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01
Depressão
Saber que é provável que você nunca mudará, saber que é provável que você nunca
irá envelhecer e saber que é provável que você nunca irá morrer... isso reforça muitíssimo
algo que li uma vez, antes do que houve comigo, quando eu tinha algo bom dentro de mim.
O homem mais sábio do mundo disse que não há nada novo em baixo do sol, disse que
tudo era repetitivo... talvez para as pessoas normais não faça tanto sentido como faz para
mim, elas não viram tantas repetições como eu vi, elas não viram as mesmas bobagens
que eles sempre repetem, e repetem, e repetem...
Eu tinha prazer com a provável eternidade, dizem que o vírus altera a nossa
consciência de certo ou errado, é como se ele matasse o que havia de bom em nós e
liberasse tudo o que nós vivemos tentando esconder de todos, inclusive de nós mesmos,
até porque vivemos sempre com uma grande batalha dentro de nós, dois titãs lutam
constantemente, um quer que você seja bom, o outro quer te libertar das conveniências e te
fazer ser mau, ou “livre”. Então quando você acorda, a primeira sensação é de uma grande
liberdade, parece que finalmente um dos titãs foi abatido e morto, ficando apenas o que
buscava por liberdade, ainda mais quando você percebe a sua superioridade.
Eu fui capaz de torturar pessoas que eu gostava e sem sentir pena delas...
curiosamente carrego essa lembrança em minha mente... dizem que o vírus restaura todo o
seu corpo, se você estava doente, não estará mais... ele deve restaurar a nossa mente
também porque consigo ver, diante dos meus olhos, ainda abertas, cada cena do que os fiz
passar e, o engraçado disto é que, depois de tantos anos de indiferença, essas coisas
começaram a me incomodar... cheguei a pensar em Deus de novo... antes eu me sentia um
deus, agora me sinto um idiota.

1
Diante do espelho, em minha memória, eu ainda consigo ver meu reflexo nas águas
dos rios sob a luz do sol... não gosto nem de pensar na comparação... eu era lindo, hoje
pareço um morto vivo, pálido, olhos fundos, sem cor e pretos... quando eu tinha uma alma
eles eram azuis... agora que são pretos eu me pergunto o que fiz com a minha alma, me
pergunto se ela ainda existe dentro de mim.
Minha pele é perfeita, não há a menor expressão de rugas, é como se eu tivesse
vinte anos, mas sei que carrego bem mais que isso em minha mente... não sei mais o que
fazer com o meu cabelo, já o usei de todas as formas possíveis por ele ser liso, já o deixei
crescer até a cintura e também usei tão curto quanto um soldado num quartel tem que usar.
O meu cabelo é tão forte quanto eu, o brilho dele é interessante, deve haver vírus em
toda parte do meu corpo... hoje o deixo curto, mas não tão curto... é moda desta geração
fazer ele ficar arrepiado como se eu tivesse levado um choque pondo o dedo na tomada –
Riu. – Minha barba também já a usei de todas as formas, ainda mais porque ela preenche
todo o meu rosto, mas hoje optei por esse cavanhaque baixo... pelo menos esconde um
pouco da minha palidez.
Meus olhos enchem d’água... a vida tinha mais vida quando eu podia morrer a
qualquer momento... as cores realmente eram lindas debaixo do sol... acho que ele as
realçava... hoje, por mais que eu as veja, não parecem ter a mesma vida sob a luz das
lâmpadas frias, ou das amarelas espalhadas pelas cidades para iluminar a noite.
Eu adorava nadar no rio e sentir o sol tocar a minha pele... ela extremamente
agradável... numa das ultimas vezes que o sol meu tocou, comecei a me decompor
instantaneamente diante dos meus olhos, tive que me esconder no primeiro buraco escuro
que encontrei... é alguma reação química que eu não entendo, pelo menos disseram que é,
não tenho como ter certeza.
Já caí de lugares extremamente altos e nada me aconteceu, caí como gato, caí de
pé e, mal tocando o chão, já comecei a caminhar como se nada tivesse acontecido.

2
Existem coisas no meu mundo que fascinariam algumas pobres pessoas... na verdade
ainda fascinam a maioria dos que são iguais a mim, mas parece que algo se quebrou
dentro de mim, dentro da minha mente, parece que algo se desfez, como se eu afundasse
em águas profundamente negras.
Quantas pessoas tiram a própria vida enquanto eu só queria poder ter a minha de
volta... não acho isso justo, elas não fazem idéia do que estão fazendo, são pessoas cheias
de vida e de força, sabem que um dia vão morrer, deveriam ter cada dia como um presente
e fazer ao máximo para prolongar sua existência, mas roubam de si o ar, roubam sua
essência e ainda acham que terão paz com essa atrocidade...
Com a minha imagem refletida no espelho, olhando dentro dos meus próprios olhos,
me vendo através das minhas lágrimas foi onde minha certeza cresceu, mesmo que já
existente dentro de mim, aquele pensamento era fixo... eu só queria poder ter a minha vida
de volta.
Eu olho pro nada e sinto o grande vazio que existe dentro de mim, é uma depressão
inexplicável, nunca soube de alguém que tenha sentido o que estou sentindo, não
conseguia me alimentar como deveria, sinto que estou muito fraco por causa disso, mas
quando olho nos olhos cheios de vida de quem eu pretendo me alimentar esse vazio parece
crescer ainda mais e assim eu volto a pergunta inicial... depois de tudo isso o que te resta?
A vontade de chorar é inevitável, os que me conheceram no auge da minha
eternidade não entendiam o que havia comigo, simplesmente se afastaram de mim, não me
achavam mais divertido, só porque não compartilhava mais de seus instintos.
Não há um sentimento verdadeiro entre nenhum de nós... pelo menos nunca havia
visto... todas as relações são baseadas em interesses, ninguém anda com alguém pelo
simples prazer da companhia, sempre esperam tirar algum proveito daquilo... deve ser isso
que esse vírus também causa nas nossas mentes... então eu volto para a mesma
realidade: Eu só queria poder ter a minha vida de volta... mas eu não posso.

3
Foi lembrando da minha imagem refletida sobre a água que fortaleci qual seria a
melhor forma de partir, eu precisava vê-lo pela ultima vez antes de deixar esse mundo
definitivamente, eu precisava senti-lo, mesmo que ele fosse me destruir, mesmo que meu
corpo não o suportasse mais, eu precisava ver, até o ultimo segundo que pudesse, as
coisas sob a sua luz, ele era a representação do Deus que tanto tentaram me mostrar e
seria diante dele que eu imploraria por misericórdia, seria diante de sua soberanidade que
eu iria encerrar a minha vida, prostrado e humilhado, mostrando que eu não me achava
mais um deus, mas sim um completo idiota por me considerar melhor do que algo tão
superior... foi o que fiz.
Eu vestia a minha roupa preferida, gostava do estilo “Neo” de Matrix, aquele conjunto
preto combinava comigo, ainda mais pelo sobretudo, isso havia virado moda entre os que
eram iguais a mim, eu só não usava os óculos escuros porque realmente não havia
necessidade, mas gostava daquelas roupas, elas realçavam a minha palidez... quando
comecei a usar eu simplesmente adorava realçar a minha palidez, mas depois que fiquei
assim eu simplesmente não me importo mais, as vezes até me incomoda, mas meu humor
me faz continuar usando essas roupas pretas, elas combinam comigo... combinam com o
que eu me tornei.
Eu estava de joelhos, sentado sobre os meus pés no alto de um prédio residencial,
ele era o mais alto dos que se localizavam naquela área, podia ver a montanha por onde o
sol nasceria... em outras ocasiões eu já tinha passado algumas horas da noite sobre ele, eu
me sentava em sua beirada e ficava observando as pessoas caminhando inocentemente.
Em algumas noites consegui ver o céu ainda alaranjado por causa do pôr-do-sol, como o
contato não era direto com a luz dele, o processo de decomposição era extremamente mais
lento, isso me permitia vê-lo, sem morrer, porque eu sabia que em alguns pouco minutos
meu corpo voltaria ao normal.

