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Adélia Prado

                                          ANTOLOGIA


  Impressionista • Ensinamento • Dia • Objeto de Amar • Pranto Para Comover Jonathan • Parâmetro •
Poema Começado no Fim • Exausto • Explicação de Poesia sem Ninguém Pedir • Casamento • A Serenata •
  Com Licença Poética • Dona Doida • A Maçã no Escuro • Cantiga dos Pastores • Cacos Para um Vitral •
    Corridinho • Dolores • Moça na sua Cama • No Presépio • Os Componentes da Banda • Rodando




                                      IMPRESSIONISTA

                                       Uma ocasião,
                                 meu pai pintou a casa toda
                                  de alaranjado brilhante.
                           Por muito tempo moramos numa casa,
                                   como ele mesmo dizia,
                               constantemente amanhecendo.


                                          CASAMENTO

                                   Há mulheres que dizem:
                           Meu marido, se quiser pescar, pesque,
                                   mas que limpe os peixes.
                       Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
                         ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
                        É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
                       de vez em quando os cotovelos se esbarram,
                             ele fala coisas como "este foi difícil"
                              "prateou no ar dando rabanadas"
                                   e faz o gesto com a mão.
                       O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
                        atravessa a cozinha como um rio profundo.
                                Por fim, os peixes na travessa,
                                         vamos dormir.
                                  Coisas prateadas espocam:
                                     somos noivo e noiva.

                                        ENSINAMENTO

                              Minha mãe achava estudo
                             a coisa mais fina do mundo.
                                         Não é.
                     A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
                       Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
                                   ela falou comigo:
                     "Coitado, até essa hora no serviço pesado".
              Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
                               Não me falou em amor.
                                 Essa palavra de luxo.
DIA

    As galinhas com susto abrem o bico
       e param daquele jeito imóvel
             - ia dizer imoral -
  as barbelas e as cristas envermelhadas,
   só as artérias palpitando no pescoço.
     Uma mulher espantada com sexo:
            mas gostando muito.


           OBJETO DE AMAR

       De tal ordem é e tão precioso
            o que devo dizer-lhes
          que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
                  cu é lindo!
   Fazei o que puderdes com esta dádiva.
          Quanto a mim dou graças
              pelo que agora sei
        e, mais que perdôo, eu amo.


  PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

     Os diamantes são indestrutíveis?
             Mais é meu amor.
             O mar é imenso?
            Meu amor é maior,
        mais belo sem ornamentos
        do que um campo de flores.
        Mais triste do que a morte,
           mais desesperançado
    do que a onda batendo no rochedo,
         mais tenaz que o rochedo.
     Ama e nem sabe mais o que ama.


              PARÂMETRO

         Deus é mais belo que eu.
             E não é jovem.
           Isto sim, é consolo.
         Poema Começado no Fim


       POEMA COMEÇADO NO FIM

        Um corpo quer outro corpo.
  Uma alma quer outra alma e seu corpo.
  Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
           parece que estou num filme.
        Se eu lhe dissesse você é estúpido
               ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
                       eu iria.
       As casas baixas, as pessoas pobres,
                 e o sol da tarde,
         imaginai o que era o sol da tarde
            sobre a nossa fragilidade.
               Vinha com Jonathan
          pela rua mais torta da cidade.
                O Caminho do Céu.


                  EXAUSTO

        Eu quero uma licença de dormir,
       perdão pra descansar horas a fio,
              sem ao menos sonhar
      a leve palha de um pequeno sonho.
           Quero o que antes da vida
       foi o sono profundo das espécies,
             a graça de um estado.
                   Semente.
             Muito mais que raízes.


EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

    Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
   mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
            atravessou minha vida,
             virou só sentimento.

                 (in Bagagem)

                 A SERENATA

       Uma noite de lua pálida e gerânios
       ele viria com boca e mão incríveis
             tocar flauta no jardim.

      Estou no começo do meu desespero
           e só vejo dois caminhos:
            ou viro doida ou santa.

