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ASSIM FALAVA HELIODORO BAPTISTA

    “Ó grande astro! que felicidade poderia ser a tua se não tivesses aqueles a quem iluminas?”
                                                                                    F. Nietzsche
                                                                  In “Assim Falava Zarathustra”

Assim falava HB:
Nasço do túmulo de sangue áfrico tingido de colono. Vozes do Zambeze. Vi a pátria parir-se por
entre camuflagem pingo de chuva e poesia de combate. Não fui à Tanzânia ou Gorongoza e
disparei como qualquer mortal. Gonhame meu berço como o leito do Chiveve trespassando o
púbis esburacado duma Beira que vi parir monstros sobre os esbeltos seios duma corja
prostituta, lá na boite Kanimambo. Maputo?

Assim falava HB, era por cima de toda a folha ou por cima duma nórdica, ingénua, segundo ele,
em decúbito dorsal, pronta para fornicar e ser fornicada depois que macarturamente em
flashes de Nikon uma Thandy fotografava o seu coração em retratos de amor. Isso sim era o
amor inconfessável no café da esquina ou no retrato da introspecção. Tantos nomes que não há
para dizer o silêncio, este que depois dobrei os joelhos cantando, ah cantando ofício cantante!
… porque Moçambique na gonorreia da marrabenta canta quando o povo dança! Chamo-os
como cães porque assim me fiz noticiando ou exilando-me na Thandy Aires de Ornelas nas
ruínas da vergonha. “…a ignorância dos caga-milhões é mais terrível do que a sida”, lia-se
legivelmente no seu rosto. Panfletos manifestos meus senhores, eram sermões! Porque o
sangue pecaminoso de Adão e Eva crescia a meus olhos com nações ricas sustentando a horda
de piolhos desta prostituta suja, asquerosa. Moçambique meu berço, onde teus filhos buscarão
sangue de eternas gerações para liquidar a dívida externa!

Assim falava HB, olhos tingindos de soruma e da vida, feito abelha agonizando à chuva ou
escaravelho agonizando em bosta de vaca, conspurcado em cada poema, retalhos do seu
caixão, sua lápide mártir. Antes de me conhecer, falava pela voz dum T.S. Eliot The Shadows of
Rainbow para outros amigos de rostos ocultos: Do not think of the fruit of action. Puro
pessimismo. E tem piada que depois falou-me para ler T.S. Eliot e poesia asiática e todos os
livros embolorados em nódoas de café e cinzas de tabaco, olhos negros me fitando feitos faróis
bifurcando a calva amarelada (rio-me… houve tempos que estatelava os raros fios de cabelo da
direita para cobrir a calva, tinha equipa de futebol de salão com o nome da sua outra filha e,
diante da caçoada dos atletas, as vezes exagerava no Vicks, nesse tempo não éramos amigos e
nem conhecíamos o Nelson que lhe saciou a fome quando o mundo lhe mostrava as partes
mais feias do corpo e tão pouco a Maria do Céu da Brithol que não caiu do céu, germinou no
sorriso e fermentou-se em outra causa de amor secreto) e assim me fitando discipulava como
ao Adelino (ah… sim, até aqui estava tudo entre parênteses!), podia levantar-me às 3 da manhã
com a urgência de um professor com dias meticulosamente contados com segundos e tudo. Há
quem escolha um dia para morrer ou a morte o antecipe em contagem decrescente. Está tudo
nestes livros, leia os meus olhos e a caligrafia do meu sangue, assim falava HB.

Assim falava em constituir uma sociedade não comercial que fosse uma escolha, ou que fosse
uma escola. Alguns idiotas deveriam ser sacrificados, com bolsos apenas porque não era ele,
budista assumido, de derramar qualquer sangue como o do Cardoso ou Siba Siba, ou mesmo o
juiz numa avenida na Matola cidade. Assim falava HB não ser desse tipo.

Ergo monólitos com meus pés próprios e pulsos e olhos de lince. Não me rendo à riqueza desde
que possa gritar na porta dos gabinetes e entrar para falar com quem quiser. Assim falava HB
sem falar o que não sabia: sua fortuna era o seu caixão sem o gozo dum reconhecimento
vitaliciamente diferido, esses retalhos que “podem cheirar a babugem, a vagina, a esperma, a
rosas, a caju, a lanho, a jasmin – não a revolucionária – ao bolor das paredes das cadeias
desumanas, a vida. Cheiram a ruínas (…) e também a sangue, a pólvora, a corpos podres mas
iluminados pela luz eterna de quem deseja justiça.”

