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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO




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                                                                   Março / 2010




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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO




              HISTÓRIAS
          DA ARCA DO VELHO



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                                                José Coelho De Moraes
                                                              meu pai




Coelho De Moraes                                                   3
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO




                                   Palavra primeira



As HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO são novelas confusas e defasadas na
cronologia e na lógica, muitas vezes. Tentam um ar de Contos da Carochinha para
adultos e se impressionam com as arcas de memórias que são as lembranças de
nossos velhos familiares – nesse caso, meu pai de 90 e tantos anos de idade.
A vida dele confluída numa memória única que quer ou sair ao mesmo tempo ou
desaparecer em fatos e acontecimentos únicos.
Muitos dos contos surgiram sobre reciclagem de peças e/ou contados tradicionais;
outros foram de invencionice pura. Outros vieram do que meu pai falava lá no
entendimento dele como bom memorialista e, ao seguir dos anos, as repetidas
histórias, lembranças bagunçadas por ação da Alzheimer ou velhice pura (nem sei
se os médicos sabem realmente do que se trata). O fato é que o pai continuou a
estimular a memória mesmo depois que a cronologia lhe fugiu; as regras da
civilização desapareceram sob um manto de esquecimento e de que os médicos, –
ou seus medicamentos, - atuaram sobre ele. Vai saber...
Tudo tem utilidade nessa co-autoria.
A parte do leitor é o prazer de ler e corrigir. Sim. Trata-se da tal da interatividade.
Corrijam os erros, enviem a errata, hifenizem, acentuem ou não... enfim, interajam.
...
Assim, surgem as novelas retiradas da ARCA DO VELHO.




Coelho De Moraes                                                                     4
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO




                                                         RELATOS DE
                          MATRIMONIO E PATRIMONIO
                                                         (uma novela indomável)


1)                Era uma vez um mercador bastante pobre que tinha o dom de
fazer maus negócios por vários motivos seguidos e inapropriados. Um deles era a
honestidade, pois é sabido que uma pessoa para atingir os píncaros da riqueza tem
que, necessariamente, roubar. Não há rico que não tenha roubado, dizia o sábio
Aricanduva de Freitas, enquanto bebia gole sobre gole de chá mate com goiabada
e, completava cuspinhando no chão do bar: - Se pensa que não roubou ou está
melindrado, basta ver o lucro que obteve perto da inflação e responda com cuidado
de gente consciente, se não aproveitou que a inflação minava os bolsos (ele diz “os
borso”) enquanto o mercador aumentava os preços das coisas. E, Aricanduva ainda
dava exemplos de especulação, que no meio mercantil era conhecida como
“negócios” e era coisa certa e aceita por todos.
Mas, dizia eu, o mercador da historia era pobre e amicíssimo do tal Aricanduva, seu
conselheiro em assuntos de moral comerciaria, de modo a levar o amigo mercador à
bancarrota em pouquíssimo tempo, o que deixou o mesmo mercador bastante feliz,
uma vez que não roubara um tiquinho que fosse, apesar de sofrer constantes
atentados dos outros mercadores e do próprio governo do seu país – aliás, principal
condutor dos negócios desonestos e dos ricos empresários que o apoiavam, os
quais também representavam o papel de políticos, que também defendiam


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


interesses particulares, que também enganavam a população besta com chavões e
palavreados mentirosos e viviam impunes, com garbo e chapa branca nos
automóveis.
Tinha, o mercador honesto, duas filhas: Canarita e Chiamba (lê-se Quiamba, por
favor), obviamente, diferentes uma da outra, pois se assim não fosse as duas se
chamariam Canarita, ou quem sabe (?), Chiamba, sendo que as duas seriam uma
só, o que a Física não permite, já que não ocupavam o mesmo lugar no mesmo
espaço ao mesmo tempo.

2)         Chiamba era bonita, inteligente, prendada, obediente, só falava palavrão
escondida no quarto, mesmo assim, com a cabeça enfiada num saco, com vergonha
de si mesma, por descer tanto na escala da civilização e parecer com as mulheres
chulas e inescrupulosas do burgo.
Por outro lado, Canarita, que também era bonita, tinha certas prioridades: quando
queria ficava feia, só de brincadeira e, isso acontecia muitas vezes, pois tinha um
mau gênio – não o da garrafa, mas, o da personalidade individual, – repetidas faltas
de educação que muitos relegaram a uma falta de memória e, era muito
desobediente, aproveitando o ensejo para xingar todo mundo e contar as mais
cabeludas das piadas de salão de prostíbulo, de tal forma que nunca tinha a
amizade de ninguém, exceto a de um papagaio que adorava suas piadas e as
repetia fora de ordem.
Por isso, Chiamba possuía inúmeros admiradores; tarados todos para se casarem
com ela, levarem-na para casa, dormirem com ela, fazerem filhos nela, fazerem com
que ela limpasse suas casas, suas roupas, limpassem o chão, desse de comer para
os inúmeros filhos; que ela ainda tivesse a honra de sentir o cheiro azedo da
cerveja e do cigarro no mais afundado de suas camas de crina de cavalo, os quais
cavalos, mesmo não tendo entrado diretamente para a história, sairam perdendo,
pois ficaram sem as crinas. Rá, rá, rá ...
Mas, a pobre besta do pai, seguindo as normas da sociedade, só consentiria que
Chiamba se casasse após o casamento da mais velha, que era Canarita que, diga-
se de passagem, nem pensava em tamanho disparate.


3)        Havia três sujeitos que estavam afinzões (se o distinto leitor me permite a
invencionice) de Chiamba e ficaram paus–da-vida quando souberam da arcaica lei;
um absurdo que enfrentava a modernidade de Canarita e, enquanto o pobre
mercador se transformava em pobretão, os três possíveis noivos articulavam
mumunhas e traquinagens para, um dia, surrupiar Chiamba e casarem com ela, uma
vez que era muito difícil encontrar empregada igual na praça.
O mais esperto era um tal Luzivaldo; um sujeito magro que quando tinha quinze
anos era muito mais baixo do que quando tinha vinte e um, o que lhe valeu a
alcunha de Lulu – Rabicho, já que ele andava atrás das saias de mulheres e padres,
sem deixar nada no olvido.
Lulu–Rabicho, fazendo-se de professor de línguas, – a dele não parava dentro da
boca, - foi levado à casa do pobretão mercador, que não tendo com o que pagar,
dava-lhe quilos de batata e peixe salgado, enquanto o professor ensinava as
funções da língua para as moças.
Havia um segundo, chamado Crebio, que se oferecia como jardineiro, trabalhando
gratuitamente; o intuito era o de se aproximar da bela Chiamba, levando-lhe flores e
poupadas de terra cobertas de estrume de boi com que cuidava das plantas.


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


O terceiro era Mortencio, professor de música que se propôs a transformar as
donzelas (assim acreditavam), em primas–donas, o que seria muito interessante se
as duas irmãs fossem as primeiras, caso a Física não aparecesse novamente para
impedir que o absurdo se fizesse presente. Este Mortencio era o mais apaixonado.
Várias e várias vezes eram vistos fazendo serenata sob a janela das garotas e não
poucas vezes tomaram banhos de urina que o pobretão mercador (já então em
campos de pauperismo desenfreado), os presenteava, já nos confins da madrugada,
tratando-se então de uma urina muito velha. Não por cantarem para as filhas, mas,
por não permitirem que ele dormisse, esquecendo-se das dividas que se
avolumavam.
Chiamba não tinha preferência. Qualquer um serviria, o que nos dá uma idéia da
mentalidade da menina. A primeira impressão é a de uma garota fútil que só quer se
casar, ter filhos, engordar e ver televisão se queixando das varizes, depositando
toda a culpa nos hormônios. Saberia ela que a mutação em monstro – fenômeno
que ocorre com a maioria das mulheres com o passar do tempo, se dá por causa do
relaxamento e, não por uma conseqüência natural do envelhecimento?
Canarita a aconselha a dormir com os três, não ao mesmo tempo, mas, se possível
na mesma noite, de modo a ter uma maneira de se decidir. Chiamba corre para o
quarto, enfia o saco na cabeça e xinga a irmã.

4)         Então, chega ao burgo certo Perúquio, andarilho e vendedor de elásticos,
presilhas, alfinetes, lixas para calo, xampus, fivelas, pedra-pome, não sendo careca
nem tendo parentesco com o legendário Pinóquio.
Perúquio era amigo de Mortencio, tendo já cantado juntos na grande cidade,
fazendo a dupla “Saltimbancos das Estrelas”, sempre vestidos de jardineira e
chapéu de três bicos. Perúquio queria encontrar uma moça rica para se casar, por
isso, Mortencio, mancomunado com Crebio e Luzivaldo, tentavam fazer com que o
viajante e caixeiro, se decidisse a casar com a vulgar Canarita, sem que ele desse
conta de que ela era uma quase mendiga.
 - Vocês não escutaram direito. Quero mulher rica, meus chapas!
- Você é que é cego meu chapa, – Mortencio completava o dialogo edificante. – Já a
viu de costa?
- Realmente, é uma coisa que não me interessa.
- Ô! – Gritaram os três possíveis noivos – Nem parece o velho Perúquio. Não se
interessa por mulher, chapa?
- Vocês me entenderam, – afirmou categórico.
- Vamos lá, – falavam ao mesmo tempo os três novos–patetas. - Conversemos com
o pai mercador
A palavra soou bem aos ouvidos de Perúquio e uma bem delineada sobrancelha se
ergueu.
- Pai... Mercador?
- Exatamente, - teriam dito os três, caso não baixassem e levantassem a cabeça
inúmeras vezes, munida bocas de sorriso abobalhado e olhar de tatu com doença de
Chagas.
Perúquio, então, concluiu, levantado o dedo:
- Precisamos conhecer tal donzela.
Os três riram às costas do outro, o contentão.




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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


5)        Combinaram uma visita de Perúquio ao velho quase indigente mercador
que poria a sua melhor roupa; brindaria com uma cusparada os sapatos e esperaria
no alpendre.

Perúquio apareceria, sobraçando fitas, dedais, grampos e placas de gumex, doando
tudo como presente para a possível noiva. Os possíveis noivos de Chiamba
estariam sob a janela, enquanto ela ouviria as melodias que lhe cantavam, piscando
os olhos para todos ao mesmo tempo, e sentindo úmidas as partes mucosas muito
bem enterradas nas roupas de mulher pudica.
Canarita, por sua vez, não recebera bem o possível noivo e muitas vezes deixou,
segundo ela, sem querer, que um vaso caísse sobre os pés andarilhos do
famigerado Perúquio, o jovem que o pai mercador e pobretão perceberia ser um
exemplar espécime que tomaria conta da moça, já que ele, com toda a devoção
paterna não agüentava mais; pretendia vendê-la ao primeiro circo que aparecesse
no burgo. Na falta do circo, o caixeiro – viajante.
Bom... tudo isso aconteceu assim mesmo.
Perúquio adivinhou no velho um usurário, sovina e malandrão que guardava tudo e
não gastava nunca nada, deixando a família a passar fome, se bem que as formas
bojudas e protuberantes de Canarita desmentiam a inanição. E, de olho nos
almofadados da moça, na bolsa alhures escondida, resolveu que se casaria na
semana entrante, mesmo Canarita não querendo, afinal, o que era ela se não uma
mulher... ou seja, nada; mulher não dá palpites. Só pensa que dá..., pensou
Perúquio, cofiando o bigode basto.
Os amigos exultaram. Mortencio, Crebio e Luzivaldo pularam de alegria e cantaram
“Ultima Canção” para Chiamba, enquanto a noite chegava e o sereno da madrugada
descia devagar.

6)         Todo mundo foi convidado para o casamento, e, mesmo que não fossem,
pelo menos os rapazes apareceriam para ver qual o trouxa que levaria para casa a
vassourinha da Canarita.
Na festa encontramos de tudo. Toda a fauna de uma sociedade bem instituída: as
galinhas das senhoras que ditam a moral mutável de acordo com o mancebo que
lhes aparecessem entre as cochas. Os advogados e juízes marmotas que
vomitavam leis difíceis de cumprir, arrotando poemas para todos os lados. Os
ratazanas industriais e empresários que consumiam a vida de seus operários dando-
lhe latas e geléias como bônus. Os abutres médicos donos de planos de saúde, que
adoravam entranhas, que tomavam bebidinhas com papagaios, araras, periquitos,
psitacídeos sociais em geral. Os loroteiros com PhD que se julgavam professores e
ensinavam modos e maneiras de bem copiar o raciocínio alheio. Enfim, uma
cambada de bichos profissionais que valorizavam a festa com suas opiniões lidas
em revistas ou repetidas de livros lidos como quem vai ao banheiro depositar sub-
produto no vaso privado de belo branco porcelânico.
No entanto, Canarita apareceu toda desmazelada, falando enrolado como quem
bebeu. A verdade era que o cachimbo atrapalhava a parlatória; cabelos
desajeitados, roupas rotas e rosto pintado de qualquer jeito.
Perúquio ficava louco de vida e falou que aquilo é um ultraje.
- Isto é um ultraje!
- E, você queria o que? Os três neo-patetas me atacaram lá no quarto enquanto eu
me vestia! – Disse ela.
- Que patetas?


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


- Os possíveis noivos de minha irmãzinha, que neste momento esta com a cabeça
dentro do saco.
- E, por que você não gritou, sua megera?
- Porque eles ainda não tinham terminado, meu caro. Você acha que eu vou perder
a chance das penetrações e rosnados, a troco de nada?
 Perúquio estrilou: - Como, a troco de nada? Por acaso eu sou nada?
 E, a resposta veio rápida: - Isso veremos após o casamento.
O pai pobretão–miserável estava perplexo com o desenrolar dos acontecimentos,
mas feliz, pois aquilo não era coisa que desse prejuízo. A festa já era paga pela
vizinhança que daria tudo para ver o casamento da reles Canarita, abandalhada dos
cinco costados. E, gostaram, pois o espetáculo estava dos bons.
Nesse momento desciam as escadas os três-neopatetas (possíveis noivos),
dizendo que não queriam mais o casamento com a menina Chiamba, uma vez que
ela não retirava, de jeito nenhum, o saco da cabeça, limitando-se a dizer palavrões
de todos os tipos e variedades.
Contudo, o pai paupérrimo explicou, e fez questão, que teriam que se casar com a
mais moça, já que ele, – pai obstinado, - agüentou noites e noites de uma cantoria
chata pra cachorro; não ia, por mais nem por menos, permitir que a pequena filha
Chiamba também ficasse frustrada por ouvir todas aquelas baboseiras em forma
musical e agora a espiar navios saírem e entrarem na baía.
Os três amigos, intimidados pelos vizinhos, tiraram par ou impar e a vitória acabou
recaindo sobre Luzivaldo que começou, imediatamente, a chorar.
Perúquio, que já chorava a um tempo, consolou o amigo. Caíram em uma arapuca e
não havai maneira de escapar. Todos da cidade foram testemunhas e, o pior,
testemunhas idôneas, pelo menos, lá entre eles.
Crebio e Mortencio sairam de fininho, pela janela, levando alfenins, biscoitinhos de
gengibre, pedaços de bolo Xanxerê, pecan pies, gugelhupf, brioches, sayarin,
churros, mufins, trufas de chocolate, ravióli doce, petit carré, rocamboles, pudim
Molotoff, menchikof, bavarois e pedaços furtivos de torta klamotte, nos bolsos e no
bojo do alaúde.

7)        Deu-se o duplo casamento e os convidados começaram
desesperadamente a rir, sem parar, das caras de bunda dos respectivos noivos que
herdaram, sem mais o que reclamar, um culatrão daqueles, no que tangesse à
popular Canarita e uma donzela–de–candeeiro que, enquanto encabeçava sacos
para não ver, amarrava das suas com as velas da casa, não vendo, enfiando aqui e
ali.
Assim, amigos leitores, todos ficaram insatisfeitos com as núpcias, menos o pai
pobre e mercador falido que lucrou, enfim, não mais tendo que alimentar duas
bocas; a vizinhança, então, lucrou demais, teve o seu quinhão de fofocas e motivos
para comentário amplos e irrestritos, como convém um povo civilizado e moderno.




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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO




                    PERIPÉCIAS ROCAMBOLESCAS
                                    DE OSÍRIS.
                                                              (uma novela do cão)


1)     Osíris era um gato siamês que vivia entre ladeiras do bairro niteroiense do
Ingá, e, os muros das casas, porém, maior prazer não tirava se não aparecesse
enfronhado em lençóis e braços de sua senhora-amiga–confidente. A particularidade
maior, no entanto, estava no fato de que Osíris identificava-se como um gato oriundo
do Sião, das terrosas áreas do Entre–Rios, de requintado gosto judaico, apesar do
nome divino e egípcio. Era muito chegado a mordomias, como se ainda acostumado
a perambular pelos antigos palácios de Tebas ou Karnac, lado a lado a Faraó, ou
então, pelos luxuosos salões de propriedades dos Tetrarcas de Galiléia, antes da
invasão dos Romanos, se ainda fosse possível. Osíris sonhava com tudo isso, como
a relembrar uma de suas vidas.
Mas, na realidade, Osíris tinha que se conformar com os muros das ruas sujas de
Niterói, bem como os braços pegajosos de sua eternamente–deleitosa–transtornada
mãe artificial e, de vez em quando cair de lambidas sobre sua paixão: a Gata Kristh,
de origem germânica, apesar de inocente em Nuremberg, mas, evidentemente,
causadora de dissabores e alguns trissabores ao nosso herói, como veremos no
transcurso da história.

2)     Nesta aventura aparecerão uns cães de má índole que moravam na
residência ao lado. Várias vezes foram observadas por Osíris. Da mesma forma, os
três dálmatas olhavam o passeio do felino, como um gatuno, sobre os muros, com
passadas leves que deixavam a platéia canina em polvorosa. Latidos e ranger de
dentes eram o que mais se ouvia por aquelas plagas, mas, o gato, nem ai. Osíris
nem se dava ao luxo de olhar a azáfama no meio da cachorrada pintalgada de preto


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


aos rés do solo, se bem que prestasse atenção no caso de novidades ímpares como
bocas cheias de dentes que muito se aproximassem. Passava e ia pisando pelica,
sobre as almofadinhas de suas patas; quando muito, parava para dar uma lambida
na cauda, arrumar os bigodes; em seguida retornava o caminho que o levaria para
os pelos de Kristh, a bichana.
Muita gente pediu para que não se contasse o tal segredo, mas, o escritor em
questão não pode privar os leitores das verdades que se propõe a contar. E, o
segredo escondia, por sua vez, o seguinte: “Havia no bairro muitos outros gatos os
quais se dispunham a cortejar Kristh felpuda, que não lhes dava corda para tanto.
Ela estava caída pela elegância, pelas cores, pela origem e descendência do gato
Osíris” - consta que ele tinha lá seus arvoredos genealógicos: toda linhagem desde
Tutmés II até os dias atuais, quando suas tribos tiveram que escapar do cão nazista,
ou seja, um certo pastor alemão que alvoroçou a Germânia), enfim, o que sabe ao
certo é que uma horda de felinos inamistosos percebeu que só teriam a Gata Kristh
caso Osíris falecesse e, para abreviar o caminho até a pulverização do gato odiado,
os inimigos contrataram os serviços – olhe e atemorize-se, caro leitor! Pasme! Até
onde pode ir a animalidade! – e, eu dizia, contratou os desatinados serviços de um
canil cheinho de cães, é óbvio, mas, daqueles que comem até o osso do vizinho e,
não digo o osso da alimentação, mas, o da perna mesmo, tamanha a ruindade.
Por motivos de pura inveja e recalque, Osíris viu-se em palpos de aranha, se bem
que aranha mesmo não houvesse uma, mas tal é o que se ganha quando se utiliza
expressão idiomática num texto. Subia ele a Rua Presidente Pedreira, voltando do
escandaloso namoro, ainda lambendo os beiços e se arrepiando de vez em quando
com as lembranças, quando se viu cara a caras. A sua cara de gato olhava
fixamente as caras de nada menos do que doze cães, que o observavam
atentamente. De cima do muro, o sorriso escarninho dos inimigos. Da frincha do
portão de madeira, o riso maroto dos dálmatas que adivinhavam e se divertiam com
o perigo que Osíris corria. Da janela, o pranto copioso de sua senhora-adorada-
emudecida-lacimosa, assobiando cantigas de ninar enquanto o pranto derreava em
borbotões... brotava a cântaros. Mais atrás, em sua casa, já alimentada, preparando-
se para dormir, pensando oniricamente em Osíris e futuros gatinhos, a pequena
Kristh pressentiu que algo não ia bem.
Osíris percebeu que só um milagre o colocaria fora das mandíbulas destruidoras
daqueles irascíveis mercenários e, foi com os nervos à flor da pele que ele esperou
pelo pior.

3)     Os anais não garantem se foi pior, ou melhor, mas, o fato é que não se sabe
como, nem se a aparição era terrestre ou não, no entanto, a aparição apareceu. Um
milagre... um Ser... Um alienígena... veio, caminhando, à medida que os doentios
olhos dos cães foram se abrindo desmesuradas! O sombrio ser se aproximava e, os
cães o temiam, e ele vinha, dormindo ou acordado (era difícil de saber), se em
estado sonambúlico (aparentemente), se bem que muita gente dizia, as más línguas,
que não havia diferença entre a vigília e o sono para tal ser. As boas concordavam
com o argumento. Surgiu das trevas da noite, para a salvação de Osíris, para
desrespeito dos felinos traidores, para horror do mastim venal, eis (!) que surgiu o
Leviatã adormecido, o gigante tépido, muito mais conhecido como Anselmo,
candidato consorte da Tetê, que muitas vezes se fazia passar pela irmã da
extasiada-edípica-electra-amantíssima-mãe do gato herói, como já sabemos.
    “Ah! Felicidade. Onde estás que não te vejo?” Juro que tais foram os
pensamentos que passaram pela mente arguta do gato. Num triz ele zarpou pela


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


rua, pulando montículos de barro e crateras de asfalto, para finalmente sorver o
oxigênio puro à janela do apartamento de um casal muito simpático e amigo que
morava na rua perpendicular. Como que agradecido pela presença, pelo menos em
espírito, do Leviatã, Osíris desejou dar-lhe algumas lambidas e pôs-se a contar
estrelas, enquanto tal momento não chegava.
     É escusado dizer que a cachorrada desapareceu na noite, ganindo horrorizada,
fato que ratificava, sem intenção de enfiar qualquer rato na história, mas, sim no
sentido de garantir a lenda popular de que os cães têm uma sensibilidade bastante
apurada, de modo que podem sentir vibrações, energias e fantasmagorias diversas
no recôndito das trevas e dos corpos dos seres, coisa que para o humano não passa
de invencionice de quem é portador de terrível deformidade mental. Podemos até
aventar a hipótese de que teriam, os cães, identificado na criatura Anselmo um
ascendente, o qual superior e sábio viesse para os punir. Nunca se saberá. Mas a
preocupação maior, sim, e, era necessário, muita cautela, cuidados, visto que os
felinos logrados, ao mesmo tempo que bradavam contra os quadrúpedes fujões e
suas mães prediletas, já arquitetavam a desforra, com sutis imagens da violência.

3) A história poderia parar por aqui, livrando o leitor insigne de conhecimentos
atrozes. Mas, de que vale o poder e a iniciativa de escrever, se não se conta tudo?
Não posso favorecer o leitor mais fraco evitando os acontecimentos agros, em
detrimento da verdade. Custando o que custasse, eis a verdade, fria e crua, como se
me apareceu.
Osíris, descuidado como um animal felino, enquanto tentava pegar uma borboleta
amarela no jardim, não percebeu a origem dos psius e psilius. Não percebeu que
quem fazia psiu-psiu, era um dos dálmatas. Ora, junte-se um pouco de curiosidade
de gatuno ao descuido e temos o desastre. Osíris foi ver o que era. Saltou sobre o
muro e sorriu. Lá embaixo, numa bela clareira no meio do jardim do vizinho, havia
uma aglomeração que foi facilmente identificada como um congresso ou simpósio
entre artrópodes. Sim. Com jeito era possível perceber que, se não fosse invasão de
insetos de Urano, com certeza tratar-se-ia do desfile anual das Taturanas; era uma
das coisas que deixava Osíris bastante embevecido, sempre esperançoso de que
algum dia tivesse a honra de ver o nascimento de taturanas sem aquele horrível
manto ardente, inibidor de abocanhações e similares ações. Ingênuo, pulou e juntou
as patinhas, olhando o grupamento ali parado.
Parado. Realmente parados. Taturanas, Taturanões, Taturaltos e outros da
parentalha, não se moviam! “Algo estranho por estas bandas”, pensou Osíris. A sua
cabeça dava tratos e permitia que as orelhas tentassem captar sons suspeitos. ”Não
estou gostan...”
TABÉFE!!
Tabefe foi o barulho que fez apenas uma patolada e, o pequeno gato foi parar contra
o muro, para ele o das lamentações, deixando uns pelos colados na parede caiada.
Estava tonto. Não notara que fora uma cilada. E, olha que não despregava os olhos
da televisão. Devia conhecer todos os truques.
Os três dálmatas – Cão, Canicho e Canaz, – armaram uma arapuca onde o herói
caiu como um passarinho, para ficar mais irônico. Enquanto se erguia, ou pelo
menos tentava, pensou nas taturanas que serviram de isca para a captura, mas, não
teve tempo de terminar o pensamento... TABÉFE! Outra bofeteada bem dada fez o
gato rodopiar mil vezes ao som das gargalhadas incessantes dos dálmatas e dos
gatos, funâmbulos, sobre o muro.



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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


Canaz caiu de mordidas sobre o pêlo brilhante de Osíris, o qual pêlo, em poucos
segundos ficou empapado de vermelho. Cão, o do meio, seguindo as pegadas do
irmão mais velho, puxou Osíris usando as orelhas do gato, girando-o no ar, para em
seguida largá-lo e vê-lo cair sobre o tanque de lavar roupa, previamente preparado
com sal, aguarrás e soda caustica. Osíris não sabia nadar e, enquanto se afogava,
como é de praxe nestas circunstancias de desencarne, tudo o que foi vivido passou
pelos pensamentos de Osíris, pesando seus erros e correções, rememorando os
dias e as noites, suas ações e miadas, seus saltos mal dados e seus namoros
imorais; memorava os inúmeros filhotes espalhados pela vizinhança e orou para que
o deus gato, o Felis catus maximus, pedindo para os seus inimigos não se
vingassem nos petizes. Apesar da flagrante exteriorização de bondade, Osíris fez a
chantagem usual; barganha cósmica; suplicava pela vida (na sua conta ainda
faltavam três, das sete) em troca do que, ele mudaria de conduta, diria preces para a
lua todas as quintas-feiras; a lua, mãe dos poetas e lunáticos, dos notívagos e
vagamundos, clareava as noites e não deixava que Osíris enfiasse a pata em telhas
soltas.
Mas, os cães não pretendiam vê-lo afogado, pelo menos, por enquanto.
Canicho, o caçulinha e, diziam, o pior dos três pois estava na fase de auto-
afirmação, pescou, por assim dizer, Osíris do tanque antes que esse pudesse
perceber o gosto do Terebinto e, enquanto enchia-o de palmadas e pequenas
mordidelas só para treinar, carregava-o para os lados de um formigueiro, sob a
ovação da gataria inimiga, platéia, sobre o muro.
Era um formigueiro de saúvas graúdas, sob umas pedras pintadas de branco. O
interesse de Canicho, no entanto, não eram as formigas, mas, as pedras. Umas
pontudas, outras rombudas. Sua intenção era, definitivamente, acabar com a
brincadeira e calcar uma pedrada na cachola do gato. Osíris percebeu e foi com
desespero que lutou sua última batalha.
Os gatos inimigos o vaiavam.
Retirando, porém, energias suficientes para ser considerado o Gato do Ano, Osíris
crispara os dedos das patinhas, arrepiou os pêlos, contraiu a musculatura, riscou o
ar com suas unhas afiadas e, num movimento convulsivo, rabiscou a cara de todos
os cachorros que apareceram na sua frente. Havia três, mas Osíris, à essa altura do
campeonato já via uns quinze.
A platéia estatificou-se. Era impossível que ainda se salvasse aquele biltre! Se não
fossem inimigos até aplaudiriam o arroubo! Depois de tanto apanhar ainda reunia
forças para a luta! Gatuno!
Osíris, sem perder sua constante ingenuidade, subindo pelo muro com loucura
selvagem, estendeu as patas para os gatos que o olhavam lá do alto, supondo que a
espécie falasse mais profundamente no coração. Contudo, a única coisa que fizeram
foi segurarem suas patas apenas o tempo suficiente para Osíris perder o pique da
arrancada. Após, uma bela chacota, largaram o herói dentro da boca de Canaz, que
não perdeu mais tempo e o mastigou, assim como quem não quer nada.
Mas, parecia, a divindade estava ao lado, imensamente protetora. Os pródigos
sempre serão exaltados e os destruídos serão... destituídos. No alto, sobre o peitoral
da janela, fazendo menção de pular, a modos de quem limpa vidraça, uma sublime
visão! No momento em que Canaz se preparava para a segunda mastigada, tendo
aberto a boca ao máximo, com olhos voltados para o céu, saboreando o manjar com
prazer inaudito... Vê... Sim, ele vê... Vê e para... seus irmãos acompanham seus
olhos medrosos... Osíris cai-lhe da boca que não mais se fecha e sai,
manquitolando, com as patas nos quadris. Bem sabem que os cães pararam porque


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


a excelsa criatura enviada por Felis catus maximus, o Leviatã adormecido, não lhes
saia da pupila canina de cada um. O horror chegara aos três dálmatas que se não
sabiam se fugiam ou se prostravam ali mesmo, em adoração ao deus supremo - ou
àquilo que julgaram ser a deidade máxima, que perambulava a esmo, batendo a
cabeça numa e noutra parede.
E, é no atônito da cena, sob o olhar boquiaberto dos gatos inimigos que Osíris
escorregou, indo para longe, esconder seu corpo alquebrado e mal tratado, num
desses socavões de terreno, somente conhecido por ele e Kristh.
Afinal, o que levou essa turba de felinos a odiá-lo? Uma única resposta é esperada.
O amor integral de Kristh, votado totalmente ao nosso herói. A gata ronronante, de
pêlos longos e sedosos... Kristh com a boca cheirando a sardinha... Kristh das
lambidas úmidas e movediças... Kristh dos encontros fortuitos e noitadas festivas.
Kristh dos bigodes sensíveis e dos abraços que o aga(ta)rravam fortemente... Kristh
bela... Num último pensamento Osíris quase sucumbe... “Kristh, querida Kristh...
(com as patas erguidas) Não tome todo o leite...”, e, desfalece.

5)     De fato, Kristh foi encontrá-lo pela manhã, e lá estava o gato no buraco,
gemendo de imensas dores ferinas. Rapidamente, com ajuda de amigos, Kristh
levou-o para junto de sua senhora-mãe-eternecida-protetora já por nós conhecida.
Contar o sentimento profundo e a sensação pungente que atracou, esta é bem a
palavra, na alma da mãe adotiva de Osíris é impossível. Podemos dizer que várias
baldes de plástico, usados em limpeza, não poucos, foram completos até a boca só
com o pranto cascateante vertido pela mãe-adorada-importuna-repressora, por
ocasião do encontro ao mesmo tempo terno e doloroso. Não se sabia sobre a
gravidade do estado do animalejo infeliz. Era necessário que um douto fosse
chamado para as devidas consultas.
Assim foi. Apesar disso, Osíris foi perdendo, lentamente, e de certa forma, fácies de
enfermo do corpo para ganhar, aos poucos, um semblante de enfermo da mente.
Para a materna-suplicante-ensinesmada-pranteante, isso não podia ser, afinal, é do
conhecimento de todos que o chamado amor imenso e sublimado leva as pessoas à
não raciocinarem, ao mesmo tempo em que pensam ajudar, quando na verdade
atrapalham. E, ela, mãe-senhora-sublime-fervorosa, não acreditava, por
conveniência própria também, que o bichano predileto estivesse abestalhado.
Desculpe, leitor, mas eu diria, sucumbindo em seu estado psíquico. De moribundo a
alienado, não havia escolha. Que se fizesse o desenlace vital, o trespasse desta
para melhor o mais rápido possível, mas, louco (?), ela se perguntava, louco não (!),
ela se respondia e, o caso ficava sem definição. Para a mãe, o fato de usar brincos
no rabo (falo do gato), não era sinal de loucura, mas, talvez ele apenas estivesse
assumindo uma postura moral diferente, apenas. Contudo ela percebia que tentar o
menor contato com ele, Osíris se tornava arisco, apimentado, salobro ao extremo,
evitando o relacionamento familiar e íntimo, de modo que a mãe permanecia com as
pernas abertas à toa.
Mesmo a namorada-amante, a macia Kristh, ficou desapontada ao notar
modificações no caráter do gato. Seu amor por ele não diminuiu, não morreu, é
claro, mas ela se preocupava; havia muitos gatos pelas redondezas, o que não
seria de importância maior caso o período do cio não estivesse próximo.
Osíris, medroso e estremecido, via dálmata por todo lado e não poucas vezes
testemunhou-se brigas homéricas entre Osíris e a vassoura de pelos.
Enquanto isso, a mãe-avassalada-insatisfeita, pensava que apenas seu rim (falo do
gato) é que estava fora do lugar. Nem mesmo a presença do Leviatã adormecido


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


ajudava na melhoria do felino. É bem verdade que as ataduras que enrolavam a
cabeça do Leviatã modificasse um pouco as suas feições; a cabeça totalmente
enfaixada e os óculos desequilibrados sobre os panos, de modo que o gato
dificilmente reconheceria o seu salvador através dos óculos. É que o Leviatã caíra
da escada. Não tivesse o Leviatã caído da escada, numa das suas incursões
noturnas e seria possível pensar em salvação para Osíris.
Em poucos dias ficou demonstrada a traumatizante verdade de que Osíris penetrara
nos recônditos da psicose-maniaco-depressiva, – um bipolar de peso. Todos
esperavam que de um momento pra o outro ocorresse o suicídio, principalmente
profetizado pela mãe-abnegada-chorosa-lacrimejante, moradora da Rua Maestro
Ricardo Ferreira, cujo perfume favorito deveria aromatizar segundo o Musgo,
domestico e selvagem, mas, que se fosse presente poderia ser qualquer um.


6) Finalmente marcou-se o dia da consulta com um medico psicanalista de gatos
que, por coincidência, visitava o Brasil, país dos gatos, gatunos, gaturamos, mãos–
de–gato, para passar as férias de verão, que para ele eram de inverno.
No começo o medico tentou se esgueirar, fugir da responsabilidade, copiando os
nativos, dizendo que não entendia a língua do gato, uma vez que o paciente era
morador de terras tupiniquins desde muito tempo. Deixou perceber que tinha certa
ojeriza por gatos judeus, apesar do nome egípcio para confundir, já que ele, o tal
doutor, era de origem teutônica e, não ficava bem cuidar de um de seus
arquiinimigos de política e de raça. Por outro lado, o doutor Duerf, deixou bem claro
que dissera tudo aquilo para que os jornais não propalassem que um Austríaco da
Moravia havia se entendido com um israelita tropical e, ele não corresse perigo de
uma vez voltando à sua terra se visse marginalizado, com reputação abaixo de zero,
solidificada pela descoberta de que ele, Duerf, que estudou a muito custo em Viena,
também era hebreu e, que na volta à sua terra natal o pau comeria.
Mais tarde o renomado doutor confessou que adorava gatos siameses, no entanto
não mudaria de idéia, por dinheiro nenhum.
Mais tarde ainda disse que tinha dúzias de gatos em casa. De qualquer tipo e raça.
Gostava de ficar respirando ácaros de pelos, quando os pelos se amontoavam em
seu travesseiro e adentravam pelo nariz durante o sono. Concordou, por fim, em
tratar do Osíris, mas exigiu rapadura e curau.
Aceitou o caso e, no dia 23 de setembro, ano de 1983, o aloprado bichano foi
conduzido para o apartamento do médico, sob todos os cuidados; narcotizado,
amarrado com uma leve camiseta–de-força no estilo “vem cá, meu puto” e uma
viseira, sob um belo capacete metálico de motociclista, para que seus inimigos não o
reconhecessem, e, vice-versa.
Para não prolongarmos a historia temos de fazer um sumario do tratamento aplicado
e as importantes conclusões deixadas pelo doutor Duerf Freiberg, retiradas do diário
do médico.

26 de setembro – o paciente continua arisco. Mas, foi possível ganhar um pouco da
sua confiança no momento em que o coloquei frente a frente a meu fiel auxiliar vindo
da Lapônia, o qual, não sei se vale dizer, parece um verdadeiro cão São Bernardo,
cujo barrilzinho de conhaque esta representado pela própria barriga, que de vez em
quando arrota. Fisiológico. Mas, ao vê-lo, Osíris acalma-se. Contudo faz dez horas
que canta pirulito-que-bate-bate e ainda não parou.



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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


1 de outubro – o paciente sofreu melhora, uma vez que depositou suas produções
orgânicas sobre o tapete do consultório, o que é muito natural. Ainda assim ele
confunde o bom auxiliar lapão e, é preciso muitas vezes retirar o auxiliar da gaiola,
por três motivos: ter sido perseguido pelo paciente, a necessidade que tenho de
seus serviços e, para que não acabe com meu estoque de queijo.

2 de outubro – é domingo fui a praia. O lapão ficou tomando conta do bichano em
tratamento. Quando saí os dois estavam trancados no banheiro escovando os
dentes, o que me pareceu de bom alvitre. O tratamento seguia bem.

2 de outubro – noite. Terrível desastre. Osíris quase afoga o auxiliar na banheira,
depois de ter-lhe cortado a barba, a sobrancelha direita, os cabelos em nível
occipital, os cílios da parte de baixo, os pelos do ouvido, tudo isso usando uma lixa
de calos. Tentei desesperadamente fazer o auxiliar contar como aquilo tudo
aconteceu, mas, só depois percebi que ele tinha um sabonete incrustado no larinx, o
que explicava as bolhas que saiam do ouvido esquerdo da vitima. Não entendi o
sorriso sacana de Osíris.

5 de outubro – o tratamento de choque não alterou a disposição do paciente... é
bem verdade que um olho pisca alternado ao outro, mas, isso não interfere no
processo de re/associação mental que tento empregar para a cura. Estou quase
certo que a histeria ora instalada é oriunda de um acometimento traumático ocorrido
no passado. Digo isso, pois o futuro ainda é desconhecido pela ciência. De outra
forma eu diria que a causa ainda está para acontecer, porém os professores de
sintaxe e conjugação verbal me atacariam pelas costas; tamanha a complexidade do
caso. Ainda não descobri porque o animal tem medo da geladeira.

13 de outubro – à minha revelia o lapão carregou o Osíris para um banho de mar
pelas imediações. Na volta o auxiliar, sem perceber, trouxe um peixe na coleira que
levara o gato. Mandei-o de volta, preocupado e com uma leve ponta de irritação.
Como explicar a perda do gato? O auxiliar trouxe de volta o peixe e retirou o gato
famigerado de dentro do peixe. Inconclusivo. No dia seguinte, à minha revelia,
refizeram o passeio mas, quem veio na coleira foi o lapão... Não sei mais onde esta
minha cabeça. Só espero que Adler não saiba desse episodio em minha vida. Acho
que começarei com a hipnose imediatamente. Esse animal é impossível e, quanto
mais ele ficar desacordado, melhor. Marquei hora com um analista do Brasil para
que me reequilibre desta enfermidade tropical. Creio que foi a carambola.

18 de outubro – cometi um erro. Deixei o auxiliar lapão dentro da mesma sala e após
algumas horas de sessão com hipnose, em que já teria atingido a idade embrionária
do gato, o auxiliar iniciou uma série de miados em língua estranha. Joguei água fria
em seu rosto, mas, ele continua se lambendo. Fazendo Osíris voltar ao estado
normal de vigília, o lapão também retornou, o que me levou a concluir que as duas
criaturas são ligadas por associação sensitiva paranormal, que não é o meu campo.
Ou o lapão ou o gato é um médium poderoso. Apesar de normal, o lapão continua
irremovível em sua atitude de beber leite no pires, debaixo do fogão. Mais de uma
vez pude vê-lo retirando pulgas com a pata trasei... (desculpe), com o pé.

25 de outubro – um mês de tratamento e Osíris já consegue receber carinhos sem
se exaltar e sem pular como se fosse de borracha. Da ultima vez, caiu no colo de


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


uma senhora moradora do andar de cima, que tricotava, e, no fim, o gato me fora
devolvido engastado em uma bonita blusa. Fiquei tentado a deixá-lo assim,
confesso. A ética, no entanto, essa maldita consciência exterior, falou muito mais
alto. Hoje porém, está muito melhor (falo do gato e não da ética). De vez em quando
dá gargalhadas insuportáveis, mas, é só. O lapão não fora mais visto. Espero que
tenha fugido, assim não preciso pagar seus honorários.

29 de outubro – trabalho incessantemente. Utilizo o método da associação livre,
desconfio e descubro alguns traumas causadores dos distúrbios. Tem fundo
puramente sexual. Sexual reprimido, talvez. Pelo que pude constatar, Osíris ama
certa gata, mas, ao mesmo tempo é obsidiado pelo amor da mãe-adotiva-
eternecida-encantadora-dramatúrgica. Sendo assim, impossibilitando de levar a
termo a relação com a mãe, por motivos óbvios de incongruência anatômico-genitais
- se bem que a mãe-obsequiosa-defensora-masturbadora não ligue para os pelos na
boca, ele se liberta sendo infiel com muitas gatas ao mesmo tempo, com o fito de
inibir o sentimento de castração que o persegue. A gata que ele ama é a sublimação
do amor. A mãe é o amor carnal inatingível. Na verdade ambos inatingíveis... Caso a
cura se faça, a tendência será alcançar a monogamia, com Kristh ou com a Mãe.
Por outro lado sei que se formou o conhecido triplexo temporal:
a) o de Édipo, quando o gato tenta manifestar seu amor pela mãe, mas, apenas
recebe palmadinhas e tapinhas nas costas: ele queria outra coisa. Isso o frustra em
demasia.
b) Em seguida o de Éradipo, tendo o gato se apaixonado pela mãe-adorada-
maravilhosa-tribúrsica desde pequeno, confundindo o amor carnal com o amor filial.
c) Por fim, Serádipo, relacionado com o futuro, ou seja, a manutenção da
descendência, coisa que só acontecera com seres da sua própria espécie,
objetivado o interesse em Kristh, numa tentativa de integridade especifica o que não
consegue como individuo.

Ah! – NOTA - Descobri o auxiliar: estava preso no guarda-roupa e disse que não
gritou que era para não incomodar os vizinhos.
Ainda não sei por qual razão contratei esta personagem.

2 de novembro – finados. Dia de finados. Os dias chuvosos, o ambiente triste,
talvez, influenciaram sobre Osíris e houve uma recaída. Um ameaço. Seu moral só
se elevou quando o auxiliar esqueceu o dedo na tomada de força da televisão,
mudando de cor em vários canais, passando em segundos do verde mais intenso
para o adorável roxo, aterrissando no azul da Prússia numa elegante voltagem.
Alexandre Volta dar-se-ia por realizado. Aproveitei o ensejo e coloquei Osíris num
processo de catarse acentuada, visando uma melhora definitiva. Acho que estava
correto. O gato parece completamente curado. Antes de devolvê-lo à sua senhora-
ama-amada-amante-cunilínguica preciso fazê-lo desistir de usar capa preta e a
ridícula mascara de Zorro que conseguiu não sei onde. Coisa do lapão.

7 de novembro – parto amanhã consciente de terminar um trabalho. Cumpri
adequadamente a missão, espero. O avião leva minha douta pessoa para a velha
Áustria e, eu mesmo levo folhas e mais folhas de um relatório importante que
apresentarei no congresso de Copenhague, no ano bissexto de 84. O lapão sumiu
novamente, mas desta vez eu o vi sumir pelo ralo da cozinha e, numa hora como



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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


esta deve estar boiando entre porcarias orgânicas variadas no meio desta imensa
baía de Guanabara, onde outrora baleias vinham dar à luz.

7) Voltando ao lar, após despedir-se do doutor Duerf, Osíris não poderia se
preocupar com outra coisa a não ser rever Kristh, que não aguentava mais o assédio
de outros gatos. Uma vez Osíris sempre Osíris e, foi com amor aparado pelas
fabulosas técnicas da psiquiatria e muita relação, que se encontravam no socavão
de interlúdios, à meia – noite de uma época quente e tentadora. A mãe-adorada-
idolatrada-confidente-esperançosa-arfante passou a dormir bem, uma vez que o
gato, não raro, se instalava entre suas pernas durante as madrugadas. Quando isso
não acontecia ela comprava o biscoito Língua e Gato, lambia-os e se esfregava
neles.
Cães e gatos, sabedores do relacionamento e cura total do felino herói, armaram
novo golpe, alicerçados em planos e estratégias dos melhores generais, mas,
desistiram quando se lembraram da constante presença, quase divinal, onírica,
soporífica, tetraóptica, do fantasmagoricamente alvo ser, que sempre exercia peso a
favor do gato Osíris. No momento oportuno lá estaria ele, o Leviatã adormecido, com
seu passeio sonambúlico, assombrando, suas ínfimas vidas de animais.
Resolveram, cães e gatos, confraternizarem e esquecer. Discutir, sim, mas, outros
assuntos de menor importância, deixando de lado Osíris e Kristh. Resolveram
encher a cara num barzinho chamado, ironicamente, “Quatro Gatos”, na esquina e
aproveitaram para cantar jingo-bel, uma vez que já era natal e, o que ia sobrar de
perna de peru por ali, não era brincadeira.




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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO




                                           O TRISTE FIM DE UM
                               FUMANTE INVERTEBRADO
                                                           (uma novela do pigarro)

1)     Inicia-se a história quando um desses tabagistas convictos, Cruzsouza,
adentra com toda a pompa e circunstância o hospital dos cancerosos, com o instituto
de salvar a sua vida de suicida a longo prazo; após passar por milhares de cigarros,
além de cachimbos, charutos, cigarrilhas, enfim, todo o arsenal que se utiliza para
ter charme, segurança em si mesmo, status, pose, e o divertido ar intelectualóide
que acompanha a pose dos que usam óculos e soltam fumaça pelas ventas,
Cruzsouza preferiu entrar na faca.
       Cruzsouza era um desses. Digo era, pois, conto já o fim da história, apesar da
sua tentativa de tratamento, Cruzsouza veio a falecer meses depois. Câncer no
pulmão. Em compensação foi enterrado sob o som da marcha fúnebre de Chopin e
discretamente forrado por um tumor brônquico dos mais malignos. Graças,
exclusivamente ao cilindro branco do prazer inaudito. Como se diz? Numa ponta
uma brasa na outra um idiota.

2)     Mas, voltemos no tempo e encontraremos Cruzsouza subindo em um ônibus
em São Paulo. Ele fuma, mas, ao pisar os degraus do coletivo atira a guimba do
cigarro para o chão. Ouviu alguém gritar:
– Fumante porco! Não viu a lata de lixo, dragão?



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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


        Era um caçador de fumantes. Cruzsouza manteve-se quieto, pois é sabido
que alguns desses caçadores são iracundos ao extremo e não poucas vezes já
desandaram dragões, digo, fumantes a tapa. Mas, continuando, em São Paulo,
Cruzsouza jogou o toco do cigarro no chão, antes de penetrar no ônibus.
        No Rio de Janeiro, no entanto, o mesmo anti-herói subiria na locomoção
levando no meio dos dedos o símbolo fálico do cigarro e, em largas aspiradas,
soltaria rolos de fumaça branca para a atmosfera fechada do coletivo. Novamente
ouviria uma voz:
– Não tem respeito, dragão-porco-fumante? Passa pela sua cabeça de esfumaçado
que muita gente não quer ter fumaça nos pulmões? – enquanto o homem falava,
Cruzsouza passava pela roleta, temeroso de tomar um tapa na cara. – Já basta a
atmosfera poluída da cidade. Não precisamos de mais uma fonte de sujeira por aqui.
        Não houve reação, pois, evidente, era mais um daqueles caçadores.
Cruzsouza teve que ouvi-lo durante toda a viagem. Às vezes, um grupo de fumantes
se reunia e não permitia que os caçadores se manifestassem, no entanto, naquele
ônibus o acaso permitiu, ele sim, que Cruzsouza subisse sozinho e tivesse que
agüentar olhares de repulsa e esgares de ódio por parte da vizinhança. É claro que
jogou o cigarro todo no chão.

3)      – O fumante, antes de tudo, é um basbaque! – gritava na rua um associado
do Movimento de Caçadores aos Fumantes Invertebrados, parafraseando o
Euclides. As pessoas que passavam sentiam medo, pois os caçadores tinham se
tornado de ativistas políticos a perigosos exterminadores de fumantes. Surgiu a
Nova e Mística Irmandade Contra os Adoradores do Tabaco.
        Fumantes e adoradores do Tabaco formavam um grupamento religioso que,
ao longo dos séculos, dominou os povos com sua opressão desmedida, se bem que
sutil. Tudo começou quando Phillipe Maurício Camelo fundou a primeira igreja da
seita. Daí em diante, os adeptos, que já existiam apesar de esparsos (a diáspora
fumígena) aglutinaram-se para praticar suas ações mesquinhas, ou seja, andar com
aquele troço pendurado na boca (como se já fizessem muito e se achando os tais)
originando um dos maiores movimentos religiosos dos últimos tempos. Receberam o
nome de Adoradores do Tabaco.
        A fundação da nova seita desmembrou as outras, uma vez que adorador de
Tabaco tem em qualquer religião. Fez-se a ruptura dos fiéis que passaram a
freqüentar a nova organização.
        O fumante, antes de tudo, é uma besta! Uma besta suicida! – uma pedrada
fê-lo calar a boca. O homem desabou do alto do pedestal e uma batalha campal foi
iniciada no meio da praça, alimentada pelo pretexto da pedrada. Fumantes e não-
fumantes se desancavam em sovas e catiripapos homéricos.
        A polícia chegou para serenar os ânimos distribuindo cacetada para todo
lado. Mas não conseguiu.
        Cruzsouza, no entanto, apesar da seita, e do seu amplo desejo religioso, não
era um fiel Adorador do Tabaco. Quer dizer, era um livre pensador, um livre fumador,
experimentava de tudo, até bosta de cavalo; fumante, mas não filiado a seitas de
espécie alguma. Mas, para quem não fumava, todo aquele que se mostrava em
público manipulando um nocivo aparelho, aparelho de cabeça esbraseada, era logo
rotulado e devidamente escorraçado, se não em pensamento, em palavras ou
ações.
– Discriminadores! – gritava em seus pensamentos para a turba de não-fumantes. –
Pensam que são os donos do mundo!? Pensam que tem todo o direito a toda a


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


razão?! – eram idéias que chegavam à boca, pois uma intensa raiva se apossava de
Cruzsouza naqueles momentos, mas, não passava daí, não se formavam em vozes
ou palavras inteligíveis, uma vez que a raiva de Cruzsouza passava logo.
      Mas, pergunto, o que levou Cruzsouza a adquirir vontade de fumar?
      Com a palavra, o seu analista.

4) “Bem... pelas anotações secretas que aqui tenho – por favor, não publique o que
lhes conto pois sempre pensam que nós, analistas, psiquiatras, confessores,
párocos, psicólogos e prestidigitadores somos pessoas em que se pode confiar e,
não é verdade. Não publique se não pega muito mal para mim, tá? –, continuando...
(o analista folheia alguns cartões)... nas anotações que tenho tirado desses trinta
anos de pesquisas, o fumante tem um problema na esfera sexual, e, o cigarro
representaria para ele o pênis perdido”
– Não entendi.
“Bem, meu caro, é o desejo interior que se manifesta. Apesar de uma ou outra
pessoa ser ativa sexualmente não significa que não seja impotente. Aí está o caso.
Falando sobre Cruzsouza, que representa a maioria, aquele que fuma, só é potente
enquanto fuma. Há um problema na afetividade, na autoconfiança, algo como o
intenso desejo de ter sempre a mão um pênis, daí o ato, de manipular o cilindro. No
caso das mulheres...”
– Ia perguntar sobre isso.
“Bem, no caso das mulheres, é mais aceitável o interesse pelo falo, digo, pelo fato
de manusear o cigarro. Apesar de doentio ainda mantém a ligação heterossexual...
já no caso dos homens, (e, aqui o analista faz um muxoxo), o confronto
homossexualidade versus normalidade, lá na cabeça dos fumantes, é o que os leva
a usar o cigarro como atenuante dos apetites, uma vez que não assumem a sua
condição de homossexuais”.
- E, aqueles que deixam de fumar?
“Você já ouviu falar em ex-viado? Encontramos muitos deles nas igrejas
evangélicas... aí é fácil entender que já resolveram seus problemas. Assumiram: não
mais o jogo homossexual e passaram a trilhar um caminho hétero. É uma opção que
fazem. E, além de decidirem seus caminhos, pois já não terão a sensação de
adultério, quando são homens casados, respirarão muito melhor, já que
inteligentemente escolherão o ar como gás respiratório e não a nuvem cinza-
pardacenta dos fumos”.
“Os que não conseguiram deixar de fumar sabem que estão no dilema do Hamlet:
Ser ou não ser. Eis a questão. Não sabem se preferem os braços da companheira
ou do garotão da esquina. Daí a pose, a falsa impressão de autoconfiança, e de
segurança que os fumantes tentam passar. Por dentro tremem e rangem os dentes”.
- Você tem alguma saída para estas pessoas?
“Bem, tenho sim. A mesma que eu disse para o paciente Cruzsouza. Tome
vergonha na cara. Ou assume ou para de fumar. Porque de outra forma me
encontrará pela frente. Eu também sou membro dos caçadores e a minha meta é a
solução final. Não pelo fato de serem ou não homossexuais, mas pela porcaria
daquela fumaça nojenta que me dá ânsia de vomito. Acautelem-se, dragões!”.

5) Naquele dia, Cruzsouza foi para casa e lá, somente lá, fumou quatro cigarros de
uma vez. Completamente deprimido, pois não sabia da gravidade psicológica do seu
caso. A ciência da mente estava muita adiantada. Descobria o desajuste sexual de
um indivíduo pela largura do seu cigarro.


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


Naquela noite, Cruzsouza pensou em todos os chamados grandes homens que
fumavam charutões; refletiu na complexidade dos casos dos cachimbeiros –
excetuando as angiospermas, - de boca torta. Seria o detetive Holmes um
problemático? E, Watson, que apito tocava, naquela situação? Seria, o médico,
analista do detetive inglês ou... Apenas a manutenção de uma chama platônica
naquelas vidas sem amor, correndo atrás de criminosos comuns e cães
madrugadores? Churchill, Fidel, Stalin, os capitães de indústria, seriam produtos
doentios oriundos da busca do poder, em detrimento do emocional?
Na manhã seguinte Cruzsouza tinha fumado para quarenta dias, então teve a sua
grande crise de dificuldade respiratória. Foi parar no hospital do bairro, já roxo,
locupletado de fumaça, atingindo, suponho, um orgasmo fumífero.
À tarde recebeu a visita da noiva. Muito chorosa. Abraçou-o.
- Mas, o que foi que aconteceu? – pergunta típica das pobres pessoas que, leigas
em questões médicas, se atemorizam antes a visão de um bisturi ou de uma roupa
de paciente hospitalar, ambos fedendo a formol.
- Querido, o que aconteceu com você? Esperei-o a noite toda. Meus pais saíram e
pensei que fossemos aproveitar a noite para que pudéssemos por pra fora todas as
nossas frustrações íntimas e, você ficou aqui, deitado, dormindo?
- Desculpe-me, Diocréia, mas, não foi minha a culpa. Saí muito deprimido da análise
e acabei tomando uma fumarada. Vim parar aqui para equilibrar com oxigênio. Já
não respirava mais.
- É claro que puseram a culpa no cigarro, - disse Diocréia.
- Foi o que me disseram... isso mesmo. Mas, o que mais me deprimiu foi a sentença
de morte que ouvi da boca do analista. Percebi que era um réprobo. Mesmo em
relação a você. Já nem sei se quando nos encontramos à noite toda a quinta-feira
enquanto seus pais se retiram para o cinema, se sou eu ou meu cigarro quem
“pratica as práticas” imundas que os íncubos e súcubos nos fazem cometer.
- Claro que é você, Cruzeta querido. Eu sei por causa do cheiro.
Diocréia sentou-se na cama e abraçou o noivo entristecido.
- Por que você..., – dizia ela, calmamente, como quem tenta seduzir uma pessoa, –
não se filia aos Adoradores do Tabaco? Lá você terá suporte psicológico e um grupo
que o defenderá contra os ataques dos caçadores de fumantes. Qualquer igreja é
corporativista.
- Não sei..., – Cruzsouza hesitava.
- Acho, até, que você deveria deixar de ir a essas análises. De nada adiantam, pois
se os analistas soubessem alguma coisa... (sorriu ingênua). Mas, nesse instante,
uns rapazes e moças adentraram violentamente o quarto de Cruzsouza.
- É aquele ali, chefe! – gritou uma jovem, apontando o enfermo.
- Muito bem... – foi o começo da ordem de um dos mais velhos. – Empunhem suas
máquinas e FUMO!
Uma rajada de gases alcançou o casal desalentado, jorro que saía dos ventiladores
que os jovens seguravam galhardamente; e, aos gritos de “Desapareçam
fumantes!”, ou então, “Chaminés desequilibradas, fora”, e ainda, “Dragões
devassos!”, os caçadores de fumantes desapareceram pelo corredor, sob o apoio do
diretor do hospital, o qual permitiu a ação somente após o pagamento de seus
honorários pelo “tratamento” do Cruzsouza.

6) Sai de uma, entra em outra.
A pneumonia o avassalou. Com suas defesas diminuídas, o anti-herói nosso, ia e
voltava dos hospitais. Cruzsouza antevia a morte. Por isso chamou seu tabelião


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


preferido e ditou, em papel adequado, o seu testamento que aqui transcrevemos: -
Deixo para Diocréia minhas piteiras de ouro maciço e a coleção Cinzeiros Roubados
dos Hotéis. Deixo vinte mil folhas de papel especial para a Fundação pelo Estar do
Fumante..., – mal sabia ele que naquela mesma semana uma guarnição de
caçadores tinha invadido a Fundação, depredando-a por completo. Tomaram do
presidente, enrolaram-no em folhas de papel bem grosso e, após formarem uma
fogueira com os quilos de rolo ali encontrados para se fazer pito, moquearam o
presidente, defumando junto as paredes do local destruído. No entanto, Cruzsouza
continuou com seu manifesto..., – Deixo as garrafinhas com fumaça expelida por
pessoas famosas, compradas na zona franca... para os meus amigos em
dificuldade... econômica, impossibilitados de conhecerem... pessoalmente... seus
ídolos. E, por fim... deixo todos os meus cigarros para as... gestantes que pretendem
fazer de... seus filhos... bons fumantes, o que compensará... a inferioridade mental
com... a qual... eles... fatalmente nascerão...
        E tombou para o lado.

7) No fim de semana sentiu dores no peito e foi passar por observação no hospital
do câncer onde se constatou anomalia pulmonar e pouco tempo de vida. À medida
que caminhava pela rua, vendo as pessoas caídas na calçada, relembrava
neuroticamente quando o leitor da radiografia fez cara de quem não gosta, ao notar
os problemas. O radiologista olhou para Cruzsouza, deu a volta à mesa e perguntou:
- É fumante?
- Sim, sou. Mea culpa, mea culpa, mea culpa – disse, batendo no peito magro.
O radiologista sentou-se para escrever a sentença, ou melhor, o laudo da futura
morte e falou:
- Bem feito palhaço! – e ainda riu.
Enquanto caminhava pela rua, Cruzsouza pensava sobre isso, mas via, como já foi
dito, muita gente deitada, sufocada, desmaiada: violetas e púrpuras faces voltadas
para o céu. Nisso... Nisso o cerco formou-se. Eram os caçadores de fumantes. Eles
não descansavam. Um deles, irônico, falou:
- Temos uma surpresinha pra você, dragão. – E, sorriu com a ponta dos lábios.
- Que tipo de surpresa? – perguntou Cruzsouza esperando pelo pior.
- Já que gosta tanto de fumaça, resolvemos colocá-lo em seu habitat, caro dragão.
- Não estou entendendo.
- Mas já vai entender.

A um certo e combinado sinal, todos puseram máscaras respiratórias e apertaram os
gatilhos de seus aparelhos fumigadores. Cruzsouza ficou envolto durante quinze
minutos, numa espessa nuvem de fumo. Conseguiu distinguir vários sabores e
texturas, adivinhou marcas, descobriu misturas interessantes, mas, o que parecia
prazer no inicio, foi se transformando em verdadeiro suplicio. A asfixia tomou conta
do seu ser.
- Não é de fumaça que vocês gostam? Então engulam tudo! – Gritavam atrás da
parede de gases. Tonto, muito mais que peru em véspera de natal, Cruzsouza
cambaleou, tropeçou, tombou.
Era mais um na calçada.
Os caçadores de fumantes estavam bem equipados e bastante decididos em
exterminar os fracassados engolidores de fumaça. Ao derrubarem Cruzsouza,
tomaram forma e cantaram o hino: “DURA LEX FUMUS FAGATUS EST”.
Constataram que faltava um soprano para manter o equilíbrio dos naipes.


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                                                                O HOMEM
                             QUE CAÇAVA KERTETSZIA
                                                               (Uma Novela Febril)


1)     Antes de que tudo houvesse acontecido e, sem que os familiares soubessem,
Sanvae deixou o emprego muito bem remunerado-mordomíaco-faraônico e partiu
para o Amazonas em busca das famosíssimas Kertetszias, – animais relativamente
raros, pequenos, mas, elegantes, – habitantes de altas copas das árvores pejadas
de chuvas, cujos paladares preferiam o suculento sangue de macaco. Isso, no
começo, quando os verões eram vermelhos e os invernos dormiam em forma de
azul. Antes de que toda a tragédia acontecesse.

2)     Sanvae era robusto e pesava em torno de noventa quilos bem
proporcionados. Era alto, coisa que se percebia claramente quando Sanvae se
punha em pé. Usava barba postiça quando deixou as mulheres e os filhos
pequenos, hipnotizado pelas imagens das Kertetszias, no entanto, nem bem
chegava ao Amazonas e já era dono de bonita sombra azulada em torno do queixo
oval e, uma outra, não tão bonita, que o acompanhava por toda parte, especialmente
nos dias de sol e, somente na rua. A partir daí, deixou de lado o disfarce e assumiu
a sua posição de exímio caçador de Kertetszias, se bem que fosse aquela a primeira
vez que Sanvae se enfronhava em mataria braba e se transformava em predador.


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


A história.
A fome de kertetszias apareceu-lhe aos onze anos de idade, quando seu pai, um
fabricante de botões, mostrara-lhe fotos do anofelínio. Dessa época para frente
esqueceu completamente o assunto. Um surto de amnésia galopante, por ocasião
dos vários casamentos, auxiliou na introspecção da idéia, enterrada que foi nos
recônditos insondáveis da cabeça de Sanvae. Só voltou à sua memória em relação
ao inseto kertetszia após certo sonho que teve com uma das suas sogras.
Hoje.
As famílias ficaram decepcionadas e muito choraram quando perceberam que
Sanvae partia, mas, Sanvae, empedernido como ele só, partiu num dia de chuva
grossa. O navio balançava e o almoço de Sanvae, a muito custo, se manteve no
estômago. Sua cabeça queimava de ansiedade e, por momentos viu-se em palcos
de conferências, adulado, coberto de medalhas pró-isso, pró-aquilo, recebendo
prêmios científicos.
Chegou ao Amazonas na quarta-feira.
Na Quinta de um amigo, velho conhecido, tomou vinho e mordeu carne de pirarucu,
em tempos de descanso. Esperou que a barba tomasse seu rosto completamente,
desejou feliz Páscoa para o amigo e, munido de arcabuz, embornal e sapiquás,
atolou suas botas de couro de jacaré-aligátor-crocodilo nas lamas da floresta
comedora de gente e outros bichos, na incessante busca de kertetszias.
Ia ele ladeado por cinco guias bem pagos que, infelizmente, perderam-se no meio
da jornada, levando os javalis.

3)     Sanvae percebeu que adentrava reinos de kertetszias quando viu os
macacos.
Eles desciam correndo o arvoredo, em algazarra perene, mas, o detalhe mais
emocionante, muito bem explicado pelos almanaques, era de que muito macaco
tremia incessantemente e, além disso, ficavam banhados de suor – pêlos
completamente molhados!
Sanvae ria de dobrar a barriga, pois á sua mente vinha lembranças do dia em que
esguichou água sobre uma de suas sogras (a adotiva) e ela, em desespero, sentou-
se no chão aos brados e berros. Riu, também, pois o passeio pela floresta já o
esgotava, levando a esperança de encontrar o inseto para bem longe. Mas, parou de
rir quando os macacos olharam para ele... rindo também – micaretas.
Sanvae montou barraca esperando a noite.
Os almanaques diziam que o anofelínio era notívago; mais ainda, explicavam os
técnicos, era necessário capturá-lo com todas as asas, pois, determinado estudioso
levantara a hipótese de que o inseto sofreria problemas de ordem psíquica caso
fosse colocado em ridículo, sem asas; assim, seu corpo, de verde com listas
douradas se transformaria em cinzento salpicado de cor de rosa. A tese do
estudioso defendia a opinião hipotética de que kertetszias se sentiriam, então,
vexadas e extremamente indóceis, necessitando elas de tratamento com Diazepan.

4)     A primeira técnica era baseada nos ensinos do sábio Barão de Itararé,
renomado bípede. A segunda era a própria idéia de Sanvae, por isso, não muito
boa: consistia em descer um prato de ouro no meio das folhagens e esperar que os
alados se sentassem na superfície fria, de modo que ficassem presos por causa de
uma possível interação eletrostática entre as patas e o ouro. Só que, ou isso não
dava resultado mesmo, ou as kertetszias já conheciam o truque, nem a mais infantil
delas ficou presa no prato de ouro e, a coisa teve que ser resolvida no tapa.


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


Sanvae enfrentou um milhão de seres voadores adentrando sua barraca, como uma
tempestade nasal. Reflexo esternutatório às avessas.
Sanvae ficou alucinado, com as riquezas pululantes por toda parte, parecendo que
se esquecia que na escuridão e em massa, muito inseto alienígena e covarde podia
se entranhar na multidão e fazer das suas. Portanto, em meio a picadas, sopapos,
garatujas de braços, pernilongos e pernicurtos de várias espécies, desmaiados,
fugitivos, tontos, ouviu-se gritos, zumbido de moscas que perderam o rumo... o que
sobrou? Sobrou, como saldo da batalha, uma kertetszia presa em saco plástico
(uma pata quebrada) e, uns quinhentos e cinqüenta pontos vermelhos só no rosto de
Sanvae, o caçador.
Ai é que o mal estava feito, definitivamente.

5)     Sanvae não se lembrava de nada mais terrível do que as febres que o
acossavam de tempos em tempos. Até o sangue se alterava, parecendo se
modificar em líquido movediço misturado às porcarias das mais variadas origens,
desde cocos de bactérias até protistas em decomposição. A pele amarela
combinava com o verde limão do pijama - pelo menos havia essa compensação –
mas... as febres pontuais, a tremedeira em terremoto, o suor copioso que enchia
bacias e mais bacias, tudo isso não constava dos planos de Sanvae. A kertetszia,
por sua vez, dormia tranqüilamente em seu saco plástico, tendo se restabelecido da
perna; as sogras riam a valer observando os dentes do genro comum a baterem.
Punham a mão na barriga e gargalhavam quase até desmaiarem, principalmente
quando viam Sanvae prostrado no fim dos acontecimentos.
As velhas desmontavam-se na hilariante desopilação figadal, quando o frio
desaparecia do caçador e uma febre torrencial o destruía durante horas seguidas.
Sanvae tomava forma de um barril esponjoso.

6)     Sanvae passou a sonhar que uma cobrinha em forma de anel rubídico
penetrava em suas células. As mulheres já tomavam o marido por louco completo.
No desjejum ele relatava tais onirismos ao mesmo tempo em que tocava com a
destra a face morena de uma e, com a sinistra, a boca de pêssego da outra. Do
sonho, as sogras riam e dançavam quadrilha, pensando na herança e no dinheiro
que ganhariam com a venda da kertetszia sobrevivente. E, enquanto isso, Sanvae
sonhava e, ele contava que via mais cobrinhas se multiplicando velozmente até
formarem uma flor caleidoscópica que de repente, explodia, despejando pequenos
ofídios para todos os lados. Aí vinham kertetszias que tomavam as cobrinhas pelo
bico (bico de inseto?) e, saíam em direção aos macacos displicentes que sempre
existem. Então, ele acordava, com os olhos esbugalhados. As sogras se debatiam
de tanta risada justamente por causa dos olhos medrosos e desesperados. As
mulheres se abraçavam e dominavam o pavor que sentiam, bem como a ansiedade.
As crianças jogavam bola com o vizinho.


7)     Do jeito que as coisas estavam não poderiam ficar piores, mas ficaram.
Era manhã de torpor e lassidão quando três mulheres montadas em fogosos ginetes
adentraram o quarto de Sanvae. Elas bateram as patas dos cavalos contra a parede
e pediram de volta a kertetszia, num idioma caprichoso. Sanvae escondeu-se atrás
das esposas, cheio de pavor. Nunca vira coisa igual, nem sentira tanto medo desde
que fora apanhado roubando jabuticaba no quintal da tia solteirona. As mulheres dos
cavalos, com a facilidade que a falta do seio direito dava, puxaram arco e flecha e


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


apontaram para o peito do caçador frustrado. Pediam, pela última vez, que lhes
devolvessem o acrídeo preso no plástico. Um cavalo cuspiu na cara do homem que
engatinhou para os baixios da cama, entre pó e chinelos esquecidos.
No entanto, nada de kertetszia aparecer.
As cavaleiras desceram dos potros coloridos e arrancaram o doente do esconderijo
e fizeram-no jurar que o pequeno anofelínio estava em correta situação de saúde,
bem estar alimentício, e, moral elevada; pediam, também, pressão arterial e variação
no peso corporal do inseto desde o início dos eventos.
Quando Sanvae sorriu concordando tiram-lhe um molar.
Sanvae benzeu-se quando as cavaleiras saíram – elas cantavam melodias
sincopadas que imitavam corridas de formigas. As esposas abraçaram-se e
maldisseram o dia em que se casaram com o poltrão caçador; já começavam a
sentir pena do inseto prisioneiro. As sogras resmungaram contra as cavaleiras,
tomadas de ciúmes, por duas razões: a primeira, menos importante, o fato de não
terem cavalos tão bonitos para pisotear o pobre Sanvae e, a segunda, talvez a mais
importante das razões, que era o sentimento de inferioridade. As selvagens eram
donas de um seio farto e interessante cada uma, enquanto as sogras não tinham
nem um para contar historia. Além disso, elas é que queriam desmoleculalizar o
genro. O doente, inútil e desacreditado Sanvae.

8)     Um dia, o paciente do Dr. Zaromeu ergueu-se decididamente. Mas, logo se
deitou porque foi acometido de vertigem e dores nos artelhos. Na segunda tentativa,
três semanas depois, percebeu que estava sozinho em casa e percebeu que teias
de aranha se formavam em torno de si. Apesar do mal-estar, pôs-se em pé e
telefonou para seu amigo o Dr. Zaromeu, tendo porém de desligar, uma vez que era
domingo e o doutor não atendia, mesmo que sua mãe precisasse transfundir
sangue. Sanvae tentou no dia seguinte. Contudo, ele se perdeu nas contas dos dias.
Resolveu telefonar naquele mesmo dia, mas, já era sexta-feira; nas sextas-feiras o
insigne Dr. Zaromeu ficava em estado de animação suspensa assistindo televisão,
ou dando aulas sobre Teoria do Comportamento, baseando-se na Constituição
Federal de dez anos atrás, matéria muito interessante para sua idosa esposa, tanto
que ela dormia rapidinho.
Sanvae estava num impasse. Sozinho, pois as esposas haviam fugido com três
maridos e doze filhos agregados, mais cinco sogras de várias nacionalidades, sendo
duas de estimação; tonto, abatido, ele calçou os chinelos de tecido multi/estranho,
rumou direto para o banheiro, onde com dedos ágeis apertou furiosamente, a bem
dizer, esmagou uma bisnaga de pasta de dentes sabor lagosta, e, pôs-se,
completamente fora de si, a escovar sua boca, ate que conseguiu que o branco
fosse realmente branco e seu hálito estivesse agradável. Trocou de roupa e saiu.

9)     Parado sobre a ponte, mirando as águas dos bebedouros e as correntes de
ferro que prendiam os cães, Sanvae analisou sua vida e resolveu se afundar em
pensamentos, palavras e obras. Afinal, era sua culpa, máxima culpa, por tudo aquilo
que acontecera. E, ainda teria de devolver a fabulosa Kertetszia tão bravamente
conseguida nas grotas da Amazônia!
Às suas costas sentiu passos de cavalos. Depois, a ponta de sua orelha foi
rabiscada por pontiaguda conformação em forma de dardo. Um sorriso idiota
desenhou-se-lhe no rosto, mas isso não era novidade; o ar de covardia absoluta
robusteceu-lhe a mímica facial. Foi obrigado a levar a mão ao bolso e retirar de lá o


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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


saco plástico onde uma kertetszia ressonava qual anjinho. Olhou com olhos de
lagarto para as cavaleiras que lhe devolveram com olhos de águia. Sanvae dobrou
os supercílios e ficou parecendo um sabujo que tivesse levado um belo pontapé. O
dardo escreveu-lhe na testa palavras só inteligíveis para cavaleiras, centauros,
faunos e uirapurus alfabetizados. Enquanto isso a kertetszia despertava, abrindo a
boca (boca de inseto?) num bocejo incorreto.
A um sinal de mão, dado por uma das cavaleiras que também se mostrava como
líder, Sanvae abriu o saco (o plástico) e o inseto voou para a atmosfera, fazendo
questão de mostrar que já estava sufocado, puxando, em imitação perfeita, o
colarinho do casaco. Essa atitude deixou as cavaleiras bastante irritadas, de modo
que esporearam os corcéis e estes acabaram cuspindo na cara de Sanvae, numa
falta de educação das maiores que já se viu. O pobre enfermo caçador baixou a
cabeça, tristonho, mas, aproveitando para notar se tinha alguém olhando;
repentinamente, sem que as amazonas percebessem o intento, pulou no ar, segurou
o inseto incauto que ria a valer e mergulhou com ele de cima da ponte.
As cavaleiras entreolharam-se espantadas.
Os cavalos ficaram de queixo caído e foi um custo levantá-los. Mas, de nada
adiantou todo o trabalho mandibular. Sanvae e a kertetszia debochada haviam
sumido nas profundezas das águas.

10)     Muito anos mais tarde soube-se que um circense fazia demonstração de um
certo animalejo considerado por todos como fenômeno voador. Tratava-se de um
homem barbudo dono de um pernilongo dançarino; fora tais boatos, nada mais
serviu para por em claro a existência da dupla. A não ser... a não ser um fato que
acabou citado nos jornais, sobre um anofelínio paranóico que assolava os casais
perdidos nos matos, nas moitas ou no escuros dos cinemas do interior, onde valia
tudo, inclusive assistir a filmes. Dizia o texto que de um circo sumira certo dia, o
pernilongo assaltante (com coleira e tudo) e, que a partir daquele momento uma
série de febres terçãs, quartãs e anãs, mais os estremecimentos, foram compilados.
Além disso, havia em hospital categorizado, uma guia de internação para o
tratamento de nervos em nome de Sanvae Kertetszia da Silva. O texto fora assinado
por um tal de Zaromeu que se dizia da estirpe de doutores da mente; soubesse
depois que não era mais do que um pobre sorveteiro especialista em distribuir
resfriados para todas as crianças do bairro. Sorveteiro e aposentado, jurava que
havia escrito para o jornal local sobre a tal história... que tinha ouvido falar não
sabia quando nem onde e, que realmente não se preocupava com a saúde dos
protagonistas da história, mesmo porque achava que não era historia e sim estória.
Vá saber!
Dizem que no fim ele teria dito, como já dizia seu José Coelho: - De qualquer forma,
fica o dito pelo não dito. Se não gostou, vá reclamar com o Benedito! – sendo, em
ato contínuo, encarcerado em célula privativa no hospital psiquiátrico, onde até hoje
caça pulgas domesticáveis, preparando-se para um espetáculo beneficente.




Coelho De Moraes                                                                  28
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO




                                O CAPETA ARREPENDIDO
                                                         (uma novela dos quintos)

1)     O Gênio do Mal, pensabundo, ensimesmado lia, voraz, alguns contos do
Machado de Assis, quando um de seus ajudantes adentrou na vetusta câmara
principesca, à direita do palácio de rocha vulcânica, como quem vem dos ínferos,
aos berros:
- Oh Senhor! Oh Senhor!
- Não é preciso gritar, palerma, não sou surdo. Esses cornos não são auriculares,
mula! O que quer?
- Mas, Senhor...
- E, não me chame desta maneira se não me confundem com... o outro.
- Como chamá-lo, então?
- Que tal... Dragão... Dragãozão... Que tal? – e girou a mão no ar, em pose, exibindo
certo panache, - e estalou os dedos.
- Não sei não..., - fez o outro, - Dragãozão...? Acho que pega mal.
- Então, tudo bem. Vire-se. Chega de papo! – o Gênio do Mal falou rispidamente –
Qual o problema, afinal? Abre esse focinho e despeja.
 - Avisaram da portaria que chegaram mais pessoas!
- Mais pessoas? Que jeito?
- Almas, quero dizer... alminhas...
O Gênio pulou no trono.
- Mais almas! Pombas! – ele estava, decididamente, enraivecido. – O que o Pedro
pretende? Entupir de rebotalho isso aqui? Não há mais controle sobre esta
gentama!?


Coelho De Moraes                                                                  29
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


- Pois é, caro mestre... do Mal.
- Puxa saco! Mestre do que?
- Do Mal, mestre... do Mal.
- Eu, heim?! Vai de retro Arrenegado! – falou bem alto o Gênio. Depois, dirigiu-se a
um telefone e se entendeu com a portaria do inferno.
- Alo! Aqui sou ele.
- Oi, ele. O que manda? – a vozinha através do fone perguntou.
- Seguinte: não deixa mais ninguém entrar.
- Não, mesmo?
- Não, mesmo! Manda tudo de volta para a Terra. É quase a mesma coisa. Tem
menos fogo que aqui, mas, é quase a mesma coisa.
- Por mim tudo bem, mas tem um Querubim aqui que não arreda pé enquanto não
depositar a encomenda no primeiro poço sulfuroso que aparecer.
        O Gênio tapou o fone com a mão e virou-se sorrindo para o ajudante:
- Esses Querubins nem sabem que o enxofre já acabou faz tempo. São
completamente desatualizados esses velhos mensageiros. Muito bem! – virou-se
para falar no comunicador – vou já para ai, tá bom? – e virando-se para o
Arrenegado: - Vou lá numa asa e volto na outra. Fica de olho nesses pecadores. Já
passaram do ponto e eu os prefiro mau-passado. Ajoelhou não rezou o pau comeu...

2)     Uma dezena de pessoas se deitava no salão de espera do inferno quando o
Gênio apareceu. Alguns se levantaram, mas, a maioria nem se deu ao trabalho.
Aliás, quando o Gênio apareceu começaram a vaiá-lo e jogar zombaria, coisa que o
desgostou deveras. Mesmo assim, aproximou-se do Homem de Asas.
- Queruba velho! Como vai? E o céu, gelado ainda?
- Diabolous! Tanto tempo não o vejo. Que história e essa de céu gelado? Anda
estudando os gregos?
- Ora, aqui um calor desgraçado, obviamente, pelo contraste, lá um frio do caramba,
não será assim?
- É que andamos passando por reformas, sabe? – e, o anjo sentou-se na poltrona de
vegetais secos. – Faz tempo que você não aparece por lá, estou certo? Não tem
saudades? Ou será que não resta uma certa... uma certa melancolia de fim de
tarde?
       O Gênio torceu o rosto e disse: - Não sei, estou um pouco desorientado
quanto a esse negócio de religiosidade e fé. Olha aí, eu entrei na sala e fui vaiado.
Esses caras pensam que são piores do que eu?
- São novatos. Pecadores recentes. Desinformados... apesar da rede mundial.
- Tudo, tudo bem! Eu compreendo, mas, o pior é que continuam a fazer das suas lá
dentro, com ou sem piscina de lava ardente. Ninguém sofre aqui, a não ser eu! Em
vez de penarem seus erros, não! cometem mais. – O Gênio bateu a mão no joelho:
– São insuportáveis. Se não fosse a minha responsabilidade perante o Universo, já
teria pedido demissão.
       Ficaram instantes em silêncio que foi quebrado pelo querubim.
- Lembra da revolução?
- Sempre. Como haveria de esquecer? Entrei pelo cano, – disse o Gênio.
- Penso sempre nela. Atualmente estamos chegando no ponto que você queria
alcançar já naquela época. Realmente, você estava muitos anos à frente, meu velho.
Tinha que botar um freio nisso, afinal as instituições...
- Que instituições, velho...
- Caramba... quase que o mundo fica de cabeça pro ar...


Coelho De Moraes                                                                  30
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


- Eu e o Chefe. Mas, o que faz aqui um anjo de primeiro escalão?
- Foi o que eu disse, estamos passando por reformas. Agora resolveram que somos
todos iguais, que esse negócio de hierarquia fica por conta da escolástica e, para
dar o exemplo, tenho de fazer um trabalho humilde... Coube a mim entregar essas...
porcarias pecadoras.
- O Chefe disse o que?
- Ele falou que deixamos correr frouxo... a criatura inventou a civilização e agora que
resolvêssemos o problema... Ele não tinha inventado aquilo... e foi saiu a cuidar de
suas orquídeas...
- Reformas, reformas, mas os pecados continuam os mesmos. No entanto... – o
Gênio dizia bem alto... – Não há vagas! Estamos lotados, Queruba velho.
- E, o que e que eu faço com esse lixo? – perguntou o anjo, mantendo a calma
notória de quem pouco se importa com o negócio.
- Leva de volta para a Terra. Joga num daqueles aterros sanitários...
- Nem toda cidade tem...
- Joga no rio... Ninguém vai perceber. Aquilo esta pior do que aqui. Além do mais, - o
Gênio completou, coçando a barbichela, – eu também preciso de sossego.
Reciclagem... reciclagem.,..
- Devo entender que não há negociação?!
- Não... não há... Você sabe que não há Queruba. Olha, fala para o Chefe mandar
doutrinadores de várias igrejas para desafogar um pouco o local! Liberei a
alfândega. Esse pessoal vai ficar assim até quando? Pra sempre, por acaso...?
- Segundo as escrituras...
- Eternamente, tá, eu sei, mas, reforme isso também.
        O Querubim bateu nas costas do Gênio do Mal, levantou o polegar com a
intenção de se despedir, mais entediado do que insatisfeito.
- Voltando, pessoal. Não é aqui que ficam.
        Muita gente começou a se lamuriar e pecadores desavisados não queriam
sair daquele antro, mas, alguns anjos auxiliares passaram a empurrar os pecadores
para fora do inferno. O Gênio sorria debochando, braços cruzados; quando o último
se retirou ele armou uma banana com os braços e pensou: - Vão amolar o boi-tatá!

3)     Um dia, porém, o Gênio reuniu todo o plantel demoníaco e passou a discursar
dessa maneira:
- Senhores. A partir de hoje devo declinar da minha posição de Maior entre os
Maléficos, se bem que eu pessoalmente odeie essa denominação, afinal, não fui eu
quem mandou cortar as cabeças dos filisteus, fossem crianças, mulheres ou
velhos... (baixou a cabeça)... tergiverso... bem... (elevando a cabeça) A ordem veio
de cima... devo deixar isso bem claro. – e o Gênio estava sob aplausos e assobios
de apoio. - Deixo o meu cargo, enfim, abdico, em nome de Exu, uma vez que ele
está muito bem cotado nas bases populares e merece gozar desses direitos e
esquerdos do poder.
       Exu recebeu acenos e polegares erguidos.
- Espero que mantenham a obediência a ele e mantenham aquela ordem que
sempre nos honrou.
- Mas, o que aconteceu, Gênio do Mal? Porque a mudança de idéia?
       O Gênio olhou para o chão, pigarreou, passou levemente a mão na testa,
como quem tira gotículas de suor e continuou: - Devo esclarecer que estou em crise
ideológica. A minha fé esta abalada.



Coelho De Moraes                                                                    31
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


       Os Satananases (demônios apreciadores de abacaxi), as Sapatãs (demônios
fêmeas cujo pecado era o lesbianismo explícito), Belzebus (os capetas bois-da-cara-
preta) e Anhangás (uns bichos perdidos dos índios), fizeram um Ó coletivo, com
suas ovaladas bocas, que mais pareciam cantantes em finales de peças corais a
capela. Estavam desolados. O Gênio das Trevas levantou os braços, fez um corte e
pediu calma.
- Acontece que não acredito mais em deus. Não acredito no Chefe!
       Piorou. Todos estavam solidários com o conflito do líder; tentavam,
inutilmente, dar conselhos e caminhos para que o Gênio se posicionasse, mas,
falavam todos ao mesmo tempo, uma algaravia, e ninguém se entendia; a caverna
estava cheia e até terráqueos palpiteiros queriam dar opiniões tentando entender a
burocracia do tal processo da abdicação. O Gênio, percebendo a presença dos
pecadores gritou:
- Mas, não pensem vocês, – e apontava para os pecadores que retrocediam com as
chamas dos olhos do Gênio, – que as coisas ficarão moles por aqui. Exu será
devidamente assessorado por Ariel, o espírito do Ar e, ai de vocês desobedecerem
as recomendações dos dois. Eles soltam o Bicho-Preto encima de vocês, porcos
azedos!
- Não adianta Gênio... – o Arrenegado puxava-o pelo rabo, – fiquei sabendo que eles
adoram o Bicho-Preto... principalmente quando o Bicho-Preto morde a bunda deles.
       Pausa imensa no recinto baforento.
- É, amigos. O inferno já não é mais como antes. Ainda bem! – o Gênio ainda falou,
– o problema é que em breve perderemos nossas conquistas. Eu queria transformar
o homem em deus, no entanto, ele prefere ser porco. Por isso, me vou.
- Para onde? – gritaram todos, – Para onde, Gênio?
- Para a Terra! – e sumiu na luz.

4)     O padre Benedes acordara cedo. Era impossível dormir até tarde na
cidadezinha de Muganga, a Nordeste do Estado, por dois motivos: o primeiro: tinha
uma missa para rezar, e segundo: tinha de tratar de política todo dia. Eram as coisas
que mais lhe interessavam. Mas não mais do que uma terceira coisa. Espreguiçou-
se na cama e seu braço bateu nos ombros de sua secretária, a qual, por questão de
trabalho, fizera serão naquela noite. Ela imediatamente pediu benção, ajoelhou e
padre Benedes deu-lhe algo para chupar, e, como estava teso, aspergiu-a com
sêmen santo. Não se sabe até hoje se foi epifania ou orgasmo.
       Padre Benedes se levantou, lavou o rosto com sabonete dos mais cheirosos,
aroma de Mel glicerinado, pôs os óculos, lançou uma pasta oleosa sobre os cabelos
pretos nº 32, tomou café puro e saiu para sacristia. Tomou da estola adequada e
rumou para o confessionário, ainda guardando lembranças da noite exemplar que a
secretária trouxe para ele. A moça ensinara-lhe truques desconhecidos, como por
exemplo, aquele do número.
       Ao sentar-se no banco dos confessores, ainda cantarolando um salmo, após
fechar o cortinado, sentiu um hálito quente, através da janelinha gradeada. Achou
estranho, mas mesmo assim benzeu-se e benzeu o penitente através da janela e
perguntou:
- Qual o seu problema, meu filho?
       Após uma breve pausa, uma voz resolveu se fazer perceber, mostrando uma
cor de tenor, contrariamente ao que dizem as lendas faustianas.
- Padre, eu pequei.



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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


       Benedes, no reflexo, quase que disse, “eu também e daí?”, mas se conteve.
Tinha um papel a desempenhar, papel decorado arduamente em anos de seminário.
- De que forma o filho tem pecado? – o padre perguntou, ajustando os botões.
- De muitas formas... eu... por exemplo, acho que governo metade do mundo... mas,
a principal delas, que eu acho, é a ocultação de criminosos.
- O filho precisa entregar os criminosos para a justiça. – Benedes aconselhou
piamente sem atinar muito com a coisa.
- Qual justiça? – apesar de tudo a dúvida continuava.
- A justiça dos homens... é claro.
- E na justiça de Deus, não vai nada?
- Deus já terá julgado tais criminosos, mas mesmo assim eles precisam prestar
contas à comunidade onde vivem. Precisam ir a julgamento.
- Mas, isso já aconteceu. Foram punidos, foram condenados e coube a mim, sob
ordens de Deus, ocultar pra sempre tais criminosos!
       O padre Benedes pensou: “De todos... esse é o mais louco”!
- Não estou entendendo.
- Mas vai entender já já!
       Durante alguns segundos o padre Benedes ficou entre sair do confessionário
ou esperar, mas, repentinamente a cortina abriu e uma alegoria vermelha começou
a saltar em sua frente, abrindo um tridente e chacoalhando o rabo, rindo de gaiato.
Benedes, estupefato, levantou-se, cenho franzido.
-E, agora, entendeu?
- Ainda não. Quem é você? Ainda não estamos em fevereiro.
       O Gênio parou, desalentado. Baixou o tridente. Comentou consigo mesmo: -
Sem moral! Completamente desmoralizado! E, ainda, com essa roupa de palhaço
medieval!
- Quem é o senhor, se me pode dizer? – pediu Benedes, saindo do confessionário e
fechando o breviário com certo barulho brusco.
- Eu sou... – estufou o peito para dizer pomposamente – Lúcifer!
       O padre Benedes olhou lentamente, de cabo a rabo, para assim dizer,
aprumou os óculos, passou as mãos pelos cabelos pintados, coçou a ilharga e
começou a rir, desbragadamente, às bandeiras soltas, às escâncaras.
- Lúcifer! Rá, rá, rá, rá, rá Lúcifer? Essa foi muito boa, conta outra! Que coisa de
louco, mesmo; louco, louco! – De repente ficou sério. – Quer brincar comigo, seu
palhaço? Pensa que tenho tempo pra perder?
       Mas, o Gênio não se fez de rogado, pegou a deixa e não aceitou a
reprimenda.
- Ah! Então ficou nervozinho, heim? Vai mesmo me esnobar, padreco? pois fique
sabendo que Tonica acaba de se levantar, está se lavando, limpando o que ficou
preso nos pelos...
       O padre ficou lívido. Perguntou:
- Como é que você sabe?
- Já falei o meu nome. Mas você custa a acreditar... ainda... posso garantir que o
seu pedido de empréstimo ao governo não passa na câmara. Será rejeitado, pois
descobriram que o seu interesse é aliviar os cofres públicos de recheio, não é? Além
do que a cidade ficaria com uma dívida até o ano 2010.
       O Padre Benedes retrocedeu um passo.
- Você deve ser agente dos fiscais!
- Não, meu inimigo, não! Sou o anjo das trevas! – e sua voz tremeu.



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HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


        Imediatamente o céu se fez negro, vestindo túnica de ventos e nuvens
cinzentas, lançando coriscos prateados por todos os lados. A chuva desabou
soturna sobre a igreja. Somente sobre a Igreja. O pároco não conseguiu fechar a
boca e benzeu-se.
- Não acredito em você! – Benedes gritou.
- Mas, eu acredito em você e sei que o inferno está lotado, por causa da existência
de pessoas do seu tipo – e, o sol voltou escandaloso, ardente e súbito. O Gênio
coçou a barbicha. O rabo, com um volteio se aproximou do padre, que retrocedeu
mais um passo, retirando o crucifixo e passando a rezar.
- O que você deseja... Anjo decaído?
- Nada. Apenas vim para me confessar, mas, parece que são poucos os que levam
suas funções a sério neste planeta. – e, a voz do Gênio pareceu a dos narradores
dos antigos filmes noir, meio anasalada e veludosa. - Os terrenos merecem!
Mostrei-lhes o fruto e me chamaram de Serpente Maldita. Quis esclarecê-los e me
prenderam na pedra para que Abutre comesse minhas entranhas, eternamente.
Sabia que o enxofre acabou há muito tempo? Desde que Sodoma e Gomorra foram
destruídas por aquelas bombas atômicas gastaram todo meu estoque.
        Benedes já estava escorado entre a parede e a porta da sacristia perto do
altar.
- E, estou aqui, perambulando pela terra, tentando encontrar um motivo... um único
motivo que explique porque eu sou tão amaldiçoado o tempo todo, sendo que nada
fiz. Nunca matei ninguém. O primeiro assassino foi Caim. Eu apenas tinha dado um
fruto a dois pelados que encontrei no caminho. Falaram que se eles comessem do
tal fruto morreriam e, não morreram coisa nenhuma... por aí se vê que o mentiroso
não sou eu, no entanto fui chamado de Pai da Mentira. E aí! Como se explica isso?
- A culpa não é minha, Bruxo do Inferno.
- É sim... também... pois você propaga essa informação por todo canto. Ainda por
cima, na escondida, não cumpre o que prega, quer dizer, é um hipócrita! E, eu... – o
Gênio abaixara-se para pegar o tridente que estava no chão, – ... sou mandado
para as profundezas da terra, tomar desoladas ondas de calor e alojar bandos
irremediáveis de pecadores. – Virou-se para Benedes: – Afinal, você absolveu ou
não, aquela cambada?
- Alguns têm pecado mortal, seu pai do Mal.
- Detalhes Burocráticos. O Chefe está fazendo reformas, você sabia?
- Que Chefe?
- O nosso Chefe, Padre Benedes Pará Brasília Ruas; o nosso Chefe padreco!
        Nisso, o Gênio se espreguiçou e pediu água. Estava com muita sede, uma
vez que falara demais. Concluiu que ia zanzar pela cidade para ver se encontrava
subsídio para a sua fé combalida, aproveitando para tirar a ridícula roupa. Devolveu
o copo e partiu.

5)     Era bem tarde na tarde e o Gênio caminhava absorto e sorumbático, olhando
para uma ponte sobre o pequeno rio que cortava a cidade, chamado Ribeirão da
Enxente. Parou por ali e se pôs a jogar pedregulho sobre a água. Às suas costas, o
sol descia para a noite e ela, a noite, veio se aproximando cautelosa, mas, bem
escura. Não havia estrelas, somente névoas, nem lua, tão pouco. Breu solene
acampou sobre a cidade. O Gênio permanecia sobre a ponte e muitas vezes um
transeunte aconselhou-o a se retirar dali, pois a noite era de ninfas e duendes. O
gênio riu, mas, fingiu-se de assustado.
       Mais tarde, um velho se aproximou.


Coelho De Moraes                                                                 34
HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO


        Longas barbas, chapelão, cajado e voz gutural. Aproximou-se; falava sem
parar, olhos assustados, e apontava o dedo para o Gênio das trevas:
- Eu o conheço muito bem.
        O reconhecido punha as mãos na cintura, olhando de lado.“Epa!”, pensou “
Não me deixam em paz!”
- Eu o conheço muito bem, você é o beiçudo... – instantaneamente o Gênio tomou
forma de um macaco que mostra os lábios com acinte, – você é o bicho, o bode-
preto... – e, novamente a transmutação em bode, mágica rápida e certeira, no
entanto o velho continuou: - O Bute, o Cafuzo, o Caneco, o Caneta...
- Eh! Péra lá. Ta legal que inventem um monte de apelidos, mas, Caneco... Caneta...
O que mais?
- Canheta!
- Essa é boa canheta... nunca tinha ouvido... Qual é?
- Você é aquele que destrói as famílias, os casamentos, os amores. Você é aquele
que acaba com a vida das pessoas... o Esquerdo, o Cão...
 - Acho que o senhor me confundiu com algum bandido por aí...
- Não, não confundi coisa alguma. Você é o Canhim, o Diacho, o Futrico, o Grão
tinhoso...
- Tai! Grão-Tinhoso gostei: Tem o seu valor, a sua nobreza! Mas, e você é quem?
        O outro começou a retirar a fantasia.
- Sou o Moleque de Surrão!
- Primo do Pererê.
- Exato! Às suas ordens. – Abraçaram-se. – Mas, me diga, senhor... O que é que o
Gênio faz por aqui?
- Peregrinação. Tento encontrar o caminho da nova costela de Adão. Abdiquei o
meu trono sub-terráqueo e me pus a procurar uma nova ideologia.
- Sempre soube que você era revolução pura, desde o começo dos tempos. Pau
puro... lenha na fogueira...
- Como... você nunca foi lá para baixo?
- Nunca... não é meu nível... não tenho permissão... Eu perambulo nesse nível de
Terra mesmo... Depois, fiquei sabendo que tinha ganhado um cargo no Hades.
Procurador Infernal e os cambáu, ou coisa que o valha. Eu e minha turma tiramos
você da nossa idéia, pois pensávamos que tinha traído a causa. Aburguesou,
pensamos...
- Nunca traí, na verdade. Mas, que eu me acomodei, lá isso também é verdade. – O
Gênio coçou a cabeça. Convidou o outro para andarem pelas ruas.
        Tomaram a direção do cinema, perto da praça.
– Estou disposto a corromper todo mundo novamente. Dar maçã para todo mundo,
pelado ou não, e ver até que ponto, conhecendo as informações que temos, até que
ponto continuam viver como porcos.
- Isso tá difícil, Gênio, muito difícil. Vai por mim.
- Quero voltar pra ativa.
- Conte conosco.
- Obrigado. Mas, acredito que tenhamos de mudar a imagem. Assumir,
definitivamente a nossa posição de iluminados. Ser Lúcifer e ser o Guardião da Luz.
Uma volta às origens... Não é à toa que o inferno queima em luz...
- A luz da inteligência e do conhecimento... – o outro completou.
- Você quer coisa pior do que ser chamado de Dialho, Mafarrico, Rabudo, ou
mesmo, Pedro-Botelho? Baixo nível.



Coelho De Moraes                                                                35
HISTORIAS DA ARCA DO VELHO
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HISTORIAS DA ARCA DO VELHO

  • 1.
  • 2. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Direitos de Cópia para Cecília Bacci & Guilherme Giordano ceciliabaccibscm@yahoo.com.br menuraiz@hotmail.com editora ALTERNATIVAMENTE produtoresindependentes@yahoo.com.br Coleção BROCHURA / PDF / ESPIRAL download exclusivo em PÁGINA DE IDÉIAS www.paginadeideias.com.br Capa COELHO DE MORAES edição: 8 mil / distribuídos via mail coelhodemoraes@terra.com.br Cidade de Mococa São Paulo Março / 2010 Coelho De Moraes 2
  • 3. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Para José Coelho De Moraes meu pai Coelho De Moraes 3
  • 4. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Palavra primeira As HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO são novelas confusas e defasadas na cronologia e na lógica, muitas vezes. Tentam um ar de Contos da Carochinha para adultos e se impressionam com as arcas de memórias que são as lembranças de nossos velhos familiares – nesse caso, meu pai de 90 e tantos anos de idade. A vida dele confluída numa memória única que quer ou sair ao mesmo tempo ou desaparecer em fatos e acontecimentos únicos. Muitos dos contos surgiram sobre reciclagem de peças e/ou contados tradicionais; outros foram de invencionice pura. Outros vieram do que meu pai falava lá no entendimento dele como bom memorialista e, ao seguir dos anos, as repetidas histórias, lembranças bagunçadas por ação da Alzheimer ou velhice pura (nem sei se os médicos sabem realmente do que se trata). O fato é que o pai continuou a estimular a memória mesmo depois que a cronologia lhe fugiu; as regras da civilização desapareceram sob um manto de esquecimento e de que os médicos, – ou seus medicamentos, - atuaram sobre ele. Vai saber... Tudo tem utilidade nessa co-autoria. A parte do leitor é o prazer de ler e corrigir. Sim. Trata-se da tal da interatividade. Corrijam os erros, enviem a errata, hifenizem, acentuem ou não... enfim, interajam. ... Assim, surgem as novelas retiradas da ARCA DO VELHO. Coelho De Moraes 4
  • 5. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO RELATOS DE MATRIMONIO E PATRIMONIO (uma novela indomável) 1) Era uma vez um mercador bastante pobre que tinha o dom de fazer maus negócios por vários motivos seguidos e inapropriados. Um deles era a honestidade, pois é sabido que uma pessoa para atingir os píncaros da riqueza tem que, necessariamente, roubar. Não há rico que não tenha roubado, dizia o sábio Aricanduva de Freitas, enquanto bebia gole sobre gole de chá mate com goiabada e, completava cuspinhando no chão do bar: - Se pensa que não roubou ou está melindrado, basta ver o lucro que obteve perto da inflação e responda com cuidado de gente consciente, se não aproveitou que a inflação minava os bolsos (ele diz “os borso”) enquanto o mercador aumentava os preços das coisas. E, Aricanduva ainda dava exemplos de especulação, que no meio mercantil era conhecida como “negócios” e era coisa certa e aceita por todos. Mas, dizia eu, o mercador da historia era pobre e amicíssimo do tal Aricanduva, seu conselheiro em assuntos de moral comerciaria, de modo a levar o amigo mercador à bancarrota em pouquíssimo tempo, o que deixou o mesmo mercador bastante feliz, uma vez que não roubara um tiquinho que fosse, apesar de sofrer constantes atentados dos outros mercadores e do próprio governo do seu país – aliás, principal condutor dos negócios desonestos e dos ricos empresários que o apoiavam, os quais também representavam o papel de políticos, que também defendiam Coelho De Moraes 5
  • 6. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO interesses particulares, que também enganavam a população besta com chavões e palavreados mentirosos e viviam impunes, com garbo e chapa branca nos automóveis. Tinha, o mercador honesto, duas filhas: Canarita e Chiamba (lê-se Quiamba, por favor), obviamente, diferentes uma da outra, pois se assim não fosse as duas se chamariam Canarita, ou quem sabe (?), Chiamba, sendo que as duas seriam uma só, o que a Física não permite, já que não ocupavam o mesmo lugar no mesmo espaço ao mesmo tempo. 2) Chiamba era bonita, inteligente, prendada, obediente, só falava palavrão escondida no quarto, mesmo assim, com a cabeça enfiada num saco, com vergonha de si mesma, por descer tanto na escala da civilização e parecer com as mulheres chulas e inescrupulosas do burgo. Por outro lado, Canarita, que também era bonita, tinha certas prioridades: quando queria ficava feia, só de brincadeira e, isso acontecia muitas vezes, pois tinha um mau gênio – não o da garrafa, mas, o da personalidade individual, – repetidas faltas de educação que muitos relegaram a uma falta de memória e, era muito desobediente, aproveitando o ensejo para xingar todo mundo e contar as mais cabeludas das piadas de salão de prostíbulo, de tal forma que nunca tinha a amizade de ninguém, exceto a de um papagaio que adorava suas piadas e as repetia fora de ordem. Por isso, Chiamba possuía inúmeros admiradores; tarados todos para se casarem com ela, levarem-na para casa, dormirem com ela, fazerem filhos nela, fazerem com que ela limpasse suas casas, suas roupas, limpassem o chão, desse de comer para os inúmeros filhos; que ela ainda tivesse a honra de sentir o cheiro azedo da cerveja e do cigarro no mais afundado de suas camas de crina de cavalo, os quais cavalos, mesmo não tendo entrado diretamente para a história, sairam perdendo, pois ficaram sem as crinas. Rá, rá, rá ... Mas, a pobre besta do pai, seguindo as normas da sociedade, só consentiria que Chiamba se casasse após o casamento da mais velha, que era Canarita que, diga- se de passagem, nem pensava em tamanho disparate. 3) Havia três sujeitos que estavam afinzões (se o distinto leitor me permite a invencionice) de Chiamba e ficaram paus–da-vida quando souberam da arcaica lei; um absurdo que enfrentava a modernidade de Canarita e, enquanto o pobre mercador se transformava em pobretão, os três possíveis noivos articulavam mumunhas e traquinagens para, um dia, surrupiar Chiamba e casarem com ela, uma vez que era muito difícil encontrar empregada igual na praça. O mais esperto era um tal Luzivaldo; um sujeito magro que quando tinha quinze anos era muito mais baixo do que quando tinha vinte e um, o que lhe valeu a alcunha de Lulu – Rabicho, já que ele andava atrás das saias de mulheres e padres, sem deixar nada no olvido. Lulu–Rabicho, fazendo-se de professor de línguas, – a dele não parava dentro da boca, - foi levado à casa do pobretão mercador, que não tendo com o que pagar, dava-lhe quilos de batata e peixe salgado, enquanto o professor ensinava as funções da língua para as moças. Havia um segundo, chamado Crebio, que se oferecia como jardineiro, trabalhando gratuitamente; o intuito era o de se aproximar da bela Chiamba, levando-lhe flores e poupadas de terra cobertas de estrume de boi com que cuidava das plantas. Coelho De Moraes 6
  • 7. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO O terceiro era Mortencio, professor de música que se propôs a transformar as donzelas (assim acreditavam), em primas–donas, o que seria muito interessante se as duas irmãs fossem as primeiras, caso a Física não aparecesse novamente para impedir que o absurdo se fizesse presente. Este Mortencio era o mais apaixonado. Várias e várias vezes eram vistos fazendo serenata sob a janela das garotas e não poucas vezes tomaram banhos de urina que o pobretão mercador (já então em campos de pauperismo desenfreado), os presenteava, já nos confins da madrugada, tratando-se então de uma urina muito velha. Não por cantarem para as filhas, mas, por não permitirem que ele dormisse, esquecendo-se das dividas que se avolumavam. Chiamba não tinha preferência. Qualquer um serviria, o que nos dá uma idéia da mentalidade da menina. A primeira impressão é a de uma garota fútil que só quer se casar, ter filhos, engordar e ver televisão se queixando das varizes, depositando toda a culpa nos hormônios. Saberia ela que a mutação em monstro – fenômeno que ocorre com a maioria das mulheres com o passar do tempo, se dá por causa do relaxamento e, não por uma conseqüência natural do envelhecimento? Canarita a aconselha a dormir com os três, não ao mesmo tempo, mas, se possível na mesma noite, de modo a ter uma maneira de se decidir. Chiamba corre para o quarto, enfia o saco na cabeça e xinga a irmã. 4) Então, chega ao burgo certo Perúquio, andarilho e vendedor de elásticos, presilhas, alfinetes, lixas para calo, xampus, fivelas, pedra-pome, não sendo careca nem tendo parentesco com o legendário Pinóquio. Perúquio era amigo de Mortencio, tendo já cantado juntos na grande cidade, fazendo a dupla “Saltimbancos das Estrelas”, sempre vestidos de jardineira e chapéu de três bicos. Perúquio queria encontrar uma moça rica para se casar, por isso, Mortencio, mancomunado com Crebio e Luzivaldo, tentavam fazer com que o viajante e caixeiro, se decidisse a casar com a vulgar Canarita, sem que ele desse conta de que ela era uma quase mendiga. - Vocês não escutaram direito. Quero mulher rica, meus chapas! - Você é que é cego meu chapa, – Mortencio completava o dialogo edificante. – Já a viu de costa? - Realmente, é uma coisa que não me interessa. - Ô! – Gritaram os três possíveis noivos – Nem parece o velho Perúquio. Não se interessa por mulher, chapa? - Vocês me entenderam, – afirmou categórico. - Vamos lá, – falavam ao mesmo tempo os três novos–patetas. - Conversemos com o pai mercador A palavra soou bem aos ouvidos de Perúquio e uma bem delineada sobrancelha se ergueu. - Pai... Mercador? - Exatamente, - teriam dito os três, caso não baixassem e levantassem a cabeça inúmeras vezes, munida bocas de sorriso abobalhado e olhar de tatu com doença de Chagas. Perúquio, então, concluiu, levantado o dedo: - Precisamos conhecer tal donzela. Os três riram às costas do outro, o contentão. Coelho De Moraes 7
  • 8. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO 5) Combinaram uma visita de Perúquio ao velho quase indigente mercador que poria a sua melhor roupa; brindaria com uma cusparada os sapatos e esperaria no alpendre. Perúquio apareceria, sobraçando fitas, dedais, grampos e placas de gumex, doando tudo como presente para a possível noiva. Os possíveis noivos de Chiamba estariam sob a janela, enquanto ela ouviria as melodias que lhe cantavam, piscando os olhos para todos ao mesmo tempo, e sentindo úmidas as partes mucosas muito bem enterradas nas roupas de mulher pudica. Canarita, por sua vez, não recebera bem o possível noivo e muitas vezes deixou, segundo ela, sem querer, que um vaso caísse sobre os pés andarilhos do famigerado Perúquio, o jovem que o pai mercador e pobretão perceberia ser um exemplar espécime que tomaria conta da moça, já que ele, com toda a devoção paterna não agüentava mais; pretendia vendê-la ao primeiro circo que aparecesse no burgo. Na falta do circo, o caixeiro – viajante. Bom... tudo isso aconteceu assim mesmo. Perúquio adivinhou no velho um usurário, sovina e malandrão que guardava tudo e não gastava nunca nada, deixando a família a passar fome, se bem que as formas bojudas e protuberantes de Canarita desmentiam a inanição. E, de olho nos almofadados da moça, na bolsa alhures escondida, resolveu que se casaria na semana entrante, mesmo Canarita não querendo, afinal, o que era ela se não uma mulher... ou seja, nada; mulher não dá palpites. Só pensa que dá..., pensou Perúquio, cofiando o bigode basto. Os amigos exultaram. Mortencio, Crebio e Luzivaldo pularam de alegria e cantaram “Ultima Canção” para Chiamba, enquanto a noite chegava e o sereno da madrugada descia devagar. 6) Todo mundo foi convidado para o casamento, e, mesmo que não fossem, pelo menos os rapazes apareceriam para ver qual o trouxa que levaria para casa a vassourinha da Canarita. Na festa encontramos de tudo. Toda a fauna de uma sociedade bem instituída: as galinhas das senhoras que ditam a moral mutável de acordo com o mancebo que lhes aparecessem entre as cochas. Os advogados e juízes marmotas que vomitavam leis difíceis de cumprir, arrotando poemas para todos os lados. Os ratazanas industriais e empresários que consumiam a vida de seus operários dando- lhe latas e geléias como bônus. Os abutres médicos donos de planos de saúde, que adoravam entranhas, que tomavam bebidinhas com papagaios, araras, periquitos, psitacídeos sociais em geral. Os loroteiros com PhD que se julgavam professores e ensinavam modos e maneiras de bem copiar o raciocínio alheio. Enfim, uma cambada de bichos profissionais que valorizavam a festa com suas opiniões lidas em revistas ou repetidas de livros lidos como quem vai ao banheiro depositar sub- produto no vaso privado de belo branco porcelânico. No entanto, Canarita apareceu toda desmazelada, falando enrolado como quem bebeu. A verdade era que o cachimbo atrapalhava a parlatória; cabelos desajeitados, roupas rotas e rosto pintado de qualquer jeito. Perúquio ficava louco de vida e falou que aquilo é um ultraje. - Isto é um ultraje! - E, você queria o que? Os três neo-patetas me atacaram lá no quarto enquanto eu me vestia! – Disse ela. - Que patetas? Coelho De Moraes 8
  • 9. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO - Os possíveis noivos de minha irmãzinha, que neste momento esta com a cabeça dentro do saco. - E, por que você não gritou, sua megera? - Porque eles ainda não tinham terminado, meu caro. Você acha que eu vou perder a chance das penetrações e rosnados, a troco de nada? Perúquio estrilou: - Como, a troco de nada? Por acaso eu sou nada? E, a resposta veio rápida: - Isso veremos após o casamento. O pai pobretão–miserável estava perplexo com o desenrolar dos acontecimentos, mas feliz, pois aquilo não era coisa que desse prejuízo. A festa já era paga pela vizinhança que daria tudo para ver o casamento da reles Canarita, abandalhada dos cinco costados. E, gostaram, pois o espetáculo estava dos bons. Nesse momento desciam as escadas os três-neopatetas (possíveis noivos), dizendo que não queriam mais o casamento com a menina Chiamba, uma vez que ela não retirava, de jeito nenhum, o saco da cabeça, limitando-se a dizer palavrões de todos os tipos e variedades. Contudo, o pai paupérrimo explicou, e fez questão, que teriam que se casar com a mais moça, já que ele, – pai obstinado, - agüentou noites e noites de uma cantoria chata pra cachorro; não ia, por mais nem por menos, permitir que a pequena filha Chiamba também ficasse frustrada por ouvir todas aquelas baboseiras em forma musical e agora a espiar navios saírem e entrarem na baía. Os três amigos, intimidados pelos vizinhos, tiraram par ou impar e a vitória acabou recaindo sobre Luzivaldo que começou, imediatamente, a chorar. Perúquio, que já chorava a um tempo, consolou o amigo. Caíram em uma arapuca e não havai maneira de escapar. Todos da cidade foram testemunhas e, o pior, testemunhas idôneas, pelo menos, lá entre eles. Crebio e Mortencio sairam de fininho, pela janela, levando alfenins, biscoitinhos de gengibre, pedaços de bolo Xanxerê, pecan pies, gugelhupf, brioches, sayarin, churros, mufins, trufas de chocolate, ravióli doce, petit carré, rocamboles, pudim Molotoff, menchikof, bavarois e pedaços furtivos de torta klamotte, nos bolsos e no bojo do alaúde. 7) Deu-se o duplo casamento e os convidados começaram desesperadamente a rir, sem parar, das caras de bunda dos respectivos noivos que herdaram, sem mais o que reclamar, um culatrão daqueles, no que tangesse à popular Canarita e uma donzela–de–candeeiro que, enquanto encabeçava sacos para não ver, amarrava das suas com as velas da casa, não vendo, enfiando aqui e ali. Assim, amigos leitores, todos ficaram insatisfeitos com as núpcias, menos o pai pobre e mercador falido que lucrou, enfim, não mais tendo que alimentar duas bocas; a vizinhança, então, lucrou demais, teve o seu quinhão de fofocas e motivos para comentário amplos e irrestritos, como convém um povo civilizado e moderno. Coelho De Moraes 9
  • 10. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO PERIPÉCIAS ROCAMBOLESCAS DE OSÍRIS. (uma novela do cão) 1) Osíris era um gato siamês que vivia entre ladeiras do bairro niteroiense do Ingá, e, os muros das casas, porém, maior prazer não tirava se não aparecesse enfronhado em lençóis e braços de sua senhora-amiga–confidente. A particularidade maior, no entanto, estava no fato de que Osíris identificava-se como um gato oriundo do Sião, das terrosas áreas do Entre–Rios, de requintado gosto judaico, apesar do nome divino e egípcio. Era muito chegado a mordomias, como se ainda acostumado a perambular pelos antigos palácios de Tebas ou Karnac, lado a lado a Faraó, ou então, pelos luxuosos salões de propriedades dos Tetrarcas de Galiléia, antes da invasão dos Romanos, se ainda fosse possível. Osíris sonhava com tudo isso, como a relembrar uma de suas vidas. Mas, na realidade, Osíris tinha que se conformar com os muros das ruas sujas de Niterói, bem como os braços pegajosos de sua eternamente–deleitosa–transtornada mãe artificial e, de vez em quando cair de lambidas sobre sua paixão: a Gata Kristh, de origem germânica, apesar de inocente em Nuremberg, mas, evidentemente, causadora de dissabores e alguns trissabores ao nosso herói, como veremos no transcurso da história. 2) Nesta aventura aparecerão uns cães de má índole que moravam na residência ao lado. Várias vezes foram observadas por Osíris. Da mesma forma, os três dálmatas olhavam o passeio do felino, como um gatuno, sobre os muros, com passadas leves que deixavam a platéia canina em polvorosa. Latidos e ranger de dentes eram o que mais se ouvia por aquelas plagas, mas, o gato, nem ai. Osíris nem se dava ao luxo de olhar a azáfama no meio da cachorrada pintalgada de preto Coelho De Moraes 10
  • 11. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO aos rés do solo, se bem que prestasse atenção no caso de novidades ímpares como bocas cheias de dentes que muito se aproximassem. Passava e ia pisando pelica, sobre as almofadinhas de suas patas; quando muito, parava para dar uma lambida na cauda, arrumar os bigodes; em seguida retornava o caminho que o levaria para os pelos de Kristh, a bichana. Muita gente pediu para que não se contasse o tal segredo, mas, o escritor em questão não pode privar os leitores das verdades que se propõe a contar. E, o segredo escondia, por sua vez, o seguinte: “Havia no bairro muitos outros gatos os quais se dispunham a cortejar Kristh felpuda, que não lhes dava corda para tanto. Ela estava caída pela elegância, pelas cores, pela origem e descendência do gato Osíris” - consta que ele tinha lá seus arvoredos genealógicos: toda linhagem desde Tutmés II até os dias atuais, quando suas tribos tiveram que escapar do cão nazista, ou seja, um certo pastor alemão que alvoroçou a Germânia), enfim, o que sabe ao certo é que uma horda de felinos inamistosos percebeu que só teriam a Gata Kristh caso Osíris falecesse e, para abreviar o caminho até a pulverização do gato odiado, os inimigos contrataram os serviços – olhe e atemorize-se, caro leitor! Pasme! Até onde pode ir a animalidade! – e, eu dizia, contratou os desatinados serviços de um canil cheinho de cães, é óbvio, mas, daqueles que comem até o osso do vizinho e, não digo o osso da alimentação, mas, o da perna mesmo, tamanha a ruindade. Por motivos de pura inveja e recalque, Osíris viu-se em palpos de aranha, se bem que aranha mesmo não houvesse uma, mas tal é o que se ganha quando se utiliza expressão idiomática num texto. Subia ele a Rua Presidente Pedreira, voltando do escandaloso namoro, ainda lambendo os beiços e se arrepiando de vez em quando com as lembranças, quando se viu cara a caras. A sua cara de gato olhava fixamente as caras de nada menos do que doze cães, que o observavam atentamente. De cima do muro, o sorriso escarninho dos inimigos. Da frincha do portão de madeira, o riso maroto dos dálmatas que adivinhavam e se divertiam com o perigo que Osíris corria. Da janela, o pranto copioso de sua senhora-adorada- emudecida-lacimosa, assobiando cantigas de ninar enquanto o pranto derreava em borbotões... brotava a cântaros. Mais atrás, em sua casa, já alimentada, preparando- se para dormir, pensando oniricamente em Osíris e futuros gatinhos, a pequena Kristh pressentiu que algo não ia bem. Osíris percebeu que só um milagre o colocaria fora das mandíbulas destruidoras daqueles irascíveis mercenários e, foi com os nervos à flor da pele que ele esperou pelo pior. 3) Os anais não garantem se foi pior, ou melhor, mas, o fato é que não se sabe como, nem se a aparição era terrestre ou não, no entanto, a aparição apareceu. Um milagre... um Ser... Um alienígena... veio, caminhando, à medida que os doentios olhos dos cães foram se abrindo desmesuradas! O sombrio ser se aproximava e, os cães o temiam, e ele vinha, dormindo ou acordado (era difícil de saber), se em estado sonambúlico (aparentemente), se bem que muita gente dizia, as más línguas, que não havia diferença entre a vigília e o sono para tal ser. As boas concordavam com o argumento. Surgiu das trevas da noite, para a salvação de Osíris, para desrespeito dos felinos traidores, para horror do mastim venal, eis (!) que surgiu o Leviatã adormecido, o gigante tépido, muito mais conhecido como Anselmo, candidato consorte da Tetê, que muitas vezes se fazia passar pela irmã da extasiada-edípica-electra-amantíssima-mãe do gato herói, como já sabemos. “Ah! Felicidade. Onde estás que não te vejo?” Juro que tais foram os pensamentos que passaram pela mente arguta do gato. Num triz ele zarpou pela Coelho De Moraes 11
  • 12. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO rua, pulando montículos de barro e crateras de asfalto, para finalmente sorver o oxigênio puro à janela do apartamento de um casal muito simpático e amigo que morava na rua perpendicular. Como que agradecido pela presença, pelo menos em espírito, do Leviatã, Osíris desejou dar-lhe algumas lambidas e pôs-se a contar estrelas, enquanto tal momento não chegava. É escusado dizer que a cachorrada desapareceu na noite, ganindo horrorizada, fato que ratificava, sem intenção de enfiar qualquer rato na história, mas, sim no sentido de garantir a lenda popular de que os cães têm uma sensibilidade bastante apurada, de modo que podem sentir vibrações, energias e fantasmagorias diversas no recôndito das trevas e dos corpos dos seres, coisa que para o humano não passa de invencionice de quem é portador de terrível deformidade mental. Podemos até aventar a hipótese de que teriam, os cães, identificado na criatura Anselmo um ascendente, o qual superior e sábio viesse para os punir. Nunca se saberá. Mas a preocupação maior, sim, e, era necessário, muita cautela, cuidados, visto que os felinos logrados, ao mesmo tempo que bradavam contra os quadrúpedes fujões e suas mães prediletas, já arquitetavam a desforra, com sutis imagens da violência. 3) A história poderia parar por aqui, livrando o leitor insigne de conhecimentos atrozes. Mas, de que vale o poder e a iniciativa de escrever, se não se conta tudo? Não posso favorecer o leitor mais fraco evitando os acontecimentos agros, em detrimento da verdade. Custando o que custasse, eis a verdade, fria e crua, como se me apareceu. Osíris, descuidado como um animal felino, enquanto tentava pegar uma borboleta amarela no jardim, não percebeu a origem dos psius e psilius. Não percebeu que quem fazia psiu-psiu, era um dos dálmatas. Ora, junte-se um pouco de curiosidade de gatuno ao descuido e temos o desastre. Osíris foi ver o que era. Saltou sobre o muro e sorriu. Lá embaixo, numa bela clareira no meio do jardim do vizinho, havia uma aglomeração que foi facilmente identificada como um congresso ou simpósio entre artrópodes. Sim. Com jeito era possível perceber que, se não fosse invasão de insetos de Urano, com certeza tratar-se-ia do desfile anual das Taturanas; era uma das coisas que deixava Osíris bastante embevecido, sempre esperançoso de que algum dia tivesse a honra de ver o nascimento de taturanas sem aquele horrível manto ardente, inibidor de abocanhações e similares ações. Ingênuo, pulou e juntou as patinhas, olhando o grupamento ali parado. Parado. Realmente parados. Taturanas, Taturanões, Taturaltos e outros da parentalha, não se moviam! “Algo estranho por estas bandas”, pensou Osíris. A sua cabeça dava tratos e permitia que as orelhas tentassem captar sons suspeitos. ”Não estou gostan...” TABÉFE!! Tabefe foi o barulho que fez apenas uma patolada e, o pequeno gato foi parar contra o muro, para ele o das lamentações, deixando uns pelos colados na parede caiada. Estava tonto. Não notara que fora uma cilada. E, olha que não despregava os olhos da televisão. Devia conhecer todos os truques. Os três dálmatas – Cão, Canicho e Canaz, – armaram uma arapuca onde o herói caiu como um passarinho, para ficar mais irônico. Enquanto se erguia, ou pelo menos tentava, pensou nas taturanas que serviram de isca para a captura, mas, não teve tempo de terminar o pensamento... TABÉFE! Outra bofeteada bem dada fez o gato rodopiar mil vezes ao som das gargalhadas incessantes dos dálmatas e dos gatos, funâmbulos, sobre o muro. Coelho De Moraes 12
  • 13. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Canaz caiu de mordidas sobre o pêlo brilhante de Osíris, o qual pêlo, em poucos segundos ficou empapado de vermelho. Cão, o do meio, seguindo as pegadas do irmão mais velho, puxou Osíris usando as orelhas do gato, girando-o no ar, para em seguida largá-lo e vê-lo cair sobre o tanque de lavar roupa, previamente preparado com sal, aguarrás e soda caustica. Osíris não sabia nadar e, enquanto se afogava, como é de praxe nestas circunstancias de desencarne, tudo o que foi vivido passou pelos pensamentos de Osíris, pesando seus erros e correções, rememorando os dias e as noites, suas ações e miadas, seus saltos mal dados e seus namoros imorais; memorava os inúmeros filhotes espalhados pela vizinhança e orou para que o deus gato, o Felis catus maximus, pedindo para os seus inimigos não se vingassem nos petizes. Apesar da flagrante exteriorização de bondade, Osíris fez a chantagem usual; barganha cósmica; suplicava pela vida (na sua conta ainda faltavam três, das sete) em troca do que, ele mudaria de conduta, diria preces para a lua todas as quintas-feiras; a lua, mãe dos poetas e lunáticos, dos notívagos e vagamundos, clareava as noites e não deixava que Osíris enfiasse a pata em telhas soltas. Mas, os cães não pretendiam vê-lo afogado, pelo menos, por enquanto. Canicho, o caçulinha e, diziam, o pior dos três pois estava na fase de auto- afirmação, pescou, por assim dizer, Osíris do tanque antes que esse pudesse perceber o gosto do Terebinto e, enquanto enchia-o de palmadas e pequenas mordidelas só para treinar, carregava-o para os lados de um formigueiro, sob a ovação da gataria inimiga, platéia, sobre o muro. Era um formigueiro de saúvas graúdas, sob umas pedras pintadas de branco. O interesse de Canicho, no entanto, não eram as formigas, mas, as pedras. Umas pontudas, outras rombudas. Sua intenção era, definitivamente, acabar com a brincadeira e calcar uma pedrada na cachola do gato. Osíris percebeu e foi com desespero que lutou sua última batalha. Os gatos inimigos o vaiavam. Retirando, porém, energias suficientes para ser considerado o Gato do Ano, Osíris crispara os dedos das patinhas, arrepiou os pêlos, contraiu a musculatura, riscou o ar com suas unhas afiadas e, num movimento convulsivo, rabiscou a cara de todos os cachorros que apareceram na sua frente. Havia três, mas Osíris, à essa altura do campeonato já via uns quinze. A platéia estatificou-se. Era impossível que ainda se salvasse aquele biltre! Se não fossem inimigos até aplaudiriam o arroubo! Depois de tanto apanhar ainda reunia forças para a luta! Gatuno! Osíris, sem perder sua constante ingenuidade, subindo pelo muro com loucura selvagem, estendeu as patas para os gatos que o olhavam lá do alto, supondo que a espécie falasse mais profundamente no coração. Contudo, a única coisa que fizeram foi segurarem suas patas apenas o tempo suficiente para Osíris perder o pique da arrancada. Após, uma bela chacota, largaram o herói dentro da boca de Canaz, que não perdeu mais tempo e o mastigou, assim como quem não quer nada. Mas, parecia, a divindade estava ao lado, imensamente protetora. Os pródigos sempre serão exaltados e os destruídos serão... destituídos. No alto, sobre o peitoral da janela, fazendo menção de pular, a modos de quem limpa vidraça, uma sublime visão! No momento em que Canaz se preparava para a segunda mastigada, tendo aberto a boca ao máximo, com olhos voltados para o céu, saboreando o manjar com prazer inaudito... Vê... Sim, ele vê... Vê e para... seus irmãos acompanham seus olhos medrosos... Osíris cai-lhe da boca que não mais se fecha e sai, manquitolando, com as patas nos quadris. Bem sabem que os cães pararam porque Coelho De Moraes 13
  • 14. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO a excelsa criatura enviada por Felis catus maximus, o Leviatã adormecido, não lhes saia da pupila canina de cada um. O horror chegara aos três dálmatas que se não sabiam se fugiam ou se prostravam ali mesmo, em adoração ao deus supremo - ou àquilo que julgaram ser a deidade máxima, que perambulava a esmo, batendo a cabeça numa e noutra parede. E, é no atônito da cena, sob o olhar boquiaberto dos gatos inimigos que Osíris escorregou, indo para longe, esconder seu corpo alquebrado e mal tratado, num desses socavões de terreno, somente conhecido por ele e Kristh. Afinal, o que levou essa turba de felinos a odiá-lo? Uma única resposta é esperada. O amor integral de Kristh, votado totalmente ao nosso herói. A gata ronronante, de pêlos longos e sedosos... Kristh com a boca cheirando a sardinha... Kristh das lambidas úmidas e movediças... Kristh dos encontros fortuitos e noitadas festivas. Kristh dos bigodes sensíveis e dos abraços que o aga(ta)rravam fortemente... Kristh bela... Num último pensamento Osíris quase sucumbe... “Kristh, querida Kristh... (com as patas erguidas) Não tome todo o leite...”, e, desfalece. 5) De fato, Kristh foi encontrá-lo pela manhã, e lá estava o gato no buraco, gemendo de imensas dores ferinas. Rapidamente, com ajuda de amigos, Kristh levou-o para junto de sua senhora-mãe-eternecida-protetora já por nós conhecida. Contar o sentimento profundo e a sensação pungente que atracou, esta é bem a palavra, na alma da mãe adotiva de Osíris é impossível. Podemos dizer que várias baldes de plástico, usados em limpeza, não poucos, foram completos até a boca só com o pranto cascateante vertido pela mãe-adorada-importuna-repressora, por ocasião do encontro ao mesmo tempo terno e doloroso. Não se sabia sobre a gravidade do estado do animalejo infeliz. Era necessário que um douto fosse chamado para as devidas consultas. Assim foi. Apesar disso, Osíris foi perdendo, lentamente, e de certa forma, fácies de enfermo do corpo para ganhar, aos poucos, um semblante de enfermo da mente. Para a materna-suplicante-ensinesmada-pranteante, isso não podia ser, afinal, é do conhecimento de todos que o chamado amor imenso e sublimado leva as pessoas à não raciocinarem, ao mesmo tempo em que pensam ajudar, quando na verdade atrapalham. E, ela, mãe-senhora-sublime-fervorosa, não acreditava, por conveniência própria também, que o bichano predileto estivesse abestalhado. Desculpe, leitor, mas eu diria, sucumbindo em seu estado psíquico. De moribundo a alienado, não havia escolha. Que se fizesse o desenlace vital, o trespasse desta para melhor o mais rápido possível, mas, louco (?), ela se perguntava, louco não (!), ela se respondia e, o caso ficava sem definição. Para a mãe, o fato de usar brincos no rabo (falo do gato), não era sinal de loucura, mas, talvez ele apenas estivesse assumindo uma postura moral diferente, apenas. Contudo ela percebia que tentar o menor contato com ele, Osíris se tornava arisco, apimentado, salobro ao extremo, evitando o relacionamento familiar e íntimo, de modo que a mãe permanecia com as pernas abertas à toa. Mesmo a namorada-amante, a macia Kristh, ficou desapontada ao notar modificações no caráter do gato. Seu amor por ele não diminuiu, não morreu, é claro, mas ela se preocupava; havia muitos gatos pelas redondezas, o que não seria de importância maior caso o período do cio não estivesse próximo. Osíris, medroso e estremecido, via dálmata por todo lado e não poucas vezes testemunhou-se brigas homéricas entre Osíris e a vassoura de pelos. Enquanto isso, a mãe-avassalada-insatisfeita, pensava que apenas seu rim (falo do gato) é que estava fora do lugar. Nem mesmo a presença do Leviatã adormecido Coelho De Moraes 14
  • 15. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO ajudava na melhoria do felino. É bem verdade que as ataduras que enrolavam a cabeça do Leviatã modificasse um pouco as suas feições; a cabeça totalmente enfaixada e os óculos desequilibrados sobre os panos, de modo que o gato dificilmente reconheceria o seu salvador através dos óculos. É que o Leviatã caíra da escada. Não tivesse o Leviatã caído da escada, numa das suas incursões noturnas e seria possível pensar em salvação para Osíris. Em poucos dias ficou demonstrada a traumatizante verdade de que Osíris penetrara nos recônditos da psicose-maniaco-depressiva, – um bipolar de peso. Todos esperavam que de um momento pra o outro ocorresse o suicídio, principalmente profetizado pela mãe-abnegada-chorosa-lacrimejante, moradora da Rua Maestro Ricardo Ferreira, cujo perfume favorito deveria aromatizar segundo o Musgo, domestico e selvagem, mas, que se fosse presente poderia ser qualquer um. 6) Finalmente marcou-se o dia da consulta com um medico psicanalista de gatos que, por coincidência, visitava o Brasil, país dos gatos, gatunos, gaturamos, mãos– de–gato, para passar as férias de verão, que para ele eram de inverno. No começo o medico tentou se esgueirar, fugir da responsabilidade, copiando os nativos, dizendo que não entendia a língua do gato, uma vez que o paciente era morador de terras tupiniquins desde muito tempo. Deixou perceber que tinha certa ojeriza por gatos judeus, apesar do nome egípcio para confundir, já que ele, o tal doutor, era de origem teutônica e, não ficava bem cuidar de um de seus arquiinimigos de política e de raça. Por outro lado, o doutor Duerf, deixou bem claro que dissera tudo aquilo para que os jornais não propalassem que um Austríaco da Moravia havia se entendido com um israelita tropical e, ele não corresse perigo de uma vez voltando à sua terra se visse marginalizado, com reputação abaixo de zero, solidificada pela descoberta de que ele, Duerf, que estudou a muito custo em Viena, também era hebreu e, que na volta à sua terra natal o pau comeria. Mais tarde o renomado doutor confessou que adorava gatos siameses, no entanto não mudaria de idéia, por dinheiro nenhum. Mais tarde ainda disse que tinha dúzias de gatos em casa. De qualquer tipo e raça. Gostava de ficar respirando ácaros de pelos, quando os pelos se amontoavam em seu travesseiro e adentravam pelo nariz durante o sono. Concordou, por fim, em tratar do Osíris, mas exigiu rapadura e curau. Aceitou o caso e, no dia 23 de setembro, ano de 1983, o aloprado bichano foi conduzido para o apartamento do médico, sob todos os cuidados; narcotizado, amarrado com uma leve camiseta–de-força no estilo “vem cá, meu puto” e uma viseira, sob um belo capacete metálico de motociclista, para que seus inimigos não o reconhecessem, e, vice-versa. Para não prolongarmos a historia temos de fazer um sumario do tratamento aplicado e as importantes conclusões deixadas pelo doutor Duerf Freiberg, retiradas do diário do médico. 26 de setembro – o paciente continua arisco. Mas, foi possível ganhar um pouco da sua confiança no momento em que o coloquei frente a frente a meu fiel auxiliar vindo da Lapônia, o qual, não sei se vale dizer, parece um verdadeiro cão São Bernardo, cujo barrilzinho de conhaque esta representado pela própria barriga, que de vez em quando arrota. Fisiológico. Mas, ao vê-lo, Osíris acalma-se. Contudo faz dez horas que canta pirulito-que-bate-bate e ainda não parou. Coelho De Moraes 15
  • 16. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO 1 de outubro – o paciente sofreu melhora, uma vez que depositou suas produções orgânicas sobre o tapete do consultório, o que é muito natural. Ainda assim ele confunde o bom auxiliar lapão e, é preciso muitas vezes retirar o auxiliar da gaiola, por três motivos: ter sido perseguido pelo paciente, a necessidade que tenho de seus serviços e, para que não acabe com meu estoque de queijo. 2 de outubro – é domingo fui a praia. O lapão ficou tomando conta do bichano em tratamento. Quando saí os dois estavam trancados no banheiro escovando os dentes, o que me pareceu de bom alvitre. O tratamento seguia bem. 2 de outubro – noite. Terrível desastre. Osíris quase afoga o auxiliar na banheira, depois de ter-lhe cortado a barba, a sobrancelha direita, os cabelos em nível occipital, os cílios da parte de baixo, os pelos do ouvido, tudo isso usando uma lixa de calos. Tentei desesperadamente fazer o auxiliar contar como aquilo tudo aconteceu, mas, só depois percebi que ele tinha um sabonete incrustado no larinx, o que explicava as bolhas que saiam do ouvido esquerdo da vitima. Não entendi o sorriso sacana de Osíris. 5 de outubro – o tratamento de choque não alterou a disposição do paciente... é bem verdade que um olho pisca alternado ao outro, mas, isso não interfere no processo de re/associação mental que tento empregar para a cura. Estou quase certo que a histeria ora instalada é oriunda de um acometimento traumático ocorrido no passado. Digo isso, pois o futuro ainda é desconhecido pela ciência. De outra forma eu diria que a causa ainda está para acontecer, porém os professores de sintaxe e conjugação verbal me atacariam pelas costas; tamanha a complexidade do caso. Ainda não descobri porque o animal tem medo da geladeira. 13 de outubro – à minha revelia o lapão carregou o Osíris para um banho de mar pelas imediações. Na volta o auxiliar, sem perceber, trouxe um peixe na coleira que levara o gato. Mandei-o de volta, preocupado e com uma leve ponta de irritação. Como explicar a perda do gato? O auxiliar trouxe de volta o peixe e retirou o gato famigerado de dentro do peixe. Inconclusivo. No dia seguinte, à minha revelia, refizeram o passeio mas, quem veio na coleira foi o lapão... Não sei mais onde esta minha cabeça. Só espero que Adler não saiba desse episodio em minha vida. Acho que começarei com a hipnose imediatamente. Esse animal é impossível e, quanto mais ele ficar desacordado, melhor. Marquei hora com um analista do Brasil para que me reequilibre desta enfermidade tropical. Creio que foi a carambola. 18 de outubro – cometi um erro. Deixei o auxiliar lapão dentro da mesma sala e após algumas horas de sessão com hipnose, em que já teria atingido a idade embrionária do gato, o auxiliar iniciou uma série de miados em língua estranha. Joguei água fria em seu rosto, mas, ele continua se lambendo. Fazendo Osíris voltar ao estado normal de vigília, o lapão também retornou, o que me levou a concluir que as duas criaturas são ligadas por associação sensitiva paranormal, que não é o meu campo. Ou o lapão ou o gato é um médium poderoso. Apesar de normal, o lapão continua irremovível em sua atitude de beber leite no pires, debaixo do fogão. Mais de uma vez pude vê-lo retirando pulgas com a pata trasei... (desculpe), com o pé. 25 de outubro – um mês de tratamento e Osíris já consegue receber carinhos sem se exaltar e sem pular como se fosse de borracha. Da ultima vez, caiu no colo de Coelho De Moraes 16
  • 17. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO uma senhora moradora do andar de cima, que tricotava, e, no fim, o gato me fora devolvido engastado em uma bonita blusa. Fiquei tentado a deixá-lo assim, confesso. A ética, no entanto, essa maldita consciência exterior, falou muito mais alto. Hoje porém, está muito melhor (falo do gato e não da ética). De vez em quando dá gargalhadas insuportáveis, mas, é só. O lapão não fora mais visto. Espero que tenha fugido, assim não preciso pagar seus honorários. 29 de outubro – trabalho incessantemente. Utilizo o método da associação livre, desconfio e descubro alguns traumas causadores dos distúrbios. Tem fundo puramente sexual. Sexual reprimido, talvez. Pelo que pude constatar, Osíris ama certa gata, mas, ao mesmo tempo é obsidiado pelo amor da mãe-adotiva- eternecida-encantadora-dramatúrgica. Sendo assim, impossibilitando de levar a termo a relação com a mãe, por motivos óbvios de incongruência anatômico-genitais - se bem que a mãe-obsequiosa-defensora-masturbadora não ligue para os pelos na boca, ele se liberta sendo infiel com muitas gatas ao mesmo tempo, com o fito de inibir o sentimento de castração que o persegue. A gata que ele ama é a sublimação do amor. A mãe é o amor carnal inatingível. Na verdade ambos inatingíveis... Caso a cura se faça, a tendência será alcançar a monogamia, com Kristh ou com a Mãe. Por outro lado sei que se formou o conhecido triplexo temporal: a) o de Édipo, quando o gato tenta manifestar seu amor pela mãe, mas, apenas recebe palmadinhas e tapinhas nas costas: ele queria outra coisa. Isso o frustra em demasia. b) Em seguida o de Éradipo, tendo o gato se apaixonado pela mãe-adorada- maravilhosa-tribúrsica desde pequeno, confundindo o amor carnal com o amor filial. c) Por fim, Serádipo, relacionado com o futuro, ou seja, a manutenção da descendência, coisa que só acontecera com seres da sua própria espécie, objetivado o interesse em Kristh, numa tentativa de integridade especifica o que não consegue como individuo. Ah! – NOTA - Descobri o auxiliar: estava preso no guarda-roupa e disse que não gritou que era para não incomodar os vizinhos. Ainda não sei por qual razão contratei esta personagem. 2 de novembro – finados. Dia de finados. Os dias chuvosos, o ambiente triste, talvez, influenciaram sobre Osíris e houve uma recaída. Um ameaço. Seu moral só se elevou quando o auxiliar esqueceu o dedo na tomada de força da televisão, mudando de cor em vários canais, passando em segundos do verde mais intenso para o adorável roxo, aterrissando no azul da Prússia numa elegante voltagem. Alexandre Volta dar-se-ia por realizado. Aproveitei o ensejo e coloquei Osíris num processo de catarse acentuada, visando uma melhora definitiva. Acho que estava correto. O gato parece completamente curado. Antes de devolvê-lo à sua senhora- ama-amada-amante-cunilínguica preciso fazê-lo desistir de usar capa preta e a ridícula mascara de Zorro que conseguiu não sei onde. Coisa do lapão. 7 de novembro – parto amanhã consciente de terminar um trabalho. Cumpri adequadamente a missão, espero. O avião leva minha douta pessoa para a velha Áustria e, eu mesmo levo folhas e mais folhas de um relatório importante que apresentarei no congresso de Copenhague, no ano bissexto de 84. O lapão sumiu novamente, mas desta vez eu o vi sumir pelo ralo da cozinha e, numa hora como Coelho De Moraes 17
  • 18. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO esta deve estar boiando entre porcarias orgânicas variadas no meio desta imensa baía de Guanabara, onde outrora baleias vinham dar à luz. 7) Voltando ao lar, após despedir-se do doutor Duerf, Osíris não poderia se preocupar com outra coisa a não ser rever Kristh, que não aguentava mais o assédio de outros gatos. Uma vez Osíris sempre Osíris e, foi com amor aparado pelas fabulosas técnicas da psiquiatria e muita relação, que se encontravam no socavão de interlúdios, à meia – noite de uma época quente e tentadora. A mãe-adorada- idolatrada-confidente-esperançosa-arfante passou a dormir bem, uma vez que o gato, não raro, se instalava entre suas pernas durante as madrugadas. Quando isso não acontecia ela comprava o biscoito Língua e Gato, lambia-os e se esfregava neles. Cães e gatos, sabedores do relacionamento e cura total do felino herói, armaram novo golpe, alicerçados em planos e estratégias dos melhores generais, mas, desistiram quando se lembraram da constante presença, quase divinal, onírica, soporífica, tetraóptica, do fantasmagoricamente alvo ser, que sempre exercia peso a favor do gato Osíris. No momento oportuno lá estaria ele, o Leviatã adormecido, com seu passeio sonambúlico, assombrando, suas ínfimas vidas de animais. Resolveram, cães e gatos, confraternizarem e esquecer. Discutir, sim, mas, outros assuntos de menor importância, deixando de lado Osíris e Kristh. Resolveram encher a cara num barzinho chamado, ironicamente, “Quatro Gatos”, na esquina e aproveitaram para cantar jingo-bel, uma vez que já era natal e, o que ia sobrar de perna de peru por ali, não era brincadeira. Coelho De Moraes 18