            Eu que rejeito e exprobo
   o que não for natural como sangue e veias
     descubro que estou chorando todo dia,
            os cabelos entristecidos,
         a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
   de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
        A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
        - só a mulher entre as coisas envelhece.

    De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
           Como a fecharei, se não for santa?


                COM LICENÇA POÉTICA

               Quando nasci um anjo esbelto,
                desses que tocam trombeta,
              anunciou: vai carregar bandeira.
              Cargo muito pesado pra mulher,
             esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
           Não sou feia que não possa me casar,
              acho o Rio de Janeiro uma beleza
        e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
          Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
  Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
              Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
        Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
               Mulher é desdobrável. Eu sou.


                      DONA DOIDA

             Uma vez, quando eu era menina,
          choveu grosso, com trovoada e clarões,
              exatamente como chove agora.
             Quando se pôde abrir as janelas,
         as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
     Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
      trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
  A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
         com sombrinha infantil e coxas à mostra.
       Meus filhos me repudiaram envergonhados,
            meu marido ficou triste até a morte,
                eu fiquei doida no encalço.
                Só melhoro quando chove.


                  A MAÇÃ NO ESCURO

   Era um cômodo grande, talvez um armazém antigo,
   empilhado até o meio de seu comprimento e altura
        com sacas de cereais. Eu estava lá dentro,
          era escuro, estando as portas fechadas
como uma ilha de sombra em meio do dia aberto.
          De uma telha quebrada, ou de exígua janela,
                      vinha a notícia de luz.
     Eu balançava as pernas, em cima da pilha sentada,
            vivendo um cheiro como um rato o vive
                  no momento em que estaca.
    O grão dentro das sacas, as sacas dentro do cômodo,
             o cômodo dentro do dia dentro de mim
sobre as pilhas dentro da boca fechando-se de fera felicidade.
     Meu sexo, de modo doce, turgindo-se em sapiência,
                   pleno de si, mas com fome,
                  em forte poder contendo-se,
       iluminando sem chama a minha bacia andrógina.
         Eu era muito pequena, uma menina-crisálida.
  Até hoje sei quem me pensa com pensamento de homem:
                 a parte que em mim não pensa
    e vai da cintura aos pés reage em vagas excêntricas,
   vagas de doce quentura de um vulcão que fosse ameno,
                   me põe inocente e ofertada,
                   madura pra olfato e dentes,
                   em carne de amor, a fruta.


                CANTIGA DOS PASTORES


                     À meia noite no pasto,
                guardando nossas vaquinhas,
                   um grande clarão no céu
                  guiou-nos a esta lapinha.
                     Achamos este Menino
                       entre Maria e José,
                   um menino tão formoso,
                     precisa dizer quem é?
                   Seu nome santo é Jesus,
                 Filho de Deus muito amado,
                  em sua caminha de cocho
                    dormia bem sossegado.
                      Adoramos o Menino
                  nascido em tanta pobreza
                 e lhe oferecemos presentes
                    de nossa pobre riqueza:
                    a nossa manta de pele,
                      o nosso gorro de lã,
                   nossa faquinha amolada,
                    o nosso chá de hortelã.
                   Os anjos cantavam hinos
                   cheios de vivas e améns.
                   A alegria era tão grande
                  e nós cantamos também:
                    Que noite bonita é esta
                  em que a vida fica mansa,
                     em que tudo vira festa
e o mundo inteiro descansa?
                             Esta é uma noite encantada,
                                nunca assim aconteceu,
                               os galos todos saudando:
                                O Menino Jesus nasceu!


                             CACOS PARA UM VITRAL

No caderno de Glória: um romance é feito das sobras. A poesia é núcleo. Mas é preciso
paciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas,
enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos. Será este pensamento
vaidoso? Por certo. Quero ser um poeta extraordinário e desejo poder escrever um
teatro muito engraçado pra todo mundo rir até ficar irmão.

