A CRP conseguiu juntar estimáveis princípios de ordem geral com uma clara preocupação em centralizar a decisão numa classe política, avessa e desconfiada de qualquer forma de poder democrático. Os deméritos da CRP são não ter evitado a rapina dos bens públicos nem ter potenciado o aprofundamento da democracia.
Sumário
1 – Introdução
2 - A soberania
3 - O povo cria o Estado ou é o Estado que cria o povo ?
4 - Quem constitui o povo?
5 - A captura da democracia
6 – A invalidação dos referendos
A soberania portuguesa e os princípios oligárquicos da Constituição
1. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 1
A Constituição (CRP) e alguns dos seus princípios oligárquicos
A CRP conseguiu juntar estimáveis princípios de
ordem geral com uma clara preocupação em
centralizar a decisão numa classe política, avessa e
desconfiada de qualquer forma de poder
democrático. Os deméritos da CRP são não ter
evitado a rapina dos bens públicos nem ter
potenciado o aprofundamento da democracia.
Sumário1
1 – Introdução
2 - A soberania
3 - O povo cria o Estado ou é o Estado que cria o povo ?
4 - Quem constitui o povo?
5 - A captura da democracia
6 – A invalidação dos referendos
++++++++++xxx++++++++++
1 – Introdução
São as pessoas que dão substância às sociedades humanas. A sua presença
continuada num determinado território atribui-lhes, coletivamente, o direito de
o utilizarem de modo a garantir o seu bem-estar, como ainda a
responsabilidade de transitar esse território, para as gerações seguintes, no
mínimo melhorado e enriquecido no seu equilíbrio e na capacidade de gerar
bem-estar.
Dada a grande complexidade das sociedades humanas, torna-se necessária uma
atividade colaborativa entre os seus membros, que a todos beneficie, enquanto
usufrutuários comuns de um conjunto de bens e serviços e que,
simultaneamente, minimize o esforço físico e intelectual de cada um, enquanto
produtor daquele conjunto de bens e serviços. Essa atividade colaborativa na
1
Este texto é o quinto de uma série de textos cobre a CRP. Os anteriores podem ser consultados aqui:
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/02/para-uma-constituicao-democratica-com.html
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/03/para-uma-constituicao-democratica-com.html
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/03/para-uma-constituicao-democratica-com_22.html
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/05/um-modelo-democratico-para-os-municipios.html
2. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 2
gestão da res publica passa pela existência de instituições, entendidas como
grupos de pessoas que as constituem e gerem como instrumentos de toda a
sociedade para o desempenho de tarefas específicas, sem prerrogativas de
autoridade, quer no seu seio, quer em relação a quantos os que sentem as
consequências desse desempenho.
Temos consciência da imaturidade política da multidão em Portugal – e não só
- após quatro décadas de regime cleptocrático e da propaganda em torno da
inevitabilidade do capitalismo e da democracia de mercado, como modelos
finais e perfeitos de organização das sociedades; isso, no seguimento de 48
anos de um fascismo defensor de um corporativismo beato e da pobreza como
virtude, também como elementos de um modelo final e perfeito de organização
social. O regime fascista usava a censura e a repressão primária para obviar a
ínvias contaminações; o actual regime pratica também a censura e a subtil
marginalização dos elementos e das ideias contaminantes.
Por outro lado, o período que se sucedeu a 25 de novembro de 1975, marcado
por uma escassa movimentação social, não gerou, nem vem gerando, uma
avançada consciência democrática ou, a potenciação da resolução comum das
necessidades sociais. Pelo contrário, promoveu um conformismo acrítico que
tem contribuído para a calamitosa situação actual - cujo agravamento se
avizinha como a evolução mais provável - e a cómoda e ingénua espera por um
Estado paternalista que zele pelo bem-estar coletivo.
Quanto à Constituição da República Portuguesa (CRP), tem havido um informal
consenso no seio da classe política, no sentido da sua não alteração, sem
prejuízo de regulares alusões a modificações, referentes a aspetos parcelares,
que se enquadram somente nos típicos jogos florais interpartidários. Nas
bandas do partido-estado PSD/PS, a CRP é um pomposo adereço, que pouco
tem servido de empecilho para a prossecução dos seus objetivos de saqueio
dos bens públicos, de redução de direitos e de aumento da carga fiscal. Nos
lados da chamada esquerda, tem-se adoptado, desde 1975, a posição defensiva
de conservar o que está, para que das mudanças não advenha algo pior. Esta
postura de permanente consolidação do statu quo constitucional não tem
servido para coisa alguma de positivo, uma vez que a CRP foi concebida, na
letra, no capítulo das instituições ou do modelo de representação que dela
imana, como um passador que tudo permite no que convém ao capital; até
mesmo admitiu a colonização pela troika, apesar das muitas referências a uma
orgulhosa soberania.
Tomar os primeiros artigos da CRP constitui um inevitável tropeçar com um
conjunto de definições filosóficas basilares, ausentes na realidade superveniente
ou, cuja total denegação tem sido, de facto, permitida pela própria CRP, através
dos órgãos a quem competiria zelar pela sua cabal aplicação. Uma peça
exemplar do caráter fraudulento das instituições cleptocráticas foi a votação na
3. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 3
Assembleia da República, por unanimidade, de uma recomendação para
combater a pobreza, em 20082
. Três anos depois, mais ou menos os mesmos
convivas, aceitavam, submissos, o memorando da troika, evidente acelerador da
pobreza.