4
Faltavam alguns minutos para o nascer do sol e o meu peito ardia pela certeza de
que era o fim, logo depois todo o meu corpo parecia reagir àquela idéia, era como se o
vírus soubesse que era seu fim e estivesse tentando fugir, havia uma sensação de
imploração dentro de minha mente, algo me implorava pela vida, pela existência, mas eu
não suportava mais aquele vazio dentro de mim.
Eu respirava ofegante e em minha mente eu comecei a lembrar das inúmeras
pessoas que eu havia matado... podia ver seus rostos diante de mim, seus olhos cheios de
vida... eram sempre mulheres, sempre as fazia pensar que eu estava apaixonado por elas,
costumava brincar com seus sentimentos, só matava homens quando estava com muita
fome, o gosto delas era melhor, tinha feromônio misturado, isso me excitava e tornava o
gosto ainda melhor.
A brisa balançava a minha roupa, as lágrimas escorriam por meu rosto enquanto eu
me sentia horrível, enquanto eu achava que não merecia viver, quanto mais por tempo
indeterminado. O mais velho de nós, pelo que eu soube, viveu no tempo de Jesus, ele
afirmou tê-lo visto, mas nisso ninguém nunca acreditou muito, ele não tinha a aparência de
alguém que falasse a verdade, pra mim estava apenas se gabando, queria aparecer.
O céu começava a ficar azulado, eu já podia sentir toda a minha pele comichar, como
se reagisse a uma alergia, ou a qualquer outra coisa, talvez ácido... nunca toquei ácido,
mas faria sentido, eu acho... meus olhos ardiam, eu sabia que a qualquer momento eu não
os teria mais, então precisava aproveitar cada segundo do que podia ver... se houvesse
algum lugar para mim após a morte, sem dúvida não seria no paraíso, por isso queria
registrar bem a ultima imagem que iria ver para poder tê-la por toda a eternidade sabendo
que o que eu fiz foi o melhor que eu poderia ter feito.
Alguns me chamariam de suicida... de fato o estava sendo, mas eu esperava que
considerassem isso como estar salvando a humanidade de mais um monstro do que
simplesmente um suicida... eu não conseguia me controlar, eu precisava me alimentar e

5
deixar de me alimentar também seria suicídio, iria apenas prolongar a minha existência e
continuar pondo em risco a vida de tantas pessoas... esperava que considerassem um
gesto melhor do que o que parecia, não morria pelo simples fato da vida não ter mais
sentido, morria porque não suportava mais lembrar de seus rostos, morria por causa do
desejo insano por sangue, por matar e por sentir prazer naquilo.
Eu era bom, eu era um bom rapaz quando tudo aconteceu, eu queria ser médico,
queria ajudar as pessoas, queria salvar vidas e não tirá-las. Engoli a seco, o momento era
aquele, sentia meu coração acelerado, sentia arder todo o meu corpo, a radiação começava
a se acumular sobre a roupa e assim tocava a minha pele, foi quando ele começou a surgir.
– Perdoe-me pela minha soberba... perdoe-me por tantas vidas... perdoe-me por ser o
que eu não sabia que me tornaria. – Disse eu ao sol na verdade referindo-me a Deus.
Eu era religioso quando humano, costumava ir a Igreja para aprender mais, eu não
fazia como alguns conhecidos meus, eu realmente me interessava em ir, eu realmente
gostava de estar lá, sentia-me em paz, mas a renuncia de tantas coisas era algo difícil, era
doloroso, ainda mais naquele tempo, a tantos anos atrás e, ainda mais difícil se tornava
toda vez que ela me olhava daquele jeito.
Amanda era o seu nome... ela era a moça mais linda que eu já havia visto na minha
vida, eu adorava olhar para o seu rosto sob a luz do sol, seus olhos tornavam-se mel
naquela claridade... ela gostava de mim e eu gostava dela, eu havia me declarado e ela,
passando por cima de sua timidez, assumiu sentir o mesmo... dei-lhe um beijo uma vez...
uma única vez... nos viram naquele momento e me acusaram de estar abusando dela, tudo
por causa do que achavam... hoje sei que não devia ter beijado ela, mas naquele tempo eu
era movido por minha paixão, foi quando houve a proposta.
Eu nunca tinha visto aquela mulher na minha vida, eu estava me sentindo arrasado,
tinha raiva de mim mesmo, fazia dias que eu a havia beijado e naquele dia tinham mandado
ela para longe, mandaram pra casa de uns tios e eu estava com raiva, foi quando aquela

6
mulher se aproximou de mim, ela sabia que eu estava chateado... acho que qualquer um
poderia ter notado... depois de uma conversa onde eu tentava despachá-la com educação
ela me fez a proposta:
“– Posso torná-lo livre.”
Eu estava muito chateado, mas ela me convenceu... de fato me senti livre, me senti
tão livre que matei os pais de Amanda... a satisfação de sentir o sangue deles era imensa
dentro de mim, era a sensação da vingança... inicialmente eu não sabia onde os tios dela
moravam, por muito tempo eu os procurei. Por onde eu passava costumava a deixar
sempre uma pessoa morta, sempre uma moça... hoje descobri que o fazia por vingança,
porque quando a encontrei ela estava sendo cortejada por uma outra pessoa.
Não parecia ser ciúme o que eu senti, mas uma coisa eu tinha certeza, não havia
sangue nenhum que eu quisesse mais do que o dela... pude notar tudo ao redor de sua
imagem se tornar em trevas, ela era o foco dos meus olhos, ela era o meu objetivo, eu a
queria mais do que qualquer outra moça, eu queria senti-la em meus braços, queria beber
de seu sangue e essa idéia me excitava, podia sentia a adrenalina percorrer por meu corpo
através da forte palpitação e naquela noite eu provei.
Ela estava deitada para dormir quando entrei pela janela... pra mim não era difícil
conseguir subir em uma arvore e entrar pela janela do quarto onde ela dormia, também não
tinha como errar, poderia sentir seu cheiro de longe... depois da minha transformação todos
os meus sentidos estavam mais aguçados. Eu entrei no quarto e ela estava deitada, eu me
aproximei e me sentei a beira da cama, isso a despertou e ela me olhou assustada.
Seus olhos não tinham o mesmo brilho à luz da lua, eu lembro de ter percebido isso
nitidamente, a lembrança estava em minha mente e sem dúvida não era igual, eu ainda não
tinha percebido, mas acho que foi ali que minha depressão começou.
“– Willian?! O que faz aqui? – Disse ela tentando manter sua voz baixa.
– Eu venho lhe procurando a bastante tempo.

7
Ela se sentou mantendo-se coberta por estar com roupas de dormir. Me olhou e disse:
– Depois da morte de meus pais nós nos mudamos algumas vezes.
– Sim, foi isso o que dificultou. – Eu disse olhando para ela seriamente.
– Não sabia que tu estavas a minha procura, pensei que nunca mais iria vê-lo. tu
estás tão diferente. – Disse ela estendendo a mão para me tocar o rosto.”
Eu fechei os olhos enquanto sentia sua mão em meu rosto, eu conseguia ouvir sua
pulsação através de seus veias e seu cheiro quase me entorpecia, nunca tinha sentido algo
como aquilo, nenhuma das outras moças tinham me feito sentir aquilo, era algo muito forte
e que acelerava ainda mais os meus batimentos.
“– Senti tua falta Willian. – Disse ela com lágrimas nos olhos, eu as vi quando abri os
meus movido pelo que ela tinha dito.
– Estavas com outro ainda a pouco.”
Hoje consigo confessar que havia ciúme naquela minha frase.
“– Não podia esperar-te, não havia noticias tuas, teus pais não sabem de ti. – Disse
ela.
Ela sorriu para mim, como quem acabara de se lembrar de algo, tirou a mão do meu
rosto e inclinou-se para o lado, para abrir a gaveta de seu criado mudo, foi ali que ela se
feriu, em uma agulha dentro da gaveta. Amanda reteve a mão imediatamente e eu podia
sentir ainda mais forte aquele cheiro, principalmente enquanto ela olhava para o dedo
ferido.
Estendi a minha mão tentando ser o mais delicado que conseguia diante de como eu
estava me sentindo... eu parecia que ia enlouquecer, estava quase me transformando...
segurei em sua mão ferida trazendo-a para mim, olhei-a e perguntei:
“– Posso?”
Foi a única palavra que consegui expressar e ela afirmou com um gesto de cabeça.
Estávamos sozinhos em seu quarto, todos já dormiam, eu sabia disso e ela desconfiava.

8
Pus seu dedo ferido em minha boca e suguei o liquido vermelho vivo que escorria por um
pequeno ferimento. A minha vontade era sobressaltar meus dentes e rasgar ainda mais a
sua carne porque nunca senti nada como aquilo, mas não o fiz.
Por fim beijei a ponta de seu dedo e abri os olhos para olhá-la, eu tinha certeza que
ela estaria me achando um louco, mas me surpreendi, ela estava de olhos fechados e, pelo
som e pelo movimento de seu tórax eu sabia que respirava tão ofegante quanto eu. Ela me
olhou e eu já estava ao lado da janela, estava pronto para ir embora quando ela me
perguntou:
– Já vás partir?
– Preciso ir.
– Quando te verei novamente? – Perguntou-me com os olhos preocupados.
Eu voltei a me aproximar dela, olhei seu rosto por completo, beijei seus lábios e disse:
– Creias em mim, não me queiras ver nunca mais, pois se isto acontecer certamente
algo de seu desagrado acontecerá. – Nem eu conseguia acreditar no que eu estava
fazendo. – Lembre-se de mim pelo que conhecias e não pelo que vistes hoje. – Pedi-lhe.”
Isso aconteceu a pouco mais de cem anos atrás, a mais ou menos trinta e seis mil e
quinhentos dias atrás... ela tinha vinte anos e, naquele tempo, as pessoas não costumavam
viver muitos e muitos anos... sim, ela morreu, não por minhas mãos, mas morreu... eu sabia
que isso iria acontecer, mas sabia que era melhor para ela, por isso me afundei nos braços
de diversas outras moças, tirei a vida de todas, nunca transformei nenhuma delas.
Minha vida era muito fácil, não precisava trabalhar, eu adquiria o dinheiro através de
todas as minhas vitimas, afinal de contas nenhuma delas iria precisar mais de suas jóias e
eu pouco me importava com suas famílias, eles estavam vivos... ainda... poderiam
conquistar o que quisessem, eu precisava manter as aparências, ter uma casa, precisava
ter renda, então abri um negócio próprio, reuni bastante dinheiro e depois de alguns anos
deixei os humanos mantendo o meu negócio, eles trabalhavam para mim, meus

9
representantes queriam ser como eu e eu os usava com este propósito, como eu não podia
me expor, eles o faziam para mim em troca da transformação, depois de alguns anos eu
apenas via os números em minhas contas, daí por diante não precisava me preocupar com
muita coisa, precisava apenas trocar meu nome, como se a empresa passasse para
herdeiros, criei óbitos falsos, tudo para que ninguém desconfiasse, mas dificilmente
desconfiariam porque praticamente nenhum de meus empregados conheciam o meu rosto.
Foi assim que eu soube, pois no inicio eu usava do meu nome verdadeiro em minha
empresa, por isso não era tão difícil de me achar, e de fato me acharam alguns anos depois
quando comecei a dizer que eu era o único neto de mim mesmo, usava meu nome como
Willian III, foi nesse tempo que uma pessoa surgiu em minha empresa dizendo que
precisava falar com meu avô, era um rapaz de boa aparência e eu lhe disse que seria muito
difícil isso, mas que se ele quisesse me transmitir o recado eu o passaria de todo bom
grado, foi quando ele me disse:
“– Minha avó, Amanda, está muito doente e prestes a falecer, pediu-me para chamar
seu avô, eles se conheciam em sua juventude e ela não gostaria de morrer antes de lhe
rever.”
Havia mais ou menos cinqüenta anos que eu não a via e aquela frase pareceu arder
em meu peito, em resposta disse ao rapaz que iria averiguar as possibilidades da presença
de meu avô, mas que se ele não fosse, eu iria em seu lugar, ele me forneceu seu endereço
e foi embora, me deixou em meio aos meus pensamentos e lembranças, quase pude sentir
o sabor do sangue de Amanda, mas tudo por fruto da minha imaginação, saber que estava
prestes a morrer mexeu com a minha mente de tal maneira que eu mesmo não
compreendia.
Naquele tempo eu não andava sozinho, a mulher que tinha me transformado era
minha parceira, foi com ela que perdi minha virgindade, durante a minha busca por Amanda
eu me relacionei com ela, eu estava completamente atordoado, aquela falsa sensação de