Assim falava HB, às vezes com uma frontalidade que não ouso exprimir em clone, algo como
vender e embrutecer com escolas sem culto ao livro e engenhosamente requintadas de
estatísticas. Moçambique todo vive disso! Era inevitável sorrir diante das imagens que me eram
sugeridas. Efectivamente as vídeo cassetes substituídas pelos DVDs parecem livros,
esteticamente, e o aluno conhece Da Vinci no Playstation e o primeiro sexo aonde?
Efectivamente dava para rir soltando as pregas. Mas seria possível assim do zero edificar o
resgate de toda uma geração estrangulada de débitos à taxa de juros ascendente?

Não! Assim falava HB, tu és a semente e eu o estrume. Falava para milhares de ouvidos jovens
espalhados no seu funeral antecipado, ele que matava o poema para salvar a poesia. Sou tido
por louco porque não me deixo vergar. Não me deixo merecer de braços em X uma canção
assim. Canção rima com nação! Tenho os meus excessos sim, e daí? Quem não os tem? A
minha própria filha? Como seria capaz se não falo de mais ninguém e não penso em mais
ninguém na míngua da moeda para comprar um bolinho, um rebuçado ou bolacha só para ti
Palmira, porque já nem pão de família para o meu Buda que optei por religião, nem isso a mais
mísera calcinha consigo. Como seria possível te amando? (não falou com esta palavra porque
não se assumia no amor). Tenho os meus excessos sim, e acessos de loucura também. Não é
louco passar fome? É louco sim esse manifesto que com olhos de lince vi em Inhaminga – e
começava a descrever o cenário assombroso de crianças esborrachadas em pilões e toda a
transparência do horror inimaginável. As vezes experimentava perguntar com os mesmos olhos
brilhantes, com o médio e o anelar estrangulando o Pall Mall vermelho aceso, onde andariam
os retratos das Nikons sofisticadas que iguais aos faróis fulminavam em profanação os túmulos
sagrados dos antepassados de Inhaminga? E depois disse que Inhaminga podia ser qualquer
lugar. Tremi. A verdadeira história não carece de ser escrita, é o contrário.

Assim falava HB. Pela justiça deixo-me merecer três mortes e uma quarta adiada. Sei usar
máscaras de capim ou do jardim urbano onde ouvidos de ouvir me ouvem o silêncio das
palavras halterofilistas do poema. Mas não há espaço para covardias. Há quem me veja uma
sombra sem instinto social, mas diz-me “Poeta” (é assim que me chamava), diz-me das nossas
boémias nocturnas escrevendo poesia sobre o balcão do Monte Verde ante o olhar apetitoso
da mulata do mesmo balcão, diz-me das noites da marginal mirando o mar com os neurónios
vibrando segredos que a multidão desconhece, do teu café nocturno e cigarros sem cinzeiro ao
som de Madredeus ou Mozart, diz-me dos conselhos que tirei da própria carne, talvez nunca
dados aos meus filhos (é que nisso de filhos a compensação é ver-se neles o espelho!), dos
truques culinários de fazer babar, diz-me porra! Eu sorria ignorando o sentimento que me vinha
da alma, era um turbilhão. Quando se dizia o gajo mais paternalista que conheço não mentia.
Eu sei que estás teso, mas tens que viver! Aqui ele me afugentava da depressão experimentada
ao cúmulo do cárcere próprio em mais de seis meses e punha-me a viver com os míseros
trocados que depois me segredava: há um gajo que pensa que esta merda é salário! Tudo
acabava aí no ápice duma cerveja e meia dúzia de cafés do Chin Won, sem esquecer a merenda
para a Palmira e para o Buda. Existe gajo mais paternalista? A tão óbvia resposta era escusado
responder. O homem chamava a coisa pelo nome e isso feria o sensível. Acontecia-me virar
serpente e esconder-me na toca sem hora para o bote, evitava-o nos acessos excessos se não
quisesse que ejaculasse na minha cara como o fazia a muitos ofendidos que o mataram. Há
segredos que não dá para ouvir e há homens talhados para reconhecer a verdade da mentira.

Assim falava HB.