Glória decifrou o garrancho na nota de um cruzeiro: "Ontem fiz quinze anos e fui a
primeira vez na Figueirinha. Dei Cr$ 50,00 pra mulher ela ainda me deu troco. Não
tava ruim nem bom."

Juca entrou esfregando as mãos: — Tá um frio de matar velho! — Se quer capote, na
segunda prateleira da cozinha tem. Juca bebeu e saiu. Tivesse ou não, brigado com a
Naná, a cada dia ele bebia mais. Estará certo, pensou Glória, facilitar desse modo a
cachaça do Juca? Estarei sendo leviana? Estava.

Ritinha: — Mãe, se eu morrer cê chora? Glória: — Ih! Choro até secar.

Glória ouviu de relance os peões almoçando na obra: — Rico tinha que nascer tudo
morfético. — Tem rico legal, sô! — Tem não.

Ritinha chegando da escola: — Mãe, eu laía e a Fostina envinha. Ela envinha aqui? —
Que é isso? Existe o verbo lair e envir? — A senhora também fala assim. — Falo
mesmo. — Então... — Então nada. É porque eu gosto muito da minha filhinha e
quando a gente gosta, chateia um pouquinho.

Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde
pediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim.


— Dona Glória, eu fiquei incurvida. — O quê? — É, sobrou pra mim a obrigação de
catar neste quarteirão as esmolas pro Natal dos pobres. — Ah! — O apostolado, cuja
eu sou membra é que me incurviu. — Entra, Fostina. — Não, se eu delatar, atrasa pra
mim.

A placa indicava na estradinha de chão: Sítio do AU PURO. Alguém tinha consertado:
Sítio do AR PURO. Gabriel parou o carro e escreveu em baixo, sítio do AL PURO. No
lugar voava sem pressa uma linda borboleta amarela e preta.

Copiado por Gabriel, do sanitário da rodoviária: PEDE NÃO HORINAR NO VÁS.

Remexendo papéis, Glória achou uma notação com sua letra: "retalho de poesia dá
excelente prosa." Não se lembrava mais por que escrevera aquilo. "Retalho de poesia
dá excelente prosa, como retalho de hóstia dá excelente sopa", descobriu escrito mais
embaixo. Ainda: "Privada pública" é uma impropriedade. Empregada chama as amigas
invariavelmente de colegas. Deus é fiel, no entanto vacilo, amo com reservas, deixo
que pequenas nódoas confundam minha alegria. Quando serei evangelicamente
generosa, confiante como um menino para quem o Reino está preparado?"

Extraído do livro "Cacos Para Um Vitral", Editora Rocco, 1989.



                                    CORRIDINHO

                           O amor quer abraçar e não pode.
                                  A multidão em volta,
                               com seus olhos cediços,
                              põe caco de vidro no muro
                                  para o amor desistir.
                                 O amor usa o correio,
                                   o correio trapaceia,
                                   a carta não chega,
                         o amor fica sem saber se é ou não é.
                                 O amor pega o cavalo,
                                 desembarca do trem,
                                chega na porta cansado
                               de tanto caminhar a pé.
                                Fala a palavra açucena,
                                 pede água, bebe café,
                               dorme na sua presença,
                                 chupa bala de hortelã.
                            Tudo manha, truque, engenho:
                             é descuidar, o amor te pega,
                               te come, te molha todo.
                               Mas água o amor não é.

Texto extraído do livro "Poesia Reunida", Siciliano 1991.