10
liberdade me permitia fazer o que eu quisesse, por isso prefiro não dizer com detalhes tudo
que fiz em questões de luxúria, fornicação e assassinatos, meus pecados eram inúmeros,
coisas das quais nunca pensei que seria capaz de praticar, ainda mais para mim que era
um rapaz religioso, mas é isso que o vírus nos causa, ele nos anestesia e nos faz pensar
que somos livres para voar, então vamos em busca do mundo para tentar preencher o
buraco que se abriu em nossas almas... tudo ilusão... pelo menos é o que percebo hoje.
Fiquei uns dois dias decidindo o que iria fazer porque, se ela me visse, sem dúvida
saberia que há algo errado, permaneço com a mesma aparência de cinqüenta anos atrás e
não existem netos tão idênticos aos seus avôs como eu seria de mim mesmo, por outro
lado comecei a pensar numa forma de evitar sua morte, sabia que iria vê-la enrugada e
sabia também que se eu a transformasse ela voltaria a ter a aparecia de quando tinha seus
vinte anos, era isso que o vírus fazia, todos nós temos a aparência de jovens de vinte, ou
vinte e poucos anos, por mais que sejamos transformados na velhice, nosso corpo retorna
a forma e, se formos transformados na infância, nosso corpo avança até alcançar essa
idade... pra mim, que era religioso, parece tudo obra do inimigo, me faz lembrar de uma
passagem onde diz que os jovens são escolhidos por serem fortes... realmente é assim, até
nosso vírus nos transforma em jovens e nossa força é incomparável porque ele também
fortalece toda a nossa estrutura... mas como não sou cientista não vou saber explicar isso,
só sei porque foi o que me ensinaram.
Eu me olhei no espelho enquanto me arrumava para ir vê-la e foi quando eu me
percebi, foi quando eu lembrei do meu reflexo pela primeira vez, foi ali que percebi como eu
estava pálido e que a cor dos meus olhos não eram mais as mesmas, meu cabelo parecia
mais liso do que antes e na época ele beirava meu ombro, não em um corte reto, mas os
fios mais longos chegavam ao fim da minha nuca... levei flores, meu coração palpitava
como a ultima vez, ninguém soube que eu fui até lá, consegui despistar minha

11
companheira... fui bem recebido pelo mesmo rapaz, todos naquela casa parecia tomados
por uma grande tristeza.
Eu entrei no quarto onde ela estava, era o quarto dela pelo que o rapaz me disse...
meu coração martelava dentro de mim, ela estava pior do que eu tinha imaginado... me
deixaram sozinho com ela, fecharam a porta e eu me aproximei... ela parecia estar
dormindo quando eu me sentei como na ultima vez que a vi, mas desta vez havia mais
iluminação... Amanda abriu os olhos e me olhou... era ela sim, por baixo daquela aparência
envelhecida e frágil pela doença ainda era ela naqueles olhos e eu não sei porque, mas
isso fez arder meu peito.
“– Eu sabia o que tinha acontecido contigo.”
Disse ela tocando-me no rosto como da outra vez... era como vê-la naquele dia e não
em sua aparência atual... eu abaixei os olhos e um pouco da cabeça, foi automático, era
como se eu lamentasse... eu realmente lamentava...
“– Tu tinhas vindo para me matar naquela noite, não foi por isso que estivestes em
minha casa?”
Eu a olhei e sentia meus olhos arderem, estavam começando a encher d’água, havia
algo em minha garganta me incomodando... a anos não me sentia daquela forma... a anos
não me sentia tão humano como naquele momento... eu apenas confirmei com a cabeça
enquanto fechava os olhos e permitia que as lágrimas escorressem.
“– Quer saber porque eu ainda lhe amo como sempre amei?”
Minha ilusão me fazia vê-la em sua forma juvenil, como se o tempo não tivesse
passado, até porque eu não o havia percebido, para mim ele não havia passado... quando
você pode viver por tempo indeterminado o tempo não importa mais, ele não pode mais te
vencer, então você simplesmente o ignora, é como se ele não existisse.
Eu afirmei querer saber... eu realmente queria saber... eu precisava saber.

12
“– Porque naquela noite tu fostes embora contrariando a sua própria vontade... eu
pude ver isso em seus olhos... olhos que não eram mais como antes.”
Soltei o ar que estava preso em meus pulmões, mas a ardência ainda não
desaparecia... eu a olhei e perguntei:
“– Se quiseres posso tornar-te como eu.”
Ela sorriu para mim e disse:
“– Já vivi o bastante.
– Poderias viver para sempre.
– O que dá sentido a vida não é a vida, e sim que um dia ela irá acabar... depois de
você já ter vivido mais do que poderia, depois de você ter visto muito mais do que a maioria
das pessoas que te rodeiam já viram, depois que você já viu tantas e tantas pessoas
morrerem, depois de tudo isso o que te restará? É uma vida sem sentido de viver... eu vivi,
casei-me com um bom homem, dei a luz aos meus filhos, que por sua vez tiveram os seus
e hoje estou aqui, morrerei feliz.”
Eu entreguei a ela as flores que eu havia levado... eu estava tão deprimido que não
tinha disposição para nada, nem senti sede por estar com uma humana, eu podia ouvir
seus batimentos cardíacos, mas aquilo não me excitava mais como da ultima vez, eu queria
apenas morrer... era estranho sentir aquilo, por anos me senti satisfeito pela idéia de nunca
morrer de forma natural... mesmo que isso não seja uma total certeza... agora vendo-a
daquela forma a única coisa que gostaria era de estar morto... beijei-lhe a testa e me
retirei... aquela foi a primeira noite em que passei horas sobre esse prédio residencial.
Sentei-me na beira do alto do prédio, o céu estava limpo e, por isso, eu podia ver a
lua... ali eu chorei, mais uma vez depois de anos eu estava chorando e sentindo meu peito
arder e queimar... eu já havia sentido o sol me queimar antes daquela noite, mas nem
mesmo o sol conseguiu me proporcional a mesma sensação, a mesma queimação, sem
dúvida aquele momento era pior do que estar sob a luz do sol... eu solucei em meio as

13
lágrimas e novamente tudo que desejava era estar morto, então olhei para baixo, eram dez
andares o que me afastava do chão firme... foi a primeira vez que experimentei aquilo... eu
me joguei de braços e pernas abertas, como quem salta de pára-quedas... meu corpo
chegou ao chão como se pesasse toneladas, cheguei a abriu um buraco no chão.
Eu abri os olhos e respirei fundo... tudo que havia se quebrado já estava
completamente sarado em poucos segundos... senti a dor do impacto, mas estava inteiro
logo depois... dali eu saí para viver minha vida sem vida, viver por viver como disse
Amanda e, de forma inevitável, todas as correntes me traziam para cá novamente, todas
me traziam para o dia de hoje sobre este mesmo prédio diante do sol que começava a
surgir... cheguei a pular de grandes alturas novamente em fugas que não vale a pena
mencionar, mas aprendia a canalizar meu vírus nas partes certas do momento do impacto,
o que me fazia não sentir mais dor e nem quebrar nada de meu corpo.
Analisando melhor as circunstâncias não é por simples arrependimento que estou
aqui, não é somente por isso que estou prestes a me desfazer, existem outras razões que
me trouxeram aqui, afinal de contas eu vivi pouco mais de cinqüenta anos depois de minha
ultima visita a Amanda... eu vivi e vivi do mesmo jeito que havia vivido antes, mesmo que
não fosse tão igual quanto eu gostaria, então acho que não posso encerrar minha
existência sem descrever meus últimos acontecimentos, estes doeram mais do que aqueles
porque meu amor por Amanda era platônico, mas o que senti e sinto hoje foi retribuído e de
certa forma, vivido... seu nome é Alice.

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Depressão eterna

  • 1. 01 Depressão Saber que é provável que você nunca mudará, saber que é provável que você nunca irá envelhecer e saber que é provável que você nunca irá morrer... isso reforça muitíssimo algo que li uma vez, antes do que houve comigo, quando eu tinha algo bom dentro de mim. O homem mais sábio do mundo disse que não há nada novo em baixo do sol, disse que tudo era repetitivo... talvez para as pessoas normais não faça tanto sentido como faz para mim, elas não viram tantas repetições como eu vi, elas não viram as mesmas bobagens que eles sempre repetem, e repetem, e repetem... Eu tinha prazer com a provável eternidade, dizem que o vírus altera a nossa consciência de certo ou errado, é como se ele matasse o que havia de bom em nós e liberasse tudo o que nós vivemos tentando esconder de todos, inclusive de nós mesmos, até porque vivemos sempre com uma grande batalha dentro de nós, dois titãs lutam constantemente, um quer que você seja bom, o outro quer te libertar das conveniências e te fazer ser mau, ou “livre”. Então quando você acorda, a primeira sensação é de uma grande liberdade, parece que finalmente um dos titãs foi abatido e morto, ficando apenas o que buscava por liberdade, ainda mais quando você percebe a sua superioridade. Eu fui capaz de torturar pessoas que eu gostava e sem sentir pena delas... curiosamente carrego essa lembrança em minha mente... dizem que o vírus restaura todo o seu corpo, se você estava doente, não estará mais... ele deve restaurar a nossa mente também porque consigo ver, diante dos meus olhos, ainda abertas, cada cena do que os fiz passar e, o engraçado disto é que, depois de tantos anos de indiferença, essas coisas começaram a me incomodar... cheguei a pensar em Deus de novo... antes eu me sentia um deus, agora me sinto um idiota. 1
  • 2. Diante do espelho, em minha memória, eu ainda consigo ver meu reflexo nas águas dos rios sob a luz do sol... não gosto nem de pensar na comparação... eu era lindo, hoje pareço um morto vivo, pálido, olhos fundos, sem cor e pretos... quando eu tinha uma alma eles eram azuis... agora que são pretos eu me pergunto o que fiz com a minha alma, me pergunto se ela ainda existe dentro de mim. Minha pele é perfeita, não há a menor expressão de rugas, é como se eu tivesse vinte anos, mas sei que carrego bem mais que isso em minha mente... não sei mais o que fazer com o meu cabelo, já o usei de todas as formas possíveis por ele ser liso, já o deixei crescer até a cintura e também usei tão curto quanto um soldado num quartel tem que usar. O meu cabelo é tão forte quanto eu, o brilho dele é interessante, deve haver vírus em toda parte do meu corpo... hoje o deixo curto, mas não tão curto... é moda desta geração fazer ele ficar arrepiado como se eu tivesse levado um choque pondo o dedo na tomada – Riu. – Minha barba também já a usei de todas as formas, ainda mais porque ela preenche todo o meu rosto, mas hoje optei por esse cavanhaque baixo... pelo menos esconde um pouco da minha palidez. Meus olhos enchem d’água... a vida tinha mais vida quando eu podia morrer a qualquer momento... as cores realmente eram lindas debaixo do sol... acho que ele as realçava... hoje, por mais que eu as veja, não parecem ter a mesma vida sob a luz das lâmpadas frias, ou das amarelas espalhadas pelas cidades para iluminar a noite. Eu adorava nadar no rio e sentir o sol tocar a minha pele... ela extremamente agradável... numa das ultimas vezes que o sol meu tocou, comecei a me decompor instantaneamente diante dos meus olhos, tive que me esconder no primeiro buraco escuro que encontrei... é alguma reação química que eu não entendo, pelo menos disseram que é, não tenho como ter certeza. Já caí de lugares extremamente altos e nada me aconteceu, caí como gato, caí de pé e, mal tocando o chão, já comecei a caminhar como se nada tivesse acontecido. 2
  • 3. Existem coisas no meu mundo que fascinariam algumas pobres pessoas... na verdade ainda fascinam a maioria dos que são iguais a mim, mas parece que algo se quebrou dentro de mim, dentro da minha mente, parece que algo se desfez, como se eu afundasse em águas profundamente negras. Quantas pessoas tiram a própria vida enquanto eu só queria poder ter a minha de volta... não acho isso justo, elas não fazem idéia do que estão fazendo, são pessoas cheias de vida e de força, sabem que um dia vão morrer, deveriam ter cada dia como um presente e fazer ao máximo para prolongar sua existência, mas roubam de si o ar, roubam sua essência e ainda acham que terão paz com essa atrocidade... Com a minha imagem refletida no espelho, olhando dentro dos meus próprios olhos, me vendo através das minhas lágrimas foi onde minha certeza cresceu, mesmo que já existente dentro de mim, aquele pensamento era fixo... eu só queria poder ter a minha vida de volta. Eu olho pro nada e sinto o grande vazio que existe dentro de mim, é uma depressão inexplicável, nunca soube de alguém que tenha sentido o que estou sentindo, não conseguia me alimentar como deveria, sinto que estou muito fraco por causa disso, mas quando olho nos olhos cheios de vida de quem eu pretendo me alimentar esse vazio parece crescer ainda mais e assim eu volto a pergunta inicial... depois de tudo isso o que te resta? A vontade de chorar é inevitável, os que me conheceram no auge da minha eternidade não entendiam o que havia comigo, simplesmente se afastaram de mim, não me achavam mais divertido, só porque não compartilhava mais de seus instintos. Não há um sentimento verdadeiro entre nenhum de nós... pelo menos nunca havia visto... todas as relações são baseadas em interesses, ninguém anda com alguém pelo simples prazer da companhia, sempre esperam tirar algum proveito daquilo... deve ser isso que esse vírus também causa nas nossas mentes... então eu volto para a mesma realidade: Eu só queria poder ter a minha vida de volta... mas eu não posso. 3