Como cães dou-vos 24 horas e levem as vossas mordomias em bagagem cabível no porão do
avião (como se isso fosse suficiente) e realmente plantareis com a partida a semente da
ignorância. Chuva de cinza sobre o céu da Mozal, eis que será o vosso próximo traje de gala, em
projectos participados pelo nosso sangue, pelo sangue do povo.

(Assim falava HB e as vezes não o compreendia pela complexidade do discurso. Era jornalista
depois de ser poeta. A palavra era a sua espingarda e a verdade o troféu, essa verdade ao preço
da sua riqueza, ou ao preço da sua pobreza que também rima. É que também fico confuso
quando penso no modo como o Heliodoro falava com o seu chapeuzinho preto bordado com a
palavra “Quê?” como se sempre estivesse a questionar qualquer coisa).

Sabíeis que baloiçando sobre naus a vela vinha em todo o continente colonial com o fim último
de dividir para reinar. E tudo ao fim saiu como planejado: aboliu-se a escravatura (alguma
liberdade custou algum sangue) que era coisa de brutos e manteve-se a divisão para reinar com
tácticas mais sofisticadas: os chefes tribais que vendiam o seu povo a troco de missangas ainda
existem hoje e a divisão geográfica que hoje conhecemos foi estrategicamente elaborada por
quem não é dono do pedaço. África dividida aos retalhos de irmão ferindo de morte outro
irmão e pedra a pedra lápide delapidada com o petróleo, diamantes e pérolas que correm pelas
tuas veias África, a minha recusa é essa de te deixares corromper egoisticamente e sacrificando
os peões aos milhões, esses que cantam em coro – Moçambique Song, grávida por parir!

Assim falava HB, vigoroso em seu leito de morte dum longo suicídio, bailando, cantando,
agonizando sufocado até o coração parar. Sempre soube amar e cantar o amor sem o viver,
qual filho legítimo desta mãe que se fez madrasta. O dia do trabalhador o escolheu como sina
do seu labor.

Se um deus ousar morrer-me, cantarei. Eternamente. Na mente e longe da mentira. Falou e no
minuto seguinte silenciou-se da fabulária macaqueação de vida, na opção da justiça. Era sexta
feira primeira de Maio e o relógio marcava vinte e duas horas e vinte e dois minutos.



                                    Por: A. Simon Madure

                                           Maputo

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Assim falava Heliodoro Baptista