                                       DOLORES

                                  Hoje me deu tristeza,
                                 sofri três tipos de medo
                             acrescido do fato irreversível:
                                  não sou mais jovem.
                               Discuti política, feminismo,
                            a pertinência da reforma penal,
                                mas ao fim dos assuntos
                       tirava do bolso meu caquinho de espelho
                             e enchia os olhos de lágrimas:
                                  não sou mais jovem.
                           As ciências não me deram socorro,
                            não tenho por definitivo consolo
                                  o respeito dos moços.
                                   Fui no Livro Sagrado
                        buscar perdão pra minha carne soberba
                                    e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
                      se tornou capaz de ter uma descendência..."
                           Se alguém me fixasse, insisti ainda,
                              num quadro, numa poesia...
                e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
            Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
                 das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
             sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
                 não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
             condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
                                e varrer a casa de manhã.
                           Uma tal esperança imploro a Deus.

Extraído do livro " - Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991.




                                 MOÇA NA SUA CAMA


                              Papai tosse, dando aviso de si,
                         vem examinar as tramelas, uma a uma.
                      A cumeeira da casa é de peroba do campo,
                    posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
                        tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
                    me contendo por usura, fazendo render o bom.
                          Se me tocar, desencadeio as chusmas,
                                  os peixinhos cardumes.
                       Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
                             por isso ela me diz com ciúmes:
                                 dorme logo, que é tarde.
                                   Sim, mamãe, já vou:
                        passear na praça em ninguém me ralhar.
                     Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
                           moa de moços no bar, violão e olhos
                                  difíceis de sair de mim.
                    Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
                     os moços marianos vão me esperar na matriz.
                                   O céu é aqui, mamãe.
                             Que bom não ser livro inspirado
                              o catecismo da doutrina cristã,
                               posso adiar meus escrúpulos
                                    e cavalgar no torpor
                                dos monsenhores podados.
                                   Posso sofrer amanhã
                                  a linda nódoa de vinho
                               das flores murchas no chão.
                             As fábricas têm os seus pátios,
                                 os muros tem seu atrás.
                              No quartel são gentis comigo.
                               Não quero chá, minha mãe,
                             quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
                               Da vida quero a paixão.
                             E quero escravos, sou lassa.
                            Com amor de zanga e momo
                             quero minha cama de catre,
                               o santo anjo do Senhor,
                                meu zeloso guardador.
                       Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.


Extraídos de "Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991.


                                    NO PRESÉPIO

Minha alma debate-se, tentada à tristeza e seus requintes. Meu pai morto não vai
repetir este ano: "Nada como um frango com arroz depois da missa". Minha irmã chora
porque seu marido é amarradinho com dinheiro e ela queria muito comprar uns
festões, uns presentinhos mais regalados, ô vida, e ele acha tudo bobagem e só quer
saber de encher a geladeira com mortadela e cerveja. Talvez, por isto, ou porque me
achei velha demais no espelho da loja, sinto dificuldades em ajudar Corália. Queria
muito chorar, deveras estou chorando, às vésperas do nascimento do Senhor, eu que
estremeço recém-nascidos. Estou achando o mundo triste, querendo pai e mãe, eu
também. Corália disse: você é tão criativa! E sou mesmo, poderia inventar agora um
sofrimento tão insuportável que murcharia tudo à minha volta. Mas não quero. E ainda
que quisesse, por destino, não posso. Este musgo entre as pedras não consente, é
muito verde. E esta areia. São bonitos demais! À meia-noite o Menino vem, à meia-
noite em ponto. Forro o cocho de palha. Ele vem, as coisas sabem, pois estão
pulsando, os carneiros de gesso, a estrela de purpurina, a lagoa feita de espelhos. Vou
fazer as guirlandas para Corália enfeitar sua loja. A radiação da "luz que não fere os
olhos" abre caminho entre escombros, avança imperceptível e os brutos, até os brutos,
banhados. Desfoco um pouco o olhar e lá está o halo, a expectante claridade, em
Corália, em Joana com seu marido e em mim, também em mim que escolho beber o
vinho da alegria, porque deste lugar, onde "o leão come a palha com o boi", esta
certeza me toma: "um menino pequeno nos conduzirá".

Texto extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001.


                           OS COMPONENTES DA BANDA

O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigado
bem o meu quintal, porque hoje me gritou: "do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a
senhora quer vender umas panelas pra ela." Me desgostou muito a forma de pedir, o
pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas
panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do
Osmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha
cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu
os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no
barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que
então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração
exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as
panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendo
que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor
panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pra
tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi uma
bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventei
um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que o
dono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos são
limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha
desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina
nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não.
Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração
pedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo
no que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra
Dona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho
pagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse
sem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me
pedir cinqüenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra
lá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim:
"Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar." Posso mesmo. Por que então, meu
Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas fico
dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras
bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateada
com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu vivia
acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agora
envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo mais
uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquer
sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos da
terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive.
Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: "do-o-
na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?" Este batido
durou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depois
foi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com
Dona Alvina. Bibia falava: "mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a
senhora e o pai muito bobos." Não podia aplaudir a menina, mas por seguro
matutamos: a voz das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa da
Alvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas
onde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão
da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais
edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar a
taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que ele
arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem se
lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele é
inteira.

Texto extraído do livro "Os componentes da banda", Editora Rocco, 1988


                                    RODANDO

Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior
do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde
rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato!
Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco,
que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro
rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado
com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de
uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto
também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde?
Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de
juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de
um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube
Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA!
Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúra
das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar
aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla
sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos,
lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de
palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando
gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados,
lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o
mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não,
quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom
do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava
raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava
muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar
a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava
macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao
menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando
sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta.
Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por
estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo
nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de
miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra,
os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre
caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de
pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira
da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado
daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio:
vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para
isto vale nascer.

Extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001

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Antologia (Adélia Prado)

  • 1. Adélia Prado ANTOLOGIA Impressionista • Ensinamento • Dia • Objeto de Amar • Pranto Para Comover Jonathan • Parâmetro • Poema Começado no Fim • Exausto • Explicação de Poesia sem Ninguém Pedir • Casamento • A Serenata • Com Licença Poética • Dona Doida • A Maçã no Escuro • Cantiga dos Pastores • Cacos Para um Vitral • Corridinho • Dolores • Moça na sua Cama • No Presépio • Os Componentes da Banda • Rodando IMPRESSIONISTA Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo. CASAMENTO Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas" e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva. ENSINAMENTO Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: "Coitado, até essa hora no serviço pesado". Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.
  • 2. DIA As galinhas com susto abrem o bico e param daquele jeito imóvel - ia dizer imoral - as barbelas e as cristas envermelhadas, só as artérias palpitando no pescoço. Uma mulher espantada com sexo: mas gostando muito. OBJETO DE AMAR De tal ordem é e tão precioso o que devo dizer-lhes que não posso guardá-lo sem que me oprima a sensação de um roubo: cu é lindo! Fazei o que puderdes com esta dádiva. Quanto a mim dou graças pelo que agora sei e, mais que perdôo, eu amo. PRANTO PARA COMOVER JONATHAN Os diamantes são indestrutíveis? Mais é meu amor. O mar é imenso? Meu amor é maior, mais belo sem ornamentos do que um campo de flores. Mais triste do que a morte, mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo, mais tenaz que o rochedo. Ama e nem sabe mais o que ama. PARÂMETRO Deus é mais belo que eu. E não é jovem. Isto sim, é consolo. Poema Começado no Fim POEMA COMEÇADO NO FIM Um corpo quer outro corpo. Uma alma quer outra alma e seu corpo. Este excesso de realidade me confunde.
  • 3. Jonathan falando: parece que estou num filme. Se eu lhe dissesse você é estúpido ele diria sou mesmo. Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear eu iria. As casas baixas, as pessoas pobres, e o sol da tarde, imaginai o que era o sol da tarde sobre a nossa fragilidade. Vinha com Jonathan pela rua mais torta da cidade. O Caminho do Céu. EXAUSTO Eu quero uma licença de dormir, perdão pra descansar horas a fio, sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho. Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espécies, a graça de um estado. Semente. Muito mais que raízes. EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento. (in Bagagem) A SERENATA Uma noite de lua pálida e gerânios ele viria com boca e mão incríveis tocar flauta no jardim. Estou no começo do meu desespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa. Eu que rejeito e exprobo o que não for natural como sangue e veias descubro que estou chorando todo dia, os cabelos entristecidos, a pele assaltada de indecisão.
  • 4. Quando ele vier, porque é certo que ele vem, de que modo vou chegar ao balcão sem juventude? A lua, os gerânios e ele serão os mesmos - só a mulher entre as coisas envelhece. De que modo vou abrir a janela, se não for doida? Como a fecharei, se não for santa? COM LICENÇA POÉTICA Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou feia que não possa me casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. DONA DOIDA Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso, com trovoada e clarões, exatamente como chove agora. Quando se pôde abrir as janelas, as poças tremiam com os últimos pingos. Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos. Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, trinta anos depois. Não encontrei minha mãe. A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha, com sombrinha infantil e coxas à mostra. Meus filhos me repudiaram envergonhados, meu marido ficou triste até a morte, eu fiquei doida no encalço. Só melhoro quando chove. A MAÇÃ NO ESCURO Era um cômodo grande, talvez um armazém antigo, empilhado até o meio de seu comprimento e altura com sacas de cereais. Eu estava lá dentro, era escuro, estando as portas fechadas
  • 5. como uma ilha de sombra em meio do dia aberto. De uma telha quebrada, ou de exígua janela, vinha a notícia de luz. Eu balançava as pernas, em cima da pilha sentada, vivendo um cheiro como um rato o vive no momento em que estaca. O grão dentro das sacas, as sacas dentro do cômodo, o cômodo dentro do dia dentro de mim sobre as pilhas dentro da boca fechando-se de fera felicidade. Meu sexo, de modo doce, turgindo-se em sapiência, pleno de si, mas com fome, em forte poder contendo-se, iluminando sem chama a minha bacia andrógina. Eu era muito pequena, uma menina-crisálida. Até hoje sei quem me pensa com pensamento de homem: a parte que em mim não pensa e vai da cintura aos pés reage em vagas excêntricas, vagas de doce quentura de um vulcão que fosse ameno, me põe inocente e ofertada, madura pra olfato e dentes, em carne de amor, a fruta. CANTIGA DOS PASTORES À meia noite no pasto, guardando nossas vaquinhas, um grande clarão no céu guiou-nos a esta lapinha. Achamos este Menino entre Maria e José, um menino tão formoso, precisa dizer quem é? Seu nome santo é Jesus, Filho de Deus muito amado, em sua caminha de cocho dormia bem sossegado. Adoramos o Menino nascido em tanta pobreza e lhe oferecemos presentes de nossa pobre riqueza: a nossa manta de pele, o nosso gorro de lã, nossa faquinha amolada, o nosso chá de hortelã. Os anjos cantavam hinos cheios de vivas e améns. A alegria era tão grande e nós cantamos também: Que noite bonita é esta em que a vida fica mansa, em que tudo vira festa