  • 4. Foi lembrando da minha imagem refletida sobre a água que fortaleci qual seria a melhor forma de partir, eu precisava vê-lo pela ultima vez antes de deixar esse mundo definitivamente, eu precisava senti-lo, mesmo que ele fosse me destruir, mesmo que meu corpo não o suportasse mais, eu precisava ver, até o ultimo segundo que pudesse, as coisas sob a sua luz, ele era a representação do Deus que tanto tentaram me mostrar e seria diante dele que eu imploraria por misericórdia, seria diante de sua soberanidade que eu iria encerrar a minha vida, prostrado e humilhado, mostrando que eu não me achava mais um deus, mas sim um completo idiota por me considerar melhor do que algo tão superior... foi o que fiz. Eu vestia a minha roupa preferida, gostava do estilo “Neo” de Matrix, aquele conjunto preto combinava comigo, ainda mais pelo sobretudo, isso havia virado moda entre os que eram iguais a mim, eu só não usava os óculos escuros porque realmente não havia necessidade, mas gostava daquelas roupas, elas realçavam a minha palidez... quando comecei a usar eu simplesmente adorava realçar a minha palidez, mas depois que fiquei assim eu simplesmente não me importo mais, as vezes até me incomoda, mas meu humor me faz continuar usando essas roupas pretas, elas combinam comigo... combinam com o que eu me tornei. Eu estava de joelhos, sentado sobre os meus pés no alto de um prédio residencial, ele era o mais alto dos que se localizavam naquela área, podia ver a montanha por onde o sol nasceria... em outras ocasiões eu já tinha passado algumas horas da noite sobre ele, eu me sentava em sua beirada e ficava observando as pessoas caminhando inocentemente. Em algumas noites consegui ver o céu ainda alaranjado por causa do pôr-do-sol, como o contato não era direto com a luz dele, o processo de decomposição era extremamente mais lento, isso me permitia vê-lo, sem morrer, porque eu sabia que em alguns pouco minutos meu corpo voltaria ao normal. 4
  • 5. Faltavam alguns minutos para o nascer do sol e o meu peito ardia pela certeza de que era o fim, logo depois todo o meu corpo parecia reagir àquela idéia, era como se o vírus soubesse que era seu fim e estivesse tentando fugir, havia uma sensação de imploração dentro de minha mente, algo me implorava pela vida, pela existência, mas eu não suportava mais aquele vazio dentro de mim. Eu respirava ofegante e em minha mente eu comecei a lembrar das inúmeras pessoas que eu havia matado... podia ver seus rostos diante de mim, seus olhos cheios de vida... eram sempre mulheres, sempre as fazia pensar que eu estava apaixonado por elas, costumava brincar com seus sentimentos, só matava homens quando estava com muita fome, o gosto delas era melhor, tinha feromônio misturado, isso me excitava e tornava o gosto ainda melhor. A brisa balançava a minha roupa, as lágrimas escorriam por meu rosto enquanto eu me sentia horrível, enquanto eu achava que não merecia viver, quanto mais por tempo indeterminado. O mais velho de nós, pelo que eu soube, viveu no tempo de Jesus, ele afirmou tê-lo visto, mas nisso ninguém nunca acreditou muito, ele não tinha a aparência de alguém que falasse a verdade, pra mim estava apenas se gabando, queria aparecer. O céu começava a ficar azulado, eu já podia sentir toda a minha pele comichar, como se reagisse a uma alergia, ou a qualquer outra coisa, talvez ácido... nunca toquei ácido, mas faria sentido, eu acho... meus olhos ardiam, eu sabia que a qualquer momento eu não os teria mais, então precisava aproveitar cada segundo do que podia ver... se houvesse algum lugar para mim após a morte, sem dúvida não seria no paraíso, por isso queria registrar bem a ultima imagem que iria ver para poder tê-la por toda a eternidade sabendo que o que eu fiz foi o melhor que eu poderia ter feito. Alguns me chamariam de suicida... de fato o estava sendo, mas eu esperava que considerassem isso como estar salvando a humanidade de mais um monstro do que simplesmente um suicida... eu não conseguia me controlar, eu precisava me alimentar e 5
  • 6. deixar de me alimentar também seria suicídio, iria apenas prolongar a minha existência e continuar pondo em risco a vida de tantas pessoas... esperava que considerassem um gesto melhor do que o que parecia, não morria pelo simples fato da vida não ter mais sentido, morria porque não suportava mais lembrar de seus rostos, morria por causa do desejo insano por sangue, por matar e por sentir prazer naquilo. Eu era bom, eu era um bom rapaz quando tudo aconteceu, eu queria ser médico, queria ajudar as pessoas, queria salvar vidas e não tirá-las. Engoli a seco, o momento era aquele, sentia meu coração acelerado, sentia arder todo o meu corpo, a radiação começava a se acumular sobre a roupa e assim tocava a minha pele, foi quando ele começou a surgir. – Perdoe-me pela minha soberba... perdoe-me por tantas vidas... perdoe-me por ser o que eu não sabia que me tornaria. – Disse eu ao sol na verdade referindo-me a Deus. Eu era religioso quando humano, costumava ir a Igreja para aprender mais, eu não fazia como alguns conhecidos meus, eu realmente me interessava em ir, eu realmente gostava de estar lá, sentia-me em paz, mas a renuncia de tantas coisas era algo difícil, era doloroso, ainda mais naquele tempo, a tantos anos atrás e, ainda mais difícil se tornava toda vez que ela me olhava daquele jeito. Amanda era o seu nome... ela era a moça mais linda que eu já havia visto na minha vida, eu adorava olhar para o seu rosto sob a luz do sol, seus olhos tornavam-se mel naquela claridade... ela gostava de mim e eu gostava dela, eu havia me declarado e ela, passando por cima de sua timidez, assumiu sentir o mesmo... dei-lhe um beijo uma vez... uma única vez... nos viram naquele momento e me acusaram de estar abusando dela, tudo por causa do que achavam... hoje sei que não devia ter beijado ela, mas naquele tempo eu era movido por minha paixão, foi quando houve a proposta. Eu nunca tinha visto aquela mulher na minha vida, eu estava me sentindo arrasado, tinha raiva de mim mesmo, fazia dias que eu a havia beijado e naquele dia tinham mandado ela para longe, mandaram pra casa de uns tios e eu estava com raiva, foi quando aquela 6
  • 7. mulher se aproximou de mim, ela sabia que eu estava chateado... acho que qualquer um poderia ter notado... depois de uma conversa onde eu tentava despachá-la com educação ela me fez a proposta: “– Posso torná-lo livre.” Eu estava muito chateado, mas ela me convenceu... de fato me senti livre, me senti tão livre que matei os pais de Amanda... a satisfação de sentir o sangue deles era imensa dentro de mim, era a sensação da vingança... inicialmente eu não sabia onde os tios dela moravam, por muito tempo eu os procurei. Por onde eu passava costumava a deixar sempre uma pessoa morta, sempre uma moça... hoje descobri que o fazia por vingança, porque quando a encontrei ela estava sendo cortejada por uma outra pessoa. Não parecia ser ciúme o que eu senti, mas uma coisa eu tinha certeza, não havia sangue nenhum que eu quisesse mais do que o dela... pude notar tudo ao redor de sua imagem se tornar em trevas, ela era o foco dos meus olhos, ela era o meu objetivo, eu a queria mais do que qualquer outra moça, eu queria senti-la em meus braços, queria beber de seu sangue e essa idéia me excitava, podia sentia a adrenalina percorrer por meu corpo através da forte palpitação e naquela noite eu provei. Ela estava deitada para dormir quando entrei pela janela... pra mim não era difícil conseguir subir em uma arvore e entrar pela janela do quarto onde ela dormia, também não tinha como errar, poderia sentir seu cheiro de longe... depois da minha transformação todos os meus sentidos estavam mais aguçados. Eu entrei no quarto e ela estava deitada, eu me aproximei e me sentei a beira da cama, isso a despertou e ela me olhou assustada. Seus olhos não tinham o mesmo brilho à luz da lua, eu lembro de ter percebido isso nitidamente, a lembrança estava em minha mente e sem dúvida não era igual, eu ainda não tinha percebido, mas acho que foi ali que minha depressão começou. “– Willian?! O que faz aqui? – Disse ela tentando manter sua voz baixa. – Eu venho lhe procurando a bastante tempo. 7