  • 1. ASSIM FALAVA HELIODORO BAPTISTA “Ó grande astro! que felicidade poderia ser a tua se não tivesses aqueles a quem iluminas?” F. Nietzsche In “Assim Falava Zarathustra” Assim falava HB: Nasço do túmulo de sangue áfrico tingido de colono. Vozes do Zambeze. Vi a pátria parir-se por entre camuflagem pingo de chuva e poesia de combate. Não fui à Tanzânia ou Gorongoza e disparei como qualquer mortal. Gonhame meu berço como o leito do Chiveve trespassando o púbis esburacado duma Beira que vi parir monstros sobre os esbeltos seios duma corja prostituta, lá na boite Kanimambo. Maputo? Assim falava HB, era por cima de toda a folha ou por cima duma nórdica, ingénua, segundo ele, em decúbito dorsal, pronta para fornicar e ser fornicada depois que macarturamente em flashes de Nikon uma Thandy fotografava o seu coração em retratos de amor. Isso sim era o amor inconfessável no café da esquina ou no retrato da introspecção. Tantos nomes que não há para dizer o silêncio, este que depois dobrei os joelhos cantando, ah cantando ofício cantante! … porque Moçambique na gonorreia da marrabenta canta quando o povo dança! Chamo-os como cães porque assim me fiz noticiando ou exilando-me na Thandy Aires de Ornelas nas ruínas da vergonha. “…a ignorância dos caga-milhões é mais terrível do que a sida”, lia-se legivelmente no seu rosto. Panfletos manifestos meus senhores, eram sermões! Porque o sangue pecaminoso de Adão e Eva crescia a meus olhos com nações ricas sustentando a horda de piolhos desta prostituta suja, asquerosa. Moçambique meu berço, onde teus filhos buscarão sangue de eternas gerações para liquidar a dívida externa! Assim falava HB, olhos tingindos de soruma e da vida, feito abelha agonizando à chuva ou escaravelho agonizando em bosta de vaca, conspurcado em cada poema, retalhos do seu caixão, sua lápide mártir. Antes de me conhecer, falava pela voz dum T.S. Eliot The Shadows of Rainbow para outros amigos de rostos ocultos: Do not think of the fruit of action. Puro pessimismo. E tem piada que depois falou-me para ler T.S. Eliot e poesia asiática e todos os livros embolorados em nódoas de café e cinzas de tabaco, olhos negros me fitando feitos faróis bifurcando a calva amarelada (rio-me… houve tempos que estatelava os raros fios de cabelo da direita para cobrir a calva, tinha equipa de futebol de salão com o nome da sua outra filha e, diante da caçoada dos atletas, as vezes exagerava no Vicks, nesse tempo não éramos amigos e nem conhecíamos o Nelson que lhe saciou a fome quando o mundo lhe mostrava as partes mais feias do corpo e tão pouco a Maria do Céu da Brithol que não caiu do céu, germinou no sorriso e fermentou-se em outra causa de amor secreto) e assim me fitando discipulava como
  • 2. ao Adelino (ah… sim, até aqui estava tudo entre parênteses!), podia levantar-me às 3 da manhã com a urgência de um professor com dias meticulosamente contados com segundos e tudo. Há quem escolha um dia para morrer ou a morte o antecipe em contagem decrescente. Está tudo nestes livros, leia os meus olhos e a caligrafia do meu sangue, assim falava HB. Assim falava em constituir uma sociedade não comercial que fosse uma escolha, ou que fosse uma escola. Alguns idiotas deveriam ser sacrificados, com bolsos apenas porque não era ele, budista assumido, de derramar qualquer sangue como o do Cardoso ou Siba Siba, ou mesmo o juiz numa avenida na Matola cidade. Assim falava HB não ser desse tipo. Ergo monólitos com meus pés próprios e pulsos e olhos de lince. Não me rendo à riqueza desde que possa gritar na porta dos gabinetes e entrar para falar com quem quiser. Assim falava HB sem falar o que não sabia: sua fortuna era o seu caixão sem o gozo dum reconhecimento vitaliciamente diferido, esses retalhos que “podem cheirar a babugem, a vagina, a esperma, a rosas, a caju, a lanho, a jasmin – não a revolucionária – ao bolor das paredes das cadeias desumanas, a vida. Cheiram a ruínas (…) e também a sangue, a pólvora, a corpos podres mas iluminados pela luz eterna de quem deseja justiça.” Assim falava HB, às vezes com uma frontalidade que não ouso exprimir em clone, algo como vender e embrutecer com escolas sem culto ao livro e engenhosamente requintadas de estatísticas. Moçambique todo vive disso! Era inevitável sorrir diante das imagens que me eram sugeridas. Efectivamente as vídeo cassetes substituídas pelos DVDs parecem livros, esteticamente, e o aluno conhece Da Vinci no Playstation e o primeiro sexo aonde? Efectivamente dava para rir soltando as pregas. Mas seria possível assim do zero edificar o resgate de toda uma geração estrangulada de débitos à taxa de juros ascendente? Não! Assim falava HB, tu és a semente e eu o estrume. Falava para milhares de ouvidos jovens espalhados no seu funeral antecipado, ele que matava o poema para salvar a poesia. Sou tido por louco porque não me deixo vergar. Não me deixo merecer de braços em X uma canção assim. Canção rima com nação! Tenho os meus excessos sim, e daí? Quem não os tem? A minha própria filha? Como seria capaz se não falo de mais ninguém e não penso em mais ninguém na míngua da moeda para comprar um bolinho, um rebuçado ou bolacha só para ti Palmira, porque já nem pão de família para o meu Buda que optei por religião, nem isso a mais mísera calcinha consigo. Como seria possível te amando? (não falou com esta palavra porque não se assumia no amor). Tenho os meus excessos sim, e acessos de loucura também. Não é louco passar fome? É louco sim esse manifesto que com olhos de lince vi em Inhaminga – e começava a descrever o cenário assombroso de crianças esborrachadas em pilões e toda a transparência do horror inimaginável. As vezes experimentava perguntar com os mesmos olhos brilhantes, com o médio e o anelar estrangulando o Pall Mall vermelho aceso, onde andariam os retratos das Nikons sofisticadas que iguais aos faróis fulminavam em profanação os túmulos
  • 3. sagrados dos antepassados de Inhaminga? E depois disse que Inhaminga podia ser qualquer lugar. Tremi. A verdadeira história não carece de ser escrita, é o contrário. Assim falava HB. Pela justiça deixo-me merecer três mortes e uma quarta adiada. Sei usar máscaras de capim ou do jardim urbano onde ouvidos de ouvir me ouvem o silêncio das palavras halterofilistas do poema. Mas não há espaço para covardias. Há quem me veja uma sombra sem instinto social, mas diz-me “Poeta” (é assim que me chamava), diz-me das nossas boémias nocturnas escrevendo poesia sobre o balcão do Monte Verde ante o olhar apetitoso da mulata do mesmo balcão, diz-me das noites da marginal mirando o mar com os neurónios vibrando segredos que a multidão desconhece, do teu café nocturno e cigarros sem cinzeiro ao som de Madredeus ou Mozart, diz-me dos conselhos que tirei da própria carne, talvez nunca dados aos meus filhos (é que nisso de filhos a compensação é ver-se neles o espelho!), dos truques culinários de fazer babar, diz-me porra! Eu sorria ignorando o sentimento que me vinha da alma, era um turbilhão. Quando se dizia o gajo mais paternalista que conheço não mentia. Eu sei que estás teso, mas tens que viver! Aqui ele me afugentava da depressão experimentada ao cúmulo do cárcere próprio em mais de seis meses e punha-me a viver com os míseros trocados que depois me segredava: há um gajo que pensa que esta merda é salário! Tudo acabava aí no ápice duma cerveja e meia dúzia de cafés do Chin Won, sem esquecer a merenda para a Palmira e para o Buda. Existe gajo mais paternalista? A tão óbvia resposta era escusado responder. O homem chamava a coisa pelo nome e isso feria o sensível. Acontecia-me virar serpente e esconder-me na toca sem hora para o bote, evitava-o nos acessos excessos se não quisesse que ejaculasse na minha cara como o fazia a muitos ofendidos que o mataram. Há segredos que não dá para ouvir e há homens talhados para reconhecer a verdade da mentira. Assim falava HB. Como cães dou-vos 24 horas e levem as vossas mordomias em bagagem cabível no porão do avião (como se isso fosse suficiente) e realmente plantareis com a partida a semente da ignorância. Chuva de cinza sobre o céu da Mozal, eis que será o vosso próximo traje de gala, em projectos participados pelo nosso sangue, pelo sangue do povo. (Assim falava HB e as vezes não o compreendia pela complexidade do discurso. Era jornalista depois de ser poeta. A palavra era a sua espingarda e a verdade o troféu, essa verdade ao preço da sua riqueza, ou ao preço da sua pobreza que também rima. É que também fico confuso quando penso no modo como o Heliodoro falava com o seu chapeuzinho preto bordado com a palavra “Quê?” como se sempre estivesse a questionar qualquer coisa). Sabíeis que baloiçando sobre naus a vela vinha em todo o continente colonial com o fim último de dividir para reinar. E tudo ao fim saiu como planejado: aboliu-se a escravatura (alguma liberdade custou algum sangue) que era coisa de brutos e manteve-se a divisão para reinar com
  • 4. tácticas mais sofisticadas: os chefes tribais que vendiam o seu povo a troco de missangas ainda existem hoje e a divisão geográfica que hoje conhecemos foi estrategicamente elaborada por quem não é dono do pedaço. África dividida aos retalhos de irmão ferindo de morte outro irmão e pedra a pedra lápide delapidada com o petróleo, diamantes e pérolas que correm pelas tuas veias África, a minha recusa é essa de te deixares corromper egoisticamente e sacrificando os peões aos milhões, esses que cantam em coro – Moçambique Song, grávida por parir! Assim falava HB, vigoroso em seu leito de morte dum longo suicídio, bailando, cantando, agonizando sufocado até o coração parar. Sempre soube amar e cantar o amor sem o viver, qual filho legítimo desta mãe que se fez madrasta. O dia do trabalhador o escolheu como sina do seu labor. Se um deus ousar morrer-me, cantarei. Eternamente. Na mente e longe da mentira. Falou e no minuto seguinte silenciou-se da fabulária macaqueação de vida, na opção da justiça. Era sexta feira primeira de Maio e o relógio marcava vinte e duas horas e vinte e dois minutos. Por: A. Simon Madure Maputo