  • 6. e o mundo inteiro descansa? Esta é uma noite encantada, nunca assim aconteceu, os galos todos saudando: O Menino Jesus nasceu! CACOS PARA UM VITRAL No caderno de Glória: um romance é feito das sobras. A poesia é núcleo. Mas é preciso paciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas, enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos. Será este pensamento vaidoso? Por certo. Quero ser um poeta extraordinário e desejo poder escrever um teatro muito engraçado pra todo mundo rir até ficar irmão. Glória decifrou o garrancho na nota de um cruzeiro: "Ontem fiz quinze anos e fui a primeira vez na Figueirinha. Dei Cr$ 50,00 pra mulher ela ainda me deu troco. Não tava ruim nem bom." Juca entrou esfregando as mãos: — Tá um frio de matar velho! — Se quer capote, na segunda prateleira da cozinha tem. Juca bebeu e saiu. Tivesse ou não, brigado com a Naná, a cada dia ele bebia mais. Estará certo, pensou Glória, facilitar desse modo a cachaça do Juca? Estarei sendo leviana? Estava. Ritinha: — Mãe, se eu morrer cê chora? Glória: — Ih! Choro até secar. Glória ouviu de relance os peões almoçando na obra: — Rico tinha que nascer tudo morfético. — Tem rico legal, sô! — Tem não. Ritinha chegando da escola: — Mãe, eu laía e a Fostina envinha. Ela envinha aqui? — Que é isso? Existe o verbo lair e envir? — A senhora também fala assim. — Falo mesmo. — Então... — Então nada. É porque eu gosto muito da minha filhinha e quando a gente gosta, chateia um pouquinho. Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde pediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim. — Dona Glória, eu fiquei incurvida. — O quê? — É, sobrou pra mim a obrigação de catar neste quarteirão as esmolas pro Natal dos pobres. — Ah! — O apostolado, cuja eu sou membra é que me incurviu. — Entra, Fostina. — Não, se eu delatar, atrasa pra mim. A placa indicava na estradinha de chão: Sítio do AU PURO. Alguém tinha consertado: Sítio do AR PURO. Gabriel parou o carro e escreveu em baixo, sítio do AL PURO. No lugar voava sem pressa uma linda borboleta amarela e preta. Copiado por Gabriel, do sanitário da rodoviária: PEDE NÃO HORINAR NO VÁS. Remexendo papéis, Glória achou uma notação com sua letra: "retalho de poesia dá excelente prosa." Não se lembrava mais por que escrevera aquilo. "Retalho de poesia dá excelente prosa, como retalho de hóstia dá excelente sopa", descobriu escrito mais embaixo. Ainda: "Privada pública" é uma impropriedade. Empregada chama as amigas
  • 7. invariavelmente de colegas. Deus é fiel, no entanto vacilo, amo com reservas, deixo que pequenas nódoas confundam minha alegria. Quando serei evangelicamente generosa, confiante como um menino para quem o Reino está preparado?" Extraído do livro "Cacos Para Um Vitral", Editora Rocco, 1989. CORRIDINHO O amor quer abraçar e não pode. A multidão em volta, com seus olhos cediços, põe caco de vidro no muro para o amor desistir. O amor usa o correio, o correio trapaceia, a carta não chega, o amor fica sem saber se é ou não é. O amor pega o cavalo, desembarca do trem, chega na porta cansado de tanto caminhar a pé. Fala a palavra açucena, pede água, bebe café, dorme na sua presença, chupa bala de hortelã. Tudo manha, truque, engenho: é descuidar, o amor te pega, te come, te molha todo. Mas água o amor não é. Texto extraído do livro "Poesia Reunida", Siciliano 1991. DOLORES Hoje me deu tristeza, sofri três tipos de medo acrescido do fato irreversível: não sou mais jovem. Discuti política, feminismo, a pertinência da reforma penal, mas ao fim dos assuntos tirava do bolso meu caquinho de espelho e enchia os olhos de lágrimas: não sou mais jovem. As ciências não me deram socorro, não tenho por definitivo consolo o respeito dos moços. Fui no Livro Sagrado buscar perdão pra minha carne soberba e lá estava escrito:
  • 8. "Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter uma descendência..." Se alguém me fixasse, insisti ainda, num quadro, numa poesia... e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos... Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, das que jamais verão seu nome impresso e no entanto sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas não recusam casamento, antes acham sexo agradável, condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo e varrer a casa de manhã. Uma tal esperança imploro a Deus. Extraído do livro " - Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991. MOÇA NA SUA CAMA Papai tosse, dando aviso de si, vem examinar as tramelas, uma a uma. A cumeeira da casa é de peroba do campo, posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir, tomo a bênção e fujo atrás dos homens, me contendo por usura, fazendo render o bom. Se me tocar, desencadeio as chusmas, os peixinhos cardumes. Os topázios me ardem onde mamãe sabe, por isso ela me diz com ciúmes: dorme logo, que é tarde. Sim, mamãe, já vou: passear na praça em ninguém me ralhar. Adeus, que me cuido, vou campear nos becos, moa de moços no bar, violão e olhos difíceis de sair de mim. Quando esta nossa cidade ressonar em neblina, os moços marianos vão me esperar na matriz. O céu é aqui, mamãe. Que bom não ser livro inspirado o catecismo da doutrina cristã, posso adiar meus escrúpulos e cavalgar no torpor dos monsenhores podados. Posso sofrer amanhã a linda nódoa de vinho das flores murchas no chão. As fábricas têm os seus pátios, os muros tem seu atrás. No quartel são gentis comigo. Não quero chá, minha mãe, quero a mão do frei Crisóstomo
