1) O documento descreve as principais características do capitalismo atual, incluindo o domínio do capital financeiro, a separação entre finanças e produção real, e a manipulação ideológica.
2) Ele também discute as crises sistêmicas do capitalismo e seus eixos estratégicos como neoliberalismo, globalização e financiarização.
3) As consequências negativas destas tendências incluem exploração, caos ambiental e desestabilização dos mercados.
Capitalismo hoje. caracterização, crises e eixos estratégicos
1. Capitalismo hoje. Caracterização, crises e eixos estratégicos
Índice
A - Caracterização sumária do capitalismo de hoje
1. O domínio do capital financeiro
2. A separação do capital financeiro face à produção de bens ou
serviços
3. Manipulação ideológica
4. Caos
5. Genocidio
B - A crise sistémica actual e a sua génese histórica
1. As diversas crises do capitalismo actual
2. Modas e ideias feitas. É preciso ir ao fundo do fundo
C - Eixos estratégicos de actuação do capitalismo
1 - Aplicação dos formatos neoliberais
2 – Globalização
3 – Financiarização
4 – A fascização das sociedades
“Os movimentos dos mercados financeiros são o resultado
de uma complexa combinação de regras de mercado,
estratégias comerciais, medidas de motivação política,
planos dos bancos centrais, ideologia dos tecnocratas,
psicologia das multidões, manobras de especulação e
turbulência de informação com origens em vários locais”
(Manuel Castells, “A Sociedade em rede”)
Este texto de Castells sintetiza vários aspectos que caracterizam o
capitalismo de hoje: a imprevisibilidade que gera o caos e o caos que
torna inquietante o nosso futuro.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 1
2. A - Caracterização sumária do capitalismo de hoje
1. O domínio do capital financeiro
• O domínio do capital financeiro associado à facilidade e
virtualidade da criação da mercadoria dinheiro torna mais atraente
o investimento nos seus “produtos” do que na economia real, onde
se produzem os bens e os serviços necessários à vida de todos nós. E
as empresas produtivas tornam-se, elas próprias, mercadorias
submetidas a transformações diversas (aquisições, fusões,
reestruturações, desmantelamentos), susceptíveis de gerar
despedimentos em massa, transtornar a produção dos seus bens ou
serviços, tudo isso para gerar um lucro rápido e vultuoso ao
“investidor” financeiro que detenha as suas acções;
• A liberalização, a isenção fiscal e a desregulamentação dos
movimentos de capitais constituem, pois, elementos essenciais para
a mobilidade dos mesmos, na procura frenética de aplicações
financeiras em qualquer coisa susceptível dos tais lucros rápidos e
volumosos, sejam empresas, contratos, mercadorias, títulos, dinheiro,
existentes ou virtuais;
• O volume, a complexidade dos “produtos financeiros” e a
(des)informação que circula em seu torno beneficiam quem detiver
maior capital para aplicar (é pretensioso e falsificador utilizar o verbo
investir), informação para processar ou produzir para o exterior e
exigem graus crescentes de concentração;
• Este carácter ligeiro, a relativa imaterialidade dos “produtos
financeiros”, a facilidade da sua transmissão e movimentação
geográfica, a ausência de tributação que os Estados criam para
favorecer o capital financeiro, ampliaram as formas que este reveste,
para além da clássica formulação de Lenin (bancos+indústria) e
dotaram-no de um poder exorbitante, que se não cinge à
dependência do crédito bancário, por parte das empresas da
economia real.
• Este poder ímpar domesticou totalmente o Estado como agente do
capital financeiro, determinando a acção política, como é
tradicional, mas procedendo a um controlo mais estreito dos
mandarins, determinando a política orçamental e fiscal, relegando
as políticas sociais para a categoria dos custos a evitar para que as
receitas ficais e o deficit fiquem disponíveis para apoios às empresas
e ao investimento público (estes sim, os produtivos e a maximizar).
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 2
3. • Ao assumir-se como sistema global, transversal às fronteiras dos
Estados, cujas barreiras ajudou a abater, o capital financeiro,
eximindo-se aos poderes estatais, criou ou colonizou instituições
internacionais (FMI, BCE, OCDE) que se tornaram coniventes com os
seus objectivos, alheadas das dificuldades criadas, impotentes para
actuar concertadamente, única forma de colmatar os desmandos
causados do capital financeiro.
2. A separação do capital financeiro face à produção de bens ou
serviços
• Se se definir a economia como a ciência da afectação dos recursos
à satisfação de necessidades humanas, poderia dizer-se que o seu
objectivo seria a produção de bens e serviços. Para o capitalismo
clássico, porém, a produção é um meio para alcançar o seu
principal objectivo – o lucro; na actual fase de domínio do capital
financeiro, a produção de bens e serviços nem sequer é muito
necessária (ou mesmo conveniente) para alcançar aquele
objectivo. As várias pirâmides de Ponzi, cujo casos mais relevantes
são o de Maddof e o de Allen Stanford (30000 investidores perderam
$ 7000 M), são um exemplo da criação de rendimento (e lucro) sem
a geração de valor e à margem das próprias regras montadas pelo
capital financeiro;
• O lugar, por excelência, destinado à formação do lucro é a
empresa, pois é a empresa que adquire os recursos, contrata os
assalariados, selecciona as tecnologias, procede aos investimentos e
distribui os rendinentos gerados. Perante os cidadãos atomizados, as
empresas é que detêm o poder, tanto maior quanto a sua dimensão
e influência nos governos. Na actual fase de domínio financeiro, a
acumulação faz-se, em grande parte, em empresas virtuais, sem
trabalhadores, sem bens, que não a propriedade de capitais
depositados algures, ou contratos com aplicação futura, verdadeiros
encadeados de direitos, com localização tão móvel quanto
irrelevante;
• A criação de dinheiro, cada vez mais desligada das necessidades
da troca autonomizam-no como mercadoria e transformam o
volume das transacções financeiras e monetárias na principal fonte
de rendimentos, desligados estes da produção de bens ou serviços;
• A escolha dos investimentos é feita de acordo com a rapidez do
retorno do capital e da rendabilidade esperada, podendo ou não
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 3
4. isso coincidir com a futura satisfação de necessidades reais das
pessoas ou de outras empresas. Com o predomínio do capital
financeiro, qualquer elemento de ordem física – maquinaria,
trabalhadores, matérias-primas, clientes, fornecedores – constitui
inconveniente, dado que é entrave à liquidez, à necessidade de
mobilidade do capital;
• A desmaterialização da formação de rendimento transbordou,
naturalmente, para as próprias empresas produtoras de bens ou
serviços. Assim, através de verdadeiras cadeias de subcontratos,
qualquer empresa procura desvincular-se de compromissos
duradouros, nomeadamente trabalhadores, que tendem a
pertencer a uma empresa fornecedora de mão de obra (tipo de
negreiros modernos), distinta daquela que necessita do trabalho; e,
no final desta cadeia está o trabalhador, o único produtor nessa
cadeia de empresas e “empresários”, finalmente contratado por
uma empresa de trabalho temporário. Esses trabalhadores,
executam tarefas anos a fio, no mesmo local, sem qualquer vínculo
com a empresa onde exercem funções e, em regra, precarizados
por parte da empresa adjudicatária do seu trabalho. Esta fórmula de
precarização, atomização, fragilização do trabalhador é muito
comum, nomeadamente em órgãos do Estado e grandes empresas,
sendo particularmemte conhecidos os casos dos “call centers”, áreas
de não direitos, verdadeiras galés para degredados do
antigamente.
3. Manipulação ideológica
• A liberdade dos mercados em geral, é uma mentira. E isso, porque
uma grande parte dos sectores de actividade não estão abertos à
concorrência, funcionando em oligopólio; porque existem relações
estreitas entre algumas empresas e o Estado; porque o Estado
protege as empresas nacionais com exigências diversas, de carácter
técnico, fiscal e alfandegário; porque existem especificações legais
e financeiras para a exploração dos negócios mais rentáveis; porque
a ligação aos media constitui um factor de propaganda, visibilidade
e informação distorcida. Por outro lado, para a esmagadora maioria
das pessoas, aquelas restrições e a ausência de poupanças
suficientes, não lhes permite ir além da venda da sua capacidade
de trabalho aos capitalistas; e para uma minoria, essas poupanças
somente permitem a criação de pequenas empresas, em sectores
marginais do ponto de vista da rendabilidade, com pouco capital
fixo, ampla utilização de trabalho, fortemente endividadas face à
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 4
5. banca ou inseridas em redes de “franchise”, recente xarope de
autonomia empresarial para assalariados engolirem;
• Vive-se num sistema mundializado no que diz respeito à aplicação
das suas regras de funcionamento, dominado pelo capital financeiro
no seu conjunto (bancos, fundos de pensões…), em ligação com as
empresas multinacionais e o capital mafioso, procedente de vários
actividades e tráfegos ilegais ou éticamente condenáveis, da
corrupção, do tráfego de influências, etc;
• Essencial para o domínio da oligarquia financeira e dos seus
“compagnons de route”, multinacionais, capital mafioso e
mandarinato é a atomização dos trabalhadores, a desorganização
e o amorfismo da multidão, em geral. Daí a necessidade da
superabundância esmagadora e asfixiante de informação, o seu
domínio, sobretudo no que se refere à produção de conteúdos. A
aposta deliberada na imagem visa confundir, manipular a multidão,
embrutecida pela sua omnipresença, pelo convite à não reflexão e
ao isolamento, a que os media convidam incessantemente, 24 horas
por dia e em qualquer local;
• Existe um frenesi difusor das ideias de sucesso empresarial, de
carreira, de acesso fácil ao topo do bem-estar, o convite à
participação na volúpia do casino financeiro, ao investimento, à
glorificação do empreendorismo, que contrastam profundamente
com a realidade da esmagadora maioria dos seres humanos, com
trabalhos mal pagos e parcos de direitos, desemprego,
endividamento, falta de acesso a cuidados decentes de saúde,
reformas condignas, fome, para não referir a ostentória promessa de
usufruto do luxo, apresentado nos conteúdos acenados pelos media
diante do nariz da multidão. Convém, para as oligarquias, encher as
cabeças da plebe de sonhos quanto à ascensão social, como forma
de aceitação do statu quo político e económico, como ponte para
uma adiada melhoria das condições de vida e existência. Convém
ao capitalismo que a multidão absorva e pratique na sua vida o
apego à velocidade, ao crescimento económico incessante, ao
consumo inveterado, à concorrência, à arrogância face ao outro, à
natureza e ao ambiente, numa postura ansiosa, neurótica; tudo isso
é essencial para a acumulação capitalista.