  • 8. Ela se sentou mantendo-se coberta por estar com roupas de dormir. Me olhou e disse: – Depois da morte de meus pais nós nos mudamos algumas vezes. – Sim, foi isso o que dificultou. – Eu disse olhando para ela seriamente. – Não sabia que tu estavas a minha procura, pensei que nunca mais iria vê-lo. tu estás tão diferente. – Disse ela estendendo a mão para me tocar o rosto.” Eu fechei os olhos enquanto sentia sua mão em meu rosto, eu conseguia ouvir sua pulsação através de seus veias e seu cheiro quase me entorpecia, nunca tinha sentido algo como aquilo, nenhuma das outras moças tinham me feito sentir aquilo, era algo muito forte e que acelerava ainda mais os meus batimentos. “– Senti tua falta Willian. – Disse ela com lágrimas nos olhos, eu as vi quando abri os meus movido pelo que ela tinha dito. – Estavas com outro ainda a pouco.” Hoje consigo confessar que havia ciúme naquela minha frase. “– Não podia esperar-te, não havia noticias tuas, teus pais não sabem de ti. – Disse ela. Ela sorriu para mim, como quem acabara de se lembrar de algo, tirou a mão do meu rosto e inclinou-se para o lado, para abrir a gaveta de seu criado mudo, foi ali que ela se feriu, em uma agulha dentro da gaveta. Amanda reteve a mão imediatamente e eu podia sentir ainda mais forte aquele cheiro, principalmente enquanto ela olhava para o dedo ferido. Estendi a minha mão tentando ser o mais delicado que conseguia diante de como eu estava me sentindo... eu parecia que ia enlouquecer, estava quase me transformando... segurei em sua mão ferida trazendo-a para mim, olhei-a e perguntei: “– Posso?” Foi a única palavra que consegui expressar e ela afirmou com um gesto de cabeça. Estávamos sozinhos em seu quarto, todos já dormiam, eu sabia disso e ela desconfiava. 8
  • 9. Pus seu dedo ferido em minha boca e suguei o liquido vermelho vivo que escorria por um pequeno ferimento. A minha vontade era sobressaltar meus dentes e rasgar ainda mais a sua carne porque nunca senti nada como aquilo, mas não o fiz. Por fim beijei a ponta de seu dedo e abri os olhos para olhá-la, eu tinha certeza que ela estaria me achando um louco, mas me surpreendi, ela estava de olhos fechados e, pelo som e pelo movimento de seu tórax eu sabia que respirava tão ofegante quanto eu. Ela me olhou e eu já estava ao lado da janela, estava pronto para ir embora quando ela me perguntou: – Já vás partir? – Preciso ir. – Quando te verei novamente? – Perguntou-me com os olhos preocupados. Eu voltei a me aproximar dela, olhei seu rosto por completo, beijei seus lábios e disse: – Creias em mim, não me queiras ver nunca mais, pois se isto acontecer certamente algo de seu desagrado acontecerá. – Nem eu conseguia acreditar no que eu estava fazendo. – Lembre-se de mim pelo que conhecias e não pelo que vistes hoje. – Pedi-lhe.” Isso aconteceu a pouco mais de cem anos atrás, a mais ou menos trinta e seis mil e quinhentos dias atrás... ela tinha vinte anos e, naquele tempo, as pessoas não costumavam viver muitos e muitos anos... sim, ela morreu, não por minhas mãos, mas morreu... eu sabia que isso iria acontecer, mas sabia que era melhor para ela, por isso me afundei nos braços de diversas outras moças, tirei a vida de todas, nunca transformei nenhuma delas. Minha vida era muito fácil, não precisava trabalhar, eu adquiria o dinheiro através de todas as minhas vitimas, afinal de contas nenhuma delas iria precisar mais de suas jóias e eu pouco me importava com suas famílias, eles estavam vivos... ainda... poderiam conquistar o que quisessem, eu precisava manter as aparências, ter uma casa, precisava ter renda, então abri um negócio próprio, reuni bastante dinheiro e depois de alguns anos deixei os humanos mantendo o meu negócio, eles trabalhavam para mim, meus 9
  • 10. representantes queriam ser como eu e eu os usava com este propósito, como eu não podia me expor, eles o faziam para mim em troca da transformação, depois de alguns anos eu apenas via os números em minhas contas, daí por diante não precisava me preocupar com muita coisa, precisava apenas trocar meu nome, como se a empresa passasse para herdeiros, criei óbitos falsos, tudo para que ninguém desconfiasse, mas dificilmente desconfiariam porque praticamente nenhum de meus empregados conheciam o meu rosto. Foi assim que eu soube, pois no inicio eu usava do meu nome verdadeiro em minha empresa, por isso não era tão difícil de me achar, e de fato me acharam alguns anos depois quando comecei a dizer que eu era o único neto de mim mesmo, usava meu nome como Willian III, foi nesse tempo que uma pessoa surgiu em minha empresa dizendo que precisava falar com meu avô, era um rapaz de boa aparência e eu lhe disse que seria muito difícil isso, mas que se ele quisesse me transmitir o recado eu o passaria de todo bom grado, foi quando ele me disse: “– Minha avó, Amanda, está muito doente e prestes a falecer, pediu-me para chamar seu avô, eles se conheciam em sua juventude e ela não gostaria de morrer antes de lhe rever.” Havia mais ou menos cinqüenta anos que eu não a via e aquela frase pareceu arder em meu peito, em resposta disse ao rapaz que iria averiguar as possibilidades da presença de meu avô, mas que se ele não fosse, eu iria em seu lugar, ele me forneceu seu endereço e foi embora, me deixou em meio aos meus pensamentos e lembranças, quase pude sentir o sabor do sangue de Amanda, mas tudo por fruto da minha imaginação, saber que estava prestes a morrer mexeu com a minha mente de tal maneira que eu mesmo não compreendia. Naquele tempo eu não andava sozinho, a mulher que tinha me transformado era minha parceira, foi com ela que perdi minha virgindade, durante a minha busca por Amanda eu me relacionei com ela, eu estava completamente atordoado, aquela falsa sensação de 10
  • 11. liberdade me permitia fazer o que eu quisesse, por isso prefiro não dizer com detalhes tudo que fiz em questões de luxúria, fornicação e assassinatos, meus pecados eram inúmeros, coisas das quais nunca pensei que seria capaz de praticar, ainda mais para mim que era um rapaz religioso, mas é isso que o vírus nos causa, ele nos anestesia e nos faz pensar que somos livres para voar, então vamos em busca do mundo para tentar preencher o buraco que se abriu em nossas almas... tudo ilusão... pelo menos é o que percebo hoje. Fiquei uns dois dias decidindo o que iria fazer porque, se ela me visse, sem dúvida saberia que há algo errado, permaneço com a mesma aparência de cinqüenta anos atrás e não existem netos tão idênticos aos seus avôs como eu seria de mim mesmo, por outro lado comecei a pensar numa forma de evitar sua morte, sabia que iria vê-la enrugada e sabia também que se eu a transformasse ela voltaria a ter a aparecia de quando tinha seus vinte anos, era isso que o vírus fazia, todos nós temos a aparência de jovens de vinte, ou vinte e poucos anos, por mais que sejamos transformados na velhice, nosso corpo retorna a forma e, se formos transformados na infância, nosso corpo avança até alcançar essa idade... pra mim, que era religioso, parece tudo obra do inimigo, me faz lembrar de uma passagem onde diz que os jovens são escolhidos por serem fortes... realmente é assim, até nosso vírus nos transforma em jovens e nossa força é incomparável porque ele também fortalece toda a nossa estrutura... mas como não sou cientista não vou saber explicar isso, só sei porque foi o que me ensinaram. Eu me olhei no espelho enquanto me arrumava para ir vê-la e foi quando eu me percebi, foi quando eu lembrei do meu reflexo pela primeira vez, foi ali que percebi como eu estava pálido e que a cor dos meus olhos não eram mais as mesmas, meu cabelo parecia mais liso do que antes e na época ele beirava meu ombro, não em um corte reto, mas os fios mais longos chegavam ao fim da minha nuca... levei flores, meu coração palpitava como a ultima vez, ninguém soube que eu fui até lá, consegui despistar minha 11
  • 12. companheira... fui bem recebido pelo mesmo rapaz, todos naquela casa parecia tomados por uma grande tristeza. Eu entrei no quarto onde ela estava, era o quarto dela pelo que o rapaz me disse... meu coração martelava dentro de mim, ela estava pior do que eu tinha imaginado... me deixaram sozinho com ela, fecharam a porta e eu me aproximei... ela parecia estar dormindo quando eu me sentei como na ultima vez que a vi, mas desta vez havia mais iluminação... Amanda abriu os olhos e me olhou... era ela sim, por baixo daquela aparência envelhecida e frágil pela doença ainda era ela naqueles olhos e eu não sei porque, mas isso fez arder meu peito. “– Eu sabia o que tinha acontecido contigo.” Disse ela tocando-me no rosto como da outra vez... era como vê-la naquele dia e não em sua aparência atual... eu abaixei os olhos e um pouco da cabeça, foi automático, era como se eu lamentasse... eu realmente lamentava... “– Tu tinhas vindo para me matar naquela noite, não foi por isso que estivestes em minha casa?” Eu a olhei e sentia meus olhos arderem, estavam começando a encher d’água, havia algo em minha garganta me incomodando... a anos não me sentia daquela forma... a anos não me sentia tão humano como naquele momento... eu apenas confirmei com a cabeça enquanto fechava os olhos e permitia que as lágrimas escorressem. “– Quer saber porque eu ainda lhe amo como sempre amei?” Minha ilusão me fazia vê-la em sua forma juvenil, como se o tempo não tivesse passado, até porque eu não o havia percebido, para mim ele não havia passado... quando você pode viver por tempo indeterminado o tempo não importa mais, ele não pode mais te vencer, então você simplesmente o ignora, é como se ele não existisse. Eu afirmei querer saber... eu realmente queria saber... eu precisava saber. 12
  • 13. “– Porque naquela noite tu fostes embora contrariando a sua própria vontade... eu pude ver isso em seus olhos... olhos que não eram mais como antes.” Soltei o ar que estava preso em meus pulmões, mas a ardência ainda não desaparecia... eu a olhei e perguntei: “– Se quiseres posso tornar-te como eu.” Ela sorriu para mim e disse: “– Já vivi o bastante. – Poderias viver para sempre. – O que dá sentido a vida não é a vida, e sim que um dia ela irá acabar... depois de você já ter vivido mais do que poderia, depois de você ter visto muito mais do que a maioria das pessoas que te rodeiam já viram, depois que você já viu tantas e tantas pessoas morrerem, depois de tudo isso o que te restará? É uma vida sem sentido de viver... eu vivi, casei-me com um bom homem, dei a luz aos meus filhos, que por sua vez tiveram os seus e hoje estou aqui, morrerei feliz.” Eu entreguei a ela as flores que eu havia levado... eu estava tão deprimido que não tinha disposição para nada, nem senti sede por estar com uma humana, eu podia ouvir seus batimentos cardíacos, mas aquilo não me excitava mais como da ultima vez, eu queria apenas morrer... era estranho sentir aquilo, por anos me senti satisfeito pela idéia de nunca morrer de forma natural... mesmo que isso não seja uma total certeza... agora vendo-a daquela forma a única coisa que gostaria era de estar morto... beijei-lhe a testa e me retirei... aquela foi a primeira noite em que passei horas sobre esse prédio residencial. Sentei-me na beira do alto do prédio, o céu estava limpo e, por isso, eu podia ver a lua... ali eu chorei, mais uma vez depois de anos eu estava chorando e sentindo meu peito arder e queimar... eu já havia sentido o sol me queimar antes daquela noite, mas nem mesmo o sol conseguiu me proporcional a mesma sensação, a mesma queimação, sem dúvida aquele momento era pior do que estar sob a luz do sol... eu solucei em meio as 13
  • 14. lágrimas e novamente tudo que desejava era estar morto, então olhei para baixo, eram dez andares o que me afastava do chão firme... foi a primeira vez que experimentei aquilo... eu me joguei de braços e pernas abertas, como quem salta de pára-quedas... meu corpo chegou ao chão como se pesasse toneladas, cheguei a abriu um buraco no chão. Eu abri os olhos e respirei fundo... tudo que havia se quebrado já estava completamente sarado em poucos segundos... senti a dor do impacto, mas estava inteiro logo depois... dali eu saí para viver minha vida sem vida, viver por viver como disse Amanda e, de forma inevitável, todas as correntes me traziam para cá novamente, todas me traziam para o dia de hoje sobre este mesmo prédio diante do sol que começava a surgir... cheguei a pular de grandes alturas novamente em fugas que não vale a pena mencionar, mas aprendia a canalizar meu vírus nas partes certas do momento do impacto, o que me fazia não sentir mais dor e nem quebrar nada de meu corpo. Analisando melhor as circunstâncias não é por simples arrependimento que estou aqui, não é somente por isso que estou prestes a me desfazer, existem outras razões que me trouxeram aqui, afinal de contas eu vivi pouco mais de cinqüenta anos depois de minha ultima visita a Amanda... eu vivi e vivi do mesmo jeito que havia vivido antes, mesmo que não fosse tão igual quanto eu gostaria, então acho que não posso encerrar minha existência sem descrever meus últimos acontecimentos, estes doeram mais do que aqueles porque meu amor por Amanda era platônico, mas o que senti e sinto hoje foi retribuído e de certa forma, vivido... seu nome é Alice. 14