  • 9. me ungindo com óleo santo. Da vida quero a paixão. E quero escravos, sou lassa. Com amor de zanga e momo quero minha cama de catre, o santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador. Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe. Extraídos de "Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991. NO PRESÉPIO Minha alma debate-se, tentada à tristeza e seus requintes. Meu pai morto não vai repetir este ano: "Nada como um frango com arroz depois da missa". Minha irmã chora porque seu marido é amarradinho com dinheiro e ela queria muito comprar uns festões, uns presentinhos mais regalados, ô vida, e ele acha tudo bobagem e só quer saber de encher a geladeira com mortadela e cerveja. Talvez, por isto, ou porque me achei velha demais no espelho da loja, sinto dificuldades em ajudar Corália. Queria muito chorar, deveras estou chorando, às vésperas do nascimento do Senhor, eu que estremeço recém-nascidos. Estou achando o mundo triste, querendo pai e mãe, eu também. Corália disse: você é tão criativa! E sou mesmo, poderia inventar agora um sofrimento tão insuportável que murcharia tudo à minha volta. Mas não quero. E ainda que quisesse, por destino, não posso. Este musgo entre as pedras não consente, é muito verde. E esta areia. São bonitos demais! À meia-noite o Menino vem, à meia- noite em ponto. Forro o cocho de palha. Ele vem, as coisas sabem, pois estão pulsando, os carneiros de gesso, a estrela de purpurina, a lagoa feita de espelhos. Vou fazer as guirlandas para Corália enfeitar sua loja. A radiação da "luz que não fere os olhos" abre caminho entre escombros, avança imperceptível e os brutos, até os brutos, banhados. Desfoco um pouco o olhar e lá está o halo, a expectante claridade, em Corália, em Joana com seu marido e em mim, também em mim que escolho beber o vinho da alegria, porque deste lugar, onde "o leão come a palha com o boi", esta certeza me toma: "um menino pequeno nos conduzirá". Texto extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001. OS COMPONENTES DA BANDA O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigado bem o meu quintal, porque hoje me gritou: "do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a senhora quer vender umas panelas pra ela." Me desgostou muito a forma de pedir, o pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do Osmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendo
  • 10. que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pra tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi uma bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventei um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que o dono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos são limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não. Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração pedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo no que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra Dona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho pagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse sem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me pedir cinqüenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra lá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim: "Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar." Posso mesmo. Por que então, meu Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas fico dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateada com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu vivia acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agora envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo mais uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquer sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos da terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive. Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: "do-o- na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?" Este batido durou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depois foi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com Dona Alvina. Bibia falava: "mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a senhora e o pai muito bobos." Não podia aplaudir a menina, mas por seguro matutamos: a voz das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa da Alvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas onde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar a taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que ele arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem se lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele é inteira. Texto extraído do livro "Os componentes da banda", Editora Rocco, 1988 RODANDO Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro
  • 11. rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúra das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer. Extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001