4. Caos
Entre as muitas disfunções geradas pelo capitalismo, salientamos cinco:
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 5
6. • A exploração do trabalho - com a maciça incorporação de capital
fixo e tecnologia, a grande dimensão das empresas e a utilização de
técnicas de organização do trabalho - é maior do que alguma outra
vez na História. A acumulação capitalista associada é um factor
constante de pressão para a contenção do poder de compra dos
trabalhadores, um gerador de grandes desequilíbrios na distribuição
de rendimentos e de atrofia da produção, em quantidade e
qualidade, de bens e serviços essenciais;
• Para além dessa expropriação clássica do capitalismo existe a
invenção dos rendimentos financeiros em cascata, com uma base
real mínima e precária cujas dificuldades provocaram recentemente
a queda do castelo de areia em que assentava toda a estrutura
financeira mundial; e cujos efeitos na produção, no nível de
emprego, nas trocas, ainda estão em desenvolvimento, apesar dos
números circenses dos mandarins para sossegar a multidão;
• A ambiente é outro “recurso” que o capitalismo tem utilizado de
modo predatório e descuidado, só recentemente adoptando
medidas tíbias e com horizonte dilatado para não afectar os
interesses das multinacionais e das pulsões expansivas do capitalismo
nos países “emergentes”;
• As transacções de mercadorias a nível mundial, dominadas por
multinacionais, são elas também objecto da especulação dirigida
por “brokers” em ligação ao capital financeiro, que afecta os stocks,
já de si tendencialmente escassos, desestabiliza a produção, incorre
em custos inesperados, com impactos nos preços, dramáticos para
os países pobres, como se assistiu recentemente, com o petróleo, os
cereais e as oleaginosas. O novo dirigente da CFTC, regulador
americano para a negociação de futuros de matérias primas,
revelou que em 2008 quando o petróleo chegou aos $147.27 por
barril, em New York, isso foi causado pela especulação,
contrariamente ao seu sucessor, da administração Bush, que tinha
afastado expressamente essa hipótese;
• A segmentação exagerada do processo produtivo, a
autonomização excessiva de funções produtivas ou meramente
auxiliares da produção conduzem a partições improdutivas do
processo produtivo, dificultando e fragilizando a unidade e as lutas
dos trabalhadores, promovendo abaixamentos brutais nos
rendimentos do trabalho, gerando cadeias logísticas pesadas, com
custos de transporte e distribuição desmesurados e ambientalmente
suicidários.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 6
7. 5. Genocidio
• Tendo em conta o predomínio da lógica do curto prazo, do lucro
instantâneo, da liquidez total, a necessidade da criação de valor
através da produção de bens ou serviços tende a centrar-se ou
restringir-se à produção de equipamentos de tratamento da
informação e de comunicação, de prazer e bem-estar à pequena
minoria dos grandes beneficiários dos mercados financeiros
(produtos e imobiliário de luxo, viagens e hotelaria de preços
proibitivos, carros de altíssima gama e aviões privados…) Fica,
portanto, prejudicada a produção de bens e serviços necessários à
satisfação das necessidades da Humanidade e esse dano fica
melhor evidenciado pelo facto de ser possível alimentar
decentemente 12000 M de pessoas com as tecnologias actuais,
praticamente o dobro da população humana de hoje;
• Sendo o trabalho a base de toda a criação de riqueza, os Estados
são pródigos no sentido da criação de legislação e regulamentos
que atomizam o trabalhador, que o tornam precário e dependente
da permanente venda da sua força de trabalho, em condições que
raramente pode decidir a seu favor. Essa política levada a cabo
pela generalidade dos mandarinatos nacionais, impulsionada por
instâncias plurinacionais como a OCDE, a UE, o FMI, o BCE, reduz o
rendimento disponível para a grande massa das populações e
portanto induz à estagnação da economia real e ao sacrifício da
esmagadora maioria dos seres humanos;
• Das condições em que se exerce o trabalho resultam enormes bolsas
de desemprego, pobreza, insegurança que, obrigam os Estados a
afectar fatias importantes dos orçamentos à manutenção da “paz
social” necessária à prossecução dos negócios. Esses gastos com
pobres em geral, despedidos, desempregados, reformados, geram
divisões no mandarinato e nas burguesias quanto à partilha das
receitas públicas; no entanto, dada a pressão exercida pelo
empresariato para a absorção de receita pública (contratos,
subsídios…), o neoliberalismo fomentou um desprezo dos Estados
pelos custos sociais, daí resultando agravamento das condições de
vida e o surgimento de numerosos novos pobres, marginalizados pelo
poder nos países ditos desenvolvidos. Nos países da periferia, como
os Estados nunca cumpriram ou cumpriram muito tenuemente essas
funções sociais, aqueles problemas só são minorados onde existam
fortes redes de apoios sociais (alguns países muçulmanos), extensas
economias de auto-subsistência (África) ou a inserção numa
florescente economia capitalista informal (Brasil).
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 7
8. • A esses gastos sociais é preciso acrescentar os encargos públicos
com a saúde de uma população, nos países desenvolvidos, com
grande longevidade (a parcela dos que têm mais de 65 anos é
superior a 20% no Japão, na Itália e na Alemanha). Na lógica do
capital, os idosos, fracos consumidores e dependendo de gastos
públicos elevados, estão na primeira linha da população dispensável
pelo capital, tal como muitos trabalhadores com poucas
qualificações, desempregados, funcionários públicos e
trabalhadores das áreas sociais em geral. Quando, em 2007, os 1.8 M
de pensionistas portugueses por velhice recebiam em média, € 352
por mês é porque o poder não aposta na sua sobrevivência ou bem
estar;
• Esse pendor genocida, que não é novo no capitalismo, torna-se
bastante claro quando facilmente é possivel gerar rendimentos e
lucros rápidos através da inserção no casino financeiro, para o qual
a intervenção de trabalhadores é muito reduzida. Tornando-se a
criação de valor subalternizada e desligada da contabilização de
rendimentos e lucros, a financiarização das economias constitui mais
um factor de dispensa de trabalhadores e do trabalho como criação
de riqueza social.
B - A crise sistémica actual e a sua génese histórica
1. As diversas crises do capitalismo actual
Em síntese, da situação económica e da configuração do capitalismo
global, sobressaem vários grupos de problemas, que se sobrepõem e
encadeiam uns nos outros;
• Uma crise de representação, pois o modelo ocidental da
democracia representativa ou de democracia de mercado, com a
concentração do poder político em pequenas oligarquias, fornece
escassas possibilidades de exercício por parte da multidão, de
responsabilidades na gestão social, ou sequer de audição sobre a
mesma e vem provocando um descrédito crescente face à
legitimidade dessas oligarquias. Na maior parte dos países, a questão
da representação apresenta uma acuidade ainda maior pois são
dominantes os regimes ditatoriais ou musculados. O modelo
ocidental, por outro lado, fragiliza-se a si próprio, recusando a
legitimidade ao Hamas que ganhou o poder em eleições limpas ou
validando eleições fraudulentas que favoreceram o serviçal Karzai,
no Afeganistão;
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 8
9. • Uma crise da teoria económica oficial pois os factos demonstraram o
seu carácter inconsequente e evidenciaram-na como forma prática
de camuflar o enriquecimento de algumas elites, mormente através
do parasitismo financeiro; uma crise em que o papel do dólar, a
perenidade do deficit americano estão em alto risco e a
credibilidade das principais instâncias de regulação ficou de rastos;
• Uma crise social enorme, com grandes volumes de pessoas sem
trabalho, na miséria mesmo com trabalho, com ou sem
qualificações, sem acesso aos básicos cuidados de saúde (a
dificuldade de Obama para conseguir um sistema universal de
saúde, na própria metrópole imperial, é um escândalo), à
educação, à habitação, a uma retirada da vida activa em
condições dignas. Sobretudo nos países da periferia, as questões da
fome e da subnutrição chocam com as capacidades reais da
Humanidade em se alimentar;
• Uma crise da hegemonia ocidental sobre o planeta, cada vez mais
contestada pelos outros países, sobretudo de grandes dimensões,
com pretensões próprias. Outrora, essas pretensões eram
contrariadas com golpes de estado ou pela presença da
canhoneira ocidental; hoje, até se assiste a Obama a pedir desculpa
por os EUA terem patrocinado o golpe de estado no Irão, em 1958.
Por outro lado, os instrumentos da canhoneira ou da sua ameaça,
mesmo quando utilizados, não resolvem literalmente nada, como se
observa no Iraque, no Afeganistão ou, no que respeita às exigências
colocadas ao Irão; antes pelo contrário, acentuam o descrédito dos
países ocidentais. Por seu turno, os resultados da actual crise sobre os
países da periferia, gerada pelo sistema financeiro dos países ricos e
pelas instituições por elas dominados, apontam no mesmo sentido;
• Uma crise ambiental caracterizada por um modelo de geração de
riqueza baseado numa crença descuidada e estúpida na
possibilidade de um crescimento económico irrestrito que precisa de
fomentar um consumismo irracional e imbecilizante e cujo impacto
coloca em causa, a prazo, as capacidades do planeta para
albergar a diversidade da vida, gerada numa evolução de muitos
milhões de anos. O capitalismo, na sua sede de lucro, não só arrasa
tudo à sua volta como consegue escavar o próprio chão que pisa.
1. Modas e ideias feitas. É preciso ir ao fundo do fundo
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 9
10. O quadro negro em que a humanidade e o próprio planeta foram
colocados pelo capitalismo, necessitam de algumas precisões e de um
algum bosquejo histórico para que melhor se compreenda a realidade e
entenda o que os manipuladores do sistema debatem e preparam para
que o essencial se mantenha: a exploração do trabalho, com o mínimo
de custos e restrições.
