As certezas na história da humanidade sofrem, por vezes abalos demolidores. As causas desses abalos começam por ser objeto de violência e depois, de silêncios conformados ou de adaptações desvirtuadoras.
1. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 15/4/2014 1
Algumas fraturas narcísicas na evolução histórica
As certezas na história da humanidade sofrem,
por vezes abalos demolidores. As causas desses
abalos começam por ser objeto de violência e
depois, de silêncios conformados ou de
adaptações desvirtuadoras.
1 - A fratura coperniciana
2 - A fratura de Darwin
3 – Fraturas no optimismo capitalista – Marx
4 – Fraturas no optimismo capitalista – Bakunin
5 - A fratura do Homem como construção social
1 - A fratura coperniciana
No século XVI, Copérnico abalou as certezas de muitos, dominantes durante muitos
séculos, quando divulgou o seu livro sobre a teoria heliocêntrica. Como a “comunidade
científica” não lhe deu grande importância, morreu na paz do Senhor um ano antes da
publicação do livro; o Papado andava então mais preocupado com as heresias de
Lutero e em estruturar a Inquisição, criada um pouco antes da morte de Copérnico.
Este, portanto evitou os incómodos que Galileu haveria de sofrer por defender o
heliocentrismo, cerca de um século depois; e, por consequencia, não foi confortado
pelas desculpas dirigidas pelo papa Wojtila, em 2000, ao azarado Galileu.
Apesar do continuado interesse do Papado com o equilíbrio psicológico dos seres
humanos, a santa instituição não consequiu evitar o abalo no narcisismo imanente ao
homo biblicus que então se colocava no centro do universo, criado num acto
caprichoso de um deus entediado. Afinal, a Terra não passava de um planeta que
gravitava em torno do Sol. que por sua vez se enquadrava numa Via Láctea que por sua
vez… Destino indigno, miserável para quem se considerava como a suprema invenção
do Criador.
Esta foi a primeira ferida narcísica que a análise científica provocou no homo biblicus,
construído por uma póstuma aliança entre Aristóteles e o messianismo judaico.
2 – A fratura de Darwin
Em meados do século XIX, ao inserir a espécie humana na evolução da vida na Terra,
com uma evolução própria através do tempo e não como ser pré-fabricado, Darwin
desfere uma profundo golpe no orgulho narcísico do homo biblicus auto-proclamado
como elemento central da criação divina.
Depois de colocado num planeta insignificante no contexto do universo, o Homem é
revelado como um elemento de uma imensa variedade de formas de vida, em
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constante adaptação às condições do ambiente natural, num processo de tentativas
que envolvem êxitos e fracassos.
Depois de perdidas as ideias de geocentrismo, as consequências da consideração de
uma evolução das espécies obrigam o regulador vaticano a remeter o homo biblicus
para o conforto do campo da irracionalidade inerente ao conceito de fé, como um
refúgio, adornado por uma colorida grinalda de fábulas. Fica consumada uma segunda
fratura narcísica.
3 – Fraturas no optimismo capitalista – Marx
No campo da evolução no pensamento social regista-se uma profíqua atividade
criativa nos séculos XVII-XIX onde se deve enquadrar, entre John Locke e David
Ricardo, Adam Smith, Rousseau ou Quesnay, entre outros. Procurava-se então,
entender as múltiplas transformações da mundialização e gerar um modelo explicativo,
nomeadamente nos campos do modo de produção, da organização política e das
relações entre aquelas.
No capítulo do modo de produção, o capitalismo ia saindo de uma exclusiva ocupação
no comércio, para se lançar decididamente na aventura da produção de mercadorias,
em larga escala, com o recrutamento de assalariados, a criação da oficina, da fábrica,
do trabalho, com o preciso e exclusivo objetivo da capitalização, da geração de
dinheiro; desligado, portanto, da satisfação das necessidades humanas, o que
acontecia pela primeira vez desde a evidenciação dos homens, entre os primatas.
As necessidades de força de trabalho exigiam a destruição dos vínculos de ordem
política entre servos e senhores, para a libertação de detentores da força de trabalho
conveniente para um capitalismo optimista, com a pujança da juventude. Para efeitos
de demarcação face ao feudalismo a burguesia vai defender o vínculo social essencial
se faz entre seres “livres”, tendo de um lado, o capitalista que se apropria do produto
do trabalho, transformado em mercadoria e do outro, os assalariados com direito a
uma contraprestação avaliada em torno do necessário para poderem perpetuar a sua
subalternidade, a sua submissão. A liberdade política replicava a hipocrisia igualitária
da relação laboral, comportando a sacralização da propriedade como ponto de partida
e de chegada para o exercício da vida política, excluidos os camponeses e os
proletários que se amontoavam nas cidades.
