1. DACOSTA, Milton (1915-1988). Nascido em Niterói (RJ) e falecido no Rio de Janeiro. Tendo
começado a pintar com 12 anos de idade, fazendo paisagens, marinhas e cenas tiradas de
folhinhas sobre caixas de sapatos e outros suportes pouco convencionais, em 1929 passou a
estudar com o pintor alemão Augusto Hantz, que lhe dava a copiar retratos de artistas de
cinema:
- Era um homem gozado, de rosto vermelho. Gostava muito de tomar a nossa "pinga". Quando
ele se excedia no consumo desta bebida, suas aulas ficavam tumultuadas.
Em 1930 matriculou-se no curso livre da Escola Nacional de Belas Artes, como discípulo de
Marques Júnior. Mais ou menos por essa época, nas travessias de barca para o Rio de
Janeiro, conheceu Antônio Parreiras, septuagenário e celebérrimo, para quem chegou a posar,
e que em uma ocasião lhe corrigiu uma pintura:
- Certa vez, mostrei-lhe o estudo de uma paisagem, com as sombras bem escuras e os tons
luminosos menos quentes. Parreiras corrigiu a minha pintura. Substituiu as sombras pretas por
sombras roxas. E colocou amarelos em todos os tons de luz. A correção era feita por um pintor
não apenas conhecedor do Impressionismo, senão principalmente por um artista obediente à
convenção tradicional, vinda já dos tempos de Delacroix.
Abandonando dentro de pouco tempo as aulas da Escola Nacional de Belas Artes, Dacosta
seria, em 1931, um dos fundadores do Núcleo Bernardelli, ao lado de outros jovens pintores,
como Edson Motta, Malagoli, Bustamante Sá, Rescala e Braulio Poiava (a quem conhecia de
Niterói). Dois anos mais tarde, já se julgando apto a participar do Salão Nacional de Belas
Artes, submeteu a júri algumas pinturas, que não lograram contudo aceitação:
- Uma delas, por sinal, era a pintura de umas botinas. Mas a tela não foi aceita pelo júri,
composto geralmente na época pelos professores da ENBA. Imagine que cortaram o meu
trabalho, dizendo que os sapatos pareciam um reclame da Casa Clark, que possuía uma loja
na Avenida Rio Branco.
O ano de 1936 testemunha duas importantes vitórias: Dacosta realiza sua primeira individual,
na Galeria Santo Antônio, do Rio de Janeiro, e expõe pela primeira vez no Salão Nacional de
Belas Artes, onde obtém uma menção honrosa. No mesmo certame seria premiado,
sucessivamente, com medalha de bronze (1939), medalha de prata (1941) e a viagem ao
estrangeiro (1944), as duas últimas distinções já na vigência da Divisão Moderna.
Com o prêmio de viagem, o artista partiu para os Estados Unidos da América (1945),
freqüentando em Nova Iorque a Artist's League of America; dali seguiu, em 1946, para a
Europa, tocando em Lisboa e percorrendo vários países antes de se fixar em Paris, cuja
Academia da Grande Chaumière cursou; retornaria em 1947 ao Brasil, casando-se dois anos
mais tarde com a pintora Maria Leontina, e em 1950 seria um dos pintores selecionados para
integrarem a primeira representação do Brasil à Bienal de Veneza.
Em 1952, depois de ter tomado parte, no ano anterior, na I Bienal de São Paulo, Dacosta
embarcou novamente para a Europa, regressando em 1954 para já no próximo ano receber, na
III Bienal de São Paulo, o prêmio de Melhor Pintor Nacional. Na VI Bienal de São Paulo, em
1961, teve sala especial, tal como ocorreria, cinco anos mais tarde, na I Bienal da Bahia.
Retrospectivas de sua obra foram realizadas em 1959, pelo Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, e em 1981, pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo.
As primeiras pinturas de Milton Dacosta, de começos da década de 1930, eram simples
exercícios de um adolescente de pouco mais de 15 anos, exercícios nos quais é lícito porém
surpreender algumas das características que mais tarde iriam marcar-lhe em definitivo o estilo:
agudo senso de construção, a tendência a captar somente o essencial de cada forma, seres e
coisas utilizados em função de seus valores exclusivamente pictóricos, nenhuma concessão ao
pitoresco ou ao anedótico, e horror ao regional, ao folclórico, ao episódico.
2. Tivesse acaso ficado nessas primícias, e ainda assim mereceria um lugar destacado na
evolução de nossa pintura moderna, mesmo porque, à medida que a década se aproxima do
fim, surgem-lhe da paleta obras de maior fôlego e mais intenso poder expressivo, se bem que
ainda influenciadas pelas de outros artistas, ecos da Escola de Paris, num momento em que
Montmartre e Montparnasse eram os pontos de referência máximos de nossos melhores
artistas.
No que respeita aliás a influências, Dacosta jamais escondeu quanto devem seus anos de
aprendizado e aprimoramento a Modigliani, Cézanne e De Chirico, ou - para citar gente de
casa - a Cândido Portinari. Certas pinturas feitas por exemplo em 1937, reproduzindo telhados
e casario das imediações do Campo de Santana e de outros sítios do Rio de Janeiro, evocam,
em sua estruturação geométrica, o Mestre de Aix-en-Provence; ao passo que a atmosfera
rarefeita de alguns quadros de começos da década de 1940, com suas perspectivas exatas,
seus manequins, seus ambíguos espaços metafísicos, remetem diretamente a De Chirico. E
não seria possível ver a marca de Modigliani nos pescoços e vultos alongados de seus
Banhistas, e a de Morandi na severidade elementar de umas poucas naturezas-mortas de fins
da década de 1940?
Mas a influência mais funda e permanente que repercutiu sobre a produção de Milton Dacosta
foi a do Cubismo, um Cubismo decerto adaptado às circunstâncias brasileiras. Foi essa
admiração pelo Cubismo que iria gradativamente fazer com que Dacosta substituísse o
Impressionismo de suas composições juvenis - a cor tonal, o primado das texturas -, pelo
predomínio de uma forma perfeitamente estruturada. Em pinturas de fins da década de 1940 é
possível inclusive surpreender recursos tradicionais cubistas, como a parcimoniosa utilização
da cor - a paleta reduzida a três ou quatro tonalidades apenas -, e a visão simultânea de um
rosto, de face e de perfil. Em tais momentos, repercute bem forte a lição de Picasso, que
continuará visível mesmo nas Figuras de Alexandre e nos Cabeçudos, nas Meninas e em
outras composições de fins dos anos 40 e começos da década seguinte, frutos de um artista
preocupado com a redução de planos, formas e cores a uma síntese cada vez mais
econômica.
A fase final dessa produção de cunho pós-cubista acha-se representada numa série de
naturezas-mortas e de Cidades ou Castelos, nas quais se observa um progressivo
aprofundamento expressivo, ao mesmo tempo em que as referências ao mundo natural se
reduzem ao mínimo - discos, cilindros, retângulos que apenas sugerem objetos. De posse,
finalmente, de todos os seus recursos expressivos, e tendo atingido um estado de autêntica
sabedoria pictórica, a personalidade de Dacosta cristaliza-se. E se é verdade, como queria
Schopenhauer, que toda arte aspira à condição de música, força é reconhecer que nunca,
como em tais obras, alçou-se o artista a tão elevado nível de realização. Isso mesmo, aliás,
parece ter sentido o júri da III Bienal de São Paulo, ao lhe atribuir, em 1955, o Prêmio de
Melhor Pintor Nacional justamente por uma série de Castelos ou Cidades.
O intervalo puramente abstrato que iria seguir-se, e que até certo ponto era preludiado por
algumas naturezas-mortas e Cidades, nada tem de estranhável: afinal, oriunda de Cézanne e
do Cubismo, a pintura de Dacosta concebe a Natureza antes de mais nada como um esquema
abstrato que fosse, ao mesmo tempo, desafio ao intelecto e estímulo à emoção. Fazendo então
uso de linhas retas, que delimitam campos monocromáticos, Dacosta passa a construir
espaços nos quais a vibração dessa ou daquela tonalidade não chega a destruir a sensação
predominante de um deliberado ascetismo, de uma austeridade quase mondrianesca. Nessas
obras de fins da década de 1950 e princípios da de 1960 repercute sem dúvida, se não a lição,
ao menos a presença do Concretismo, identicamente ao que se passava, pela mesma época,
com a pintura de Volpi.
Mas já em 1963 o artista abandona esse despojamento, como explicaria numa entrevista a
Frederico de Morais, anos depois:
- Aquela fase dos quadrados significou a necessidade de uma certa disciplina. Eu pintava como
uma dona-de-casa que quer manter sua casa sempre arrumada. Isto exige muito esforço.
Naquele tempo, acredito, era um jeito, um modo de ser. Mas acho que o ciclo da construção
3. acabou. Cheguei ao extremo e queriam que eu continuasse. Não via como. Hoje concluí pela
importância do "humano" na arte. Desci à terra. A disciplina não pode ir contra a liberdade.
Expressando-se por antíteses, Dacosta entrega-se a partir daquele ano à elaboração de nova
série - Vênus e Pássaros -, constituída por pinturas em que formas femininas opulentas, às
vezes em atitudes e posturas lascivas, são resolvidas com o emprego de linhas sensualmente
recurvas, cantantes de tão puras. Nessas obras, próximas do imaterial - a camada de
pigmentos, de tão rala, mal se percebe -, quase não se pode dizer onde acaba o desenho e
começa a pintura, ou vice-versa. Geometrizada, reduzida a um arabesco, a uma síntese visual
que é o próprio avesso da forma feminina naturalisticamente observada, a Vênus de Dacosta é
obra de um virtuose consumado. Vibra, em suas formas voluptuosas de leve colorido, qualquer
coisa de oriental.
Por duas décadas, até morrer, Dacosta dedicou-se à temática das Vênus e Pássaros, numa
sucessão de imagens que chegam a sugerir a catarse de alguma obsessão - como se o artista
quisesse expulsar, de dentro de si, todas as infinitas variações de um tema aparentemente
inesgotável.
Sobre o fundo negro, óleo s/ tela, 1954;
Museu de Arte Contemporânea da USP.
Natureza morta, óleo s/ tela, 1949;
0,73 X 0,92, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Composição sobre marron, óleo s/ tela, 1955;
0,65 X 0,92, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Vênus e pássaros, óleo s/ tela, 1971;
0,54 X 0,81, Pinacoteca do Estado de São Paulo.