• Convém não alimentar ilusões sobre o carácter da actual crise. Ela
não corresponde a uma vulgar fase de “cava” do ciclo capitalista;
ela é profunda e duradoura e insere-se na tendência de longo prazo
do sistema para a entropia, para o caos, para o fomento de
dificuldades à humanidade. Obama tem vindo a afirmar que os EUA
estão muito longe do fim da crise e, segundo Stiglitz, a recessão vai
campear nos próximos quatro anos… o que significará para a
província portuguesa do império, 10 anos seguidos de recessão;
contrariamente, a camarilha socratóide mostra-se estúpida e
insensivelmente optimista, despudoradamente mentirosa e
ridiculamente pretensiosa sobre os seus méritos actuais enquanto a
bolorenta Balela se apresenta para eleições com um saco cheio de
propostas de enriquecimento dos ricos. Por outro lado, todos
sabemos que eventuais melhorias nas bolsas não correspondem a
nada de real na vida das pessoas ou das empresas, que o digam os
que engrossam os números do desemprego.
• O capitalismo vai gerando as modas nas teorias económicas tal
como os costureiros no vestuário. Contudo, essas modas não são
fúteis, nem fortuitas mas, estruturas complexas e pensadas para a
adequação, de forma duradoura, da configuração dos paradigmas
de organização económica, à permanente necessidade de
acumulação da riqueza criada pelo trabalho, na posse de uma
esmagadora minoria de parasitas humanos, nas condições
concretas de cada momento histórico.
• Existe uma racionalidade económica associada a cada modo de
produção não existindo, portanto, uma racionalidade económica
neutra, desligada das relações sociais, como se fosse um coeficiente
técnico transversal às sociedades humanas. Contudo o capitalismo,
nas suas modas, tende a considerar a racionalidade que interessa
ao seu desenvolvimento como A Racionalidade, eterna e definitiva,
outorgada por Deus. Esse carácter filosoficamente imperativo,
totalitário, coloca o economicismo mais estreito e conotado
socialmente com uma classe, como característica universal, no
tempo e no espaço, ignorando que na história da Humanidade, o
homem sempre foi o objecto e a medida de todas as coisas; não o
lucro, essa inovação capitalista:
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 10
11. • Para esse economicismo interessa que as pessoas sejam
homogéneas, padronizáveis, para facilitar as economias de escala
que permitem maximizações de lucros; ou, que sejam moldáveis
pela publicidade, para se adaptarem às conveniências da
combinação de recursos que maximiza esse mesmo lucro. A
conveniente satisfação das necessidades da multidão é uma
questão de segunda ordem;
• Como a espécie humana é incomensuravelmente diversificada,
volúvel na satisfação das suas necessidades, objecto de afectos e
não programável ou robotizável, a produção de bens e serviços bem
como as decisões à mesma respeitantes, só podem ser equilibradas
com as necessidades, se essas decisões couberem aos
trabalhadores-consumidores, dispensando, por conseguinte, o
capitalista, a produção para a obtenção do lucro e o Estado como
ente coercivo que garante a desigualdade e os privilégios de alguns.
• Para que a multidão se submeta pacificamente à racionalidade
capitalista, é preciso que a aceite com a inevitabilidade e a
bonomia com que aceita a gravidade, mesmo que daí resultem
danos enormes na passagem de cada pessoa pela vida. É preciso
que as pessoas aceitem ser os “tolos racionais” como designados por
Amartya Sen.
Nesse plano, o capitalismo pretende que seja aceite como
realidade, inerente à natureza humana, a constituição e assunção
de cada pessoa como “homo economicus”, inalterável e
inquestionável, quando isso mais não é que um objectivo para o
grupo social politica e economicamente dominante.
• Por exemplo, a concorrência é uma dessas falsas imanências
atribuidas como normalidade no funcionamento das sociedades,
quaisquer que sejam, Na verdade, é nome que se dá à luta entre os
capitalistas, pelo domínio na venda de bens e serviços, dos recursos
materiais, das tecnologias mais avançados, do dinheiro mais barato,
da força de trabalho mais qualificada, com baixos salários e
menores “externalidades” como exigências de segurança laboral,
horários de trabalho, direitos sindicais… Essa luta tende a gerar um
crescimento muito acentuado da capacidade produtiva mundial,
que se confronta com a contenção do poder de compra dos
trabalhadores e da esmagadora maioria da população do planeta,
tornando-se, portanto, excedentária. Esse subconsumo, criado pela
rapina do produto do trabalho pelos capitalistas necessitados de
incrementar o capital acumulado, origina a actual crise e conduz,
naturalmente, a dificuldades a muitas empresas, falências, deficit
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 11
12. público, endividamento, desemprego, pobreza... numa espiral em
que a crise se auto-alimenta diariamente.
• Outro exemplo do carácter classista das modas teóricas do
capitalismo prende-se com o risco. Nos media, o risco é sempre
referido como o risco do investimento, da possibilidade de a
remuneração do capital investido ser inferior à média do “mercado
de capitais” ou, não existir e os esforçados empresários poderem
perder os seus cabedais, bastas vezes de origem duvidosa à face
das próprias leis do seu Estado. Para anular esse risco e atrair o
“investimento”, os Estados oferecem múltiplas benesses financeiras,
custeiam infraestruturas ou asseguram um nível elevado de receitas,
como nos casos das lusitanas Lusoponte ou Liscont-Alcântara;
Não cremos que haja muitos empresários vítimas do risco empresarial
entre os pobres que constituem 20% da população portuguesa,
embora o mesmo não se possa dizer quanto a trabalhadores que
tiveram experiências empresariais e que sucumbiram ao torniquete
bancário ou perante a impiedosa carga fiscal.
Muito mais dramático é o risco dos trabalhadores que, vivendo do
seu salário, sem conseguirem gerar poupanças, nada têm que os
defenda dos riscos da má gestão ou conduta fraudulenta dos
patrões. Quando há dificuldades nas empresas, o despedimento é
uma das primeiras armas dos patrões, que assim, transferem para a
parte mais fraca, os principais ónus dos riscos que não querem
assumir. E um temporário acesso aos subsídio de desemprego nada
se pode comparar com o património pessoal do capitalista, não
comprometido com o negócio, a salvo da derrocada.
• O capitalismo e as suas instituições criaram e pretendem aplicar a
qualquer investimento o critério da rendabilidade empresarial, da
recuperação e remuneração do capital investido, com cálculos
estandardizados do VAL ou da TIR. Se se estiver a pensar num bem
de consumo mais ou menos secundário, não nos tira o sono que um
capitalista gaste neurónios para avaliar o risco do negócio e que
procure recuperar o “seu” de forma ampliada.
Sucede, porém, que há muitas actividades onde isso não é possível
ou minimamente conveniente. A protecção de uma zona
ambientalmente delicada, de espécies protegidas, pode envolver
investimentos vultuosos, cuja rendabilidade não se pode medir com
critérios empresariais, como não se mede a área de um terreno em
litros. Em certas circunstâncias, os Estados procuram rendabilizar um
investimento ambiental adulterando-o com a incrustração de
projectos turísticos, por exemplo. Noutras circunstâncias e sobre a
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 12
13. forma de mecenato, o Estado favorece capitalistas ou empresas
(directamente ou sob a forma de fundações) com benefícios fiscais,
como via de tornar rentáveis e atraentes ao capital privado, certos
investimentos.
Nesta linha de pensamento, sendo a água recurso natural de valor
inestimável, a cobiça de grandes multinacionais e de mandarins a
soldo oferece-se para assegurar a sua boa gestão, elevando
substancialmente os seus preços para a população, que ficará assim
dependente das intenções de um monopólio para remunerar os seus
accionistas.
A construção de uma linha férrea é reveladora das incapacidades
do capital. Não é disparate pensar-se que uma linha vá propiciar,
digamos, cem anos de serviço, sem prejuizo da sua regular
manutenção. Acontece que nenhum capitalista investe em
empreendimentos com tão elevada vida útil e mantém aí dinheiro
empatado; e por isso o neoliberalismo criou a bela figura de
privatizar a utilização da linha e deixar a sua manutenção a uma
empresa paga pelo Estado (tipo Refer). No caso da construção de
uma nova linha, tratam de constituir uma parceria público-privada
para o efeito, na qual os fundos públicos entram com a parte de
leão e a fundo perdido, permitindo que as futuras receitas
comportem a recuperação do capital privado, muito antes do
esgotamento da vida útil da via e com taxas de lucro apetecíveis.
Esta lógica aplica-se também a pontes, estradas ou cais para gáudio
dos bancos financiadores e das motas-engis ligadas aos partidos
adjudicantes. É o ciclo mafioso na sua plenitude.
• A propaganda dos mandarins engloba, geralmente, conceitos
abstratos, sem conteúdo, desligados de qualquer enquadramento
ideológico explícito nos quais se pretende envolver os cidadãos de
modo cumpulsivo, a internalizar sem a intervenção de polícias ou
tribunais. Um desses conceitos é o da acentuação da primazia
absoluta do novo sobre o menos novo, para não dizer velho; assim,
ser jovem ou ser proveniente de um jovem é melhor do que o que
provém de alguém com mais anos, mesmo que seja uma
imbecilidade do jovem Cristiano. Por seu turno, a modernidade,
“tout-court”, despida de qualquer expressão concreta, é apontada
como inelutável e na qual cavalgam os mandarins, como atestado
da sua competência e visão; nesse contexto, as auto-estradas são
símbolo do progresso mas, a precariedade e o desemprego já o não
serão, apesar de paridos pela mesma modernidade actual.
A modernidade e a sua inevitabilidade, como algo forçosamente
bom, é utilizada da mesma forma que a ideia de progresso, força
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 13
14. imanente a algo desgarrado, na qual os cidadãos não têm que se
intrometer ou pretender opinar e construir por si próprios. A
modernidade é o termo mais usado por essa espécie de engenheiro,
praticante do moderno “jogging”, um tal José Sócrates. enquanto o
vetusto Cavaco sempre preferiu o “pugresso”, como lhe sai da sua
titubeante expressão oral. Terá mesmo sido o dito cujo que permitiu
que os seus amigos lhe tivessem “limpo” as poupancitas de
catedrático reformado;
• Finalmente, outra das taras ideológicas do capitalismo relaciona-se
com o crescimento económico. Ao erigir a maximização do lucro
como critério condutor da vida social, o capitalismo gera uma
constante ansiedade pelo aumento da riqueza, que é como quem
diz, pelo crescimento do PIB. Essa tara repercute-se nas pessoas em
geral que, integrando a mesma ansiedade nas suas vidas, praticam
o consumismo mais insano ou ridículo, para armazenarem bens, para
garantirem os novos modelos de qualquer coisa, pondo de lado,
como trastes, um volume enorme de bens em perfeito estado de
utilização, desperdiçados. Como as necessidades humanas não são
infinitas, há uma parcela menor da população mundial,
basicamente nos países ricos, cujo consumo global poderá estagnar,
não induzindo crescimento económico, sobretudo se forem
reduzidas substancialmente as desigualdades e o desperdício, Por
outro lado, nos países pobres, a satisfação das gritantes
necessidades da maioria não tem de passar, forçosamente, pela
repetição dos modelos de desenvolvimento adoptados no passado,
nos países ora ricos, que estruturaram, por exemplo, a agricultura,
com elevadas incorporações energéticas e desprezo pelo ambiente.
C - Eixos estratégicos de actuação do capitalismo
1 - Aplicação dos formatos neoliberais
• Em termos da teoria económica, os clássicos (Adam Smith, Ricardo,
Marx) demarcaram bem as relações sociais que estavam por detrás
do processo produtivo e que tornavam este como um produto
social. Porém, se Ricardo se refugiava na lei natural que assim
dispunha a realidade, Marx colocou as características das relações
sociais inerentes ao processo produtivo como resultantes do
antagonismo entre capitalistas e assalariados, sendo esse conflito o
motor da História.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 14
15. • Por seu turno, J-B Say e os marginalistas preocuparam-se mais em
desligar a ciência económica das realidades sociais, pretendendo
que a economia é uma área objectiva, socialmente neutra, redutível
a cálculos matemáticos. Nessa linha, a distribuição da riqueza não
resulta da correlação de forças entre capitalistas e assalariados, com
estes a serem subtraídos de parte do valor do trabalho que
produzem mas, segundo Say, de acordo com umas leis chamadas
de mercado, em que os detentores dos factores de produção –
terra, capital e trabalho – com toda a independência e autonomia,
ajustam os preços dos respectivos contributos para a produção.
Tecnicamente, a estrutura social onde se insere a posse dos
chamados factores de produção, constituia um dado a-histórico,
imutável e definitivo, desligado da evolução das sociedades;
• A mais distraída observação da realidade revela que o fornecedor
da força de trabalho está longe de ter a autonomia de discutir, com
os capitalistas, ou o dono da terra, o preço do seu “factor de
produção”, porquanto o Estado através da lei ou da repressão física
ou judicial se encarrega de estabelecer as condições para a
formação do preço dos designados factores de produção,
favorecendo os capitalistas e prejudicando os trabalhadores. E,
portanto, essa actuação do Estado revela que na base da
produção de riqueza não está o livre encontro entre detentores de
factores de produção, o livre funcionamento do mercado mas, um
elemento político, não económico - o Estado - remetendo para o
caixote das aldrabices, as elaborações teóricas de Say e dos
marginalistas;
• Essa mitologia de um mundo de entidades soberanas, iguais –
capitalistas e trabalhadores – reveste hoje, em termos ideológicos
formas curiosas e ridículas. O termo capitalista pretende-se
esquecido e conotado com uma época passada, enterrado na
História e é substituído pelos termos pretensamente neutros do ponto
de vista social – empresário, empreendedor, empregador, por acaso
(?) sempre utilizados de modo respeitoso, mesmo quando aplicado
aos mais manifestos criminosos. Por outro lado, o assalariado, apesar
de mal pago, precário ou sob a permanente ameaça de
despedimento, passa à categoria, também mais neutra e amistosa
de “colaborador”, o que, contudo, não permite esconder o seu
carácter subalterno e acessório. O assalariado pode mesmo descer
na escala da pública consideração; se trabalhar no Estado é um
madraço dormindo sobre privilégios, se estiver desempregado é
porque não quer trabalhar, se estiver doente é um fingido que
defrauda a Segurança Social e, se for pobre e receber SRI é um rico
dissimulado.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 15
16. A existência de trabalhadores ou assalariados é prova suficiente da
sua necessidade no processo produtivo, caso contrário, o
capitalismo já os tinha extinto. Inversamente, o patrão, em regra,
está a quilómetros de ter qualquer utilidade para o funcionamento
da empresa e da sociedade, como afirmámos em “Afinal qual a
Função Social do Capitalista”
(http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/14868.html)
e em “Os Empresários e a Inovação”
(http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/784.html)
(http://www.scribd.com/doc/5570973/Afinal-qual-a-funcao-social-
do-capitalista)
O papel parasitário do capitalista, determinado por um elemento
não económico mas jurídico, que é a propriedade dos meios de
produção, é assegurado pelo Estado, como atrás já foi referido,
nada tendo a ver com as reais necessidades do processo produtivo,
de bens e serviços. Outra forma curiosa da mesma ladainha é a
pretensa igualdade de negociação entre trabalhadores e
capitalistas, presente na passada doutrina corporativa ou nas
actuais democracias de mercado, com a concertação arbitrada
pelo Estado, efectivo representante colectivo dos capitalistas, com
visão e interesses estratégicos nem sempre coincidentes com os de
muitos dos seus representados;
• A questão da propriedade dos meios de produção radica muito
fundo na ideologia burguesa que, simultaneamente, emana
comandos jurídicos e psicológicos para gerar nos trabalhadores um
respeito reverencial face à propriedade capitalista. O que as
burguesias não fizeram quando se locupletaram nas terras dos
aristocratas. Veja-se o seguinte episódio caricatural.
Recentemente, a propósito da morte do anti-fascista Palma Inácio
(que morreu na miséria) foi revelada a resistência no seio do poder
PS/PSD em o homenagearem com uma comenda. Até achavam
graça aos seus actos contra Salazar mas… havia algo difícil de
engolir; o assalto ao banco na Figueira da Foz para financiar as
actividades anti-fascistas (cujo produto veio quase todo a ser
recuperado pelo poder). Aí era a propriedade que estava em jogo e
a burguesia portuguesa, como qualquer outra, tem a propriedade
como coisa mais sagrada que a honra das suas mãezinhas. Por isso,
não há anti-capitalismo que admita a posse de meios de produção
que não pelo conjunto dos trabalhadores.
Expurgar da economia política o segundo termo (política), visa
considerá-la com um carácter técnico, conjunto de coeficientes
técnicos de uma matriz, neutra em face às relações sociais presentes
no âmago da produção de riqueza. Tudo se reduziria a cálculos
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 16
17. contabilísticos, a problemas de gestão e, as dificuldades e fracassos
só podem acontecer por incompetência, trovoadas ou terramotos;
daí que neste blog tenhamos afirmado em “BPN - exemplo prático
do que é o capitalismo”
(http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/24117.html)
que o problema da competência de Vítor Constâncio no caso BPN é
lateral, quando se pretende que essa foi a principal causa das
conhecidas vigarices que envolvem distintos “empresários”;
• Essa linha de pensamento contudo, não é a que caracteriza o
neoliberalismo cuja falência prática vamos assistindo e, parece que
nas esquerdas isso não é muito levado em conta.
Pelo contrário, o neoliberalismo é um modelo global de gestão social
que compreende a economia mas, que vai muito além dela ou não
fosse o seu principal teórico – Friederich Hayek - não só economista
mas, também filósofo e político, acantonado na Sociedade de Mont
Pélerin desde 1947, enquanto durou o brilho do formato keynesiano
de gestão do capitalismo, mais ou menos coincidente com o
período dos chamados “30 gloriosos anos”. Hayek defende
claramente que a economia não é uma ciência neutra e tem
subjacente opções claras do que é conveniente para o sucesso do
capitalismo e que se não restringem às políticas económicas (aliás
pouco admissíveis quando se pretende um Estado minimal) mas,
também com a recusa da aplicação dos conceitos de
solidariedade, justiça social, igualdade… uma vez que a “vida não é
justa” e que se não pode rectificar o que a natureza criou.
Evidencia-se assim que, por detrás de qualquer modelo económico,
implícita ou explicitamente está sempre um projecto político
animado por uma qualquer ideologia; e que não há neutralidade
política mesmo para os que se afirmam apolíticos. Hayek tem o
mérito da clareza de propósitos e a sua frontal expressão, porém,
não caracteriza os executores do seu projecto de sociedade, como
os mandarins actuais. Nesses aspectos, Hayek contrastava com lord
Keynes que se cingiu essencialmente à economia, embora com uma
clarividência ímpar sobre as conveniências do capitalismo e do
domínio ocidental sobre o planeta;
• Como projecto global de domínio, o neoliberalismo de Hayek tem
conotações evidentes com o fascismo, com o seu expresso repúdio
por políticas de redistribuição, a defesa de um darwinismo social, do
elitismo dos ricos, em função dos quais todos os restantes indivíduos
devem existir, se conformados à sua pequenez ou, desaparecer, na
pobreza ou na inanição se não aceitarem o papel de escravos. Da
Escola de Chicago onde Hayek ensinou, saiu também um tal Milton
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 17
18. Friedman, menos ideológico que o seu mestre mas que, com os seus
“Chicago Boys”, as espingardas e bestialidades da tropa, aplicou as
suas ideias no Chile de Pinochet, culminando com a reestruturação
económica do país, a obra iniciada pela conspiração da CIA contra
o governo de Allende;
• Após esta primeira aplicação prática no Chile (1973), o
neoliberalismo deixou claro o seu programa para animar a
economia mundial e assim promover a retoma da acumulação
capitalista:
Tornar a economia regulada pelos movimentos de capitais e pela
política monetária, retirando ao Estado veleidades de
intervenção noutras áreas da economia;
Desmantelamento do Estado social (onde existisse) para que o
riqueza criada não fosse “desperdiçada” em apoios
generalizados à população trabalhadora, como sistemas de
saúde, de segurança social, combate à pobreza, aparelho
burocrático, etc;
Defesa de um individualismo exacerbado, com a recusa de
conceitos como vontade colectiva, interesses sociais ou
semelhantes, pois só existem indivíduos e interesses individuais. “A
sociedade não existe”, Thatcher dixit, relembrando os velhos
marginalistas;
Sistema fiscal e normas salariais regressivas uma vez que sendo os
ricos os investidores, convém que neles se concentre a poupança
geral, devidamente maximizada; inversamente, desonerar de
impostos os pobres é fomentar o aumento do consumo,
reduzindo, consequentemente a poupança e prejudicando,
portanto o investimento. Sintomaticamente, de acordo com
Aglietta e Rébérioux em “Derives du Capitalisme Financier”, a
relação entre o salário médio de um operário nos EUA e o de um
gestor passou de 1/40 em 1980 para 1/400 em 2003. O bom
caminho… como assistimos; tão bom que agora todos os
mandarins, com o santo Obama à cabeça, se vêm obrigados a
limitar extravagâncias salariais, prémios, “stock options”…
Adopção do sistema político adequado à prossecução do
aumento da acumulação capitalista. Dentro dos seus princípios
ideológicos mecanicistas, anti-éticos e desumanos, o
neoliberalismo tanto pode aceitar as liberdades políticas
primárias, através dos sistemas representativos ou de democracia
de mercado, nos países mais desenvolvidos, como promover
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 18
19. golpes de estado e apoiar ditaduras, onde a resistência popular
seja mais acerba e/ou onde a criação de riqueza sendo
comparativamente menor exija meios mais musculados de
domínio das cliques locais. Para impor o neoliberalismo que
tresanda no tratado de Lisboa, o referendo poderia ser um
instrumento mas, para evitar as incompreensões da intervenção
popular, o tratado é melhor aprovado entre amigos (nos
parlamentos nacionais) ou objecto de tantos referendos quantos
os necessários, entre promessas e ameaças aos irlandeses;
O que nenhum neoliberal alguma vez propôs foi o
desmantelamento ou a redução do Estado no seu papel
repressivo e coercivo. Antes pelo contrário, assistiu-se ao
incremento e sofisticação das forças armadas e das polícias, com
o recurso extensivo a fórmulas privadas de segurança e
manutenção da ordem, videovigilâncias, para defesa da
propriedade e a formação de poupanças no bolso dos ricos.
Quem deve, teme.
Esta agenda neoliberal cuja aplicação pioneira foi paga duramente
pelos trabalhadores chilenos, foi seguida de outras, nos chamados paises
do Sul, sob a designação de “ajustamento estrutural” com a obrigatória
orientação do FMI enquanto nos países desenvolvidos assumiu o nome de
thatcherismo ou reaganismo. Criou-se mesmo o termo “reaganomics”
para o modelo económico vigente, baseado em Say, “a oferta cria a sua
própria procura”, sem esquecer o recurso à repressão não foi
negligenciado, quer por Thatcher sobre os mineiros, quer por Reagan
sobre os controladores aéreos. O Estado para estas coisas dá sempre
muito jeito mesmo aos mais empedernidos neoliberais…
2 – Globalização
A queda das taxas de lucro e a fixação de crescimentos anémicos nos
países desenvolvidos anunciaram, nos anos 70 o fim dos tais “gloriosos 30
anos” de felicidade capitalista; as desvalorizações da libra e do dólar, o
fim da convertibilidade deste em ouro, enterraram os acordos de Bretton
Woods de 1944, feitos para garantir a supremacia americana no mundo;
as subidas do preço da energia em 1973 e 1979 revelaram novos
protagonistas com poder, a OPEP e os países petrolíferos do Golfo Pérsico;
as multinacionais haviam adquirido um carácter global e as fronteiras
existentes, com controlos alfandegários, freavam o seu crescimento; a
inflação galopava por campos e vales; e os EUA saiam da Indochina
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 19
20. derrotados politica e militarmente enquanto a descolonização se
aproximava do final.
O mundo mudara, Keynes ficou fora de moda e a queda do crescimento
económico iria colocar em causa o chamado pacto social-democrata
que garantia, com a mediação das burocracias sindicais, a troca de
ganhos de produtividade para os trabalhadores, pela aceitação, por
estes, do sistema capitalista. Alguém se lembrou do profeta Hayek que
vinha pregando no deserto nas últimas três décadas e o neoliberalismo
foi adoptado, em paralelo com a desregulamentação e a liberalização a
nível global que preparou a extensão da base territorial da acumulação
capitalista integrando na sua órbita praticamente todos os países
capitalistas e pré-capitalistas, em vários estádios de desenvolvimento – É
a chamada globalização.
Esta, consiste em vários vectores e movimentos, que interagem e se
complementam:
• A transferência da produção para áreas geográficas de “dumping”
salarial, laboral ou ambiental, com a inerente redução de custos,
alarga as margens de lucro das multinacionais e aumenta o
mercado global através da integração desses novos países. Porém,
essa transferência tem como contrapartida a desindustrialização dos
países desenvolvidos, com o crescimento de um desemprego
estrutural, a perda de poder de compra e da qualidade de vida dos
trabalhadores, cujo poder reivindicativo fica condicionado. Esta
situação, aliada à feroz concorrência entre as multinacionais, mitiga
os efeitos da globalização nas expectativas de crescimento mundial
que, simplesmente, tem vivido, nos últimos anos, das elevadas taxas
conseguidas pela China;
• A integração e acelerada expansão da exploração de novas fontes
de matérias primas, mormente energéticas e agrícolas, tendo em
conta a acerada concorrência, gera novos conflitos pelo seu
controlo, armados uns (Iraque e Afeganistão), geoestratégicos outros
(luta pelo controlo da Ásia Central e dos oleodutos que lá se iniciam)
e desastres ambientais (desmatação no Brasil e pressão para a
exploração petrolífera das zonas árticas);
• O alargamento do campo de acção das empresas num contexto
de contenção do poder de compa global gera novas necessidades
de investimento e de meios financeiros para esse efeito, acentuando
o papel do capital financeiro na sua ligação às multinacionais. A
pressão para o aumento da acumulação capitalista tolera, de facto,
o branqueamento e a integração de capitais mafiosos e, torna mais
ou menos tolerados os vários tráfegos, como o das drogas, das
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 20
21. armas, dos imigrantes, das mulheres, dos órgãos humanos, a
corrupção etc;
• O ex-GATT passou a ser uma OMC, revigorada para promover a
liberdade de comércio (mais precisamente, a abertura dos
mercados dos países do Sul, tal como inventado pela Inglaterra no
século XVIII), desregulamentando e isentando os movimentos de
mercadorias e capitais e, liberalizando o investimento estrangeiro.
Essa liberdade de comércio visa isentar as multinacionais e as
grandes instituições financeiras de portagens e entraves para
entrarem nos estados nacionais e alargarem assim o seu raio de
acção.
Por outro lado, a pressão que se exerce sobre os países pequenos e
médios, com menores níveis de desenvolvimento, conduz à
transferência para o capital internacional de parte crescente da
riqueza criada, em detrimento das burguesias nacionais; nesse
contexto, acentua-se a exploração dos trabalhadores desses países
neo-colonizados, submetidos aos ditames do capital global e,
simultaneamente, obrigando os patrões nacionais a cedências na
partilha da riqueza criada, no âmbito de uma colossal concentração
de capitais. Esse desiderato assemelha-se, a uma escala mais
alargada, à vocação dos Estados centralizados e absolutos
comandados pelas burguesias comerciais dos séculos XV ao XIX:
desmantelamento dos senhorios regionais e colocação de todo o
espaço, então designado como nacional, como coutada própria,
incluindo nesta, recursos naturais e trabalhadores;
• Na Europa, o processo de globalização tem sido mais profundo e
inovador. Assistiu-se à passagem da antiga CEE para a UE, no sentido
da criação de um espaço económico e político único; ao
alargamento territorial da UE a quase todo o continente; ao
aprofundamento da mercantilização a que o Tratado de Lisboa
pretende dar um carácter constitucional e definitivo; à criação do
euro como moeda comum (até agora, para somente 16 países); e a
uma desvalorização da própria democracia de mercado com
evidentes manifestações fascizantes dos poderes e emanações
xenófobas da direita política, estribadas em alguns estratos
populacionais.
A globalização tem trazido consigo alterações geoestratégicas na
estrutura do poder mundial, tais como;
• O Pacífico passou a ser a principal área de comércio, ultrapassando
o Atlântico, consolidando-se assim, a subalternidade europeia (por
muito que custe aos eurocêntristas), como área de menor
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 21
22. dinamismo económico, a despeito de ser a maior área de consumo,
agravando-se essa situação, do ponto de vista político com a
aceitação da suserania americana em questões essenciais como a
actuação agressiva da Nato ou o apoio à barbárie israelita;
• Reduziu-se a relevância da indústria na Europa e nos EUA com a sua
transferência para o Oriente, com destaque para a China, com
custos laborais e globais muito mais baixos, integrando um
movimento de nivelamento por baixo, que favorece as
multinacionais e, temporariamente, os trabalhadores desses países,
em detrimento dos europeus e norte-americanos;
• Está estabelecida uma grande interdependência entre os EUA e a
China, tornando-se esta um grande fornecedor de mercadorias aos
EUA, principal comprador da produção chinesa e, simultaneamente,
um investidor de grande relevância nos títulos que o Tesouro
americano emite para financiar o deficit, agora acrescido com o
apoio estatal aos bancos em bancarrota. Paira sobre esta situação a
vulnerabilidade da cotação do dólar e da sua utilização como
moeda de reserva, tendo a China avançado recentemente, com a
ideia da sua substituição por DSE (direitos de saque especiais)
inventados nos anos 70 como apoio à impossível convertibilidade do
dólar em ouro. Também recentemente Stiglitz defendeu a criação
de uma nova moeda de reserva global, como peça central para um
novo sistema financeiro internacional;
• Verifica-se uma tendência para um maior equilíbrio entre as nações,
devido, nomeadamente, ao crescente peso dos designados BRIC
(Brasil, Rússia, Índia e China) e às dificuldades dos EUA em impedirem
a passagem de um mundo centrado em si, para outra estrutura de
poder, multipolar. A passagem do G8 para um G14 corresponde à
assunção da fraqueza dos paises ricos em manter o sistema mundial
de pagamentos, o papel do dólar e o sistema desigual de trocas
sem a cooptação e ajuda de vários outras burguesias nacionais,
com a particular relevância do governo chinês, curiosamente,
dominado por um partido dito comunista.
Note-se que estas mudanças em curso, podem constituir uma
vantagem táctica para a Humanidade mas, estratégicamente, não
colocam em causa o capitalismo e todo o cortejo de maleitas que
lhe são inerentes; apenas dificulta a utilização da força militar nas
áreas em disputa, nas quais a superioridade militar deixou de
constituir uma vantagem quase absoluta, mesmo em conflitos com
pequenos ou médios países.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 22
23. Pela sua dimensão, os BRIC tenderão a afirmar o seu peso
económico e populacional, nas suas respectivas áreas de influência,
perante a maioria dos outros países, mais pequenos, como forma de
engrandecer as suas burguesias, a despeito das disputas com os
poderes dos países ocidentais e com os seus próprios trabalhadores.
Os seus objectivos nacionais, nesse campo são idênticos aos de
todas as burguesias, com a diferença que as suas dimensões lhes
permitem alargar mais as suas influências, manter moeda e sistemas
financeiros próprios, bem como políticas económicas relativamente
autónomas, sem contudo se desconectarem da economia global,
nem deixarem de se procurarem constituir, os BRIC, em participantes
na exploração das riquezas dos países mais pequenos. Como
exemplo, veja-se a hegemonia da Rússia no Cáucaso e na Ásia
Central e as disputas com a UE, na Ucrânia ou, com os EUA na
Geórgia e nas repúblicas ricas em recursos energéticos; ou a
influência da China no Sudão ou em Angola, neste último caso
gerando alguma preocupação dos EUA; a procura de liderança
brasileira na integração económica latino-americana; e, não sendo
tão marcadas as tentativas de influência da Índia, dado o
antagonismo com o Paquistão e o isolamento de Myanmar, elas não
deixaram de se observar no conflito cingalês;
• Observam-se grandes migrações internacionais, com um
alargamento crescente das distâncias entre as origens e os destinos
dos migrantes que se deslocam para os EUA, para a Europa e para
os países petrolíferos do Golfo. São utilizadas pelo capitalismo com
forma de pressionar, para baixo os salários, as condições laborais e a
precarização das vidas com o arrastamento de situações de
“ilegalidade” que, tanto permite uma conveniente tolerância com a
sua presença, como a sua liminar expulsão ou reclusão. A presença
de trabalhadores migrantes serve ainda para criar manifestações
xenófobas lideradas pela direita política, formas de encontrar bodes
expiatórios para segmentos relevantes das populações acossadas
pelas dificuldades económicas e pela insegurança;
• Tanto são favorecidas as dinâmicas desagregadoras de estados
(URSS, Jugoslávia, Geórgia) como são preparadas novas agregações
(na UE e América Latina), mesmo quando essas alterações políticas
se processam com toda a tolerância relativamente a ditaduras mais
ou menos explícitas e regimes absolutamente corruptos, num
contexto de acrescidas dificuldades à vida das populações,
exacerbação de diferenças étnicas e religiosas, criação de zonas
francas para tráfegos mafiosos (Kosovo, Afeganistão, Guiné-Bissau).
O programa neoliberal generalizadamente adoptado na Europa, na
América do Norte (e forçadamente na do Sul), ou em África, num quadro
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 23
24. nacional, foi muito menos seguido nos chamados “tigres asiáticos” e na
China que continuaram com crescimentos elevados, baseados no
proteccionismo exterior e na intervenção fortíssima do Estado como
entidade financiadora, investidora e reguladora dos custos salariais,
através de regimes políticos muito musculados.
Essa aplicação da agenda neoliberal, contudo, não inverteu a tendência
global, decrescente das taxas de crescimento. De 3.5% na década de
sessenta e 2.4% na de setenta do século passado, essas taxas
encolheram e cifraram-se em 1.4% na década de oitenta e de 1.1% na
de noventa, apesar da descabelada aplicação das receitas neoliberais,
do alargamento da sua base territorial de aplicação, com o
desmantelamento da URSS e o fim da concorrência política e ideológica
do capitalismo de Estado, onde a exacerbação de modelo keynesiano
era protagonizada por uma burguesia burocrática e corrupta, enfeitada
com penas de esquerda.
Para o agravamento da estagnação económica e insuficiência da
acumulação, contribuiram, decididamente as medidas neoliberais de
restrição dos rendimentos monetários ou dos serviços prestados pelos
Estados à população, com impactos óbvios na procura de bens e
serviços; ou a não condução para o investimento dos rendimentos dos
ricos, para além do seu bem estar pessoal e produção de bens de luxo,
manifestamente insuficientes como motores do crescimento mundial. Por
muito que isso custe à Balela Ferreira Leite quando estupidamente
defende e se oferece para proteger o parasitismo dos ricos. E as coisas,
globalmente, não foram piores porque na Ásia o modelo não foi
aplicado cabalmente, observando-se a integração de milhões de
trabalhadores que apesar de sobre-explorados, vêm melhorando o seu
nível de vida, antes miserável.
A especulação, facilitada pela mobilidade do capital gerou diversas
crises monetárias e financeiras em diversos locais (Portugal (1983/85 e
1993/95), México 1994/95, Tailândia em 1997, Rússia em 1998 e Argentina
já neste século (2001) - sempre com a prestimosa assistência do FMI,
alicerçada num roteiro onde constam: desvalorização da moeda,
redução do deficit, contenção salarial, privatizações, liberalização dos
mercados - e ainda os casos da bolsa de New York em 1987 e da libra em
1992.
A crise actual revela, claramente que a globalização não evitou a
manutenção das baixas taxas de crescimento, nem resolveu os
problemas da acumulação capitalista; revela, que este eixo estratégico
de actuação do capitalismo não constituiu uma sua etapa superior e,
mesmo que o tivesse sido, não durou muito.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 24
25. 3 – Financiarização
O capital não poderia conceber cingir-se à rendabilidade normal dos
negócios, nem sequer à rendabilidade dos negócios chorudos. E como a
economia real acompanha de perto o crescimento das necessidades
humanas (embora contidas pelo próprio sistema) inventaram a
financiarização, a extração de lucros rápidos, a sucessão infinita de
ganhos, a partir de quase nada, sem recurso a trabalhadores, instalações
ou cobradores de impostos.
• O capital financeiro deixou de ser o produto da fusão da indústria
com a banca dentro do mesmo conglomerado, como definido por
Hilferding e Lenin ou, trave mestra do infraestrutura económica do
chamado capitalismo renano, também vigente no Japão, pré-
neoliberal. O capital financeiro ganhou uma total autonomia de
actuação, cria a sua própria base de criação de capital, desligada
da economia real tornando-se esta um mero instrumento de
aplicação e rendabilização de liquidez, com a ausência de
qualquer preocupação de longo prazo. Dito de outro modo, o
capital financeiro é como o monstro Golem da mitologia judaica,
que acaba por devorar quem o criou e esperava poder controlá-lo
eternamente;
• Apesar das loas sobre a igualdade de oportunidades, do fomento do
empreendorismo e da empresarialização, sabe-se que o oligopólio, o
domínio não concorrencial dos mercados, é a regra. No domínio da
concorrência perfeita, para além dos livros de teoria económica, só
se encontram pequenos negócios, em que os seus detentores são
mais trabalhadores que empresários capitalistas, como os cafés de
bairro, os cabeleireiros e actividades semelhantes. Quanto maiores
as rendabilidades esperadas, maiores são as exigências legais, os
empenhos políticos e o pendor para a cartelização. António de
Sousa, novo dirigente da AP de Bancos referiu, recentemente, como
teve de aceitar a constituição do BPP, com um tal João Rendeiro à
cabeça, apesar das conhecidas dúvidas quanto à sua idoneidade;
e, o BPN teria sido criado pelo Zeca Diabo, se nele não estivesse
envolvida a escória do cavaquismo, no poder?
A financiarização, envolvendo uma panóplia de formas de acesso a
moldes de elevada rendabilização de capital, não está acessível a
qualquer empresa mas, apenas ao sector financeiro, aos fundos
soberanos e aos grandes oligopólios mundiais – há quem lhe chame
a quarta renda diferencial, a somar à renda da terra, do capital e ao
rendimento do trabalho, definidos por Marx. Calcula-se em apenas
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 25
26. 5000 o número de entidades que, a nível global, têm acesso a este
truque. O mercado dos produtos financeiros, não é um mercado livre
como é ensinado nas “madrassas” universitárias e regurgitado pelos
jornais económicos;
• Uma vez que a economia real não podia oferecer taxas de lucro
elevadas pois a procura, limitada pela contenção do poder de
compra da multidão e apesar da globalização, circulavam por aí
enormes quantidades de dinheiro com uma necessidade vital de
valorização, que só poderia concretizar-se no âmbito do sector
financeiro; a financiarização tornou-se assom, a principal forma de
elevar a rendabilidade das aplicações do capital. A nível mundial, os
activos financeiros representavam 201% do PIB em 1990 e 350% em
2007 (1000% nos EUA), evidenciando, através do tempo, um
crescendo de desconexão entre a economia real e o mundo
financeiro;
• A financiarização pode gerar lucros mas, não cria valor pois, não
envolve trabalho ou a produção de bens ou serviços. Por isso, os
valores financeiros são voláteis, com variações brutais e até
aleatórias, quando escapam às previsões das chamadas “grandes
casas de investimento” e a despeito da inconsistência das
classificações das empresas de “rating”. Essa volatilidade obriga à
venda de um produto financeiro logo a seguir à compra, numa
tentativa de minimizar a probabilidade de o ter nas mãos quando
houver quebra do seu valor, a chamada “correcção”, de
aproximação aos valores contabilísticos, emagrecidos da gordura
especulativa; ou obriga à sua manutenção, em conjuntura altista,
durante a fase da formação da bolha especulativa. A questão,
nada fácil de adivinhar, é o momento para vender antes em que a
bolha rebente ou esperar que a “correcção” aconteça para
proceder à compra, na perspectiva de uma alta futura. Este ciclo
entre a bolha e a “correcção”, ou vice-versa, repete-se
frequentemente, afectando os níveis das taxas de juro, os valores das
“commodities” portanto, a economia real, em regra já muito
endividada e originando crises – mais de 100 desde a
desregulamentação e liberalização dos mercados de capitais nos
anos 80;
• Os bancos, com baixa rendabilidade na sua actividade típica –
recolher depósitos e proceder a empréstimos, diversificaram muito o
seu leque de actividades. Para o efeito, dispõem-se a criar formas
arriscadas de aplicação de capitais, propiciadoras de melhores
remunerações para eles, bancos e para os seus clientes, esperando
todos que tudo corra bem e que os índices de valorização dos títulos
subam, subam, acima das núvens. A concorrência pela captação
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 26
27. de capitais obriga os bancos a ignorar as origens mafiosas de muito
do dinheiro que anda por aí (a economia do crime corresponde a
10% do PIB mundial), facilitando-se assim, a integração desses
capitais mafiosos na economia real (investimentos imobiliários e na
hotelaria, basicamente) intensificando-se, por conseguinte, a aliança
entre o sistema financeiro e o crime organizado ou a corrupção dos
mandarins;
• Essa desregulamentação, ligada à volatilidade do valor dos
“produtos” financeiros e à sua opacidade, resultante da cadeia de
titularizações em que estão inseridos, explica o fracasso dos
reguladores em geral e dos bancos centrais, na actual crise que, de
facto, não passam de mantos diáfanos que ondulam, ligeiros, sobre
o sistema financeiro mas, bem mais compenetrados na aldrabice
estatística para favorecerem o mandarinato. E por isso, ninguém
deve estranhar os aproveitamentos criminosos do sistema, durante
décadas, como no caso Maddof, pela sua dimensão; ou, os
episódios BPN, BPP e BCP, só invulgares pelo cenário de impunidade
existente em Portugal, típico de um capitalismo subalterno,
neocolonial;
• Na incerteza em que se vive, os bancos cuidam, criteriosamente, da
sua liquidez; procedem a fusões; procuram crédito o mais barato
possível, utilizando para isso os avales dos Estados ou o
financiamento directo propiciado pelos bancos centrais; ou
aumentam ligeiramente os capitais próprios por obrigação legal.
Ninguém, contudo, sabe como retirar dos activos do sistema
financeiro os tais tóxicos que sobrevalorizam os haveres
contabilizados e constituem prejuízos ocultos, dando assim um
exemplo preverso de balanços falsificados que não são permitidos
noutros sectores de actividade. Stiglitz para reforçar a transparência
do mercado financeiro propõe, nada menos que o
desmantelamento dos grandes bancos, o que em nossa opinião,
para além de ser uma tirada lírica, não garantiria a propensão de
todos os bancos e operadores financeiros para os ganhos fáceis na
especulação. Os desejos de todos, são os de aumentar a liquidez
disponível para empréstimos que vitalizem a economia real utilizando
baixas taxas de juro para combater a recessão e procurar incentivar
o investimento. A questão é saber se há confiança suficiente para
investir, aproveitando tais taxas, esperando uma breve retoma
capaz de fazer as empresas aguentar a inevitável subida das taxas
de juro;
• Passar os olhos pela imprensa económica tradicional e observar as
informações prestadas sobre as cotações das bolsas faz pensar que
se trata de periódicos marcianos. Todas aquelas variações que,
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 27
28. naturalmente, produzem resultados vantajosos para os “investidores”
e prenunciam a retoma, constituem um mundo que em nada se
coaduna com as dificuldades das empresas em vender os seus
produtos, em obter financiamentos, em pagar os seus compromissos
ou com as dificuldades permanentes de quem trabalha, sem
esquecer os muitos milhões que nem trabalho têm.
4 – A fascização das sociedades
(Abordámos especificamente este tema no nosso blog em três artigos
com o nome de “O novo fascismo que está em marcha”)
http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/12692.html
http://www.scribd.com/doc/5571733/O-novo-fascismo-que-esta-em-
marcha
Já acima referimos que o modelo de concertação social criado em
meados do século passado, quando as taxas de crescimento eram
elevadas e havia a ameaça ideológica do capitalismo de Estado,
acabou há muito tempo, com a implantação do neoliberalismo
desregulador, descabelado e fascizante. E as dificuldades de
desenvolvimento da economia real, de satisfazer a população do
planeta, crescente em número e exigências materiais e democráticas,
também deixam a nu os limites da democracia de mercado como
modelo político exemplar. E, para se defender, o capitalismo vem
procedendo, passo a passo à implantação de medidas de controlo,
vigilância e divisão da multidão, incentivando o isolamento, o
subjectivismo individualista, a entrega ao voyeurismo mediático, como
peças determinantes para o conformismo. E grave, é a insuficiente crítica
da esquerda ao modelo político, económico e social do capitalismo de
Estado, que permite confusões entre a multidão e o aproveitamento pela
propaganda da direita que procura identificar todo o pensamento de
esquerda com os modelos do chamado “socialismo real”; promover essa
separação de águas é um dos nossos objectivos.
• É feita uma segmentação clara entre a população, cujas camadas
mais ricas são objecto de apoios financeiros, facilidades fiscais,
protecção legislativa, dignificação das suas funções, enquanto a
esmagadora maioria é confrontada por um lado, com os rigores da
lei, do risco inerente à precariedade, no trabalho e nas condições de
vida, à escravatura do crédito que cativa os rendimentos e os
pertences durante toda a existência e, por outro lado, com a
tendência para um retorno à lógica assistencialista e caritativa que
diminui, fragiliza e acentua a precariedade da vida dos que caem
na pobreza.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 28
29. Esses dois segmentos populacionais, muitas vezes nem sequer se
encontram fisicamente. Os ricos, vivem em condomínios fechados,
zonas residenciais escolhidas, saem directos para as suas funções,
sem contacto com transportes públicos, relacionam-se com os seus
pares, nos negócios e na vida privada; do mundo da maioria,
conhecem o jardineiro, os domésticos, o motorista e pouco mais;
• No caso português, os funcionários públicos foram submetidos a uma
segmentação fulcral sob este ponto de vista, promovida pelo gang
socratóide. Garantem-se maiores regalias, nomeadamente o vínculo
definitivo aos agentes da estrutura repressiva – militares, polícias e
juizes – tornando-se todos os outros (grande maioria e onde avultam
os docentes e os quadros da saúde) objectos passíveis de
despedimento, menores regalias e forte controlo biopolítico.
Por outro lado, à velha tendência totalitária de colocar nos cargos
de chefia da administração pública gente afecta ao gang do poder
(ou, pelo menos, permeáveis aos seus humores) vieram agora juntar-
se os sistemas de avaliação, o SIADAP e o dos professores, para
dividir, fragilizar e colocar os trabalhadores ao arbítrio do regime
fascizante em construção, naquilo que se designa por controlo
biopolítico;
• No mesmo sentido, cautelarmente, Sócrates lançou recentemente a
ideia de criar uma rede de bufos, com nomes falsos, na
administração pública, para combater o crime financeiro e a
criminalidade organizada. Estamos mesmo em crer que os visados
devem ser os ministros, para assim se evitarem novos casos Freeport...
E quanto ao crime financeiro perguntamos se também vão infiltrar as
adminitrações dos bancos para evitar casos como o BPN…
Como é óbvio, pretende-se intimidar a arraia miúda, gerar a
desconfiança e a delação, eventualmente com uns trocos extra ao
fim do mês (isentos de IRS) e apresentar na abertura dos telejornais
uma mão cheia de pequenos corruptos apanhados ou um punhado
de polícias subornados para não passarem multas. É isso que irá
resultar da presença dos bufos, para além de um ou outro caso
proveniente das lutas intestinas no seio do PSPSD;
• O empresário-modelo Belmiro cujos negócios não andam prósperos
(casos da indústria, Tróia, centros comerciais e telecomunicações),
ao depender particularmente da distribuição, bem merece o epíteto
de grão-merceeiro. Pois bem, tempos atrás apresentou uma solução
para a crise: como a capacidade produtiva não utilizada será da
ordem dos 25%, há que adequar o volume de emprego e portanto
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 29
30. fazer chegar o desemprego também a 25%! A linear lógica
cartesiana do engenheiro encontrará aplauso nas centúrias
neoliberais, nomeadamente num tenebroso António Borges, vice da
bolorenta Balela e seu eventual ministro das finanças;
• A constante exacerbação da insegurança e a exortação ao
sacrifício de todos têm como pano de fundo diversos objectivos. Um,
é o de assustar a multidão, face à criminalidade, aos imigrantes, ao
indefinido “outro” e fomentar o seu acolhimento, temeroso e
submisso ao protector governo, ao imenso conhecimento do
mandarinato. O outro, é o de suscitar o sacrifício de todos, pobres ou
ricos, trabalhadores ou capitalistas, num espírito de unidade e
coesão, enganador e capcioso, na exploração dum patriotismo,
cuja base material se tem diluido com a globalização da produção,
a abertura de fronteiras e a integração económica dos países;
• O controlo da internet é algo que os poderes há muito ambicionam.
Por um lado, as multinacionais vêem os seus lucros reduzidos por
efeito da partilha de música, filmes e livros entre a multidão, um
tráfego que lhes escapa completamente, dada a criatividade da
comunidade dos cibernautas. Por outro, a frequente entrada de
“hackers” nos ficheiros de grandes instituições, tão simpáticas como
os bancos ou o Pentágono, é um perigo constante para os
poderosos, cuja segurança não está jamais garantida, apesar dos
custos enormes com a segurança informática. Finalmente, os Estados
e os poderes não gostam que a internet seja uma democracia entre
os seus utilizadores, pela facilidade de comunicação, escrita ou oral,
pela enorme e quase instantânea troca de conteúdos que pode
abranger rapidamente o mundo inteiro, apesar de muitas manchas
de pessoas sem acesso à internet, nomeadamente nos países mais
pobres ou dos controlos estatais já existentes, por exemplo na China
e no Irão. Recorde-se, como a troca de opiniões mobilizou os
espanhóis, quase à boca das urnas, para rejeitarem o fascista Aznar
que foi penalizado por manipulação grosseira das explosões na
Atocha, em 2004; sem que o governo espanhol o suspeitasse ou
pudesse intervir, se o tivesse sabido;
• Em Maio de 2009, o Parlamento Europeu teve a meritória e rara
coragem de rejeitar um projecto da Comissão Europeia. Pretendia
esta, que o acesso à internet não fosse irrestrito, como agora mas,
condicionado por pacotes de acessos fornecidos pelos operadores
de telecomunicações e que cada pessoa escolheria em função da
oferta existente e do preço a pagar, como acontece com a
televisão por cabo. A mesma Comissão que tanto pugna pela
liberdade de circulação de bens e capitais pretendia restringir a da
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 30
31. informação; numa palavra, os operadores, licenciados que são pelos
Estados exerceriam o altruista papel de nos defender do terrorismo,
da pedofilia e, porventura, também da chuva, da azia… As
distribuidoras de música e filmes que “naturalmente” não foram
consultadas neste processo, por acaso sairiam altamente
beneficiadas… E os governos veriam assim diminuida a circulação
da informação crítica ou daquela que os media convencionais
ocultam, das denúncias das injustiças, da corrupção e das
violências, de debate democrático, de contestação, de
organização das resistências.
Como não temos muitas ilusões sobre as apetências do Parlamento
Europeu para a defesa dos direitos e bem estar dos europeus,
suspeitamos que para tão inusitada e positiva decisão pesaram, mais
do que a mobilização dos cibernautas, o facto de as eleições
europeias se realizarem um mês depois (Junho) e os interesses de
muitos negócios para os quais interessa a internet nos moldes actuais,
aberta e irrestrita. E por isso esperamos pelos próximos episódios,
saltando-nos à memória as palavras censura e “1984”;
• Há uns dez anos foi denunciado um sistema de vigilância e
espionagem de comunicações (o Echelon) que vigorava desde
1948, com os EUA capitaneando alguns países anglófonos e que,
para além de estarem atentos ao que era transmitido para lá da
“Cortina de Ferro”, cuja utilidade se desconhece, tinha uma missão
mais rentável que era a da espionagem industrial sobre países
europeus.
O 11 de Setembro veio justificar todas as medidas de controlo da
informação, com uma exaustão demencial, como a de conhecer os
livros consultados pelos frequentadores das bibliotecas americanas.
Porém, em Londres, apesar de pejada de câmaras de video-
vigilância, os atentados no metro aconteceram. Esquecem-se que a
informação, massificada em volumes inauditos perde utilidade
prática e que, passadas poucas horas de observação, qualquer
vigilante se aborrece, se distrai e de facto, passa à categoria de
peneira tentando filtrar o sol.
Na província portuguesa, o nacional socialista Sócrates, que gosta
de andar na moda, decidiu obrigar as operadoras de
telecomunicações a arquivar durante um ano, os emails e as
chamadas telefónicas, identificando emissor, destinatário, momento
da transmissão e duração da comunicação que ficarão disponíveis
para os juizes utilizarem e para as bófias espiolharem. Por enquanto,
sublinhamos, por enquanto, não irão guardar os conteúdos mas, num
PIDACC próximo, poderá ser contemplada a compra de mais
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 31
32. suportes para que isso seja possível. Porque será, que de novo nos
lembramos de Orwell?
• Os sistemas políticos de democracia de mercado procuram
arduamente fechar-se sobre si próprios, insinuando a sua
representatividade relativamente às populações. Na realidade, os
ditos representantes (muitos nem sequer se submetem a qualquer
votação) apenas representam os interesses do capital financeiro,
das multinacionais e da economia mafiosa. E muitos, pelas suas
qualidades democráticas, políticas ou técnicas, suscitam mais troça
do que respeito.
É curioso observar como os jornais revelam todos os dias opiniões e
entrevistas com oligarcas e patrões a favor das maiorias absolutas
como única forma de assegurar a governabilidade, quer apostando
na maioria clara de um dos partidos do sistema, quer favorecendo a
coligação entre ambas as facções que definem o bipartidarismo; e
isso, num quadro empobrecedor de encerramento do quadro das
escolhas, aos partidos do sistema que, qualquer análise distraída
evidencia não apresentarem nada de alternativo às dificuldades
existentes, nem sequer dirigentes ou quadros com outro préstimo,
que não a solícita atenção aos interesses dos capitalistas em geral.
Sabendo-se como a acção dos governos suplanta, de longe, a
actividade legislativa dos parlamentos, para mais, em regra
governamentalizados, em clara inversão do que estipulam os textos
constitucionais e a teoria política, tiram-se duas conclusões. Uma,
que a fulcral importância dos governos como gestores do
orçamento e emissores de leis e regulamentos passa em grande
parte à margem de qualquer controlo democrático; e, por outro
lado, a manutenção da formalidade litúrgica dos parlamentos é
uma forma de mostrar à plebe uma caricatura da sua
representação.
Dentro dessa linha, também nas instàncias da UE se mostra bem o
enorme poder dos conselhos de ministros europeus e dos comissários,
que ninguém elegeu, relativamente a um quase castrado
Parlamento Europeu. E é este o modelo que os governos da UE e dos
EUA gostam de apresentar e impor aos outros povos, como exemplo
de democracia.
Essa caricatura assumiu, recentemente, a propósito da constituição
europeia/tratado de Lisboa, formas claras de imposição autoritária,
fascizante, por parte do poder político, dito democrático. Assim, os
franceses, que haviam rejeitado a panaceia em referendo, foram
considerados incompetentes e substituidos na decisão por uma
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 32
33. votação entre amigos e compadres, a tralha do Sarko(na)zy e os
nacionais socialistas lá do sítio. Na Irlanda, o povo votou contra os
interesses dos poderes económicos e estes, logo se aprestaram a
encomendar aos mandarins a criação de um cabaz de promessas
para convencer os irlandeses a votar convenientemente; promessas,
aliás que poderão, facilmente, ser torneadas ou esquecidas logo a
seguir.
Em Portugal o biltre Sócrates prometeu um referendo sobre o tratado
mas, na senda de Salazar, entendeu que os portugueses não
estavam preparados para compreender as elevadas razões da
escolha. E a “challenger” Ferreira Leite, nem isso pensa; porque isso
envolve custos públicos ou, porque nem sequer pensa.
Em todas estas situações, a multidão foi ignorada, afastada,
desconsiderada, infantilizada, como é apanágio dos regimes
ditatoriais. Hitler, lá das cinzas que dele sobraram, deve exultar com
tantos seguidores.
• O aparelho da justiça é pesado, desconexo e controlado pelo poder
político nas mais altas instâncias, contribuindo para que a aplicação
da teoria dos três poderes não passe de uma farsa. É lesto em
penalizar os pobres e muito bem montado para desonerar os ricos e
poderosos, os criminosos de colarinho branco ou simples pedófilos, se
pertencentes à mesma cáfila. As suas insuficiências e os costumeiros
arrastamentos e prescrições servem essencialmente, como temas
mediáticos para contentar o voyeurismo social em torno dos
criminosos e de investigadores, magistrados, procuradores, cuja
actividade redunda, precisamente, trabalhar para criar prescrições,
ausências de provas, a aplicação de leis feitas para ter um efeito
desonerador ou, penas suspensas;
• As forças militares, sobretudo com o fim do serviço militar obrigatório
acentuaram a sua postura corporativa, quer pelas reivindicações
públicas da baixa oficialidade que pretende elevar a sua relevância
como milícia do regime cleptocrático quer, pelo respeito que o
mandarinato lhes atribui. O seu poder efectivo de guarda pretoriana
é relativamente pacífico e dissimulado mas, transparece, por
exemplo, quando Obama teve de aceitar, imposto pelo Pentágono,
como secretário da defesa um tal Robert Gates, transitado do
governo de Bush.
A sua ligação a funções policiais, a interpenetração entre quadros
das forças armadas e das polícias, a sua proximidade no que
respeita à vigilância da multidão foram reforçadas no âmbito da
histeria anti-terrorista aumentando, no seu seio as tradições anti-
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 33
34. sociais, elitistas, fascizantes, xenófobas e de malformação cívica. Esse
amor à autoridade, à “disciplina”, à obediência cega e sem
contestação, à ordem, emanaram recentemente do discurso de um
general reformado que, perante uma conveniente plateia de gente
do CDS, defendeu a possível prisão de crianças com 12 anos.
Outra das formas de integração das forças armadas com a
“sociedade civil” é a assunção por esta última de funções no âmbito
da segurança em geral e da actividade militar em particular.
O caso mais emblemático e que servirá de exemplo para outros
países é o da utilização de pessoal pertencente a empresas
privadas, mesmo em cenário de guerra. Em Junho último e de
acordo com notícia de “Democracy Now” baseada em dados
oficiais, os EUA tinham no Afeganistão e no Iraque, respectivamente,
58000 e 132000 soldados e 74000 e 120000 contratados. Por seu turno,
a revista “Nation” revelava que o polvo Blackwater (ligada a um
fascista chamado Dick Cheney, ex-vice do consagrado G W Bush)
foi contratado por Obama para fornecer serviços de segurança,
naqueles dois países ocupados, no valor de 174 M de dólares e de
várias dezenas de milhões para “serviços de aviação”
(bombardeamento de casamentos e outros ajuntamentos de
pessoas, tomados invariavelmente como talibans). Acrescenta-se
que a Blackwater (designação apropriada) pertence a um tal Erik
Prince que se considera um cruzado “cuja missão é eliminar
muçulmanos e a fé islâmica da face do planeta”. Almas piedosas!
Prosseguindo na exploração da lógica da privatização defendida
pelos neoliberais, melhor seria extinguir as forças armadas e deixar
que as multinacionais e os bancos contratem actividades guerreiras
e de segurança musculada a empresas privadas especializadas; só
não o fazem porque a utilização do dinheiro dos impostos para
pagar essas actividades lhes sai mais barato;
• Na ausência de ideias mobilizadoras, o capitalismo vem utilizando
uma técnica muito antiga, na base de todos os autoritarismos, todos
eles antónimos de democracia – o culto do chefe. O autoritarismo é
mau quando polarizado em figuras mediocres, voláteis, qual marca
de sabonete e, quando assente em figuras de alto quilate político,
não deixa de ser mau; é pois, um mal absoluto.
O chefe pretende ser apresentado como um símbolo de visão
estratégica, de conhecimento da realidade, de capacidade
transformadora, de modernidade, de competência, de elo
unificador de classes, multidões e povos. Perón mobilizava os pobres
descamisados; de Gaulle pelo seu nacionalismo de militar; Salazar
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 34
35. pela capacidade de castração e de gerar obediência, que tudo
previa e acautelava, menos o estado da última cadeira em que se
sentou; Hitler pelos ataques histéricos contra tudo o que não fosse
ariano; e Stalin que, regando a sua passagem pelo mundo com
sangue e terror, tropeçou na morte quando já o faziam pai imortal
dos povos.
Hoje, os lideres são fugazes, produtos de moda, construidos por
fazedores de imagem que definem poses, vestes, palavras e trejeitos.
São produtos cosméticos treinados para enganar, como os cães-
polícias para morder; não têm outro préstimo. E a instabilidade
natural da crise sistémica que é o capitalismo, mais aquela que é
gerada pelo frenesi precarizante introduzido nas nossas vidas, obriga
a uma rotação de produtos (chefes) com uma velocidade enorme.
Assim, surgem, na cena portuguesa do regime cleptocrático,
produtos frágeis, voláteis, chumbados em qualquer teste de
qualidade, não fora a ajuda prestimosa dos media, que os
promovem ou mandam para a galeria dos monos; Cavaco, Ferro,
Sócrates, Durão para além das pilecas Santana, Menezes, M Mendes
ou Ferreira Leite.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT 16-07-2010 35