2 - A soberania
Está ultrapassado o tempo do encerramento autárcico dos estados-nação3
,
desconfiados face a ameaças reais, potenciais ou imaginárias provenientes do
exterior e que justificavam fronteiras estanques, forças militares para
aprisionarem os povos como objeto de caça e espoliação a favor dos
capitalistas domésticos.
Entendamo-nos. Não nos tocam sentimentos patrióticos de orgulho nacional;
temos mais afinidades e devemos mais solidariedades para com trabalhadores,
desempregados ou espoliados de qualquer parte do mundo do que com
capitalistas ou mafiosos portugueses.
A deriva neoliberal que gera as investidas contidas na prossecução do chamado
projeto europeu é acompanhada do afundamento político e ideológico da
esquerda tradicional4
e tem vindo a vincar diferenças, hierarquias e xenofobias
no seio da Europa. Não queremos ser cúmplices desse processo e imitar os
nossos avós que se lançaram como feras sobre os seus congéneres, igualmente
vítimas do capitalismo, em 1914/18, só porque viviam do outro lado da
fronteira. Não queremos apoiar os “nossos” capitalistas contra os capitalistas de
outras latitudes e, nesse apoio, entrarmos em disputas estupidamente
fratricidas com outros povos: defendemos a colaboração com outros povos e
gentes, um reafirmar da solidariedade internacionalista a que a globalização
capitalista obriga, desde o seu início.
A sociabilidade dos povos baseia-se na expressão das solidariedades, tanto
quanto possível no seio das comunidades locais; porém, isso não significa
encerramentos paroquiais no seu espaço próximo ou nacional, sendo tempo de
criação de partilhas de soberanias desde que daí não resultem cedências
gratuitas ou sacrifícios de uns face a outros, sem qualquer contrapartida
imediata ou mediata. Num plano mais geral, o bem-estar da multidão de
trabalhadores e ex-trabalhadores residentes em Portugal não é alienável para
benefício de interesses externos nem de interesses particulares de entidades
portuguesas, sejam elas os capitalistas ou os entes mafiosos que enformam a
classe política.
2
http://pt.scribd.com/doc/23380523/Erradicacao-da-pobreza-por-lei
3
http://www.slideshare.net/durgarrai/o-capitalismo-predatrio-e-a-estupidez-patritica-1
4
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/10/o-que-e-uma-esquerda-pilares-para-sua.html
4. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 4
A breve introdução sobre a soberania serve, no contexto dos propósitos deste
documento para tecermos considerações sobre o artº 1º da CRP que afirma
Portugal como uma “República soberana” embora seja evidente que o partido-
estado (com o atrelado CDS) cedeu essa soberania aos mercados financeiros, às
instituições da troika e aceitou a tutela dos mecanismos enformadores de uma
dívida eterna5
. O que vem sucedendo com a Grécia6
mostra o respeito que as
instituições ao serviço do capital financeiro, incluindo nelas as classes políticas
nacionais, têm para com as soberanias de estados-nação de pequena ou média
dimensão.
Tem-se assistido à passagem dos centros de decisão das grandes empresas de
capitais portugueses para paraísos fiscais (Holanda e Luxemburgo). As empresas
privadas de capitais portugueses, em geral, são pequenas, descapitalizadas,
endividadas e mal geridas, com dificuldades de inserção na selva da
competição global e, mesmo quando exportadoras bem geridas, dependem de
empórios globais para obterem encomendas ou para a colocação da produção.
Finalmente, as privatizações, inserindo as empresas em redes transnacionais de
negócios, transformam os nós portugueses em peças de engrenagens
totalmente alheias aos interesses dos residentes em Portugal. Numa lógica
capitalista, sem empresários capazes de construir núcleos de interações entre
sectores complementares, Portugal tende a ser apenas um território onde se
cruzam as referidas redes transnacionais de negócios, ignorando a esmagadora
maioria do universo de PME de capitais lusos e em diálogo direto com o
partido-estado para a obtenção de facilidades, honrando os hábitos locais de
corrupção. Neste contexto, a soberania é um sonho ou uma saudade.
Por outro lado, em Portugal, a atuação lesiva e subserviente do partido-estado,
no capítulo da soberania, não encontra no resto da sociedade ou nas suas
instituições, elementos que possam funcionar como recurso que obvie àquelas
atuações. As instituições do regime funcionam como um sistema fechado de
poderes segmentados e cuja ocupação por parte do partido-estado as constitui
em teia totalitária e mafiosa ao seu serviço, como elementos mais ou menos
distanciados da intervenção da população, inserida numa nova servidão.
O partido-estado decidiu prescindir da soberania ainda restante ao aceitar uma
efetiva subordinação ao capital financeiro e às suas instituições plurinacionais,
com evidente prejuízo para a generalidade da população. A CRP não tem um
instrumento de recurso perante uma ocupação como a que se verificou, nem
para os danos que ela possa provocar na multidão, conduzida a restringir-se a
5
Há quem considere tecnicamente que uma dívida pública superior a 100% do PIB é impagável e
sinónimo de bancarrota. A dívida pública actual corresponde a 129.5%, beneficiando da alteração dos
métodos de cálculo que, em 2014 elevaram escrituralmente o PIB.
6
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/07/grecia-vitima-da-gula-dos-bancos-e-das.html
5. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 5
protestos simbólicos ou à resignação face ao “normal funcionamento da
democracia”.
Na CRP houve o cuidado de lhe não incluir quaisquer fórmulas de recurso,
através das quais a sociedade possa evidenciar a vitalidade suficiente para a sua
autónoma organização, para a sua autodefesa face à ocupação institucional por
parte de uma constelação de interesses mafiosos. A oligarquia blindou-se atrás
da CRP que construiu há 40 anos.
A CRP estabelece uma vincada separação entre dois sistemas de relações. Um,
constituído pelas relações entre a classe política, os capitalistas de referência, o
sistema financeiro e os burocratas internacionais que gerem, sem real escrutínio
nem recurso, a vida da multidão; e um sistema de relações pessoais e afetivas
protagonizado pela grande maioria da população que, só entra em contacto
com aquele outro sistema, de modo indireto ou difuso, no meio laboral, no seio
da punção fiscal, no contexto da autoridade judicial ou policial ou, em triviais
actos de consumo. Fisicamente, os elementos que protagonizam estes dois
sistemas de relações, não se encontram.
Para além das rotinas eleitorais em que se propicia “aos de baixo” uma escolha
viciada, restringida “aos de cima”, estes têm todo o poder de decisão. Por
exemplo, o mecanismo do referendo está, na realidade, vedado à utilização, por
parte do povo, por um conjunto de instâncias e procedimentos bloqueadores,
nas mãos da classe política.
Quando se afirma, no mesmo art. 1º, que a República se baseia na dignidade da
pessoa humana, convirá que se pergunte para onde foi remetida a dignidade de
quantos trabalham sem direitos, dos que viram os seus direitos na reforma
reduzidos, na saúde diminuídos ou ainda a dignidade dos que foram
aconselhados a “desamparar a loja”, emigrando.
Quanto à vontade popular referida ainda no art. 1º cabe perguntar, onde e
quando foi ela expressa para a execução do plano de austeridade, para as
privatizações, o apoio aos bancos falidos, à continuidade das parcerias público-
privadas, etc.
Finalmente, no capítulo do objetivo da “construção de uma sociedade livre,
justa e solidária”, só alguém demente ou beneficiado com a cleptocracia
vigente a poderá tomar como uma realidade.
3 - O povo cria o Estado ou é o Estado que cria o povo ?
O artº 2º afirma a existência de um Estado de direito e toda uma vasta gama de
belas ideias mas, que encontram pouca visibilidade na realidade, como já se
referiu atrás.
6. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 6
A crítica ao artº 2º que aqui pretendemos desenvolver é de ordem sequencial.
Os constituintes decidiram definir a existência do Estado antes de referir a
existência de pessoas, de povo, o qual só surge na CRP no artº 3º; ou se se
preferir, conceberam a existência de um povo como subjacente à existência
prévia de um Estado; ou ainda, que é o Estado que dá existência e dignidade a
um povo, enquanto entidade cultural. Parece haver, nesta sequência contida na
CRP, uma aplicação de uma concepção deísta, bíblica, sobre a criação do
Homem, por um deus intemporal e exterior ao plano da realidade cognoscível.
A sequência utilizada contraria a lógica oitocentista, na qual a existência de um
povo mereceria a constituição de um Estado próprio, que o libertasse da
subordinação e da sujeição a poderes tirânicos; essa tese visava o
desmembramento de impérios europeus (austro-húngaro e otomano). Nessa
lógica, é a pré-existência de um povo, ou conjunto de povos, que origina e
justifica a construção de um Estado, como instituição coletiva, onde repousará a
sua dignidade como comunidade, entre outras comunidades, povos, nações.
A sequência contida na CRP – o Estado antes do povo – parece ter sido
importada de … África. Em África, a ocupação colonial correspondeu a uma
divisão territorial como se de propriedade imobiliária se tratasse, sem qualquer
preocupação com as vontades e as identidades culturais dos seus habitantes.
Quando sobreveio a descolonização e para evitar conflitos, entendeu-se manter
as fronteiras definidas pelas potências coloniais, mesmo que tivessem dividido
aldeias ao meio; daí, a manutenção de povos distribuídos por vários Estados ou
de Estados com vários povos, com identidades distintas e até conflituantes. Em
África, por exemplo, os Estados atuais são estruturas políticas herdadas, criadas
pelo colonialismo, independentemente de eventuais homogeneidades ou
heterogeneidades observadas entre os povos neles integrados; aí sim, pode
dizer-se que foram criados Estados sendo aos seus habitantes dada uma
designação estranha a qualquer dos povos e culturas integrantes. Por exemplo,
os habitantes da Nigéria designam-se por nigerianos, podendo todavia ser
haussas, ibos, yorubas, etc, com línguas, religiões e culturas distintas.
De qualquer dos modos, entendemos que o importante são as pessoas e que as
suas estruturas políticas e organizativas são (ou deverão ser) sempre delas
derivadas, por muito diversas que sejam as suas raízes culturais e, democráticas
ou opressivas possam ser essas estruturas.
Apesar de todas as guerras e separações pretensamente identitárias, a
deificação do estado-nação não impediu que continuem a existir centenas de
povos, com culturas bem marcadas, sem Estado próprio. Em quaisquer
circunstâncias, os Estados mantêm, zelosos, o controlo dos seus súbditos,
emitindo, por exemplo, cartões de cidadão, passaportes e, mais recentemente,
códigos individualizados para o exercício da punção fiscal.
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Os povos constituem os sujeitos e a razão de ser de qualquer instituição. O
preâmbulo da Constituição dos EUA, escrito em finais do século XVIII, muito
liminarmente, informa que “nós, povo dos Estados Unidos… promulgamos e
estabelecemos esta Constituição para os EUA”. A recente constituição islandesa
enuncia no seu preâmbulo a mesma origem legitimadora, declarando que “nós,
o povo da Islândia, queremos criar uma sociedade justa que ofereça as mesmas
oportunidades a todos. As nossas diferentes origens são uma riqueza comum e,
juntos, somos responsáveis pela herança de gerações”.
No preâmbulo da CRP, o MFA “coroa a longa resistência do povo” e são os
“legítimos representantes do povo” que definem a Constituição que
corresponde às aspirações do “país”. Não há, no preâmbulo, uma clara e
inequívoca expressão da soberania popular, como elemento fundador mas, a
definição dos autores materiais da CRP, travestidos de povo. Aponta-se para o
instrumento, deixando omisso o elemento ontológico. Somente no artº 3º, nº
1º se declara que a soberania reside no povo, depois de criado o Estado.
No caso dos EUA a constituição foi redigida em 1787 por representantes
estaduais, onde pontificaram Jefferson e a sua lógica federalista. A constituição
islandesa foi escrita em quatro meses por 25 pessoas que se basearam nas
traves mestras apontadas por 1000 outros indivíduos, numa reunião de dois
dias e que receberam 16000 sugestões populares, a que se seguiu um
referendo.
Nas situações exemplificadas a questão não é tanto a da legitimidade dos
legisladores que está em causa; é a referência, o reporte que fazem, ou não, ao
povo como elemento central do estado-nação, a relação de precedência entre a
sede do poder – o povo - e os seus representantes. Há uma grande diferença
entre situações em que a soberania residente no povo é reconhecida pelos
legisladores, como seus assumidos mandatários (EUA, Islândia); e outras em que
são os legisladores a assumirem-se como representantes do povo, sem que se
defina ab initio, uma expressa afirmação preambular de que a soberania
pertence ao povo.
A constituição da Islândia de 2012 tem 114 artigos e teve na sua génese uma
construção popular enquanto a CRP, foi desenhada por 250 deputados, tem 296
artigos e nunca foi objeto de qualquer consulta popular; nem antes, nem depois
da sua elaboração. Por outro lado, a escolha dos constituintes portugueses foi
enviesada previamente para recair em pessoas contidas em listas partidárias,
depois de passado o crivo das cúpulas dos partidos concorrentes.
4 - Quem constitui o povo?
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Não se definindo no artº 3º o que é o povo que serve de alicerce a uma
soberania “una e indivisível” (?) trata-se, todavia, de declarar desde logo essa
unicidade e indivisibilidade, retirando liminarmente aos elementos desse povo,
o direito de secessão, por exemplo. Embora, o referido povo não manifeste,
hoje, pendores secessionistas em parcelas do seu território, nada deverá
impedir que isso se venha a concretizar por vontade do povo de uma região ou
comunidade que tome essa decisão com práticas absolutamente democráticas.
Um território pertence a quem nele reside com continuidade e essa
comunidade tem o direito de escolher as leis e instituições pelas quais se deve
reger. O princípio da subsidiariedade consiste em essa comunidade se associar
a outras para a resolução de problemas e satisfação de necessidades coletivas;
um território não é propriedade privada de um Estado, nem os seus habitantes
devem ser obrigados a regerem-se por uma jurisdição que considerem
inconveniente.
Será que os estados-nação foram, alguma vez, realidades eternas, imutáveis?
Não, têm uma origem recente e sempre foram produtos de circunstâncias
históricas, bastante contingentes; ainda que haja alguns (poucos) que têm
origens culturais muito antigas, enquanto impérios ou senhorios (China, Irão,
Egipto).
Os Estados que, em geral, recusam o direito de secessão, com grande
prodigalidade e frequência estabelecem regimes de extraterritorialidade para os
capitais ou para a movimentação de mercadorias – os célebres offshores e as
zonas francas. No âmbito dos contratos internacionais é frequente
considerarem-se como aplicáveis, legislações estranhas a qualquer dos países
de residência dos contratantes; o tenebroso TTIP irá, se aplicado, banalizar essa
prática. Finalmente, recorde-se que nas bases militares estrangeiras, como nas
Lajes ou em Guantanamo, a lei vigente é a do ocupante, o mesmo acontecendo
em embaixadas e consulados, o que tem permitido a Julian Assange viver na
representação equatoriana em Londres e evitar a detenção.
A mesma CRP que afasta secessões, pelo contrário contém, toda a abertura para
a integração em espaços económicos e políticos que exigem óbvias perdas de
soberania, remetendo para as instituições, para a classe política todas as
decisões nesse âmbito, não colocando nunca a hipótese referendária. O caráter
autoritário do actual regime político insere-se numa longa tradição histórica de
esmagamento da democracia, inerente a uma sociedade onde sempre
predominaram estruturas económicas atrasadas e onde a renovação foi
considerada como inconveniente.
A CRP, não definindo explicitamente o povo, esclarece quem são os cidadãos
portugueses (artº 4º) remetendo para lei ou convenção internacional; isto é, não
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define coisa alguma, deixando a definição para a lei ordinária ou para acordo
internacional, para a alçada do executivo ou da Assembleia da República.
Não se entende como o conceito de povo, elemento primordial e essencial para
efeitos de enformação de um estado-nação, seja um elemento contingente,
remetido para decisão governamental, do partido-estado.
O artº 10º refere que “o povo exerce o poder político através do sufrágio
universal, igual, direto, secreto e periódico, do referendo e das demais formas
previstas na Constituição” continuando sem se saber quem constitui o povo.
Por outro lado, refere-se (artº 15º nº1) que aos estrangeiros residentes em
Portugal se aplicam os mesmos direitos e deveres dos portugueses
exceptuando (nº2 do mesmo artigo), os direitos políticos e o exercício de
funções públicas que não sejam meramente técnicas.
Prosseguindo e aprofundando o seu discurso, patrioteiro e excludente, a CRP
admite, num assomo de magnanimidade, aos estrangeiros residentes em
Portugal “capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de
órgãos de autarquias locais” (artº 15º nº 4) em condições de reciprocidade. A
admissão aos estrangeiros residentes de uma cidadania truncada poderá, para
alguns, ser considerada como uma concessão benevolente e progressista,
quando na realidade, é reacionária e xenófoba.
Essa limitação é, para mais, acrescida com a exigência da reciprocidade, uma
condição adicional que acentua como são limitados os direitos políticos
concedidos aos imigrantes ou outros estrangeiros residentes em Portugal.
As pessoas, para os constituintes, não valem por si, não têm dignidade própria,
nem se lhes reconhece a integração ou o empenho em participar na vida
coletiva; dependem das práticas dos Estados de onde são oriundos – muitas
vezes Estados repressores, criminosos ou ditos falhados - onde o imigrante não
tenciona voltar. As pessoas ficam como reféns de um vínculo imposto por um
cruzamento de vontades de entes distantes e majestáticos, como são os Estados
e os seus insensíveis burocratas. As muitas referências na CRP aos direitos,
liberdades e garantias constituem tiradas ideológicas tão pomposas como
desligadas do que tem sido a realidade prática do regime.
Os estrangeiros residentes em Portugal que sejam cidadãos de países da UE
gozarão ainda “do direito de elegerem e serem eleitos deputados ao
Parlamento Europeu” (artº 15º nº5). Conhecendo-se os escassos poderes
efetivos do Parlamento Europeu, essa excepção à total preponderância de um
canhestro nacionalismo, não passa de berloque europeísta.
A mesma CRP, aparentemente, não constituiu obstáculo à venda de vistos
dourados a oligarcas estrangeiros que coloquem em Portugal umas centenas de
10. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 10
milhar de euros para a compra de imobiliário; isto é “investimento estrangeiro”
mesmo que sem qualquer impacto produtivo. Por seu turno, um imigrante que
venha para Portugal trabalhar não terá tantas facilidades; ser pobre é motivo de
discriminação apesar das loas igualitárias e de uma referência hipócrita à
Declaração Universal dos Direitos do Homem (artº 16º, nº2).
Que sentido fará afirmar-se a propósito do princípio da universalidade, (artº
13º, nº 2), que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado,
privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de … raça,
língua, território de origem…”?
5 - A captura da democracia
O caráter oligárquico do regime que se consolidou em Portugal depois de 25
de novembro assume mesmo formas ridículas, neste contexto, da expressão
democrática.
O artº 10º, como já atrás referimos, aponta no seu nº 1 a ideia do sufrágio… e
logo no seu nº 2 introduz os partidos políticos, concorrentes “para a
organização e para a expressão da vontade popular”, como se essa expressão
tivesse de depender forçosamente daqueles; como se os partidos políticos
possam abarcar todas as alternativas e sensibilidades, vincando-se assim, na
CRP, a atitude paternalista de gerar os instrumentos que os elementos do povo,
equiparados a pobres de espírito, ficam obrigados a utilizar para procederem às
suas escolhas.
Esse paternalismo é, na sua essência, uma apropriação empobrecedora dos
direitos democráticos, pretendendo-se reproduzir, constitucionalmente, a
necessidade de um escol de ungidos que, do alto das suas superiores
qualidades técnicas, éticas e culturais se tomam como putativos intérpretes da
vontade popular. A deplorável qualidade da esmagadora maioria dos membros
da classe política, que se pretendem apresentar como mais capacitados do que
o cidadão médio, é ofensiva para este último. Onde a superioridade dos
mandarins se manifesta é na capacidade de mentir e no à-vontade com que
dizem vacuidades com ares de sábios, perante jornalistas coniventes ou inibidos
para manterem o emprego.
A CRP, como construção da classe política, sem discussão ou validação
democrática, eleva acima da multidão uma vanguarda condutora do povo,
ainda que de modo não tão explícito como nos cardápios do trotsko-
estalinismo. Nestes últimos, a vanguarda define-se sob a forma de um partido
único, naturalmente com facções internas mais ou menos conhecidas, enquanto
nas democracias de mercado essas facções apresentam-se autónomas perante
o povo, irmanados, contudo, na férrea intenção da manutenção do regime
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cleptocrático, tão excludente da multidão, como onde dominam as vanguardas
da “classe operária”.
O pensamento único, de manutenção do capitalismo, nas suas várias formas,
com políticas neoliberais ou keynesianas, apresenta-se, repartido sob formas
pluripartidárias ou monopartidárias, ainda que com diferenças no capítulo da
repressão. Na pobre narrativa pseudodemocrática propagada pelas classes
políticas, um regime oligárquico monopartidário ou pluripartidário faz toda a
diferença. Esta diferença formal resume-se a que, no primeiro caso, a
continuidade é a regra, enquanto que no último, a continuidade se mascara
com a ilusão de possibilidade de mudança. Os regimes políticos na Europa são
todos pluripartidários e no entanto, os programas de resgate, os tratados
europeus foram impostos autocraticamente, recorrendo-se mesmo à criação de
governos impostos do exterior, como na Grécia e na Itália, em 2012.
A sequência dos artigos da CRP revela também a hierarquia dos valores
presente nos constituintes. O seu espírito antidemocrático e sobranceiro revela-
se quando se observa que a introdução dos partidos surge (artº 10º), na CRP,
antes dos símbolos nacionais como a bandeira, o hino e da língua (artº 11º).
6 – A invalidação dos referendos
Um referendo, onde exista livre circulação da opinião, constitui um poderoso
instrumento de exercício da democracia, de democracia direta, em que o povo
decide, sem intermediação, sobre os seus assuntos. Por esse motivo, as classes
políticas em geral, não gostam de referendos e, quando levados a executar
algum, tentam incluir a decisão referendária nos seus objetivos ou, se do
referendo não surgir o que lhes interessa, torpedeiam-no e promovem a sua
repetição, como na Irlanda que, inicialmente recusou o Tratado de Lisboa.
O referendo é apontado na CRP (artº 10º nº 1) como uma forma de o povo
exercer o poder político. Se nos recordarmos que só houve até hoje três
referendos nacionais (dois em 1998 e um em 2007), não se poderá dizer que o
regime decidiu muitas vezes consultar o povo, diretamente e para questões
muito específicas. Para comparação, refira-se que na Suíça se realizam três a
quatro referendos por ano, cada qual com várias questões para votação e isso,
ininterruptamente desde 19447
, estando previsto para 2016 um referendo para
a introdução de um rendimento básico de 2500 francos suíços mensais.8
7
Referimo-nos a esta data porque a partir dela tem havido referendos todos os anos. A prática destas
consultas sempre foi frequente, remontando ao século XVIII
8
https://en.wikipedia.org/wiki/Swiss_referendums,_2016
12. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 12
O extensíssimo e minucioso artº 115º, que trata do referendo, precisa de conter
toda uma vasta quinquilharia legislativa para o desvirtuar e evitar assim
surpresas e problemas para a oligarquia. Com tantas precauções e detalhes, a
CRP reconhece, indiretamente, no referendo, um instrumento poderoso de
afirmação democrática.
Logo no seu nº 1, o artº 115º designa que um referendo será decidido pelo
Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República ou do
governo; órgãos que, em regra e por mero acaso… têm a mesma origem e
raramente são dissonantes. O mesmo artigo (nº2) abre à plebe a iniciativa de
um referendo com apreciação pela Assembleia da República, que lhe
configurará a prosa, uma vez que da população, na sua imputada menoridade
política, não poderá surgir um texto que não deva ser (re)composto pela
omnisciente classe política. A soberania popular expressa no artº 2º é, portanto
submetida à vontade da classe política, presente na Assembleia da República,
cujos membros são inamovíveis nos seus mandatos e, portanto, inimputáveis,
como sempre acontece quando se fala de verdadeiros oligarcas.
Muito pedagógica, a CRP anuncia às ignaras gentes que o tema a referendar
deverá ser de “relevante interesse nacional” (nº3), não vá alguém conseguir
75000 assinaturas a solicitar um referendo sobre uma vacuidade qualquer. Os
temas a referendar serão da competência da Assembleia da República, do
governo ou de acto legislativo. Note-se que um deputado é eleito, em média
por 20/30000 votos na sua respetiva lista partidária, não se lhe exigindo
nenhuma outra validação e, nesse contexto, atribui-se aos votantes toda a
maioridade na escolha (mesmo que nunca tenham ouvido falar do indivíduo).
Para além das limitações anteriores, o nº 4 do mesmo artigo, exclui do
referendo as alterações à própria CRP; há nisto total coerência por parte dos
constituintes e da classe política onde se incluíam. Se a CRP não provém do
povo português (ver acima, ponto 3) mas, dos seus representantes, elevados
acima do povo, os membros desse povo não têm o direito de alterar a CRP,
como não tiveram de a aprovar, como seria da mais elementar prática
democrática. A CRP não é uma construção democrática mas, objeto de uma
sacralidade total face ao povo; só o escol da oligarquia, qual classe sacerdotal, a
pode alterar. Já a interpretação das leis cabe a outra distinta instituição, o
Tribunal Constitucional9
, com membros escolhidos pela classe política e que só
age no seu sonolento afã interpretativo, na sequência de solicitações
provenientes da classe política, sendo-lhe vedada qualquer iniciativa ou
qualquer atendimento de queixas e petições vindas dos populares; no entanto,
são lestos em atribuir a si próprios privilégios para lhes colorirem a vida.
9
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/07/o-tribunal-constitucional-e-o-roubo-dos.html
http://cadpp.org/node/412
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A segunda referência a impedimentos para efeitos de referendo, contida no nº
4 aponta para “as questões e actos de caráter orçamental, tributário ou
financeiro”, tornados matérias de exclusiva competência da Assembleia da
República, dos partidos e, particularmente dos governos que deterão a maioria
em S. Bento. Isto é, para parte significativa dos assuntos de relevância particular
na vida das pessoas, estas não têm direito de definir coisa alguma, diretamente,
sobre as suas vidas, nem corrigir decisões tomadas pelos poderes. A classe
política fica, investida de plenos poderes de decisão, de mãos livres e sem
qualquer controlo popular sobre aumentos de impostos, alterações na sua
incidência, sobre taxas e sobretaxas, contratos danosos como as parcerias
público-privadas, a contração de empréstimos para fins desconhecidos ou sem
objecto útil (submarinos), afetar impunemente os rendimentos de
trabalhadores, pensionistas, desempregados e pobres, etc. Neste contexto, a
liberdade detida pelo povo é a de aceitar a ditadura financeira da classe
política.
Esta preocupação de total afastamento do povo da gestão orçamental e
financeira revela o core business da classe política – a focagem da sua atividade
nos aspetos económicos, com a conveniente aplicação do catecismo neoliberal,
a prestação de serviços ao sistema financeiro e às multinacionais, com a canina
obediência às instituições globais daqueles (BCE, FMI, OMC…). Como esse é o
seu objeto essencial, a classe política até se não opõe a iniciativas populares no
que concerne a referendos nas áreas dos direitos individuais, em questões de
valores e afetos. Em primeiro lugar, porque valores são produtos de baixa
cotação para a classe política, focada na gestão e na corrupção; e, em segundo
lugar, porque essas questões têm pouca relevância financeira e não constituirão
mercados a dinamizar.
A terceira referência limitadora do referendo contida no nº 4 do artº 115º da
CRP aponta para as competências da Assembleia da República (artº 161º) que
não podem ser objeto de referendo. Destacamos neste ponto, aspetos relativos
à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas, à
contração ou à concessão de empréstimos por parte do governo, mesmo que
mais tarde a multidão seja chamada a pagar uma dívida pública ilegítima e
impagável ou o apoio ao salvamento de instituições bancárias em bancarrota.
Referimos também os tratados que comportem participação portuguesa em
organizações internacionais (como vimos no tratado de Lisboa ou futuramente
no TTIP) e os tratados de amizade, de paz, de defesa, devendo os portugueses
olhar para o lado perante as aventuras guerreiras do Pentágono, que controla a
NATO, à qual Portugal pertence. Ficam também excluídos de referendos, a
retificação de fronteiras, os assuntos militares, a declaração de guerra ou o
estabelecimento da paz e as matérias pendentes de decisão em órgãos no
âmbito da União Europeia (numa clara manifestação contrária às numerosas
afirmações contidas na CRP sobre a soberania nacional).
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No último ponto do nº 4 do artº 115º aponta-se como excluídas de referendo
as matérias imputadas exclusivamente à Assembleia da República (artº164º),
com a solitária excepção das bases do sistema de ensino, a única área em que
os esforçados deputados da nação admitem o povoléu possa meter o bedelho.
Nas outras 20 matérias que exprimem as competências exclusivas da
Assembleia da República são proibidas interferências da plebe.
Nas exclusões da possibilidade de referendo contam, entre outras matérias, o
regime dos próprios referendos (naturalmente!), a configuração do já referido
Tribunal Constitucional e a organização, funcionamento e reequipamento das
forças armadas. Neste último caso, convém referir que as forças armadas
portuguesas não foram vencedoras de coisa alguma desde o aprisionamento
do Gungunhana nos finais do século XIX e que apenas servem como destino de
equipamentos usados escoados pelas potências do armamento e como local de
vida descansada para umas 30000 pessoas. Sabe-se ainda que a sua
operacionalidade é deveras baixa e que, em caso de hipotético ataque de outra
potência, soçobrariam aos primeiros embates; e cá ficaria o povo, que não pode
opinar sobre as forças armadas, a ter de se organizar para se livrar dos
invasores.
Os regimes das associações e partidos políticos também não podem ser
referendados, o que é coerente com a natureza oligárquica do regime. Os
partidos em geral e a classe política em particular, dado o seu caráter vertical e
de vanguardas dirigentes do povo, acham-se com todos os direitos de decidir o
que convém à população; mas, a esta não é atribuída a possibilidade de definir
nada sobre os partidos – se devem deter o monopólio da representação
política, se há neles, internamente democracia e como é assegurado o seu
financiamento, por exemplo. A classe política é intratável no que se refere ao
acesso ao pote.
A criação, extinção e modificação de autarquias locais não poderá ser decidida
pelas respetivas populações, como seria defensável num regime democrático;
não, essas populações, por princípio, são consideradas incapazes de avaliar a
organização da sua vida comum e, portanto, precisam da Assembleia da
República, da aprovação da classe política, para o efeito.
Com invulgar magnanimidade democrática a CRP concede a possibilidade de se
referendarem convenções internacionais mas, exclui, certamente pela sua
irrelevância, aspetos relativos à paz e às fronteiras (nº5 do artº 115º), que só a
classe política, em seu alto saber, poderá analisar e decidir.
O artº 295º abre a possibilidade de referendo “sobre a aprovação de tratado
que vise a construção e aprofundamento da união europeia”. Tendo em conta a
sonolenta tolerância que os portugueses têm para com as limitações criadas
pela oligarquia ao efetivo exercício da democracia; e admitindo que fossem
reunidas as 75000 assinaturas para a realização de um referendo naquela área,
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alguém duvidaria que viessem a ser introduzidos enviesamentos ao texto inicial
pela Assembleia da República ou que o Presidente da República não viesse a
rejeitar a pretensão, como previsto no nº 1 do artº 115º? A subserviência na
área do poder governamental às instituições comunitárias é bem conhecida e
ninguém se atreveria a deixar a população levantar obstáculos ao processo de
endividamento esclavagista, em curso.
A Lei Orgânica do Regime de Referendo (nº 4/2005 de 8/9 que altera o texto
original de 1998) contém toda a minúcia – incluindo a reprodução do texto
constitucional - nuns breves… 244 artigos. Fica-se ali sabendo que uma
proposta de referendo não pode ultrapassar as três perguntas dicotómicas e
que o referendo só é vinculativo se os votantes ultrapassarem metade dos
eleitores inscritos (artº 115º nº 11).
Sobre a exigência do voto de metade dos eleitores inscritos levantam-se
algumas questões que atestam o caráter fechado, autoritário e discricionário,
típico das oligarquias que carateriza o actual regime político. Em primeiro lugar
o número de eleitores inscritos ultrapassa em muito a população real com
direito a voto porque o regime nunca cuidou de manter um recenseamento
atualizado, fiável, embora isso seja uma obrigação constitucional conforme o
artº 113, nº 2º onde se define que o “recenseamento eleitoral é oficioso,
obrigatório, permanente”. Em 2009, avaliámos10
os eleitores fantasmas em 1101
milhares e em 2013 um estudo11
apontava para 1004 milhares, embora a
atualização dos nossos cálculos12
conduzisse apenas a 893 mil; nesse contexto,
numa hipótese de referendo, uma proposta para vencer terá de ultrapassar em
mais de 500000 votos o número realmente necessário exigido na CRP uma vez
que a medição se faz relativamente aos eleitores inscritos. Este desleixo
associado é revelador se se atender ao zelo do regime com os cruzamentos de
bases de dados para exercer a punção fiscal.
Mas há ainda uma segunda questão reveladora dos privilégios que a classe
política se atribui. A execranda figura acampada em Belém, foi catapultado para
um segundo mandato com apenas 23% do eleitorado e intitula-se presidente
de todos os portugueses, sem que a CRP exija o apoio de 50% do eleitorado,
nem qualquer limite mínimo ou mesmo, uma segunda volta legitimadora. Nas
eleições autárquicas de 2013, o total dos votos com escolhas partidárias
situou-se aquém dos 50% do eleitorado, tendo passado para 50 o número de
municípios onde as vereações foram eleitas apesar de taxas de abstenção
superiores a 50% (16 em 2009)13
; e, certamente, não houve caciques locais
eleitos por mais de 50% dos eleitores inscritos.
10
http://www.slideshare.net/durgarrai/um-sistema-eleitoral-falsificado-e-enganador
11
http://visao.sapo.pt/portugal-tem-mais-de-um-milhao-de-eleitores-fantasma=f708756#ixzz3hIUf5SXV
12
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/11/autarquicas-2013-e-putrefacao-do.html
13
idem
16. GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 30/07/2015 16
Se há algo em que a classe política tem sido de uma esmerada competência é
na sua blindagem à intervenção democrática. A CRP é um instrumento essencial
para isso, com os seus copiosos e detalhados 296 artigos, prosseguida por
imensa produção legislativa e regulamentar complementar emanada de uma
tradição jurídica ultraconservadora e de uma organização judicial
pensadamente burocratizada para demover muitos ao recurso à justiça que,
assim fica vocacionada para favorecer os grandes interesses e a permeabilidade
à corrupção e à vigarice.
Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents