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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais




Contribuições da Filosofia de Spinoza para um
Pensamento da Ecologia Contemporânea




Trabalho de Conclusão de Curso – 2010/2

Aluno: Conrado Cavalcante Lima e Silva

DRE: 105083826

Prof. Orientador: André Martins
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   2




 CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DE SPINOZA PARA UM PENSAMENTO DA
                          ECOLOGIA CONTEMPORÂNEA


                                               Trabalho de conclusão de curso
                                               apresentado à Faculdade de Filosofia da
                                               Universidade Federal do Rio de Janeiro,
                                               como requisito parcial para obtenção do
                                               título de Bacharel em Filosofia.



Orientador: Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho




                          CONRADO CAVALCANTE LIMA E SILVA
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea           4



Agradecimentos


Aos amigos e familiares. Aos parceiros cariocas e serranos, baianos, gaúchos, mineiros e
paulistanos. Aos parceiros das confrarias musicais e filosóficas. Aos parceiros de projetos. Ao
corpo técnico-administrativo e docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao grupo
“BIOCHIP” da PUC-Rio. Meu sincero agradecimento.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   5




LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE SPINOZA UTILIZADAS




E - Ética

TTP – Tratado Teológico-Político
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   6




Sumário

1.   Introdução                                                                    7
2.   Não separabilidade homem-natureza                                             13
3.   Direitos do homem X Direitos da natureza?                                     16
4.   O Princípio da utilidade                                                      22
5.   Conclusão                                                                     28
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea               7




    1- Introdução


Um dilema atual da contemporaneidade, massivamente despertado pela
mídia e de alguma forma imposto pela realidade, da possibilidade do
esgotamento dos recursos naturais que sustentam o suporte da vida
humana no planeta, demanda do conhecimento uma cruzada por novas
linhas de pesquisa interessadas em orientar as práticas humanas em suas
mais variadas manifestações, da produção industrial à criação de meios
de subjetivação. A filosofia pode se propor uma reflexão sobre este atual
paradigma encontrando raízes nos pensamentos que vieram a dar em
nossa ecologia. O problema não é novidade; a partir dos anos sessenta,
como nos conta a autora Maria Luísa Ribeiro Ferreira 1, em seu texto
“Spinoza, um ecologista ‘avant la lettre’?” 2, vários filósofos foram
relidos a partir dessa perspectiva, como é o caso de Spinoza. Algumas
décadas antes, durante o regime hitlerista, algumas das leis mais
importantes em relação à proteção animal que já se tinha visto foram
levadas a cabo, como analisa o filósofo Luc Ferry 3, problematizando as
origens talvez obscuras do ecologismo e, em geral, mostrando sua
estreita e confusa relação com a tradição humanista. Textos que revelam
nossa     responsabilidade          diante     do    pensamento         da    ecologia,      pelos
desdobramentos ético-políticos que a ecologia logrou alcançar. Entre o
mais alto grau de entusiasmo de certos ecologistas e o mais alto grau de
responsabilidade do pensamento teórico existe, contanto, uma atmosfera
de importante reflexão sobre o tema da ecologia e suas implicações.

        As linhas de ecologismo que vieram a constituir o paradigma
contemporâneo da ecologia, principalmente a ecologia profunda (umas
das que buscou se justificar com a Filosofia, notadamente a de Spinoza),
mantêm imprecisões filosóficas e visões que se acirram a respeito dos


1
  Professora da Universidade de Lisboa.
2
  Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Spinoza, um Ecologista “Avant La Lettre”?
3
  No livro A Nova Ordem Ecológica. FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem.
Rio de Janeiro: Difel, 2009. Trad: Rejane Janowitzer.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea                  8


mesmos textos. É preciso, pois, novamente analisá-los, uma vez que a
filosofia de Spinoza se mostra útil para a ecologia. A questão central é a
de que a Filosofia espinosista é em essência ecológica, porque não
separa o homem da natureza, como faz a tradição humanista, e desloca da
natureza o antropomorfismo e a teleologia também característicos dessa
mesma tradição 4. Porém, mais do que reafirmar a novidade proposta por
Spinoza, este trabalho se dedica a analisar, agora sob a pressão das
últimas demandas da “cruzada ecológica”, os pontos dos textos de
Spinoza que mais exigem compreensão dos ecologistas.

        Na proposição 37 da parte IV da Ética Spinoza nos diz que “[...] a
lei que proíbe matar os animais é fundada mais numa vã superstição e
numa      efeminada        misericórdia        que     na    sã    Razão”.       Proposição        que
inicialmente parece controversa para muitos leitores, quando questionada
do ponto de vista ecológica, assusta pela precisão. Ali pode estar ou um
desvio de sua filosofia, para os leitores que acham a proposição
controversa, mas também uma resposta simples e contundente de Spinoza
para o dilema que opõe hoje os direitos humanos e os “direitos da
natureza” no âmbito do ecologismo. A questão do valor intrínseco da
natureza, como quer a ecologia profunda, encontra em Spinoza o não-
privilégio da espécie humana dentre os outros modos da natureza.
Perfeito, porém, pelo menos o próprio Spinoza, tendo afirmado que tudo
que existe tem poder de existir, e somente nessa medida tem direito 5, e,
poderíamos portanto pensar, valor, nunca afirmou que as coisas têm por
isso igual valor 6.

        Segundo Luc Ferry, em seu livro A                     ova Ordem Ecológica, hoje a
questão é que os ecologistas ou caminharam na direção dos “direitos da
natureza”, defendendo a natureza em si, ou, na esteira dos direitos
humanos, defendem a natureza pelo que representa para o homem. Tais
caminhos os dividiram politicamente, pondo a questão em termos de
revolução contra reformismo. Em artigo bastante cauteloso, Maria Luiza

4
  Ibid. Maria Luísa: p. 5 e 6.
5
  SPINOZA, Benedictus de. Ética (E). Parte IV, prop. 37, escólio. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2. Ed. – 2008
6
  Arne naess, The Deep Ecological Movement: Some Philosophical Aspects, p. 14.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea         9


Ribeiro Ferreira defende a moderação do entusiasmo dos ecologistas com
os textos espinosistas. Arne Naess, o filósofo norueguês que primeiro
tratou de unir os conceitos da ecologia profunda com argumentos
espinosistas,         é   um     defensor      ardoroso      desta    filosofia,     porém   sua
interpretação pode ser problemática ou incompleta. Felix Guattari, em As
Três Ecologias, fez um relato bastante realista a respeito da questão
ecológica, explicitando uma linha de continuidade entre a filosofia e a
ecologia e defendendo, portanto, intrínseca relação entre estas. Nenhum
dos textos, no entanto, esgota o assunto, e muito longe disso, apenas
abrem um importante caminho para a reflex ão. Claro que a ausência de
um uma articulação ético-política tem de ser posta à prova. É nesse
contexto que convidamos a filosofia de Spinoza, para ampliar a
discussão das principais questões, no campo político, enfrentadas hoje
pela ecologia.

          O mérito da pesquisa é o de buscar novamente nos livros Ética,
Tratado Político e Tratado Teológico-Político respostas para o conflito
dos direitos humanos em oposição ao direito da natureza, questão que
tende a ser dissolvida a partir dessa perspectiva. A expectativa é de
encontrar mais pontos que favoreçam o pensamento de uma ecologia,
acreditando que um sistema essencialmente ecológico deve guardar mais
do que ganchos para se pensar o assunto.

A proposta aqui é a de realizar uma leitura deste sistema buscando
compreender como sua Natureza jamais separa o homem do ambiente em
que vive, construindo-se a partir da perspectiva imanente e inaugurando
uma visão potente para a criação de orientações capazes de articular os
diferentes registros da ecologia (Guattari, 1993). Nesta proposta o que
se mostra problemático é a multiplicidade das interpretações dos textos
spinozanos, que estão presentes em muitas das linhas do pensamento
ecológico, às vezes dividindo, como no caso da Ecologia Profunda 7, os
meros ambientalistas dos defensores mais radicais da ecologia. Tais
divergências têm razão de ser: ao mesmo tempo em que traz a


7
    Arne Naess, “The Shallow and the Deep. Long-Range Ecology Movements”, Bucarest, 1972.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea         10


perspectiva não antropomórfica para o vocábulo Deus e se rompa de
forma veemente com a teleologia, a filosofia de Spinoza sustenta o
argumento da utilidade em que o humano, de acordo com o seu poder de
existir, possa se valer dos animais para seu proveito. Idéias que custam
caro à ecologia. Outro ponto de divergência é a implicação irrestrita da
expressão “Deus sive         atura”, de Spinoza, que gera interpretações de um
deus finito, mas ao mesmo tempo de uma natureza que pré-existe em
relação aos seus modos. Problemas, enfim, concernentes à leitura de
Spinoza,    que       em   face   da       discussão       ecológica   tomam       posturas
solidamente divergentes e dão origem a grupos distintos, mas que
creditam seus ideais ao mesmo filósofo.

      Compreendendo a Natureza spinoziana, vemos que a busca por um
pensamento ecológico nesse sistema pode ser redundante, uma vez que
toda esta filosofia é de tal forma elaborada que não preconiza a invenção
de técnicas de exploração da natureza pelo homem, ao contrário,
descreve    a    contiguidade         do   homem       e    da   natureza,      através   da
indiferenciação de seus atributos, como veremos detalhadamente adiante.
Suas diferenças reais de outros seres não-humanos provêm antes de sua
condição de serem modos da substância, não configurando, portanto,
nenhum privilégio ontológico entre estes domínios, que por tradição
mantivemos separados ou separáveis. A natureza como um todo, sim,
esta guarda consigo anterioridade ontológica em relação ao homem. Aqui
lembrando       que    o   atributo    pensamento,         que   em    outras     filosofias
diferencia o homem dos outros seres, em Spinoza existe com estatuto
natural, isto é, o atributo pensamento é um dentre infinitos nos quais
sempre se expressa a natureza, e assim é nos seres humanos. Com efeito,
preconceitos residuais da Filosofia atuam contra essa compreensão: a
noção de livre-arbítrio, por exemplo, que configura a metafísica do
possível (Chauí, M., 2008), obscurece a noção de que “não existe nada
de cuja natureza não se siga algum efeito” (E I, prop. 36) e que tudo é
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea                     11


determinado a agir de tal modo (EI prop. 29), que configura a ontologia
spinoziana como a ontologia do necessário 8.

A idéia dos mundos possíveis – tão natural para o pensamento tradicional
–    ao    qual     Deus       estaria      sempre       por     abandonar         na    direção        da
presentificação do mundo; eis como se justificou na tradição teológica a
natureza como causa livre, volitiva: o oposto ao engendramento de
substância, modo e atributo realizado por Spinoza. O que veremos é que
em     Spinoza,       “Deus       ou    a   Natureza”          (EI,   prop.     29      escólio)       age
necessariamente, porque se compreende infinita e necessariamente, o que
confere à natureza um papel intrinsecamente ativo 9. Isto é, a natureza
não está conforme fins 10, ela é puramente atividade; ela não alcança, mas
se extende. Assim se rompe com a tradição teleológica.

Deste modo, ainda que Deus ou a Natureza nunca sejam constrangidos
por nada a agir desta ou daquela maneira; porque se compreende infinita
e necessariamente, age necessariamente. Assim a Natureza não criou o
mundo por livre vontade, mas porque se compreende, daí seu caráter
ativo. O homem, na medida em que é uma modificação da substância ou
da natureza, vive em interação modal com todas as outras modificações,
sendo constantemente constrangidos por estas.

Nesta interação, e não fora dela, é que podemos pensar uma ecologia que
ao contrário de propor um retorno a certo estado de natureza, reconheça
que quando o homem “modifica” a natureza, modifica a si mesmo, e que
além de ser impossível um retorno para de onde nunca saímos, este seria
em si indesejável.

A natureza não nos dá objetos, instrumentos e coisas criadas, o que seria
fruto da idéia de um mundo criado, mas é o homem que, criando com a
natureza, e meditando em nada mais que na vida, busca melhorar suas
condições de existência. É seguindo uma lógica de mercado, que busca
soluções individuais para problemas coletivos que as condições humanas

8
  CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 95
9
  DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression.Paris: Les Éditions de Minuit, 1968, p. 87-90 .
10
   Para isso ver os prefácios às partes I e IV da Ética e EI prop. 16.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea              12


de vida aparecem como obstáculo para outras formas de vida. Porém,
como nos ensina Spinoza, a felicidade é algo de ordem social 11, e
podemos gozar dela por via da coletividade, o que de nenhum modo
exclui as outras formas da natureza.

Vamos ao desenvolvimento.




11
   “O sumo bem, contudo, é chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, se possível, dessa
natureza. Qual, porém, seja ela mostraremos em seu lugar, a saber, o conhecimento da união que a
mente tem com toda a natureza. Este é, portanto, o fim ao qual tendo: adquirir uma natureza assim e
esforçar-me por que muitos a adquiram comigo; isto é, pertence também à minha felicidade fazer com
que muitos outros entendam o mesmo que eu (...). E para que isso aconteça, é preciso entender tanto
da Natureza quanto baste para adquirir semelhante natureza; a seguir, formar uma tal sociedade como
é desejável para que o maior número chegue a isso do modo mais fácil e seguro.” Tratado da Correção
do Intelecto, § 13 e 14, trad. de Carlos Lopes de Mattos, Editora Abril , 1973.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea                    13



     2-    ão-separabilidade homem-natureza


Lê-se no prefácio à parte III da ética:

       “Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos
       homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de
       coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza,
       mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem
       conceber o homem na natureza como um império num
       império. Pois acreditam que, em vez de seguir a ordem da
       natureza, o homem a perturba, que ele tem uma potência
       absoluta sobre suas próprias ações e que não é
       determinado por nada mais além de si próprio.”

Quando lemos um trecho como esse, temos a certeza de que Spinoza fala
de um homem plenamente inseparável da natureza, porém simplesmente
nossa contemporaneidade tem dificuldade em compreender isso.

É, no entanto, necessário uma limpeza conceitual, um certo esvaziamento
dos sentidos das palavras para nos encontrarmos verdadeiramente com o
que nos diz Spinoza. Acredito que muito dessa dificuldade na leitura de
suas obras deve-se justamente ao conceito fundante de natureza. É o que
deixa ver o prefácio à parte III da Ética, quando nos diz claramente que
os afetos, considerados em si mesmos, seguem a mesma necessidade da
ordem comum da natureza. De forma simplificada, enquanto modo ou
coisa singular, cada homem e cada mulher e cada ser vivo ou inanimado
ou é compreendido pela Natureza (Deus) ou pela própria natureza (EI
definição 5), neste último caso, no                         entanto, não se compreende
verdadeiramente sem as outras partes da natureza (EIV capitulo 1 do
apêndice). Acrescenta-se que enquanto pode ser concebido por si mesmo,
deve-se assim proceder 12.




12
   Isso decorre tanto das definições da primeira parte da Ética quanto da própria definição de conatus na
EIII proposição 6: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”. Além
disso, em se falando da criação de leis humanas, no capítulo IV do Tratado Teológico-Político, Spinoza
acrescenta: “(...)Essas leis dependem, como disse, da decisão do homem, porque devemos definir e
explicar as coisas pelas suas causas próximas (...)(SPINOZA, Benedictus de. Tratado Teológico-Político.
São Paulo: Martins Fontes, 2008. Trad: Diogo Pires Aurélio, p. 58)
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea       14


Por isso quando Spinoza afirma, seja com o princípio de utilidade, seja
com o conatus, que os homens em sua relação com a natureza (do que
afinal nunca deixou de falar a Ética) devem se guiar não pelas potências
exteriores mas pela sua própria, não é de uma parte isolada que está
falando, e sim de um humano que não pode ser compreendido sem as
outras partes da natureza. Pois, como vimos, esta é a forma correta de se
conceber os modos e as coisas singulares.

Ao contrário, nossa atual moral ecológica, disseminada pelos quatro
cantos e repetida solenemente em todos os cânones da cultura, ciência e
religião, não nos diz muito diferente disso: a atitude individual de cada
um de nós é a única saída para a crise; está nas mãos de sua liberdade
salvar ou detonar o planeta; o homem é uma espécie predatória e
parasitária (os que defendem uma ecologia) ou que é natural o homem
ser tal predador; que não há outro caminho para o progresso humano; que
toda ação humana é em si perturbadora etc (os que repelem a idéia de
uma ecologia).

 Porém, desses dizeres morais, muito poucos, ou nenhum deles encontra
eco na filosofia de Spinoza. Ter a ação individual como solução do
problema    evidentemente       coletivo;    desprezar     as   ações    humanas         e
menosprezar sua condição; afirmar que o homem é naturalmente
monstruoso e que tudo que ele produz é mau; enfim, são meios
injustificáveis para a finalidade imaginada.

Pois bem, acredito que estaremos complicados se tivermos que situar
Spinoza em uma dessas correntes que hoje são ditas ecológicas, ou
simplesmente, em outras teorias que, não querendo ser ecológicas, se
insurgem contra uma ecologia, mas permanecem na esteira da discussão
da relação do homem com a natureza.

Relação “homem-natureza” que, aliás, não faria sentido a não ser que o
homem fosse “um império num império”, pois, em se falando de uma
ética, está em questão a relação de todos os modos entre si, e, mais
profundamente, de todas as coisas singulares entre si, consideradas em si
mesmas, e por isso como cada potência singular não implica num
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   15


obstáculo e ao mesmo tempo como é vulgarmente comum contemplar
uma negação para a idéia do conatus.

O caminho percorrido pela Ética de Spinoza irá mostrar que não há
diferença entre ética da natureza e ética do homem, e como sendo a
ordem de ambas uma e mesma 13, chamamo-la simplesmente ética, e por
essa razão, e reconhecendo a mesma falsa dicotomia na idéia de ecologia
(que surge para ser a ética do meio ambiente), poderíamos chamá-la
também simplesmente de ecologia. Ou seja, se a ecologia não designar a
comunidade do homem e da natureza, adequadamente, irá incorrer nos
atuais contrasensos que parecem opor natureza e cultura, homem e
natureza.

Desta forma, longe de fundar uma metafísica, o relevo da infinitude no
sistema spinozista (natura naturans) apenas facilita a concepção de uma
natureza fundante e de coisas naturais, uma longa viagem simplesmente
para garantir que é como natureza que o homem deve ser pensado, em
sua natureza expansiva, sim, pois como modo deve se conceber por si
mesma, porém, como parte, deve se conceber com as outras partes e
modos. A irrealidade de nossa situação está muito mais na aparente
dicotomia homem-natureza.

Mas         como       aparece       essa       dicotomia?   Absorvida   pela   linguagem
publicitária e por toda a sorte de mecanismos de poder, para despistar o
verdadeiro problema ecológico que é a péssima distribuição do que é
produzido pelo homem, do desperdício e falta que assim são gerados; o
excesso de segurança e a emergência constante de modos de produção
totalizantes etc.




13
     Como se pode ler no prefácio à parte III
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea            16



       3- Direitos do Homem X Direitos da                           atureza?


Luc Ferry, em seu livro A Nova Ordem Ecológica, desenvolve importante
argumentação            contra     as    vertentes      do    ecologismo        que    vieram      a
reinvindicar no seu ápice os direitos da natureza como solução para o
problema             ecológico,     enxergando         na     essência      dessas         vertentes
incoerências e irresponsabilidades no que tange ao projeto político que
delas se multiplicam, identificando os pilares da teoria de Arne Naess e
da Ecologia Profunda, em geral, à idéia central da legislação nazista de
proteção à natureza.

Nos termos da Tierschutzgesetz (lei nazista de 24 de novembro de 1933,
a respeito da proteção dos animais), que retiro da tradução de Luc Ferry:

          “O povo alemão teve desde sempre um grande amor pelos animais e
          sempre foi consciente das obrigações éticas elevadas que temos em relação
          a eles. Mas somente graças à Direção Nacional-Socialista é que a aspiração,
          compartilhada por largos círculos, a uma melhora das disposições jurídicas
          relacionadas à proteção dos animais e à edição de uma lei específica que
          reconhecesse o direito que possuem os animais, como tais, de serem
          protegidos por si mesmos foi realizada de fato.”14



Nos termos da Ecologia Profunda, os quais considero indispensáveis
aqui, também extraídos de sua tradução:

          “1) O bem-estar e o desenvolvimento da vida humana e não humana sobre
          a Terra são valores em si (sinônimos: valores intrínsecos, valores inerentes).
          Esses valores são independentes da utilidade do mundo não humano para
          as finalidades do homem.

          2)A riqueza e diversidade de formas de vida contribuem para a realização
          desses valores e, consequentemente, são também valores em si.

          3)Os humanos não têm nenhum direito de reduzir essa riqueza e essa
          diversidade, a não ser que seja para satisfazer necessidades vitais.




14
     Ibid., p. 179
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea       17


          4)O desenvolvimento da vida e da cultura humanas é compatível com uma
          diminuição substancial da população humana. O desenvolvimento da vida
          não humana exige uma tal diminuição.

          5)A intervenção humana no mundo não humano é atualmente excessiva e a
          situação está se degradando rapidamente.

          6)É preciso, pois, mudar as orientações políticas de maneira drástica no
          plano das estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas. O resultado da
          operação será profundamente diferente do estado atual.

          7)A modificação ideológica consiste principalmente em valorizar a
          qualidade de vida em vez de visar permanentemente a um nível de vida
          mais elevado. Será necessário uma tomada de consciência profunda da
          diferença entre desmedido (big) e grande (great).

          8)Os que subscrevem os pontos que acabamos de anunciar têm obrigação
          direta ou indireta de trabalhar para essas modificações necessárias”.15




Nas passagens fica claro que apesar de muito distantes, politicamente o
ecologismo            também     apresenta      sua    visão    totalizante,     contrária    à
liberdade, nesses trechos alavancados pela questão dos direitos em si da
natureza, que chegam a justificar, no caso da Ecologia Profunda, a
diminuição substancial da população humana. Alguma dúvida de que o
mais alto amor à natureza poderia neste caso conviver pacificamente com
o mais alto ódio pelos humanos?

Diferentemente, Spinoza jamais prescreveria os valores em si da
natureza, pois seu pensamento nos conduz, ao contrário, para o princípio
de utilidade do homem.

Se, num primeiro momento, isso parece frustrar a idéia de uma ecologia,
tal como é pensada hoje, num outro se mostra maduramente à frente do
tempo da ecologia meramente ambiental, impondo claros limites ao
excesso da razão controladora.

Como nos diz Maria Luiza Ribeiro, a respeito da visão de Luc Ferry:




15
     Ibid., p. 133.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea           18


      “Ora, segundo Ferry, para proteger a Natureza não é necessário
      reconhecer-lhe direitos. Aliás, reconhecer-lhe direitos é, para L. F., uma
      projeção antropomórfica. Com o advento da laicidade a ecologia deverá
      prescindir da sua carga religiosa. A nossa obrigação é elaborar uma teoria
      dos deveres para com a Natureza, o que é diferente de uma carta de
      direitos da mesma. É esta a ecologia que o filósofo francês apelida de
      democrática, saída do humanismo laico da Revolução Francesa, de Kant, de
      Rousseau e dos Iluministas.”16

A respeito da questão dos limites dos direitos do homem e da natureza, o
excelente artigo Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental
(D`ABREU, Rochelle C ysne Frota 17) também parece optar pela via que
aos olhos do ecologismo contemporâneo convém-se chamar humanista e
racionalista, porque demonstra que creditar valor em si à natureza é uma
espécie apenas mais sofisticada de antropomorfismo, o que segunda a
autora Spinoza rejeitaria, pois o valor da natureza não é intrínseco a ela,
mas devotado a ela pelos homens. Esta visão, com efeito, tende a frustrar
a via filosófica da Ecologia Profunda.

Entretanto ainda que filosoficamente tenhamos razões para moderar o
entusiasmo da ecologia meramente ambiental, que exclui o homem de seu
centro, a categoria meramente humanista tampouco parece corresponder
às teorias spinozistas.

Até onde caminhamos por abandonar a questão dos direitos da natureza,
encontramos em Luc Ferry a idéia de uma ecologia pautada em deveres
do homem; restando-nos ainda não deix ar que por deveres se entenda
uma nova sobrecarga moral.

Adentrando o sentido do princípio da utilidade humana em Spinoza,
vejamos:

E IV prop. 37, escólio:

      “[...] enquanto a impotência consiste em o homem se deixar conduzir pelas
      coisas que estão fora dele e em ser determinado por elas a fazer aquilo que
      o arranjo ordinário das coisas exige e não aquilo que exige a sua própria

16
  Ibid., p. 8.
17
  Participante do GT Benedictus de Spinoza – ANPOF 2010. D`ABREU, Rochelle Cysne Frota. Espinosa
como inspiração para uma filosofia ambiental. Revista Conatus, v. 3 número 6, p. 47 e 48.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea              19


      natureza, considerada só em si mesma.[...] Por isso, é evidente que a lei
      que proíbe matar os animais funda-se mais numa vã superstição e numa
      misericórdia feminil do que na sã razão. O princípio pelo qual se deve
      buscar o que é útil ensina, indubitavelmente, a necessidade de nos unirmos
      aos homens e não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da
      natureza humana. Temos sobre eles o mesmo direito que eles têm sobre
      nós. Ou melhor, como direito de cada um se define pela sua virtude ou
      potência, os homens têm muito mais direito sobre os animais do que estes
      sobre os homens. Não nego, entretanto, que os animais sintam. Nego que
      não nos seja permitido, por causa disso, atender à nossa conveniência,
      utilizando-os como desejarmos e tratando-os da maneira que nos seja mais
      útil, pois eles não concordam, em natureza, conosco, e seus afetos são
      diferentes, em natureza, dos afetos humanos.”

A passagem define que os homens devem ser concebidos pela sua própria
natureza. Pois como vimos no capítulo anterior, é como modo que deve
ser concebido um homem. Seguindo-se que se de sua natureza resultasse
necessariamente a relação desfavorável para o animal, não seria a
compaixão        –    afeto     passivo      –    por    ele    e    tampouco        decretar-se
simplesmente que ele tem direitos, porque possui valor em si (o que seria
a forma sofisticada do antropomorfismo) que os fariam mais ou menos
protegidos. Pois nossas relações com a natureza não estão postas
somente em questão de direito jurídico e de controle, mas de poder.
Sabiamente, Spinoza nos ensina nessa passagem que direito se define
pela potência de uma coisa. E ainda que direitos os protejam, e mesmo
sendo chamados direitos dos animais, que direitos são esses senão
aqueles que nós prescrevemos a nós mesmos 18?

Como vemos, é própria da compreensão que separa o homem da natureza
a idéia de que o homem em sua potência expansiva contradiz um
princípio de sociedade. Dificuldade clássica têm os leitores da Ética em
geral: como passar dessa ética que interpretam como individual para uma
ética da coletividade? Pois, se o sábio medita em nada mais que na vida,
é em nome dessa expansão da condição humana, e não em limites, que
devemos falar. É por isso que Spinoza diz que os homens devem


18
  “A (lei) que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais propriedade de direito,
é aquela que os homens, para tornar a vida mais segura e mais cômoda, ou por outro motivo qualquer,
prescrevem a si e aos outros.” (TTP, cap. IV, p. 58)
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea                  20


compreender a partir de sua natureza, uma natureza de expansão e
coletividade.

Volto a citar o artigo de D`ABREU:

      “Se nada é melhor para um homem do que outro homem, visamos em
      primeiro lugar a conservação dos homens. Mas, se sabemos que a
      conservação dos animais implica numa melhoria para a vida humana e que
      sua destruição gratuita não nos é útil em nada, sendo muitas vezes
      prejudiciais a nós, compactuar com sua destruição seria uma forma de
      irracionalismo. Não conservamos a vida dos animais por compaixão, mas
      simplesmente porque a existência deles em nada atrapalha a nossa,
      podendo todos coexistirmos juntos, para maior riqueza do meio ambiente e
      da experiência humana.”

A questão específica do direitos dos animais em relação à produção de
alimentos é que, sendo o humano capaz de se servir dos animais para
este fim, por ser-lhe útil como alimento pode perpetuar-se, porém em sua
escala predatória e por impedir que outros homens possam também se
servir dos mesmo e outros bens, é um absurdo.

Embora veemente em sua descrição, Spinoza antecipa uma questão que
hoje é central. Os ambientalistas querem defender a natureza em si,
porém assim indiferenciam o que para o homem é útil ou inútil. O
exagero dos opostos ilustra bem a questão: será que têm os bebês-foca os
mesmos direitos do mosquito vetor da malária ou da dengue?

Todavia ignorar a questão da proteção animal é hoje, de fato, uma
lástima. Como podemos ver, não porque não seja um direito humano
utilizar o que encontra na natureza, porém, como naturalmente essa
disposição se inclinaria à multiplicidade 19 (infinitude) desses meios, e
tendo sido, ao contrário, regidas em essência pela economia da
equivalência, uma história (e, portanto, uma natureza) de destruição se
credita aos humanos. Se o crédito é justo, aqui não nos cabe analisar,
apenas podemos observar que o afeto relativo à extinção de certas formas



19
  Ibid. E IV, cap. 26 do apêndice: “(...)O princípio de atender à nossa utilidade não exige que nós o
conservemos. Este princípio nos ensina, em vez disso, que, conforme as suas diferentes utilizações, nós
conservemos, destruamos ou adaptemos as coisas, de qualquer maneira, às nossas conveniências”
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   21


de vida se dirige a algo que se imagina como necessário, e, portanto, é
mais forte em relação a algo que se imagina como contingente 20.

A situação atual, na qual o cidadão conhece uma parcela mínima de seus
direitos, isto é, suas leis, tampouco se reconhece neles, se torna bastante
difícil mesmo compreender por que é um direito seu defender as áreas
comuns de nossa cidade, e mais do que isso, seu usufruto expandido,
legalizado;            proteger-nos    para    que     não     sejamos      simplesmente
empoleirados, reduzidos à dimensão de estarmos sozinhos entre milhares
de homens e mulheres, pois se a cidade assim se constituiu foi para nos
unir, e, em vez disso, nos afastou de nós mesmos e nos privou da
natureza para além de prédios.

Porque embora pareça conservador, hoje, o argumento da utilidade
apresentado por Spinoza pode em princípio mostrar outro caminho que
não uma ditadura ecológica, onde, nos moldes da legislação “ecológica”
nazista, o amor sincero aos animais e à natureza convivam com o mais
cruel ódio à humanidade. Pois em se protegendo a natureza em si,
desconsidera-se o homem como natureza, e aí se corre esse risco.

Dessa maneira podemos dizer que a crítica ao antropomorfismo de
Spinoza não indica valores intrínsecos à natureza, e a questão da defesa
ou da conservação da natureza por si não parece mais forte e potente que
a defesa da natureza para os humanos, uma vez que os humanos também
são a natureza se modificando.




20
     Ibid., EIV prop. 11
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   22



       4- O princípio de Utilidade




Lê-se no capítulo 26 do Apêndice à parte IV da Ética:

          “Por isso, com respeito a tudo aquilo que existe na natureza das coisas,
          afora o homem, o princípio de atender à nossa utilidade não exige que nós
          o conservemos. Este princípio nos ensina, em vez disso, que, conforme as
          suas diferentes utilizações, nós conservemos, destruamos ou adaptemos as
          coisas, de qualquer maneira, às nossas conveniências”




Podemos dizer que o princípio de utilidade decorre da idéia de conatus,
de que “nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa
exterior” 21, e de que “o esforço por pelo qual cada coisa se esforça por
perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” 22. Se, na
primeira parte da ética, nos é ensinado que um modo ou coisa singular
existe noutra coisa relativamente à natureza naturante, por meio da qual
também é concebido, na terceira parte nos ensina que os conceber então
segundo sua própria natureza, segundo seu conatus e portanto sem
envolver qualquer idéia de negação em sua essência não resguarda
nenhuma contradição, ao contrário, aponta para a imanência das relações
naturais, para a necessidade dessas relações, e de como cada homem é
dotado de meios para perseverar em si mesmo, buscar o que lhe é útil
segundo suas finalidades.

Assim, conforme este princípio, as leis humanas, embora pertençam à
mesma ordem e conexão das coisas, são definidas pelos homens e não
simplesmente derivadas de leis da natureza, pois estas, em sua maior
complexidade não sendo possíveis ao entendimento humano, permanecem
como causa imanente e não transitiva de sua compreensão, enquanto que
as leis humanas o tempo todo lidam com transformações.




21
     Ibid., EIII prop 4
22
     Ibid., EIII prop 7
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea                  23


Além da impossibilidade do intelecto humano frente às leis da natureza,
há outro forte motivo para impedir a derivação desta para as leis
humanas: nos termos do TTP, a lei divina está como que interpretada por
profetas que, ao concederem estatuto humano para suas revelações, o
fazem sob jugo dos próprios afetos e à luz da sua própria razão, e por
isso não há diferença entre o conhecimento à luz natural da razão e o
conhecimento profético 23, exceto que pelas revelações não se obtém nada
além de um conjunto de ensinamentos morais bastante simplificados 24.
Em termos pouco mais atuais, e como à lei se remete também o sentido
de ditames morais, é meramente a superstição que faz as massas
creditarem seus próprios ideais às idéias contidas naquelas revelações.
Nessa medida, é isto que se conhece e não as verdadeiras leis humanas 25,
sendo que são estas que, se modificando, modificam o modo de vida de
cada ser humano da Terra. Neste sentido nos diz Spinoza, uma lei é um
direito:

      “A lei que depende da necessidade natural é aquela que deriva
      necessariamente da própria natureza, ou seja, da definição de uma coisa; a
      que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais
      propriedade de direito, é aquela que os homens, para tornar a vida mais
      segura e mais cômoda, ou por outro motivo qualquer, prescrevem a si e aos
      outros.” (TTP, cap. IV, p. 58)




Retomando a passagem que abre este capítulo, note-se que “de qualquer
maneira” denota apenas infinitas possibilidades, e não uma forma
pejorativa do usufruto humano dos bens naturais. Por isso que “conforme
suas utilizações, conservemos, destruamos ou adaptemos” significa, ao
contrário, apenas que não há problemas em “modificar” a natureza 26, uma
vez que 1) não são as leis da natureza que são modificadas e 2) que as


23
   “Ora, nos diz Espinosa, não há diferença entre profecia e conhecimento natural (...)” (Ibid., p. 75)
24
   No livro Política em Espinosa, Marilena Chauí reúne os motivos que levaram Spinoza a escrever o TTP,
e entre esses, lê-se: “Demonstrar que não há verdades especulativas na Escritura, mas ensinamentos
morais e religiosos muito simples (...)” (Ibid., p. 73)
25
   “Porém, uma vez que a verdadeira finalidade das leis não costuma ser clara senão para um pequeno
número, ao passo que a maioria dos homens são praticamente incapazes de a perceber (...)” (TTP, cap.
IV, p. 67)
26
   Ibid., D`ABREU, p. 42
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea                  24


coisas existem também em seu poder de existir e não porque foram
criadas 27.

Tal é o sentido, também, da distinção, operada no TTP, entre leis da
natureza e lei dos homens. Poder-se-ia questionar que talvez estejamos,
hoje, no limite de criar algo monstruoso, capaz de gerar a própria vida,
porém, sendo ainda e sempre uma mera ilusão, fica de realidade apenas
como o poder corrosivo das coisas que nós criamos até agora não alterou
em nada a ordem infinita da natureza, pelo contrário, a natureza apenas
nos devolveu como poluição.

A depender do momento em que fosse lido, o princípio de utilidade
penderia mais para lá ou mais para cá, isto é, ou simplesmente garante o
direito humano de usufruto dos bens naturais, ou aponta para a
diversidade dos seus meios de utilização. Sobre este último ponto resta
muito mais a ser dito. De um lado, garantir tal usufruto, agora e sempre,
é um direito humano, já mais ou menos defendido e sabido, ainda que
comumente definido como contrário ao uso racional da natureza. Justo
por essa definição equivocada os ecologistas foram levados a crer que o
problema ecológico tem suas raízes na tradição humanista. Porém, a meu
ver, resta um campo mais amplo para a discussão, que é o das
possibilidades virtualmente infinitas de usufruto da natureza e o “esboço
de uma inteligência afetiva, política e ecológica” 28 ao longo da obra de
Spinoza, sobretudo na parte V da Ética.

Assim, como na célebre proposição 42 da Ética V 29, que inverte o sentido
usual da relação entre a potência de refrear os afetos e a beatitude, pode-
se dizer que não é o princípio de utilidade que faz do homem um


27
   Ausência de finalidade
28
   A expressão é de D`ABREU, que define o amor intelectual a Deus como sendo tal esboço. “Se o amor
intelectual prometesse uma vida mais feliz no futuro, o homem estaria ainda pensando em termos de
tempo. Como essa noção é uma promessa de eternidade e como eternidade se define pela necessidade
de existência apenas a partir da definição da coisa dada, segue-se que sentir-se comum a Deus é não
mais se perceber como um indivíduo, mas como uma parte singular da Natureza que como toda e
qualquer outra deseja viver”
29
   Ibid., EV prop. 42. “E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusivamente no
intelecto, ninguém desfruta, pois, dessa beatitude porque refreou os afetos, mas, em vez disso, o poder
de refrear os apetites lúbricos é que provém da própria beatitude”
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   25


predador desmedido, mas ao contrário, é pela forma de utilização que
podemos ou não nos orientar por caminhos mais seguros.

Sobre a diversidade dos meios de utilização, parece que são esses os
preconceitos de que nos adverte Spinoza.

Apêndice à parte I da Ética:

    “[...]Os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem,
    tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar
    como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista
    algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do
    homem[...]”

    “Tendo, pois, passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais
    acreditar que elas tivessem sido feitas por seu próprio valor.”

    “É por isso que, quanto às coisas acabadas, eles buscam, sempre, saber
    apenas as causas finais, satisfazendo-se, por não terem qualquer outro
    motivo para duvidar, em saber delas por ouvir dizer.”

Sabemos que “por ouvir dizer” podemos entender o primeiro gênero de
conhecimento, que é o conhecimento imaginativo, por meio do qual todas
as idéias são formadas, e que é fonte maior das idéias inadequadas, isto
é, idéias que não convêm ao seu ideado, que não contêm conhecimento
suficiente para agir sendo do efeito uma causa adequada, isto é, que pode
ser compreendida pela sua própria natureza.

Diferentemente, pelo terceiro gênero de conhecimento compreendemos a
Natureza como causa de cada coisa singular, o que é o mesmo que
compreender que a Natureza Naturante (Deus) não age por liberdade da
vontade, logo não cria os modos e as coisas singulares, pois estes,
concebidos pela própria natureza singular, perseveram apenas em seu
próprio ser, porém, como modos, são pela Natureza determinados a
existir de certa maneira, pela qual participam necessariamente da
Natureza inteira. É da anterioridade ontológica da Natureza Naturante
que esta é causa imanente de todas as coisas e, por isso, não há
contradição em se pensar que as coisas singulares, podendo ser
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea             26


concebidas também por si mesmas, não podem ser concebidas sem
Deus 30.

Prop 29 EI, escólio

      “[...] Por natureza naturante devemos compreender o que existe em si
      mesmo e por si mesmo é concebido, ou seja, aqueles atributos da
      substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, Deus,
      enquanto é considerado como causa livre. Por natureza naturada, por sua
      vez compreendo tudo o que se segue da necessidade da natureza de Deus,
      ou seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos
      atributos de Deus, e que, sem Deus, não podem existir nem ser concebidas.

Se falamos dos gêneros de conhecimento é porque, como se pode ler no
prefácio à parte V da Ética, os homens confundem causas finais com
causas eficientes, é por meio dos afetos humanos que podemos entender
as coisas que ele cria, e por conseguinte, as idéias – adequadas ou
inadequadas – que lhes convêm.

Perseverar no próprio ser é ter em vista o princípio da utilidade, porém,
descontados a crítica ao antropomorfismo e a potência relativa da mente
sobre os afetos, é claro que em vez de criar um “um império num
império”, tal princípio apenas coloca o homem em poder da pequena
parte que lhe cabe, infinitamente menor que o da natureza inteira.

Ademais, o sentido do princípio do conatus aplicado ao conjunto como
indivíduo remete em sociedade à manutenção da vida humana diante de
grandezas da ordem de catástrofes naturais, nas quais a própria espécie
estivesse em perigo. Porém hoje é outro nosso problema, pois a questão
da superpopulação de humanos, por onde o problema não poderá ser
resolvido (exceto caso percamos a guerra contra o poder genocida), não
podendo ser uma variável nesta conta, apenas obriga a todos e a cada um
que viva menos. Neste sentido, não é a espécie que está em risco,
tampouco o planeta, é a supervida, e não a sobrevida. No limiar dessa
afetividade ecológica, nos vemos irremediavelmente dependentes de
valores externos como o “verdadeiro” que nos traz a mídia, e ela, por sua

30
 Aqui utilizo a palavra Deus para não aniquilar a diferença entre natureza naturante e naturada, à
maneira que Maria Luísa Ribeiro Ferreira encontra em Arne Naess. Ibid., p. 9.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   27


natureza, não lida com o verdadeiro da questão. Agora, em se tratando
realmente o problema como um perigo em níveis de tais catástrofes, e
tendo sido nós os criadores; uma visão, como a expressa na proposição
abaixo, tende a apaziguar o desejo de mudanças bruscas, mas deixa ver
que o tempo, o presente no qual vivemos quando agimos, é o maior
aliado.

Capítulo 32 do apêndice à E IV:

     “A potência humana é, entretanto, bastante limitada, sendo infinitamente
     superada pela potência das causas exteriores. Por isso, não temos o poder
     absoluto de adaptar as coisas exteriores ao nosso uso. Contudo,
     suportaremos com equanimidade os acontecimentos contrários ao que
     postula o princípio de atender à nossa utilidade, se tivermos consciência de
     que fizemos nosso trabalho, de que a nossa potência não foi suficiente para
     poder evitá-las, e de que somos uma parte da natureza inteira, cuja ordem
     seguimos. Se compreendemos isso clara e distintamente, aquela parte de
     nós mesmos que é definida pela inteligência, isto é, a nossa melhor parte, se
     satisfará plenamente com isso e se esforçará por perseverar nessa
     satisfação. Pois, à medida que compreendemos, não podemos desejar
     aquilo que é necessário, nem nos satisfazer, absolutamente, senão com o
     verdadeiro. Por isso, à medida que compreendemos isso corretamente, o
     esforço da melhor parte de nós mesmos está em acordo com a ordem da
     natureza inteira.”
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   28



   5- Conclusão


Porém, além da verdade especulativa que uma filosofia ambiental deve
ser capaz de abrigar, em sua situação política ela deve ser capaz de
abrigar algumas compreensões de que nos serve Spinoza; de que as
massas creditam seus ideais facilmente na direção ora do medo ora da
salvação, ignorantes das causas e de como se produzem as coisas e os
fatos. Neste sentido é um retrocesso a ressacralização da natureza, no
sentido de que esta alimenta a superstição e o desejo ou de ser dominado,
ou de não ser por nada governado. Neste sentido considero interessante a
atitude de Luc Ferry em reconhecer que apesar de representar, sim, o
desejo de muitos, a Ecologia não pode se pretender um modelo político
sofisticado, pois, em termos spinozistas, as massas ou os governos
ignorantes podem fazer com que lutemos pela própria servidão como se
fosse pela salvação, isto é, em nome de um medo fundador da política,
recair em situações profundamente sombrias que seriam uma ditadura
moralmente devastadora, maquiada apenas de teorias biocêntricas, ditas
ecológicas, mas que na prática se revelariam totalmente contrárias à
liberdade humana.

Nessa   pesquisa     pude    constatar    que    há    uma    dificuldade     em    se
compreender como ascender a um pensamento ecológico, que em
princípio põe numa linha de força a questão dos valores em si da
natureza, e desta forma numa outra linha, oposta, a necessidade humana
de se expandir. O argumento da utilidade, sustentado diversas vezes por
Spinoza ao longo da Ética e do TTP, como citamos neste trabalho,
definitivamente não é um detalhe – e pode conter belas inspirações para
uma ecologia que em vez de oprimir, liberte.

A respeito do perigo que ronda o medo e a esperança de um futuro
ecológico, nos diz Guattari:
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea                     29


          “Não podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos aparelhos
          de Estado para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses domínios,
          regidos no essencial pelos princípios da economia de lucro.”31

          “O capitalismo pós-industrial tende, cada vez mais, a descentrar seus focos
          de poder das estruturas da produção de bens e de serviços para as
          estruturas produtoras de signo, de sintaxe e de subjetividade, por
          intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a
          publicidade, as sondagens etc.”32



Quer dizer, em vez de pôr a discussão nos termos da propaganda
midiática, do dever e da opressão moral que considera apenas o fato
individual do consumo, devemos pensar, agora sem o preconceito contra
o princípio de utilidade humana, que é justamente pela utilidade que
podemos conservar bens que simplesmente são nossa fonte de vida. Claro
que, não sendo meramente individuais as ações que articulam política e
ética em nome de uma ecologia, esta está posta na relação de medo e
esperança política, na medida em que dela se espera a salvação ou a
derrota total. Porém, sendo a ética regida nesse segmento pela expansão
da       vida     humana        e    pelo     princípio       de     utilidade,       o   que     podemos
compreender é que há um limite para a idéia de sustentabilidade, e que
não há a necessidade cega de neutralizar a ação humana, pois esta é
simplesmente ação da natureza sobre si mesma, e, portanto, que um
retorno a certo estado de natureza é impossível e indesejável. Podemos,
contudo, em nome de assegurar tudo aquilo de que precisamos para viver
melhor, conservar a história que é a natureza, para dela nos servirmos de
conhecimento de nós mesmos, além, é claro, que sem as outras partes da
natureza, nós simplesmente não existimos.

Com isso concluo que ao oferecer a ontologia spinozista para a questão
ecológica, avançamos no terreno das “verdades especuladas”, porém o
verdadeiro sentido do problema ecológico tem suas raízes teológico-
políticas, pois nesse domínio, sim, para além da subjetividade humana,
encontram-se as relações de dominação que colocam, no âmbito da

31
     Guattari, Félix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1990. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt, p. 24.
32
     Ibid., p. 31
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   30


discussão ambiental, o homem contra a natureza, o desenvolvimento
contra o ambiente, as leis contra a cultura.

Pensar a partir do próprio conatus e retirar dele uma idéia de negação,
eis   uma    tarefa    eminentemente       ecológica:     pensar    a   expansão      em
coletividade com todos, e não que reside na expansão do conhecimento
humano um grave defeito de nossa natureza.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea       31


REFERÊNCIAS:




FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem. Rio de Janeiro: Difel,
2009. Trad: Rejane Janowitzer.


CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression.Paris: Les Éditions de Minuit, 1968.


SPINOZA, Benedictus de. Ética [tradução e notas de Tomaz Tadeu]. Ed. – Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008.


_____________________. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Trad: Diogo Pires Aurélio.


D`ABREU, Rochelle Cysne Frota. Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental.
Revista Conatus, v. 3 número 6, 2009.


Guattari, Félix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1990. Trad. Maria Cristina F.
Bittencourt.


Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Spinoza: Um Ecologista Avant La Lettre?


NAESS, Arne. “The Deep Ecological Movement: Some Philosophical Aspects” em Michael
E. Zimmerman (ed.), Environmental Philosophy. From Animal Rights to Radical Ecology,
Upper Saddle River, New Jersey, Prentice Hall, 2001, p. 185-203.


___________. “The Shallow and the Deep. Long-Range Ecology Movements”, Bucarest,
1972.
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea   32

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  • 1. Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea Trabalho de Conclusão de Curso – 2010/2 Aluno: Conrado Cavalcante Lima e Silva DRE: 105083826 Prof. Orientador: André Martins
  • 2. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 2 CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DE SPINOZA PARA UM PENSAMENTO DA ECOLOGIA CONTEMPORÂNEA Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho CONRADO CAVALCANTE LIMA E SILVA
  • 3. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 4 Agradecimentos Aos amigos e familiares. Aos parceiros cariocas e serranos, baianos, gaúchos, mineiros e paulistanos. Aos parceiros das confrarias musicais e filosóficas. Aos parceiros de projetos. Ao corpo técnico-administrativo e docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao grupo “BIOCHIP” da PUC-Rio. Meu sincero agradecimento.
  • 4. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 5 LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE SPINOZA UTILIZADAS E - Ética TTP – Tratado Teológico-Político
  • 5. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 6 Sumário 1. Introdução 7 2. Não separabilidade homem-natureza 13 3. Direitos do homem X Direitos da natureza? 16 4. O Princípio da utilidade 22 5. Conclusão 28
  • 6. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 7 1- Introdução Um dilema atual da contemporaneidade, massivamente despertado pela mídia e de alguma forma imposto pela realidade, da possibilidade do esgotamento dos recursos naturais que sustentam o suporte da vida humana no planeta, demanda do conhecimento uma cruzada por novas linhas de pesquisa interessadas em orientar as práticas humanas em suas mais variadas manifestações, da produção industrial à criação de meios de subjetivação. A filosofia pode se propor uma reflexão sobre este atual paradigma encontrando raízes nos pensamentos que vieram a dar em nossa ecologia. O problema não é novidade; a partir dos anos sessenta, como nos conta a autora Maria Luísa Ribeiro Ferreira 1, em seu texto “Spinoza, um ecologista ‘avant la lettre’?” 2, vários filósofos foram relidos a partir dessa perspectiva, como é o caso de Spinoza. Algumas décadas antes, durante o regime hitlerista, algumas das leis mais importantes em relação à proteção animal que já se tinha visto foram levadas a cabo, como analisa o filósofo Luc Ferry 3, problematizando as origens talvez obscuras do ecologismo e, em geral, mostrando sua estreita e confusa relação com a tradição humanista. Textos que revelam nossa responsabilidade diante do pensamento da ecologia, pelos desdobramentos ético-políticos que a ecologia logrou alcançar. Entre o mais alto grau de entusiasmo de certos ecologistas e o mais alto grau de responsabilidade do pensamento teórico existe, contanto, uma atmosfera de importante reflexão sobre o tema da ecologia e suas implicações. As linhas de ecologismo que vieram a constituir o paradigma contemporâneo da ecologia, principalmente a ecologia profunda (umas das que buscou se justificar com a Filosofia, notadamente a de Spinoza), mantêm imprecisões filosóficas e visões que se acirram a respeito dos 1 Professora da Universidade de Lisboa. 2 Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Spinoza, um Ecologista “Avant La Lettre”? 3 No livro A Nova Ordem Ecológica. FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem. Rio de Janeiro: Difel, 2009. Trad: Rejane Janowitzer.
  • 7. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 8 mesmos textos. É preciso, pois, novamente analisá-los, uma vez que a filosofia de Spinoza se mostra útil para a ecologia. A questão central é a de que a Filosofia espinosista é em essência ecológica, porque não separa o homem da natureza, como faz a tradição humanista, e desloca da natureza o antropomorfismo e a teleologia também característicos dessa mesma tradição 4. Porém, mais do que reafirmar a novidade proposta por Spinoza, este trabalho se dedica a analisar, agora sob a pressão das últimas demandas da “cruzada ecológica”, os pontos dos textos de Spinoza que mais exigem compreensão dos ecologistas. Na proposição 37 da parte IV da Ética Spinoza nos diz que “[...] a lei que proíbe matar os animais é fundada mais numa vã superstição e numa efeminada misericórdia que na sã Razão”. Proposição que inicialmente parece controversa para muitos leitores, quando questionada do ponto de vista ecológica, assusta pela precisão. Ali pode estar ou um desvio de sua filosofia, para os leitores que acham a proposição controversa, mas também uma resposta simples e contundente de Spinoza para o dilema que opõe hoje os direitos humanos e os “direitos da natureza” no âmbito do ecologismo. A questão do valor intrínseco da natureza, como quer a ecologia profunda, encontra em Spinoza o não- privilégio da espécie humana dentre os outros modos da natureza. Perfeito, porém, pelo menos o próprio Spinoza, tendo afirmado que tudo que existe tem poder de existir, e somente nessa medida tem direito 5, e, poderíamos portanto pensar, valor, nunca afirmou que as coisas têm por isso igual valor 6. Segundo Luc Ferry, em seu livro A ova Ordem Ecológica, hoje a questão é que os ecologistas ou caminharam na direção dos “direitos da natureza”, defendendo a natureza em si, ou, na esteira dos direitos humanos, defendem a natureza pelo que representa para o homem. Tais caminhos os dividiram politicamente, pondo a questão em termos de revolução contra reformismo. Em artigo bastante cauteloso, Maria Luiza 4 Ibid. Maria Luísa: p. 5 e 6. 5 SPINOZA, Benedictus de. Ética (E). Parte IV, prop. 37, escólio. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2. Ed. – 2008 6 Arne naess, The Deep Ecological Movement: Some Philosophical Aspects, p. 14.
  • 8. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 9 Ribeiro Ferreira defende a moderação do entusiasmo dos ecologistas com os textos espinosistas. Arne Naess, o filósofo norueguês que primeiro tratou de unir os conceitos da ecologia profunda com argumentos espinosistas, é um defensor ardoroso desta filosofia, porém sua interpretação pode ser problemática ou incompleta. Felix Guattari, em As Três Ecologias, fez um relato bastante realista a respeito da questão ecológica, explicitando uma linha de continuidade entre a filosofia e a ecologia e defendendo, portanto, intrínseca relação entre estas. Nenhum dos textos, no entanto, esgota o assunto, e muito longe disso, apenas abrem um importante caminho para a reflex ão. Claro que a ausência de um uma articulação ético-política tem de ser posta à prova. É nesse contexto que convidamos a filosofia de Spinoza, para ampliar a discussão das principais questões, no campo político, enfrentadas hoje pela ecologia. O mérito da pesquisa é o de buscar novamente nos livros Ética, Tratado Político e Tratado Teológico-Político respostas para o conflito dos direitos humanos em oposição ao direito da natureza, questão que tende a ser dissolvida a partir dessa perspectiva. A expectativa é de encontrar mais pontos que favoreçam o pensamento de uma ecologia, acreditando que um sistema essencialmente ecológico deve guardar mais do que ganchos para se pensar o assunto. A proposta aqui é a de realizar uma leitura deste sistema buscando compreender como sua Natureza jamais separa o homem do ambiente em que vive, construindo-se a partir da perspectiva imanente e inaugurando uma visão potente para a criação de orientações capazes de articular os diferentes registros da ecologia (Guattari, 1993). Nesta proposta o que se mostra problemático é a multiplicidade das interpretações dos textos spinozanos, que estão presentes em muitas das linhas do pensamento ecológico, às vezes dividindo, como no caso da Ecologia Profunda 7, os meros ambientalistas dos defensores mais radicais da ecologia. Tais divergências têm razão de ser: ao mesmo tempo em que traz a 7 Arne Naess, “The Shallow and the Deep. Long-Range Ecology Movements”, Bucarest, 1972.
  • 9. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 10 perspectiva não antropomórfica para o vocábulo Deus e se rompa de forma veemente com a teleologia, a filosofia de Spinoza sustenta o argumento da utilidade em que o humano, de acordo com o seu poder de existir, possa se valer dos animais para seu proveito. Idéias que custam caro à ecologia. Outro ponto de divergência é a implicação irrestrita da expressão “Deus sive atura”, de Spinoza, que gera interpretações de um deus finito, mas ao mesmo tempo de uma natureza que pré-existe em relação aos seus modos. Problemas, enfim, concernentes à leitura de Spinoza, que em face da discussão ecológica tomam posturas solidamente divergentes e dão origem a grupos distintos, mas que creditam seus ideais ao mesmo filósofo. Compreendendo a Natureza spinoziana, vemos que a busca por um pensamento ecológico nesse sistema pode ser redundante, uma vez que toda esta filosofia é de tal forma elaborada que não preconiza a invenção de técnicas de exploração da natureza pelo homem, ao contrário, descreve a contiguidade do homem e da natureza, através da indiferenciação de seus atributos, como veremos detalhadamente adiante. Suas diferenças reais de outros seres não-humanos provêm antes de sua condição de serem modos da substância, não configurando, portanto, nenhum privilégio ontológico entre estes domínios, que por tradição mantivemos separados ou separáveis. A natureza como um todo, sim, esta guarda consigo anterioridade ontológica em relação ao homem. Aqui lembrando que o atributo pensamento, que em outras filosofias diferencia o homem dos outros seres, em Spinoza existe com estatuto natural, isto é, o atributo pensamento é um dentre infinitos nos quais sempre se expressa a natureza, e assim é nos seres humanos. Com efeito, preconceitos residuais da Filosofia atuam contra essa compreensão: a noção de livre-arbítrio, por exemplo, que configura a metafísica do possível (Chauí, M., 2008), obscurece a noção de que “não existe nada de cuja natureza não se siga algum efeito” (E I, prop. 36) e que tudo é
  • 10. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 11 determinado a agir de tal modo (EI prop. 29), que configura a ontologia spinoziana como a ontologia do necessário 8. A idéia dos mundos possíveis – tão natural para o pensamento tradicional – ao qual Deus estaria sempre por abandonar na direção da presentificação do mundo; eis como se justificou na tradição teológica a natureza como causa livre, volitiva: o oposto ao engendramento de substância, modo e atributo realizado por Spinoza. O que veremos é que em Spinoza, “Deus ou a Natureza” (EI, prop. 29 escólio) age necessariamente, porque se compreende infinita e necessariamente, o que confere à natureza um papel intrinsecamente ativo 9. Isto é, a natureza não está conforme fins 10, ela é puramente atividade; ela não alcança, mas se extende. Assim se rompe com a tradição teleológica. Deste modo, ainda que Deus ou a Natureza nunca sejam constrangidos por nada a agir desta ou daquela maneira; porque se compreende infinita e necessariamente, age necessariamente. Assim a Natureza não criou o mundo por livre vontade, mas porque se compreende, daí seu caráter ativo. O homem, na medida em que é uma modificação da substância ou da natureza, vive em interação modal com todas as outras modificações, sendo constantemente constrangidos por estas. Nesta interação, e não fora dela, é que podemos pensar uma ecologia que ao contrário de propor um retorno a certo estado de natureza, reconheça que quando o homem “modifica” a natureza, modifica a si mesmo, e que além de ser impossível um retorno para de onde nunca saímos, este seria em si indesejável. A natureza não nos dá objetos, instrumentos e coisas criadas, o que seria fruto da idéia de um mundo criado, mas é o homem que, criando com a natureza, e meditando em nada mais que na vida, busca melhorar suas condições de existência. É seguindo uma lógica de mercado, que busca soluções individuais para problemas coletivos que as condições humanas 8 CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 95 9 DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression.Paris: Les Éditions de Minuit, 1968, p. 87-90 . 10 Para isso ver os prefácios às partes I e IV da Ética e EI prop. 16.
  • 11. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 12 de vida aparecem como obstáculo para outras formas de vida. Porém, como nos ensina Spinoza, a felicidade é algo de ordem social 11, e podemos gozar dela por via da coletividade, o que de nenhum modo exclui as outras formas da natureza. Vamos ao desenvolvimento. 11 “O sumo bem, contudo, é chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, se possível, dessa natureza. Qual, porém, seja ela mostraremos em seu lugar, a saber, o conhecimento da união que a mente tem com toda a natureza. Este é, portanto, o fim ao qual tendo: adquirir uma natureza assim e esforçar-me por que muitos a adquiram comigo; isto é, pertence também à minha felicidade fazer com que muitos outros entendam o mesmo que eu (...). E para que isso aconteça, é preciso entender tanto da Natureza quanto baste para adquirir semelhante natureza; a seguir, formar uma tal sociedade como é desejável para que o maior número chegue a isso do modo mais fácil e seguro.” Tratado da Correção do Intelecto, § 13 e 14, trad. de Carlos Lopes de Mattos, Editora Abril , 1973.
  • 12. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 13 2- ão-separabilidade homem-natureza Lê-se no prefácio à parte III da ética: “Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem conceber o homem na natureza como um império num império. Pois acreditam que, em vez de seguir a ordem da natureza, o homem a perturba, que ele tem uma potência absoluta sobre suas próprias ações e que não é determinado por nada mais além de si próprio.” Quando lemos um trecho como esse, temos a certeza de que Spinoza fala de um homem plenamente inseparável da natureza, porém simplesmente nossa contemporaneidade tem dificuldade em compreender isso. É, no entanto, necessário uma limpeza conceitual, um certo esvaziamento dos sentidos das palavras para nos encontrarmos verdadeiramente com o que nos diz Spinoza. Acredito que muito dessa dificuldade na leitura de suas obras deve-se justamente ao conceito fundante de natureza. É o que deixa ver o prefácio à parte III da Ética, quando nos diz claramente que os afetos, considerados em si mesmos, seguem a mesma necessidade da ordem comum da natureza. De forma simplificada, enquanto modo ou coisa singular, cada homem e cada mulher e cada ser vivo ou inanimado ou é compreendido pela Natureza (Deus) ou pela própria natureza (EI definição 5), neste último caso, no entanto, não se compreende verdadeiramente sem as outras partes da natureza (EIV capitulo 1 do apêndice). Acrescenta-se que enquanto pode ser concebido por si mesmo, deve-se assim proceder 12. 12 Isso decorre tanto das definições da primeira parte da Ética quanto da própria definição de conatus na EIII proposição 6: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”. Além disso, em se falando da criação de leis humanas, no capítulo IV do Tratado Teológico-Político, Spinoza acrescenta: “(...)Essas leis dependem, como disse, da decisão do homem, porque devemos definir e explicar as coisas pelas suas causas próximas (...)(SPINOZA, Benedictus de. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Trad: Diogo Pires Aurélio, p. 58)
  • 13. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 14 Por isso quando Spinoza afirma, seja com o princípio de utilidade, seja com o conatus, que os homens em sua relação com a natureza (do que afinal nunca deixou de falar a Ética) devem se guiar não pelas potências exteriores mas pela sua própria, não é de uma parte isolada que está falando, e sim de um humano que não pode ser compreendido sem as outras partes da natureza. Pois, como vimos, esta é a forma correta de se conceber os modos e as coisas singulares. Ao contrário, nossa atual moral ecológica, disseminada pelos quatro cantos e repetida solenemente em todos os cânones da cultura, ciência e religião, não nos diz muito diferente disso: a atitude individual de cada um de nós é a única saída para a crise; está nas mãos de sua liberdade salvar ou detonar o planeta; o homem é uma espécie predatória e parasitária (os que defendem uma ecologia) ou que é natural o homem ser tal predador; que não há outro caminho para o progresso humano; que toda ação humana é em si perturbadora etc (os que repelem a idéia de uma ecologia). Porém, desses dizeres morais, muito poucos, ou nenhum deles encontra eco na filosofia de Spinoza. Ter a ação individual como solução do problema evidentemente coletivo; desprezar as ações humanas e menosprezar sua condição; afirmar que o homem é naturalmente monstruoso e que tudo que ele produz é mau; enfim, são meios injustificáveis para a finalidade imaginada. Pois bem, acredito que estaremos complicados se tivermos que situar Spinoza em uma dessas correntes que hoje são ditas ecológicas, ou simplesmente, em outras teorias que, não querendo ser ecológicas, se insurgem contra uma ecologia, mas permanecem na esteira da discussão da relação do homem com a natureza. Relação “homem-natureza” que, aliás, não faria sentido a não ser que o homem fosse “um império num império”, pois, em se falando de uma ética, está em questão a relação de todos os modos entre si, e, mais profundamente, de todas as coisas singulares entre si, consideradas em si mesmas, e por isso como cada potência singular não implica num
  • 14. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 15 obstáculo e ao mesmo tempo como é vulgarmente comum contemplar uma negação para a idéia do conatus. O caminho percorrido pela Ética de Spinoza irá mostrar que não há diferença entre ética da natureza e ética do homem, e como sendo a ordem de ambas uma e mesma 13, chamamo-la simplesmente ética, e por essa razão, e reconhecendo a mesma falsa dicotomia na idéia de ecologia (que surge para ser a ética do meio ambiente), poderíamos chamá-la também simplesmente de ecologia. Ou seja, se a ecologia não designar a comunidade do homem e da natureza, adequadamente, irá incorrer nos atuais contrasensos que parecem opor natureza e cultura, homem e natureza. Desta forma, longe de fundar uma metafísica, o relevo da infinitude no sistema spinozista (natura naturans) apenas facilita a concepção de uma natureza fundante e de coisas naturais, uma longa viagem simplesmente para garantir que é como natureza que o homem deve ser pensado, em sua natureza expansiva, sim, pois como modo deve se conceber por si mesma, porém, como parte, deve se conceber com as outras partes e modos. A irrealidade de nossa situação está muito mais na aparente dicotomia homem-natureza. Mas como aparece essa dicotomia? Absorvida pela linguagem publicitária e por toda a sorte de mecanismos de poder, para despistar o verdadeiro problema ecológico que é a péssima distribuição do que é produzido pelo homem, do desperdício e falta que assim são gerados; o excesso de segurança e a emergência constante de modos de produção totalizantes etc. 13 Como se pode ler no prefácio à parte III
  • 15. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 16 3- Direitos do Homem X Direitos da atureza? Luc Ferry, em seu livro A Nova Ordem Ecológica, desenvolve importante argumentação contra as vertentes do ecologismo que vieram a reinvindicar no seu ápice os direitos da natureza como solução para o problema ecológico, enxergando na essência dessas vertentes incoerências e irresponsabilidades no que tange ao projeto político que delas se multiplicam, identificando os pilares da teoria de Arne Naess e da Ecologia Profunda, em geral, à idéia central da legislação nazista de proteção à natureza. Nos termos da Tierschutzgesetz (lei nazista de 24 de novembro de 1933, a respeito da proteção dos animais), que retiro da tradução de Luc Ferry: “O povo alemão teve desde sempre um grande amor pelos animais e sempre foi consciente das obrigações éticas elevadas que temos em relação a eles. Mas somente graças à Direção Nacional-Socialista é que a aspiração, compartilhada por largos círculos, a uma melhora das disposições jurídicas relacionadas à proteção dos animais e à edição de uma lei específica que reconhecesse o direito que possuem os animais, como tais, de serem protegidos por si mesmos foi realizada de fato.”14 Nos termos da Ecologia Profunda, os quais considero indispensáveis aqui, também extraídos de sua tradução: “1) O bem-estar e o desenvolvimento da vida humana e não humana sobre a Terra são valores em si (sinônimos: valores intrínsecos, valores inerentes). Esses valores são independentes da utilidade do mundo não humano para as finalidades do homem. 2)A riqueza e diversidade de formas de vida contribuem para a realização desses valores e, consequentemente, são também valores em si. 3)Os humanos não têm nenhum direito de reduzir essa riqueza e essa diversidade, a não ser que seja para satisfazer necessidades vitais. 14 Ibid., p. 179
  • 16. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 17 4)O desenvolvimento da vida e da cultura humanas é compatível com uma diminuição substancial da população humana. O desenvolvimento da vida não humana exige uma tal diminuição. 5)A intervenção humana no mundo não humano é atualmente excessiva e a situação está se degradando rapidamente. 6)É preciso, pois, mudar as orientações políticas de maneira drástica no plano das estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas. O resultado da operação será profundamente diferente do estado atual. 7)A modificação ideológica consiste principalmente em valorizar a qualidade de vida em vez de visar permanentemente a um nível de vida mais elevado. Será necessário uma tomada de consciência profunda da diferença entre desmedido (big) e grande (great). 8)Os que subscrevem os pontos que acabamos de anunciar têm obrigação direta ou indireta de trabalhar para essas modificações necessárias”.15 Nas passagens fica claro que apesar de muito distantes, politicamente o ecologismo também apresenta sua visão totalizante, contrária à liberdade, nesses trechos alavancados pela questão dos direitos em si da natureza, que chegam a justificar, no caso da Ecologia Profunda, a diminuição substancial da população humana. Alguma dúvida de que o mais alto amor à natureza poderia neste caso conviver pacificamente com o mais alto ódio pelos humanos? Diferentemente, Spinoza jamais prescreveria os valores em si da natureza, pois seu pensamento nos conduz, ao contrário, para o princípio de utilidade do homem. Se, num primeiro momento, isso parece frustrar a idéia de uma ecologia, tal como é pensada hoje, num outro se mostra maduramente à frente do tempo da ecologia meramente ambiental, impondo claros limites ao excesso da razão controladora. Como nos diz Maria Luiza Ribeiro, a respeito da visão de Luc Ferry: 15 Ibid., p. 133.
  • 17. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 18 “Ora, segundo Ferry, para proteger a Natureza não é necessário reconhecer-lhe direitos. Aliás, reconhecer-lhe direitos é, para L. F., uma projeção antropomórfica. Com o advento da laicidade a ecologia deverá prescindir da sua carga religiosa. A nossa obrigação é elaborar uma teoria dos deveres para com a Natureza, o que é diferente de uma carta de direitos da mesma. É esta a ecologia que o filósofo francês apelida de democrática, saída do humanismo laico da Revolução Francesa, de Kant, de Rousseau e dos Iluministas.”16 A respeito da questão dos limites dos direitos do homem e da natureza, o excelente artigo Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental (D`ABREU, Rochelle C ysne Frota 17) também parece optar pela via que aos olhos do ecologismo contemporâneo convém-se chamar humanista e racionalista, porque demonstra que creditar valor em si à natureza é uma espécie apenas mais sofisticada de antropomorfismo, o que segunda a autora Spinoza rejeitaria, pois o valor da natureza não é intrínseco a ela, mas devotado a ela pelos homens. Esta visão, com efeito, tende a frustrar a via filosófica da Ecologia Profunda. Entretanto ainda que filosoficamente tenhamos razões para moderar o entusiasmo da ecologia meramente ambiental, que exclui o homem de seu centro, a categoria meramente humanista tampouco parece corresponder às teorias spinozistas. Até onde caminhamos por abandonar a questão dos direitos da natureza, encontramos em Luc Ferry a idéia de uma ecologia pautada em deveres do homem; restando-nos ainda não deix ar que por deveres se entenda uma nova sobrecarga moral. Adentrando o sentido do princípio da utilidade humana em Spinoza, vejamos: E IV prop. 37, escólio: “[...] enquanto a impotência consiste em o homem se deixar conduzir pelas coisas que estão fora dele e em ser determinado por elas a fazer aquilo que o arranjo ordinário das coisas exige e não aquilo que exige a sua própria 16 Ibid., p. 8. 17 Participante do GT Benedictus de Spinoza – ANPOF 2010. D`ABREU, Rochelle Cysne Frota. Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental. Revista Conatus, v. 3 número 6, p. 47 e 48.
  • 18. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 19 natureza, considerada só em si mesma.[...] Por isso, é evidente que a lei que proíbe matar os animais funda-se mais numa vã superstição e numa misericórdia feminil do que na sã razão. O princípio pelo qual se deve buscar o que é útil ensina, indubitavelmente, a necessidade de nos unirmos aos homens e não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da natureza humana. Temos sobre eles o mesmo direito que eles têm sobre nós. Ou melhor, como direito de cada um se define pela sua virtude ou potência, os homens têm muito mais direito sobre os animais do que estes sobre os homens. Não nego, entretanto, que os animais sintam. Nego que não nos seja permitido, por causa disso, atender à nossa conveniência, utilizando-os como desejarmos e tratando-os da maneira que nos seja mais útil, pois eles não concordam, em natureza, conosco, e seus afetos são diferentes, em natureza, dos afetos humanos.” A passagem define que os homens devem ser concebidos pela sua própria natureza. Pois como vimos no capítulo anterior, é como modo que deve ser concebido um homem. Seguindo-se que se de sua natureza resultasse necessariamente a relação desfavorável para o animal, não seria a compaixão – afeto passivo – por ele e tampouco decretar-se simplesmente que ele tem direitos, porque possui valor em si (o que seria a forma sofisticada do antropomorfismo) que os fariam mais ou menos protegidos. Pois nossas relações com a natureza não estão postas somente em questão de direito jurídico e de controle, mas de poder. Sabiamente, Spinoza nos ensina nessa passagem que direito se define pela potência de uma coisa. E ainda que direitos os protejam, e mesmo sendo chamados direitos dos animais, que direitos são esses senão aqueles que nós prescrevemos a nós mesmos 18? Como vemos, é própria da compreensão que separa o homem da natureza a idéia de que o homem em sua potência expansiva contradiz um princípio de sociedade. Dificuldade clássica têm os leitores da Ética em geral: como passar dessa ética que interpretam como individual para uma ética da coletividade? Pois, se o sábio medita em nada mais que na vida, é em nome dessa expansão da condição humana, e não em limites, que devemos falar. É por isso que Spinoza diz que os homens devem 18 “A (lei) que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais propriedade de direito, é aquela que os homens, para tornar a vida mais segura e mais cômoda, ou por outro motivo qualquer, prescrevem a si e aos outros.” (TTP, cap. IV, p. 58)
  • 19. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 20 compreender a partir de sua natureza, uma natureza de expansão e coletividade. Volto a citar o artigo de D`ABREU: “Se nada é melhor para um homem do que outro homem, visamos em primeiro lugar a conservação dos homens. Mas, se sabemos que a conservação dos animais implica numa melhoria para a vida humana e que sua destruição gratuita não nos é útil em nada, sendo muitas vezes prejudiciais a nós, compactuar com sua destruição seria uma forma de irracionalismo. Não conservamos a vida dos animais por compaixão, mas simplesmente porque a existência deles em nada atrapalha a nossa, podendo todos coexistirmos juntos, para maior riqueza do meio ambiente e da experiência humana.” A questão específica do direitos dos animais em relação à produção de alimentos é que, sendo o humano capaz de se servir dos animais para este fim, por ser-lhe útil como alimento pode perpetuar-se, porém em sua escala predatória e por impedir que outros homens possam também se servir dos mesmo e outros bens, é um absurdo. Embora veemente em sua descrição, Spinoza antecipa uma questão que hoje é central. Os ambientalistas querem defender a natureza em si, porém assim indiferenciam o que para o homem é útil ou inútil. O exagero dos opostos ilustra bem a questão: será que têm os bebês-foca os mesmos direitos do mosquito vetor da malária ou da dengue? Todavia ignorar a questão da proteção animal é hoje, de fato, uma lástima. Como podemos ver, não porque não seja um direito humano utilizar o que encontra na natureza, porém, como naturalmente essa disposição se inclinaria à multiplicidade 19 (infinitude) desses meios, e tendo sido, ao contrário, regidas em essência pela economia da equivalência, uma história (e, portanto, uma natureza) de destruição se credita aos humanos. Se o crédito é justo, aqui não nos cabe analisar, apenas podemos observar que o afeto relativo à extinção de certas formas 19 Ibid. E IV, cap. 26 do apêndice: “(...)O princípio de atender à nossa utilidade não exige que nós o conservemos. Este princípio nos ensina, em vez disso, que, conforme as suas diferentes utilizações, nós conservemos, destruamos ou adaptemos as coisas, de qualquer maneira, às nossas conveniências”
  • 20. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 21 de vida se dirige a algo que se imagina como necessário, e, portanto, é mais forte em relação a algo que se imagina como contingente 20. A situação atual, na qual o cidadão conhece uma parcela mínima de seus direitos, isto é, suas leis, tampouco se reconhece neles, se torna bastante difícil mesmo compreender por que é um direito seu defender as áreas comuns de nossa cidade, e mais do que isso, seu usufruto expandido, legalizado; proteger-nos para que não sejamos simplesmente empoleirados, reduzidos à dimensão de estarmos sozinhos entre milhares de homens e mulheres, pois se a cidade assim se constituiu foi para nos unir, e, em vez disso, nos afastou de nós mesmos e nos privou da natureza para além de prédios. Porque embora pareça conservador, hoje, o argumento da utilidade apresentado por Spinoza pode em princípio mostrar outro caminho que não uma ditadura ecológica, onde, nos moldes da legislação “ecológica” nazista, o amor sincero aos animais e à natureza convivam com o mais cruel ódio à humanidade. Pois em se protegendo a natureza em si, desconsidera-se o homem como natureza, e aí se corre esse risco. Dessa maneira podemos dizer que a crítica ao antropomorfismo de Spinoza não indica valores intrínsecos à natureza, e a questão da defesa ou da conservação da natureza por si não parece mais forte e potente que a defesa da natureza para os humanos, uma vez que os humanos também são a natureza se modificando. 20 Ibid., EIV prop. 11
  • 21. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 22 4- O princípio de Utilidade Lê-se no capítulo 26 do Apêndice à parte IV da Ética: “Por isso, com respeito a tudo aquilo que existe na natureza das coisas, afora o homem, o princípio de atender à nossa utilidade não exige que nós o conservemos. Este princípio nos ensina, em vez disso, que, conforme as suas diferentes utilizações, nós conservemos, destruamos ou adaptemos as coisas, de qualquer maneira, às nossas conveniências” Podemos dizer que o princípio de utilidade decorre da idéia de conatus, de que “nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior” 21, e de que “o esforço por pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” 22. Se, na primeira parte da ética, nos é ensinado que um modo ou coisa singular existe noutra coisa relativamente à natureza naturante, por meio da qual também é concebido, na terceira parte nos ensina que os conceber então segundo sua própria natureza, segundo seu conatus e portanto sem envolver qualquer idéia de negação em sua essência não resguarda nenhuma contradição, ao contrário, aponta para a imanência das relações naturais, para a necessidade dessas relações, e de como cada homem é dotado de meios para perseverar em si mesmo, buscar o que lhe é útil segundo suas finalidades. Assim, conforme este princípio, as leis humanas, embora pertençam à mesma ordem e conexão das coisas, são definidas pelos homens e não simplesmente derivadas de leis da natureza, pois estas, em sua maior complexidade não sendo possíveis ao entendimento humano, permanecem como causa imanente e não transitiva de sua compreensão, enquanto que as leis humanas o tempo todo lidam com transformações. 21 Ibid., EIII prop 4 22 Ibid., EIII prop 7
  • 22. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 23 Além da impossibilidade do intelecto humano frente às leis da natureza, há outro forte motivo para impedir a derivação desta para as leis humanas: nos termos do TTP, a lei divina está como que interpretada por profetas que, ao concederem estatuto humano para suas revelações, o fazem sob jugo dos próprios afetos e à luz da sua própria razão, e por isso não há diferença entre o conhecimento à luz natural da razão e o conhecimento profético 23, exceto que pelas revelações não se obtém nada além de um conjunto de ensinamentos morais bastante simplificados 24. Em termos pouco mais atuais, e como à lei se remete também o sentido de ditames morais, é meramente a superstição que faz as massas creditarem seus próprios ideais às idéias contidas naquelas revelações. Nessa medida, é isto que se conhece e não as verdadeiras leis humanas 25, sendo que são estas que, se modificando, modificam o modo de vida de cada ser humano da Terra. Neste sentido nos diz Spinoza, uma lei é um direito: “A lei que depende da necessidade natural é aquela que deriva necessariamente da própria natureza, ou seja, da definição de uma coisa; a que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais propriedade de direito, é aquela que os homens, para tornar a vida mais segura e mais cômoda, ou por outro motivo qualquer, prescrevem a si e aos outros.” (TTP, cap. IV, p. 58) Retomando a passagem que abre este capítulo, note-se que “de qualquer maneira” denota apenas infinitas possibilidades, e não uma forma pejorativa do usufruto humano dos bens naturais. Por isso que “conforme suas utilizações, conservemos, destruamos ou adaptemos” significa, ao contrário, apenas que não há problemas em “modificar” a natureza 26, uma vez que 1) não são as leis da natureza que são modificadas e 2) que as 23 “Ora, nos diz Espinosa, não há diferença entre profecia e conhecimento natural (...)” (Ibid., p. 75) 24 No livro Política em Espinosa, Marilena Chauí reúne os motivos que levaram Spinoza a escrever o TTP, e entre esses, lê-se: “Demonstrar que não há verdades especulativas na Escritura, mas ensinamentos morais e religiosos muito simples (...)” (Ibid., p. 73) 25 “Porém, uma vez que a verdadeira finalidade das leis não costuma ser clara senão para um pequeno número, ao passo que a maioria dos homens são praticamente incapazes de a perceber (...)” (TTP, cap. IV, p. 67) 26 Ibid., D`ABREU, p. 42
  • 23. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 24 coisas existem também em seu poder de existir e não porque foram criadas 27. Tal é o sentido, também, da distinção, operada no TTP, entre leis da natureza e lei dos homens. Poder-se-ia questionar que talvez estejamos, hoje, no limite de criar algo monstruoso, capaz de gerar a própria vida, porém, sendo ainda e sempre uma mera ilusão, fica de realidade apenas como o poder corrosivo das coisas que nós criamos até agora não alterou em nada a ordem infinita da natureza, pelo contrário, a natureza apenas nos devolveu como poluição. A depender do momento em que fosse lido, o princípio de utilidade penderia mais para lá ou mais para cá, isto é, ou simplesmente garante o direito humano de usufruto dos bens naturais, ou aponta para a diversidade dos seus meios de utilização. Sobre este último ponto resta muito mais a ser dito. De um lado, garantir tal usufruto, agora e sempre, é um direito humano, já mais ou menos defendido e sabido, ainda que comumente definido como contrário ao uso racional da natureza. Justo por essa definição equivocada os ecologistas foram levados a crer que o problema ecológico tem suas raízes na tradição humanista. Porém, a meu ver, resta um campo mais amplo para a discussão, que é o das possibilidades virtualmente infinitas de usufruto da natureza e o “esboço de uma inteligência afetiva, política e ecológica” 28 ao longo da obra de Spinoza, sobretudo na parte V da Ética. Assim, como na célebre proposição 42 da Ética V 29, que inverte o sentido usual da relação entre a potência de refrear os afetos e a beatitude, pode- se dizer que não é o princípio de utilidade que faz do homem um 27 Ausência de finalidade 28 A expressão é de D`ABREU, que define o amor intelectual a Deus como sendo tal esboço. “Se o amor intelectual prometesse uma vida mais feliz no futuro, o homem estaria ainda pensando em termos de tempo. Como essa noção é uma promessa de eternidade e como eternidade se define pela necessidade de existência apenas a partir da definição da coisa dada, segue-se que sentir-se comum a Deus é não mais se perceber como um indivíduo, mas como uma parte singular da Natureza que como toda e qualquer outra deseja viver” 29 Ibid., EV prop. 42. “E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusivamente no intelecto, ninguém desfruta, pois, dessa beatitude porque refreou os afetos, mas, em vez disso, o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da própria beatitude”
  • 24. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 25 predador desmedido, mas ao contrário, é pela forma de utilização que podemos ou não nos orientar por caminhos mais seguros. Sobre a diversidade dos meios de utilização, parece que são esses os preconceitos de que nos adverte Spinoza. Apêndice à parte I da Ética: “[...]Os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do homem[...]” “Tendo, pois, passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais acreditar que elas tivessem sido feitas por seu próprio valor.” “É por isso que, quanto às coisas acabadas, eles buscam, sempre, saber apenas as causas finais, satisfazendo-se, por não terem qualquer outro motivo para duvidar, em saber delas por ouvir dizer.” Sabemos que “por ouvir dizer” podemos entender o primeiro gênero de conhecimento, que é o conhecimento imaginativo, por meio do qual todas as idéias são formadas, e que é fonte maior das idéias inadequadas, isto é, idéias que não convêm ao seu ideado, que não contêm conhecimento suficiente para agir sendo do efeito uma causa adequada, isto é, que pode ser compreendida pela sua própria natureza. Diferentemente, pelo terceiro gênero de conhecimento compreendemos a Natureza como causa de cada coisa singular, o que é o mesmo que compreender que a Natureza Naturante (Deus) não age por liberdade da vontade, logo não cria os modos e as coisas singulares, pois estes, concebidos pela própria natureza singular, perseveram apenas em seu próprio ser, porém, como modos, são pela Natureza determinados a existir de certa maneira, pela qual participam necessariamente da Natureza inteira. É da anterioridade ontológica da Natureza Naturante que esta é causa imanente de todas as coisas e, por isso, não há contradição em se pensar que as coisas singulares, podendo ser
  • 25. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 26 concebidas também por si mesmas, não podem ser concebidas sem Deus 30. Prop 29 EI, escólio “[...] Por natureza naturante devemos compreender o que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido, ou seja, aqueles atributos da substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, Deus, enquanto é considerado como causa livre. Por natureza naturada, por sua vez compreendo tudo o que se segue da necessidade da natureza de Deus, ou seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos atributos de Deus, e que, sem Deus, não podem existir nem ser concebidas. Se falamos dos gêneros de conhecimento é porque, como se pode ler no prefácio à parte V da Ética, os homens confundem causas finais com causas eficientes, é por meio dos afetos humanos que podemos entender as coisas que ele cria, e por conseguinte, as idéias – adequadas ou inadequadas – que lhes convêm. Perseverar no próprio ser é ter em vista o princípio da utilidade, porém, descontados a crítica ao antropomorfismo e a potência relativa da mente sobre os afetos, é claro que em vez de criar um “um império num império”, tal princípio apenas coloca o homem em poder da pequena parte que lhe cabe, infinitamente menor que o da natureza inteira. Ademais, o sentido do princípio do conatus aplicado ao conjunto como indivíduo remete em sociedade à manutenção da vida humana diante de grandezas da ordem de catástrofes naturais, nas quais a própria espécie estivesse em perigo. Porém hoje é outro nosso problema, pois a questão da superpopulação de humanos, por onde o problema não poderá ser resolvido (exceto caso percamos a guerra contra o poder genocida), não podendo ser uma variável nesta conta, apenas obriga a todos e a cada um que viva menos. Neste sentido, não é a espécie que está em risco, tampouco o planeta, é a supervida, e não a sobrevida. No limiar dessa afetividade ecológica, nos vemos irremediavelmente dependentes de valores externos como o “verdadeiro” que nos traz a mídia, e ela, por sua 30 Aqui utilizo a palavra Deus para não aniquilar a diferença entre natureza naturante e naturada, à maneira que Maria Luísa Ribeiro Ferreira encontra em Arne Naess. Ibid., p. 9.
  • 26. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 27 natureza, não lida com o verdadeiro da questão. Agora, em se tratando realmente o problema como um perigo em níveis de tais catástrofes, e tendo sido nós os criadores; uma visão, como a expressa na proposição abaixo, tende a apaziguar o desejo de mudanças bruscas, mas deixa ver que o tempo, o presente no qual vivemos quando agimos, é o maior aliado. Capítulo 32 do apêndice à E IV: “A potência humana é, entretanto, bastante limitada, sendo infinitamente superada pela potência das causas exteriores. Por isso, não temos o poder absoluto de adaptar as coisas exteriores ao nosso uso. Contudo, suportaremos com equanimidade os acontecimentos contrários ao que postula o princípio de atender à nossa utilidade, se tivermos consciência de que fizemos nosso trabalho, de que a nossa potência não foi suficiente para poder evitá-las, e de que somos uma parte da natureza inteira, cuja ordem seguimos. Se compreendemos isso clara e distintamente, aquela parte de nós mesmos que é definida pela inteligência, isto é, a nossa melhor parte, se satisfará plenamente com isso e se esforçará por perseverar nessa satisfação. Pois, à medida que compreendemos, não podemos desejar aquilo que é necessário, nem nos satisfazer, absolutamente, senão com o verdadeiro. Por isso, à medida que compreendemos isso corretamente, o esforço da melhor parte de nós mesmos está em acordo com a ordem da natureza inteira.”
  • 27. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 28 5- Conclusão Porém, além da verdade especulativa que uma filosofia ambiental deve ser capaz de abrigar, em sua situação política ela deve ser capaz de abrigar algumas compreensões de que nos serve Spinoza; de que as massas creditam seus ideais facilmente na direção ora do medo ora da salvação, ignorantes das causas e de como se produzem as coisas e os fatos. Neste sentido é um retrocesso a ressacralização da natureza, no sentido de que esta alimenta a superstição e o desejo ou de ser dominado, ou de não ser por nada governado. Neste sentido considero interessante a atitude de Luc Ferry em reconhecer que apesar de representar, sim, o desejo de muitos, a Ecologia não pode se pretender um modelo político sofisticado, pois, em termos spinozistas, as massas ou os governos ignorantes podem fazer com que lutemos pela própria servidão como se fosse pela salvação, isto é, em nome de um medo fundador da política, recair em situações profundamente sombrias que seriam uma ditadura moralmente devastadora, maquiada apenas de teorias biocêntricas, ditas ecológicas, mas que na prática se revelariam totalmente contrárias à liberdade humana. Nessa pesquisa pude constatar que há uma dificuldade em se compreender como ascender a um pensamento ecológico, que em princípio põe numa linha de força a questão dos valores em si da natureza, e desta forma numa outra linha, oposta, a necessidade humana de se expandir. O argumento da utilidade, sustentado diversas vezes por Spinoza ao longo da Ética e do TTP, como citamos neste trabalho, definitivamente não é um detalhe – e pode conter belas inspirações para uma ecologia que em vez de oprimir, liberte. A respeito do perigo que ronda o medo e a esperança de um futuro ecológico, nos diz Guattari:
  • 28. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 29 “Não podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos aparelhos de Estado para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses domínios, regidos no essencial pelos princípios da economia de lucro.”31 “O capitalismo pós-industrial tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas da produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signo, de sintaxe e de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a publicidade, as sondagens etc.”32 Quer dizer, em vez de pôr a discussão nos termos da propaganda midiática, do dever e da opressão moral que considera apenas o fato individual do consumo, devemos pensar, agora sem o preconceito contra o princípio de utilidade humana, que é justamente pela utilidade que podemos conservar bens que simplesmente são nossa fonte de vida. Claro que, não sendo meramente individuais as ações que articulam política e ética em nome de uma ecologia, esta está posta na relação de medo e esperança política, na medida em que dela se espera a salvação ou a derrota total. Porém, sendo a ética regida nesse segmento pela expansão da vida humana e pelo princípio de utilidade, o que podemos compreender é que há um limite para a idéia de sustentabilidade, e que não há a necessidade cega de neutralizar a ação humana, pois esta é simplesmente ação da natureza sobre si mesma, e, portanto, que um retorno a certo estado de natureza é impossível e indesejável. Podemos, contudo, em nome de assegurar tudo aquilo de que precisamos para viver melhor, conservar a história que é a natureza, para dela nos servirmos de conhecimento de nós mesmos, além, é claro, que sem as outras partes da natureza, nós simplesmente não existimos. Com isso concluo que ao oferecer a ontologia spinozista para a questão ecológica, avançamos no terreno das “verdades especuladas”, porém o verdadeiro sentido do problema ecológico tem suas raízes teológico- políticas, pois nesse domínio, sim, para além da subjetividade humana, encontram-se as relações de dominação que colocam, no âmbito da 31 Guattari, Félix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1990. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt, p. 24. 32 Ibid., p. 31
  • 29. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 30 discussão ambiental, o homem contra a natureza, o desenvolvimento contra o ambiente, as leis contra a cultura. Pensar a partir do próprio conatus e retirar dele uma idéia de negação, eis uma tarefa eminentemente ecológica: pensar a expansão em coletividade com todos, e não que reside na expansão do conhecimento humano um grave defeito de nossa natureza.
  • 30. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 31 REFERÊNCIAS: FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem. Rio de Janeiro: Difel, 2009. Trad: Rejane Janowitzer. CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression.Paris: Les Éditions de Minuit, 1968. SPINOZA, Benedictus de. Ética [tradução e notas de Tomaz Tadeu]. Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. _____________________. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Trad: Diogo Pires Aurélio. D`ABREU, Rochelle Cysne Frota. Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental. Revista Conatus, v. 3 número 6, 2009. Guattari, Félix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1990. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Spinoza: Um Ecologista Avant La Lettre? NAESS, Arne. “The Deep Ecological Movement: Some Philosophical Aspects” em Michael E. Zimmerman (ed.), Environmental Philosophy. From Animal Rights to Radical Ecology, Upper Saddle River, New Jersey, Prentice Hall, 2001, p. 185-203. ___________. “The Shallow and the Deep. Long-Range Ecology Movements”, Bucarest, 1972.
  • 31. Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea 32