2. Este céu passará e então
teu riso descerá dos
montes pelos rios
até desaguar no nosso
coração
3. É triste ir pela vida como
quem
regressa e entrar
humildemente por engano
pela morte dentro.
4.
5. Digam que foi mentira, que não sou
ninguém, que atravesso apenas ruas
da cidade abandonada
fechada como boca onde não
encontro nada:
não encontro respostas para tudo o
que pergunto nem na verdade
pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum.
6. Mesmo que não conheças
nem o mês nem o lugar
caminha para o mar pelo
verão
7. Amei a mulher amei a terra
amei o mar
amei muitas coisas que hoje
me é difícil enumerar
De muitas delas de resto
falei.
8. Tem o amor a arte de tornar
eterno aquele que por amor
tem de morrer
e até de morrer jovem
amiúde pois os deuses amam
aquele que perece em plena
juventude
e assim se fixa petrifica e
permanece
9.
10. Ver-te é como ter à minha frente
todo o tempo
é tudo serem para mim estradas
largas estradas onde passa o sol
poente é o tempo parar e eu
próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu
alguma vez e nem mesmo meço a
devastação do meu passado
11. Nomeei-te no meio dos meus
sonhos chamei por ti na
minha solidão troquei o céu
azul pelos teus olhos e o meu
sólido chão pelo teu amor.
12. e um olhar perdido é tão
difícil de encontrar
como o é congregar ventos
dispersos pelo mar
13. Esta manhã gostaria de ter
dado ontem um grande passeio
àquela praia onde ontem por sinal
passei o dia
É difícil a vida dos homens
senhor
Os anjos tinham outras
possibilidades e alguns deles foi o
que tu sabes
Esta terra não está feita para
nós
Mesmo que ela fosse diferente
nós quereríamos talvez outra terra
talvez esta de que agora dispomos
14. Pra nascer e morrer seria
necessário tanto?
É difícil a vida difícil a morte.
Por vezes os homens juntam-se
todos ou quase todos e organizam
grandes manifestações.
Mas nada disso os dispensa
da grande solidão da morte de
termos de morrer cada um por
nossa conta.
15. Requiem por um cão
I
Cão que matinalmente
farejavas a calçada
as ervas os calhaus os seixos
os paralelepípedos os restos de
comida
os restos de manhã a chuva
antes caída
e convertida numa como que
auréola da terra cão que isso
farejas cão que nada disso já
farejas
16. II
Foi um segundo súbito e
ficaste
ensanduichado esborrachado
comprimido
e reduzido debaixo do rodado
imperturbável do pesado camião
Que tinhas que não tens diz-
mo ou ladra-mo
ou utiliza então qualquer
moderno meio de comunicação
17. III
Eras vivo e morreste nada
mais
teus donos se é que os tinhas
sempre que de ti falavam
falavam no presente falam no
passado agora Cão que morreste
tão caninamente
18. IV
cão que morreste e me fazes
pensar
parar até que o polícia me diz
que siga em frente
Que se passou então?
Um simples cão que era
e já não é
19. No teu amor por mim há uma
rua que começa
Nem árvores nem casas
existiam antes que tu
tivesses palavras e todo eu
fosse um coração para elas
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço como este
dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera
20. Aqui eu fui feliz aqui fui terra
aqui fui tudo quanto em mim se
encerra aqui me senti bem aqui o
vento veio aqui gostei de gente e
tive mãe em cada árvore e até em
cada folha aqui enchi o peito e
mesmo até desfeito eu fui aquele
que da vida vil se orgulha Aqui
fiquei em tudo aquilo em que
passei um avião um riso uns olhos
uma luz eu fui aqui aquilo tudo até
a que me opus
21.
22. Morreu a mais bela mulher do
mundo tão bela
que não só era assim bela
como mais que
chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar
apenas para ela o seco sóbrio
simples nome de mulher em vez
de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o
mundo outra mulher
23. I
O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da
estrada
as profundas crianças desenharão
a giz
esse peixe da infância que vem na
enxurrada
e me parece que se chama sável
24. II
Mas desenhem elas o que
desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe
chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a
leste
25. III
tudo nele será novo desde os
ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças
dançarão
e na avenida que houver
à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
26. IV
Gostaria de ouvir as horas do
relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser
duro
edificar sobre ele o portugal futuro
27. Os pássaros nascem na ponta das árvores*
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão
pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam
movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao
reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os
campos
28. Gostaria de dizer que os pássaros emanam das
árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão
pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
• Texto recomendado pelas Metas Curriculares do 9 º ano.
29. Os estivadores
Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra
Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia
Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que dantes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade
30. Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto da gravidade
Ode marítima é o que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo que muito pode
mas um homem de pé pode bem mais
• Texto recomendado pelas Metas Curriculares do 9 º ano.