Por seu turno, o domínio do aparelho de estado era necessário para conduzir a guerra
resultante da rivalidade entre as potências europeias para a supremacia sobre os
outros povos e respetivos recursos. Esss pulsão pelo domínio, ao fundir o capitalismo e
com o liberalismo político está na base da construção das nações, como elementos
fundamentais para a constituição de coutadas, de prisões de povos para servirem as
respetivas burguesias nacionais.
O rei passou de um árbitro das disputas senhoriais para um símbolo da unidade
nacional, funções essas que passaram para figuras não hereditárias nas situações que
que a monarquia se tornava insustentável, como mudança necessária para garantir que
nada se alterasse de substantivo na ordem capitalista.
Qualquer Estado capitalista com o seu rei/presidente, em constantes disputas com a
concorrência, teria de garantir a fidelização dos seus trabalhadores já constrangidos
pela existência de fronteiras bem definidas e guardadas. O instrumento para esse
efeito de fidelização e rejeição do Outro foi o patriotismo
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que permite diabolizar o Outro, que mais não é do que um alter ego de nós próprios.
Daí a tara identitária de edificar uma nação para cada povo, à revelia de miscigenações
seculares, preocupação florescente do século XIX, ainda vivida nos tempos e em
guerras correntes.
Na mesma época de Darwin, surgem Bakunin e Marx para colocarem em questão a
arquitetura económica, política e social do impante capitalismo.
Marx demonstrou os limites inerentes ao capitalismo como sistema económico,
baseado num incremento constante de capital fixo e redução da parcela de trabalho
direto na produção, gerando crises de sobreprodução em paralelo com limitações
marcantes que afetam grande parte da população mundial; essas crises, frequentes
desde o século XIX, têm conduzido a guerras devastadoras e a desigualdades
monstruosas, num plano de destruição ambiental agravada. Por sue turno, observa-se
a fuga para a frente através da financiarização da economia, que incha e desincha as
bolhas financeiras/imobiliárias numa cadência cada vez mais violenta. Em
contrapartida, persiste uma evidente menoridade política da multidão planetária e,
mormente, dos trabalhadores que hoje, mais que nunca, dominam tecnicamente todo
o processo produtivo, sem precisar de capitalistas para coisa nenhuma1
.
Essa demonstração marxiana (não confundir com as variadas deturpações chamadas
marxistas) evidencia que o auto-confiante capitalismo afinal tem pés de barro e trás no
bornal uma bomba-relógio que o destruirá, sem que se possa livrar dela. Apenas
poderá ir retardando a sua explosão, com habilidades e subterfúgios diversos. Marx
destruiu essa auto-confiança de um capitalismo narcisista, tornando o sistema marcado
por uma crise existencial, a terceira das fraturas narcísicas aqui apontadas.
4 – Fraturas no optimismo capitalista – Bakunin
Bakunin viu melhor a questão do Estado do que Marx; este, tomando como exemplo o
desfecho da Comuna de Paris entendeu a importância do Estado como instrumento
útil para a consolidação do poder dos trabalhadores, contrariamente a Bakunin que
sempre tomou o Estado como excrescência do capitalismo.
A supremacia da tolerância face ao Estado foi prosseguida e desenvolvida por Lenin,
que se veio a colocar como o criador de facto do capitalismo de estado, com aplicação
extensiva na URSS, alcunhado de socialismo, fazendo escola em experiências
posteriores. Pretendia-se, com o socialismo, definir uma etapa (eternamente)
transitória para se atingir o comunismo, no qual o Estado, a propriedade e as classes
sociais se dissipariam. Stalin e Trotsky foram os heróis da aplicação prática deste
modelo chamado “socialismo científico”, cilindrando como contra-revolucionário
qualquer recalcitrante, tratando de deturpar a obra do próprio Marx, inventando uma
panaceia, - marxismo-leninismo - para justificar a construção do capitalismo de estado.
Ainda com Lenin surgiu uma outra inovação – o partido – constituido por auto-ungidos
representantes do povo e da “classe operária” dotados de uma irrefutável omnisciência
prosseguida no terreno com a inclusão de um medonho aparelho da repressão física,
militar ou policial e, gerando um aparelho ideológico responsável pela censura e
definição da “linha justa”, no conhecimento, na arte, no comportamento individual. Na
realidade o partido demonstrou ser uma casta rodeada de privilégios e inchada pela
corrupção mas, apontando sempre como objetivo, a construção do dito socialismo.
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http://grazia-tanta.blogspot.pt/2011/12/afinal-qual-funcao-social-do.html
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A conivência tática do capitalismo de “iniciativa privada” com o de estado, do
(neo)liberalismo ocidental com o tal marxismo-leninismo promoveu, durante décadas,
a perseguição e a ocultação do pensamento libertário e da sua profunda crítica do
Estado como ente genuinamente opressor, como capitalista coletivo, ocupado por
minorias de privilegiados, corruptos e repressores. Isso aconteceu na URSS, como na
Alemanha nazi, no franquismo como no salazarismo, como também nas democracias
de mercado, ocidentais. O pensamento anarquista foi submetido a um feroz
silenciamento até 1968, quando saiu do gueto para as ruas, em França e Itália.
Hoje, qualquer movimento social incorpora muito mais ideias anarquistas do que as
recolhidas do cardápio marxista-leninista; embora haja defensores de receitas deste
último dentro dos movimentos sociais a sua presença é, demasiadas vezes, no sentido
do controlo e desvirtuamento da autonomia e dos objetivos da multidão. Em síntese,
mantêm-se fiéis na defesa de uma sociedade capitalista.
Passado mais de um século, os movimentos sociais, ao colocarem em causa o Estado
como supremo orquestrador do capitalismo; a organização hierárquica e autoritária
bem representada nas empresas e nos partidos; a demência capitalista promotora do
consumismo e do desastre ambiental; a guerra e a violência como modos de
domesticação das “massas”, tornam Bakunin e o anarquismo como os portadores de
poderosos instrumentos de libertação da multidão humana face ao capitalismo, num
mundo globalizado e sob formas diversificadas e intensivas de solidariedade na
produção como na cultura2
.
Depois do hiato vivido entre as duas guerras, com a ascensão dos fascismos e do
modelo soviético; depois do fracasso dos teoremas keynesianos de salvação do
capitalismo através do seu modelo de intervenção extensiva do Estado; depois dos
últimos 40 anos do cruel experimentalismo neoliberal que não recua (tal como os
nazis) perante o genocídio, está em aberto uma nova prática política, uma nova
sociabilidade humana, um novo modelo de organização da satisfação das necessidades
coletivas, baseado no pensamento e na ética libertária.
As transformações em curso na consciência da multidão colocam-nos numa época de
mudança face ao papel do Estado, da organização política e social, dos modos de
decisão sobre as necessidades coletivas e da sua gestão. Essa nova consciência
evidencia a vivência de uma outra fratura narcísiva. Em Portugal é, porventura, menos
visível dado o atraso das estruturas económicas, políticas e culturais. Se nos
lembrarmos que a chegada a Portugal da teoria da evolução das espécies foi
considerada no século XIX como um disparate pelo magnífico reitor da universidade de
Coimbra… há razões para algum otimismo; embora haja quem aceite uma dívida
ilegítima e impagável de facto (com ou sem reestruturação) justa causa para a
penitência através do empobrecimento, como via para a felicidade coletiva. Salazar
sobrevive, os portugueses querem-se pobres mas honrados.
5 – A fratura do Homem como construção social
Depois das fraturas narcísicas provocadas pelo génio de Copérnico e de Darwin o
humanidade, despida dos seus adornos bíblicos e inventou novos idílios, entre eles o
capitalismo e o Estado que, apesar dos caminhos abertos por Marx e Bakunin, muitos
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http://grazia-tanta.blogspot.pt/2011/12/neoanarquismo-por-manuel-castells.html
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continuam a não ver como soluções para a sociabilidade humana e para a construção
do bem-estar dos indivíduos.
A psicanálise começou por uma interpretação de que a consciência mais não seria que
a emanação de factores inconscientes, numa concepção algo a-social da realidade
individual. Assim, a cada um de nós caberia a gestão dessa determinação, dessa
subjetividade, relativamente imune a forças exteriores, numa solidão narcísica que nos
condenaria ao confronto com a nossa imagem no espelho; a não ser que
enveredássemos por uma penosa cura psicanalítica, nunca garantida a priori.
A verificação de que a nossa individualidade é um produto social, que se constrói
durante toda a vida como resultado de relações sociais corrói essa ideia de magnífico
isolamento, de atitudes defensivas face ao exterior, ao Outro, tomado como intruso,
como potencial ameaça à nossa relação conosco próprios e dificilmente encarado
como contribuinte para a solução dos nossas próprias dificuldades na observação e
compreensão da realidade que nos rodeia.
Esta observação traz outras consequências. Por um lado incorpora a nossa atitude para
com os outros na realidade da múltipla interação social que se observa no trabalho, na
escola, na família. Por outro, a abertura daí resultante entra em antagonismo com as
pulsões do capitalismo para o individualismo, para a competição, para a supremacia
sobre o Outro.
Pelo contrário, se estamos inseridos numa matriz de relações sociais que nos
enformam através da vida, isso significa que a realidade que vivemos é uma realidade
individual partilhada que nos insere num espaço comum e de solidariedades. A auto-
satisfação de um narcisismo doentio, decididamente tende a ter pouco espaço; e o que
tiver não é virtuoso.
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Documentos e textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents