assim, escrevi sobre a fome no mundo, fotografei a desigualdade, e comprei cadeados. Covardes lêem sobre as barbáries, se emocionam com os excluídos no cinema. E compram roupas novas, planejam a viagem, e abastecem o freezer. “Não podemos resolver tudo!” Covardes tentam aliviar a culpa, comprando a rifa, levando as doações e rezando. Diariamente me junto à multidão de covardes que acordam, comem, trabalham, e dormem. Um dia vamos morrer, definitivamente. Sem fazer falta. Sem ter colocado um tijolo sequer, na construção de uma vida melhor. Que a maioria não sabe como é. nem vai saber, enquanto covardes choram sem que nada lhes alivie a culpa. Foto:OsvaldoVicente
  • 20. 20 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 Piores momentos... ...de Pobres & Nojentas! SaiaJusta • Ganha um bromélia de presente, resolve acariciar as folhas e fica com os dedos cheios de espinhos. Pior, liga para o hospital da universi- dade para ver se tem perigo de intoxicação. • Viaja a Buenos Aires com uma faca dentro da bagagem de mão; descoberta no raio-x, se recusa a jogar fora o artefato, gritando: - É para cortar frutas! Quase fica no Brasil. •Ainda em BuenosAires, assustada com o movimento das ruas, es- peralongosminutosasinaleira,queestávermelha,ficarverde,esóatra- vessa quando, passados outros longos minutos, o vermelho aparece no- vamentenosemáforo. • Compra uma bota linda, de salto alto, em promoção; usa uns dias, tem uma crise de dor nas costas, gasta o que não tem em fisioterapia e manda cortar o salto da bota. • Chega no quarto do hotel e enche a bolsa com as coisas do frigobar, achando que estava tudo incluído no valor da diária. • Procura uma bolsa pequena pa0ra sair à noite e quando acha a dita cuja ouve essa da filha: “essa que eu uso pra brincar não! Mãe, essa já tá comavalidadevencida.” •Vai dar palestra em cidade do Nordeste e fica mais de meia hora na porta do quarto do hotel tentando abri-la com um cartão magnético. Tem vergonha de confessar que não conhece essa “novidade”. Mas, como é nojenta, consegue.
  • 21. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 21 Por Elaine Tavares Rebelde Era 1745 na vastidão do Peru. Terra de incas, os filhos do sol. No povoado de Tamburco, em Abancay, departamento de Apu- rimac, nascia Micaela Bastidas Puyucahua, uma guria mestiça que iria marcar com sangue e coragem a história da gente pe- ruana. O pai, Manuel, tinha san- gue espanhol, mas a mãe, Jose- fa, era inca da gema. Esta mistu- ra fez de Micaela uma linda mu- lher de traços fortes e cabelos ondulados, uma “zam- ba” que, para as gentes de Abancay, significa al- guém com características distintas das dos andinos, mestiça. Mas, ao logo de sua vida, mostrou que – apesar do sangue espanhol - era verdadeiramente uma mui digna filha de Tawantisuyo, a grande nação do povo dos Andes. E foi em Tamburco que ela cresceu, um povoado rural, pequeno, pobre, mas rota de passagem dos vi- ajantes que circulavam pelo país em lentas mulas na penosa jornada de carregar mantimentos e produ- ção de um lado para o outro. Foi correndo por aque- les pastos e observando a crescente pobreza das gen- tes que ela desenvolveu o aguçado senso de justiça Vai ser como queria Micaela que mais tarde iria se transformar em lenda. A história de Micaela se mescla com as grandes lutas de libertação da América Latina quando, em 1760, ainda jovenzinha, casa-se com José Gabriel Condorcarqui, cacique de seu povo e descendente do último inca Tupac Amaru, morto em Cuzco no ano de 1572. É ele quem vai incendiar as paragens peruanas na revolução que ficou conhecida como a “revolução de Tupac Amaru II”. Naqueles anos do final do 700, a exploração dos trabalhadores indígenas era uma coisa insuportável. A colônia fazia seus estragos, rapinava riquezas, es- cravizava os seres. Já tinham passados quase du- zentos anos desde a invasão e os povos originários estavam começando a despertar da letargia. Rebe- liões haviam sido feitas ao longo desses anos, mas todas tinham sido esmagadas. A mais recente, em 1760, justamente o ano do casório de Gabriel e Mi- caela, fora liderada por José SantosAtahualpa, bus- cando restaurar o reino dos incas. Esta última fez os espanhóis ficarem de cabelo em pé, porque per- ceberam que, nas comunidades indígenas, algo mui- to poderoso começava a se fortalecer: o desejo de liberdade. A parte isso, também os criollos (gente nascida na terra, mas com sangue espanhol) esta- vam insatisfeitos com a coroa por causa dos altos A filha de Tawantisuyo marcou com sangue e coragem a história da gente peruana
  • 22. 22 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 impostos. Caldo perfeito para mais confusão. Por conta destes dois elementos incendiários, Tu- pac Amaru acabou liderando uma revolução vinte anos depois, em 1780. Homem letrado, já cacique de seu povoado, o descendente do inca já estava impregnado dos ares rebeldes que vinham da Fran- ça, dos Estados Unidos e do Haiti. Seu primeiro ato revolucionário foi acabar com as obrajes, espécie de fábricas onde os índios eram explorados até a morte, ganhando miseráveis salários. Seu propósito era ir até Cuzco, destruindo todas estas formas de opressão e instaurando um governo indígena. Não foi à toa que em poucos dias já tinha juntado mais de 10 mil índios no seu exército. E, nessa caminhada até o “umbigo do mundo da nação do Tawantisuyo”, ele ia libertando todos os escravos. Durante o pouco tempo (cinco meses) que durou a revolução de Tupac Amaru, Micaela Bastide este- ve a seu lado. Por várias vezes comandou as tropas e não foram poucas as suas ações como chefe de governo. Seu corpo forte e esguio era visto, manhã cedinho, a cavalgar pelos povoados, arrebanhando gente para a guerra. Ela era quem administrava as provisões, mobilizava os destacamentos e adminis- trava as terras liberadas pela revolução. Era consi- derada a facção mais radical do movimento. Quan- do Tupac Amaru vacilava no seu avançar sobre Cuzco, era Micaela quem o impulsionava, pessoal- mente ou através de cartas que lhes fazia chegar amiúde. Por várias vezes se mostrou mais estrate- gista do que ele como, por exemplo, quando intuiu que a união com os criollos não ia dar em boa coisa. A história comprovou que tinha razão. Esperando por um levante das gentes de Cuzco, Tupac Amaru demorou a entrar na cidade. Isso fez com que as tropas reais se rearticulassem e o derrotassem em março de 1781. Cuzco não foi conquistada e tudo se perdeu. Numa de suas cartas a Gabriel, Micaela escreveria: “Chepe, chepe, mi muy querido: bastan- tes advertencias te dí”. Ela nunca confiara nos bran- cos e tampouco nos criollos. Sempre acreditou que, entrando na cidade, venceriam. Gabriel não lhe deu ouvidos. Assim, vencidos, os líderes rebeldes foram apri- sionados. Entre eles estão Gabriel (Tupac Amaru), Micaela e seu filho Hipólito. No mês de maio do mesmo ano todos são supliciados na Praça Maior da cidade. Micaela, Gabriel e o filho chegam arrasta- dos por cavalos. Irão sofrer todas as torturas possí- veis. O primeiro a morrer na forca é Hipólito, diante dos pais. Mas, antes, lhe arrancam a língua. Micaela assiste impávida. Depois, vários outros rebeldes vão sendo mortos nas mesmas condições de crueldade, muitos são parentes, amigos. Micaela é a penúltima. Sobe no cadafalso com a mesma altivez que lhe va- lera a formosura. Tem a língua arrancada e depois, como não morre em seguida, os carrascos ainda lhe aplicam golpes no estômago e no peito. O filho mais novo, de nove anos, assiste a tudo. Será levado de- pois, prisioneiro, para a Espanha. O último a morrer é Tupac Amaru. O cacique revolucionário é amarrado a quatro cavalos que são postos a correr em direções opostas para que o cor- po do índio seja esquartejado. Os cavaleiros esporei- am os bichos, eles arrancam e o cacique não se par- te. Por várias vezes é feito o mesmo procedimento e Tupac Amaru não se parte. Os espanhóis desistem e desamarrando-o o esquartejam a golpes de ma- chado, sendo suas partes espalhadas por várias regi- ões do Peru. Dizem que nessa hora sagrada, em que o corpo do inca resistiu, uma chuva grossa caiu do céu. Talvez seja por isso que até hoje, quando chove no Peru, as gentes originárias se ponham a sorrir. Lembram o tempo em que Tupac Amaru incendiou de novo a caminhada para a liberdade, junto com Micaela. Lembram que sempre é possível enfrentar a violência, o terror, o medo. Sorriem e seguem, por- que há ainda muita estrada para caminhar. O povo de Tawantisuyo ainda não entrou em Cuzco. Vai en- trar, e vai ser como queria Micaela. Isso ainda va- mos ver!!! Micaela era a alma da rebelião. Comandante altaneira, era quem empurrava Tupac Amaru rumo a Cuzco
  • 23. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 23 Ueivi era como uma onda de ternura. Abandonado numa praia do continente, tenro filhote, foi acolhido na casa de meus pais. Viveu uma vida longa. Brincalhão, irreverente até demais. Na euforia da brincadeira, às vezes arranhava com suas garras afiadas. Ele tinha, é verdade, um jeito quase canino de ser. Quando uma pes- soa da família chegava em casa, corria para recebê-la, saltitante como um cachorro. Como todo bicho se apega de modo especial a uma pessoa, escolheu meu pai, e o Cuidadores de bichos e outros seres Por Raquel Moysés Companheiros fiéis na comunidade das gentes Humanidade Fotos:RaquelMoysés Os animais acompanham os humanos ao longo dos dias e noites dos tempos. Convivem com a sua miséria, sua generosidade, sua monstruosidade
  • 24. 24 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 seguia passo a passo. Onde ele estivesse fa- zendo um serviço, no quintal, no telhado, lá es- tava o gato da onda: Wave, Ueivi. Com a língua de fora, postava-se a seus pés enquanto tocava acordeão, e parecia embevecido, como se fru- ísse a música. Depois, na hora da leitura, de assistir televisão, buscava o colo. Repouso com- partilhado. Gato abandonado ao sabor das ondas, Ueivi, sujeito de uma vida, viveu uma existência boa e bonita. Bem alimentado, amparado na hora da doença. Quando as forças começaram a lhe fal- tar e os quadris não suportavam mais o peso de seu corpo de gato brasileiro, daqueles mancha- dinhos como uma jaguatirica, ele foi cuidado com remédios e carinho. Assim foi também na hora da boa morte. Quando uma manhã amanheceu sangrando, sofrendo muito, os seus cuidadores, coração pesado, chamaram a veterinária para que aliviasse seu sofrer. E assim ele partiu, dei- xando entre as pessoas uma recordação de ter- nura. Um acalanto felino. Ueivi viveu entre gente e dela recebeu amor e respeito. Sua vida também foi partilhada com uma comunidade de bichos. Outros gatos, vári- os cachorros que, ao longo dos quase 15 anos de sua vida, foram dividindo o quintal, as brin- cadeiras, os saltos do muro, as fugas para a rua e as areias da praia, o retorno ao lar. Da comu- nidade dos bichos, assistimos à morte de uns poucos: Ueivi, Nina, Neige, Dilan, Benin, Tin- tim... Os outros partiram sem deixar sinais. Sim- plesmente sumiram um dia ou uma noite e deles não ficaram rastros. Como é dito, até entre ve- terinários de uma certa linha, os animais, quan- do pressentem a morte, vão embora. Assim foi com Newar. Eu o trouxera de lon- ge, da velha Itália dos meus antepassados. Ao retornar dos estudos, depois de quatro anos vi- vendo com ele, não poderia deixar, entregue à própria sorte, o siamês que se conchegara no meu colo entre livros e apontamentos. Eu o aco- lhia e ele me oferecia seu calor nas interminá- veis noites de inverno, debruçada sobre livros e escritos de jornalismo, tendo por companhia o crepitar do fogo da lareira acesa. Na volta para casa, cumpridos todos os ca- minhos da burocracia humana, ele viajou comi- go entre os passageiros, abrigado na sua bolsa de viagem, e entrou em terras brasileiras com visto de ingresso. Deixou logo de ser estrangei- ro na comunidade de gente e de bichos. Depois do primeiro susto com os cães, um dálmata e um pastor, que o puseram a correr pinheiro aci- ma, passou a conviver de forma harmoniosa no quintal junto ao mar. Toda manhã acordava, com um leve toque de cabeça, minha mãe, a quem escolhera como especial desde o primeiro en- contro. Era de uma delicadeza e uma ternura intangíveis. Tinha uma fala para cada momen- to, e quando erguia os olhos azuis, neles havia algo que só podia ser lido como amor. Parecia carregar a doçura do povo nepalês de quem herdara o nome. O pinheiro em que subiu amedrontado não existe mais. Newar também foi embora antes de completar 13 anos. Desapareceu uma ma- Velozes noites, densas trilhas, paragens do mundo, ruas e ritos: uma lareira e um gato...
  • 25. Pobres & Nojentas - Julho de 2006 25 nhã bem cedo e de nada adiantaram as buscas e os cartazes espalhados pelas redondezas de sua casa. Deixou em nossas vidas um sopro de luz. Para mim, nunca existiu um gato como Newar. Para alguns, talvez muitos, o que estou dizendo pode parecer um despropósito. Lirismo barato, dirão os descrentes. Mas sei que quem compartilha da comunidade dos iniciados, cui- dadores de bichos e outros seres, entende o que estou dizendo. Por pensar assim, quando vi no jornal a ima- gem daquele cachorro com a cabeça traspas- sada por uma faca, e daquela fêmea Pittbull grá- vida esfaqueada por algum desalmado, e soube dos cuidados afetuosos que receberam, é que ainda acredito no gênero humano. Por isso, quando tive notícia, pela televisão, da pena al- ternativa a ser cumprida no canil por um jovem que espancou até a morte um outro cão, ainda espero algo da justiça dos homens. Os animais acompanham os humanos ao lon- go dos dias e noites dos tempos. Convivem com a sua miséria, sua generosidade, sua monstruo- sidade. Compartilham o pão e a água com an- darilhos e recebem túmulos de mármore de ri- cos “donos” que os tratam como sua proprie- dade. Mas o despropósito não está em tratar com dignidade o ser animal, o absurdo é con- denar o ser humano ao desespero da dor, da fome, do descuido mais desesperador que é o abandono. Só quem é capaz de amar e cuidar com desvelo de um animal enfermo, sujeito de uma vida, do mesmo modo delicado e compas- sivo que se debruça sobre o leito de morte de um homem, uma mulher ou uma criança, é dig- no de sua humanidade. Era a primeira vez que Hernán viajava para a Itália. Seu destino era Milão onde ele, jornalista, faria seu dou- torado em Comunicação. Ele era colombiano, da cida- de de Medellín, onde trabalhava no setor de telejorna- lismo de uma universidade. Durante a longa travessia atlântica, na hora da refeição, pediu um “palillo” (palito de dente, em português). A aeromoça da Alitalia (com- panhia de aviação italiana), que entendia menos espa- nhol do que Hernán entendia italiano, não compreendeu bulhufas. Procurando agradar o passageiro, ela perguntou em italiano: - O senhor quer lenços de papel? Pão? Açú- car? E assim ia mostrando objetos, num jogo de tentati- va e erro. Numa desesperada busca pelo objeto certo, ela finalmente disse: - “Burro?” Hernán ficou encabulado, mas nada falou à aero- moça, que desistiu da inútil caça às palavras. O jorna- lista pensou com seus botões: - Mal cheguei à Itália e já estão me chamando de burro?! Dias depois, em Milão, descobriu o verdadeiro signi- Caramba! Me chamam de burro?! Por Stefano Roberto Moysés Colucci * ficado de “burro”, em italiano, e caiu na gar- galhada com duas no- vas amigas, jornalistas brasileiras. A aeromoça não o havia chamado de pessoa pouco inteligen- te, mas tinha lhe ofere- cido apenas manteiga. * É estudante da 4ª. série do ensino fundamental, tem 10 anos
  • 26. 26 Pobres & Nojentas - Julho de 2006 TTTTTempoLLLLLivre para quem tempouca grana $$$$$Por R$3,50 dá para comer um dos melhores cachorros-quen- tes (completos) da cidade. É o Cachorro Louco, na rua geral de Coqueiros, duas quadras depois do supermercado Imperatriz. A van dos vendedores fica parada na frente do posto de gaso- lina a partir das 19 horas. O comprador pode se sentar em banqui- nhos de plástico enquanto aguarda o preparo do lanche. Vale a pena! $$$$$Quem tira o dia para passear no centro de Florianópolis tem que dar uma parada na livraria Paulus, na Jerônimo Coelho, 119. Osatendentessãoinformadoseatenciosos.Oambienteétranqüi- lo. Nem precisa comprar. Folhear os livros já é um prazer. Mas quem reservou uma grana pode adquirir um de teologia e estudos bíblicosemgeral,filosofia,sociologia.Sócoisaboa. $$$$$ O 24º Festival de Dança de Joinville (SC) começou no dia 19 e encerra-se em 29 de julho no Centreventos Cau Hansen. O pre- ço dos ingressos é “salgado”, mas dá para assistir de graça a espe- táculos em locais variados como praças, shoppings, empresas e outros locais nos chamados Palcos Abertos. Grupos de todo o paísaproveitamessesespaços para apresentarsua arte.Joinville é umadelícia,aindamaisnoperíododofestival. Assine Pobres & Nojentas 5 edições (bimestral): R$ 22,50 (estão inclusas as despesas com o Correio) • Deposite o valor na conta do Banco do Brasil nº 618-714-5, agência 0016-7 • Envie e-mail para eteia@gmx.net informando: data e hora do depósito, nome e endereço completo (com CEP) A TV de sinal aberto tem pouca coisa boa para se ver. Mas tem uma que é ótima. O nome: Café Filo- sófico.Oprogramaétrans- mitidoaosdomingos,às22h, na TV Cultura. Em julho deste ano, passou a exibir novo formato. A atriz Gra- ziella Moretto apresenta a série O amor é uma coisa que se aprende, com cu- radoriadopsicanalistaCon- tardoCalligaris. São séries de palestras que falam sobre as princi- pais questões do ser huma- no contemporâneo: amor, sexo, os excessos e as ma- neiras de criar ou recriar vínculos. Os temas são dis- cutidos por estudiosos bra- sileiros do comportamento e das relações humanas – psicanalistas,historiadores, cientistassociaisefilósofos. No dia 30 de julho, o tema vai ser “Amar é uma coisa que se aprende e se aprende em casa”. Não dá para perder. O Café Filosófico faz a gente pensar, “puxar assunto” com amigos e saber mais das coisas do mundo. E é de graça. Café Filosófico