  • 19. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO O TRISTE FIM DE UM FUMANTE INVERTEBRADO (uma novela do pigarro) 1) Inicia-se a história quando um desses tabagistas convictos, Cruzsouza, adentra com toda a pompa e circunstância o hospital dos cancerosos, com o instituto de salvar a sua vida de suicida a longo prazo; após passar por milhares de cigarros, além de cachimbos, charutos, cigarrilhas, enfim, todo o arsenal que se utiliza para ter charme, segurança em si mesmo, status, pose, e o divertido ar intelectualóide que acompanha a pose dos que usam óculos e soltam fumaça pelas ventas, Cruzsouza preferiu entrar na faca. Cruzsouza era um desses. Digo era, pois, conto já o fim da história, apesar da sua tentativa de tratamento, Cruzsouza veio a falecer meses depois. Câncer no pulmão. Em compensação foi enterrado sob o som da marcha fúnebre de Chopin e discretamente forrado por um tumor brônquico dos mais malignos. Graças, exclusivamente ao cilindro branco do prazer inaudito. Como se diz? Numa ponta uma brasa na outra um idiota. 2) Mas, voltemos no tempo e encontraremos Cruzsouza subindo em um ônibus em São Paulo. Ele fuma, mas, ao pisar os degraus do coletivo atira a guimba do cigarro para o chão. Ouviu alguém gritar: – Fumante porco! Não viu a lata de lixo, dragão? Coelho De Moraes 19
  • 20. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Era um caçador de fumantes. Cruzsouza manteve-se quieto, pois é sabido que alguns desses caçadores são iracundos ao extremo e não poucas vezes já desandaram dragões, digo, fumantes a tapa. Mas, continuando, em São Paulo, Cruzsouza jogou o toco do cigarro no chão, antes de penetrar no ônibus. No Rio de Janeiro, no entanto, o mesmo anti-herói subiria na locomoção levando no meio dos dedos o símbolo fálico do cigarro e, em largas aspiradas, soltaria rolos de fumaça branca para a atmosfera fechada do coletivo. Novamente ouviria uma voz: – Não tem respeito, dragão-porco-fumante? Passa pela sua cabeça de esfumaçado que muita gente não quer ter fumaça nos pulmões? – enquanto o homem falava, Cruzsouza passava pela roleta, temeroso de tomar um tapa na cara. – Já basta a atmosfera poluída da cidade. Não precisamos de mais uma fonte de sujeira por aqui. Não houve reação, pois, evidente, era mais um daqueles caçadores. Cruzsouza teve que ouvi-lo durante toda a viagem. Às vezes, um grupo de fumantes se reunia e não permitia que os caçadores se manifestassem, no entanto, naquele ônibus o acaso permitiu, ele sim, que Cruzsouza subisse sozinho e tivesse que agüentar olhares de repulsa e esgares de ódio por parte da vizinhança. É claro que jogou o cigarro todo no chão. 3) – O fumante, antes de tudo, é um basbaque! – gritava na rua um associado do Movimento de Caçadores aos Fumantes Invertebrados, parafraseando o Euclides. As pessoas que passavam sentiam medo, pois os caçadores tinham se tornado de ativistas políticos a perigosos exterminadores de fumantes. Surgiu a Nova e Mística Irmandade Contra os Adoradores do Tabaco. Fumantes e adoradores do Tabaco formavam um grupamento religioso que, ao longo dos séculos, dominou os povos com sua opressão desmedida, se bem que sutil. Tudo começou quando Phillipe Maurício Camelo fundou a primeira igreja da seita. Daí em diante, os adeptos, que já existiam apesar de esparsos (a diáspora fumígena) aglutinaram-se para praticar suas ações mesquinhas, ou seja, andar com aquele troço pendurado na boca (como se já fizessem muito e se achando os tais) originando um dos maiores movimentos religiosos dos últimos tempos. Receberam o nome de Adoradores do Tabaco. A fundação da nova seita desmembrou as outras, uma vez que adorador de Tabaco tem em qualquer religião. Fez-se a ruptura dos fiéis que passaram a freqüentar a nova organização. O fumante, antes de tudo, é uma besta! Uma besta suicida! – uma pedrada fê-lo calar a boca. O homem desabou do alto do pedestal e uma batalha campal foi iniciada no meio da praça, alimentada pelo pretexto da pedrada. Fumantes e não- fumantes se desancavam em sovas e catiripapos homéricos. A polícia chegou para serenar os ânimos distribuindo cacetada para todo lado. Mas não conseguiu. Cruzsouza, no entanto, apesar da seita, e do seu amplo desejo religioso, não era um fiel Adorador do Tabaco. Quer dizer, era um livre pensador, um livre fumador, experimentava de tudo, até bosta de cavalo; fumante, mas não filiado a seitas de espécie alguma. Mas, para quem não fumava, todo aquele que se mostrava em público manipulando um nocivo aparelho, aparelho de cabeça esbraseada, era logo rotulado e devidamente escorraçado, se não em pensamento, em palavras ou ações. – Discriminadores! – gritava em seus pensamentos para a turba de não-fumantes. – Pensam que são os donos do mundo!? Pensam que tem todo o direito a toda a Coelho De Moraes 20
  • 21. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO razão?! – eram idéias que chegavam à boca, pois uma intensa raiva se apossava de Cruzsouza naqueles momentos, mas, não passava daí, não se formavam em vozes ou palavras inteligíveis, uma vez que a raiva de Cruzsouza passava logo. Mas, pergunto, o que levou Cruzsouza a adquirir vontade de fumar? Com a palavra, o seu analista. 4) “Bem... pelas anotações secretas que aqui tenho – por favor, não publique o que lhes conto pois sempre pensam que nós, analistas, psiquiatras, confessores, párocos, psicólogos e prestidigitadores somos pessoas em que se pode confiar e, não é verdade. Não publique se não pega muito mal para mim, tá? –, continuando... (o analista folheia alguns cartões)... nas anotações que tenho tirado desses trinta anos de pesquisas, o fumante tem um problema na esfera sexual, e, o cigarro representaria para ele o pênis perdido” – Não entendi. “Bem, meu caro, é o desejo interior que se manifesta. Apesar de uma ou outra pessoa ser ativa sexualmente não significa que não seja impotente. Aí está o caso. Falando sobre Cruzsouza, que representa a maioria, aquele que fuma, só é potente enquanto fuma. Há um problema na afetividade, na autoconfiança, algo como o intenso desejo de ter sempre a mão um pênis, daí o ato, de manipular o cilindro. No caso das mulheres...” – Ia perguntar sobre isso. “Bem, no caso das mulheres, é mais aceitável o interesse pelo falo, digo, pelo fato de manusear o cigarro. Apesar de doentio ainda mantém a ligação heterossexual... já no caso dos homens, (e, aqui o analista faz um muxoxo), o confronto homossexualidade versus normalidade, lá na cabeça dos fumantes, é o que os leva a usar o cigarro como atenuante dos apetites, uma vez que não assumem a sua condição de homossexuais”. - E, aqueles que deixam de fumar? “Você já ouviu falar em ex-viado? Encontramos muitos deles nas igrejas evangélicas... aí é fácil entender que já resolveram seus problemas. Assumiram: não mais o jogo homossexual e passaram a trilhar um caminho hétero. É uma opção que fazem. E, além de decidirem seus caminhos, pois já não terão a sensação de adultério, quando são homens casados, respirarão muito melhor, já que inteligentemente escolherão o ar como gás respiratório e não a nuvem cinza- pardacenta dos fumos”. “Os que não conseguiram deixar de fumar sabem que estão no dilema do Hamlet: Ser ou não ser. Eis a questão. Não sabem se preferem os braços da companheira ou do garotão da esquina. Daí a pose, a falsa impressão de autoconfiança, e de segurança que os fumantes tentam passar. Por dentro tremem e rangem os dentes”. - Você tem alguma saída para estas pessoas? “Bem, tenho sim. A mesma que eu disse para o paciente Cruzsouza. Tome vergonha na cara. Ou assume ou para de fumar. Porque de outra forma me encontrará pela frente. Eu também sou membro dos caçadores e a minha meta é a solução final. Não pelo fato de serem ou não homossexuais, mas pela porcaria daquela fumaça nojenta que me dá ânsia de vomito. Acautelem-se, dragões!”. 5) Naquele dia, Cruzsouza foi para casa e lá, somente lá, fumou quatro cigarros de uma vez. Completamente deprimido, pois não sabia da gravidade psicológica do seu caso. A ciência da mente estava muita adiantada. Descobria o desajuste sexual de um indivíduo pela largura do seu cigarro. Coelho De Moraes 21
  • 22. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Naquela noite, Cruzsouza pensou em todos os chamados grandes homens que fumavam charutões; refletiu na complexidade dos casos dos cachimbeiros – excetuando as angiospermas, - de boca torta. Seria o detetive Holmes um problemático? E, Watson, que apito tocava, naquela situação? Seria, o médico, analista do detetive inglês ou... Apenas a manutenção de uma chama platônica naquelas vidas sem amor, correndo atrás de criminosos comuns e cães madrugadores? Churchill, Fidel, Stalin, os capitães de indústria, seriam produtos doentios oriundos da busca do poder, em detrimento do emocional? Na manhã seguinte Cruzsouza tinha fumado para quarenta dias, então teve a sua grande crise de dificuldade respiratória. Foi parar no hospital do bairro, já roxo, locupletado de fumaça, atingindo, suponho, um orgasmo fumífero. À tarde recebeu a visita da noiva. Muito chorosa. Abraçou-o. - Mas, o que foi que aconteceu? – pergunta típica das pobres pessoas que, leigas em questões médicas, se atemorizam antes a visão de um bisturi ou de uma roupa de paciente hospitalar, ambos fedendo a formol. - Querido, o que aconteceu com você? Esperei-o a noite toda. Meus pais saíram e pensei que fossemos aproveitar a noite para que pudéssemos por pra fora todas as nossas frustrações íntimas e, você ficou aqui, deitado, dormindo? - Desculpe-me, Diocréia, mas, não foi minha a culpa. Saí muito deprimido da análise e acabei tomando uma fumarada. Vim parar aqui para equilibrar com oxigênio. Já não respirava mais. - É claro que puseram a culpa no cigarro, - disse Diocréia. - Foi o que me disseram... isso mesmo. Mas, o que mais me deprimiu foi a sentença de morte que ouvi da boca do analista. Percebi que era um réprobo. Mesmo em relação a você. Já nem sei se quando nos encontramos à noite toda a quinta-feira enquanto seus pais se retiram para o cinema, se sou eu ou meu cigarro quem “pratica as práticas” imundas que os íncubos e súcubos nos fazem cometer. - Claro que é você, Cruzeta querido. Eu sei por causa do cheiro. Diocréia sentou-se na cama e abraçou o noivo entristecido. - Por que você..., – dizia ela, calmamente, como quem tenta seduzir uma pessoa, – não se filia aos Adoradores do Tabaco? Lá você terá suporte psicológico e um grupo que o defenderá contra os ataques dos caçadores de fumantes. Qualquer igreja é corporativista. - Não sei..., – Cruzsouza hesitava. - Acho, até, que você deveria deixar de ir a essas análises. De nada adiantam, pois se os analistas soubessem alguma coisa... (sorriu ingênua). Mas, nesse instante, uns rapazes e moças adentraram violentamente o quarto de Cruzsouza. - É aquele ali, chefe! – gritou uma jovem, apontando o enfermo. - Muito bem... – foi o começo da ordem de um dos mais velhos. – Empunhem suas máquinas e FUMO! Uma rajada de gases alcançou o casal desalentado, jorro que saía dos ventiladores que os jovens seguravam galhardamente; e, aos gritos de “Desapareçam fumantes!”, ou então, “Chaminés desequilibradas, fora”, e ainda, “Dragões devassos!”, os caçadores de fumantes desapareceram pelo corredor, sob o apoio do diretor do hospital, o qual permitiu a ação somente após o pagamento de seus honorários pelo “tratamento” do Cruzsouza. 6) Sai de uma, entra em outra. A pneumonia o avassalou. Com suas defesas diminuídas, o anti-herói nosso, ia e voltava dos hospitais. Cruzsouza antevia a morte. Por isso chamou seu tabelião Coelho De Moraes 22
  • 23. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO preferido e ditou, em papel adequado, o seu testamento que aqui transcrevemos: - Deixo para Diocréia minhas piteiras de ouro maciço e a coleção Cinzeiros Roubados dos Hotéis. Deixo vinte mil folhas de papel especial para a Fundação pelo Estar do Fumante..., – mal sabia ele que naquela mesma semana uma guarnição de caçadores tinha invadido a Fundação, depredando-a por completo. Tomaram do presidente, enrolaram-no em folhas de papel bem grosso e, após formarem uma fogueira com os quilos de rolo ali encontrados para se fazer pito, moquearam o presidente, defumando junto as paredes do local destruído. No entanto, Cruzsouza continuou com seu manifesto..., – Deixo as garrafinhas com fumaça expelida por pessoas famosas, compradas na zona franca... para os meus amigos em dificuldade... econômica, impossibilitados de conhecerem... pessoalmente... seus ídolos. E, por fim... deixo todos os meus cigarros para as... gestantes que pretendem fazer de... seus filhos... bons fumantes, o que compensará... a inferioridade mental com... a qual... eles... fatalmente nascerão... E tombou para o lado. 7) No fim de semana sentiu dores no peito e foi passar por observação no hospital do câncer onde se constatou anomalia pulmonar e pouco tempo de vida. À medida que caminhava pela rua, vendo as pessoas caídas na calçada, relembrava neuroticamente quando o leitor da radiografia fez cara de quem não gosta, ao notar os problemas. O radiologista olhou para Cruzsouza, deu a volta à mesa e perguntou: - É fumante? - Sim, sou. Mea culpa, mea culpa, mea culpa – disse, batendo no peito magro. O radiologista sentou-se para escrever a sentença, ou melhor, o laudo da futura morte e falou: - Bem feito palhaço! – e ainda riu. Enquanto caminhava pela rua, Cruzsouza pensava sobre isso, mas via, como já foi dito, muita gente deitada, sufocada, desmaiada: violetas e púrpuras faces voltadas para o céu. Nisso... Nisso o cerco formou-se. Eram os caçadores de fumantes. Eles não descansavam. Um deles, irônico, falou: - Temos uma surpresinha pra você, dragão. – E, sorriu com a ponta dos lábios. - Que tipo de surpresa? – perguntou Cruzsouza esperando pelo pior. - Já que gosta tanto de fumaça, resolvemos colocá-lo em seu habitat, caro dragão. - Não estou entendendo. - Mas já vai entender. A um certo e combinado sinal, todos puseram máscaras respiratórias e apertaram os gatilhos de seus aparelhos fumigadores. Cruzsouza ficou envolto durante quinze minutos, numa espessa nuvem de fumo. Conseguiu distinguir vários sabores e texturas, adivinhou marcas, descobriu misturas interessantes, mas, o que parecia prazer no inicio, foi se transformando em verdadeiro suplicio. A asfixia tomou conta do seu ser. - Não é de fumaça que vocês gostam? Então engulam tudo! – Gritavam atrás da parede de gases. Tonto, muito mais que peru em véspera de natal, Cruzsouza cambaleou, tropeçou, tombou. Era mais um na calçada. Os caçadores de fumantes estavam bem equipados e bastante decididos em exterminar os fracassados engolidores de fumaça. Ao derrubarem Cruzsouza, tomaram forma e cantaram o hino: “DURA LEX FUMUS FAGATUS EST”. Constataram que faltava um soprano para manter o equilíbrio dos naipes. Coelho De Moraes 23
  • 24. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO O HOMEM QUE CAÇAVA KERTETSZIA (Uma Novela Febril) 1) Antes de que tudo houvesse acontecido e, sem que os familiares soubessem, Sanvae deixou o emprego muito bem remunerado-mordomíaco-faraônico e partiu para o Amazonas em busca das famosíssimas Kertetszias, – animais relativamente raros, pequenos, mas, elegantes, – habitantes de altas copas das árvores pejadas de chuvas, cujos paladares preferiam o suculento sangue de macaco. Isso, no começo, quando os verões eram vermelhos e os invernos dormiam em forma de azul. Antes de que toda a tragédia acontecesse. 2) Sanvae era robusto e pesava em torno de noventa quilos bem proporcionados. Era alto, coisa que se percebia claramente quando Sanvae se punha em pé. Usava barba postiça quando deixou as mulheres e os filhos pequenos, hipnotizado pelas imagens das Kertetszias, no entanto, nem bem chegava ao Amazonas e já era dono de bonita sombra azulada em torno do queixo oval e, uma outra, não tão bonita, que o acompanhava por toda parte, especialmente nos dias de sol e, somente na rua. A partir daí, deixou de lado o disfarce e assumiu a sua posição de exímio caçador de Kertetszias, se bem que fosse aquela a primeira vez que Sanvae se enfronhava em mataria braba e se transformava em predador. Coelho De Moraes 24
  • 25. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO A história. A fome de kertetszias apareceu-lhe aos onze anos de idade, quando seu pai, um fabricante de botões, mostrara-lhe fotos do anofelínio. Dessa época para frente esqueceu completamente o assunto. Um surto de amnésia galopante, por ocasião dos vários casamentos, auxiliou na introspecção da idéia, enterrada que foi nos recônditos insondáveis da cabeça de Sanvae. Só voltou à sua memória em relação ao inseto kertetszia após certo sonho que teve com uma das suas sogras. Hoje. As famílias ficaram decepcionadas e muito choraram quando perceberam que Sanvae partia, mas, Sanvae, empedernido como ele só, partiu num dia de chuva grossa. O navio balançava e o almoço de Sanvae, a muito custo, se manteve no estômago. Sua cabeça queimava de ansiedade e, por momentos viu-se em palcos de conferências, adulado, coberto de medalhas pró-isso, pró-aquilo, recebendo prêmios científicos. Chegou ao Amazonas na quarta-feira. Na Quinta de um amigo, velho conhecido, tomou vinho e mordeu carne de pirarucu, em tempos de descanso. Esperou que a barba tomasse seu rosto completamente, desejou feliz Páscoa para o amigo e, munido de arcabuz, embornal e sapiquás, atolou suas botas de couro de jacaré-aligátor-crocodilo nas lamas da floresta comedora de gente e outros bichos, na incessante busca de kertetszias. Ia ele ladeado por cinco guias bem pagos que, infelizmente, perderam-se no meio da jornada, levando os javalis. 3) Sanvae percebeu que adentrava reinos de kertetszias quando viu os macacos. Eles desciam correndo o arvoredo, em algazarra perene, mas, o detalhe mais emocionante, muito bem explicado pelos almanaques, era de que muito macaco tremia incessantemente e, além disso, ficavam banhados de suor – pêlos completamente molhados! Sanvae ria de dobrar a barriga, pois á sua mente vinha lembranças do dia em que esguichou água sobre uma de suas sogras (a adotiva) e ela, em desespero, sentou- se no chão aos brados e berros. Riu, também, pois o passeio pela floresta já o esgotava, levando a esperança de encontrar o inseto para bem longe. Mas, parou de rir quando os macacos olharam para ele... rindo também – micaretas. Sanvae montou barraca esperando a noite. Os almanaques diziam que o anofelínio era notívago; mais ainda, explicavam os técnicos, era necessário capturá-lo com todas as asas, pois, determinado estudioso levantara a hipótese de que o inseto sofreria problemas de ordem psíquica caso fosse colocado em ridículo, sem asas; assim, seu corpo, de verde com listas douradas se transformaria em cinzento salpicado de cor de rosa. A tese do estudioso defendia a opinião hipotética de que kertetszias se sentiriam, então, vexadas e extremamente indóceis, necessitando elas de tratamento com Diazepan. 4) A primeira técnica era baseada nos ensinos do sábio Barão de Itararé, renomado bípede. A segunda era a própria idéia de Sanvae, por isso, não muito boa: consistia em descer um prato de ouro no meio das folhagens e esperar que os alados se sentassem na superfície fria, de modo que ficassem presos por causa de uma possível interação eletrostática entre as patas e o ouro. Só que, ou isso não dava resultado mesmo, ou as kertetszias já conheciam o truque, nem a mais infantil delas ficou presa no prato de ouro e, a coisa teve que ser resolvida no tapa. Coelho De Moraes 25
  • 26. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Sanvae enfrentou um milhão de seres voadores adentrando sua barraca, como uma tempestade nasal. Reflexo esternutatório às avessas. Sanvae ficou alucinado, com as riquezas pululantes por toda parte, parecendo que se esquecia que na escuridão e em massa, muito inseto alienígena e covarde podia se entranhar na multidão e fazer das suas. Portanto, em meio a picadas, sopapos, garatujas de braços, pernilongos e pernicurtos de várias espécies, desmaiados, fugitivos, tontos, ouviu-se gritos, zumbido de moscas que perderam o rumo... o que sobrou? Sobrou, como saldo da batalha, uma kertetszia presa em saco plástico (uma pata quebrada) e, uns quinhentos e cinqüenta pontos vermelhos só no rosto de Sanvae, o caçador. Ai é que o mal estava feito, definitivamente. 5) Sanvae não se lembrava de nada mais terrível do que as febres que o acossavam de tempos em tempos. Até o sangue se alterava, parecendo se modificar em líquido movediço misturado às porcarias das mais variadas origens, desde cocos de bactérias até protistas em decomposição. A pele amarela combinava com o verde limão do pijama - pelo menos havia essa compensação – mas... as febres pontuais, a tremedeira em terremoto, o suor copioso que enchia bacias e mais bacias, tudo isso não constava dos planos de Sanvae. A kertetszia, por sua vez, dormia tranqüilamente em seu saco plástico, tendo se restabelecido da perna; as sogras riam a valer observando os dentes do genro comum a baterem. Punham a mão na barriga e gargalhavam quase até desmaiarem, principalmente quando viam Sanvae prostrado no fim dos acontecimentos. As velhas desmontavam-se na hilariante desopilação figadal, quando o frio desaparecia do caçador e uma febre torrencial o destruía durante horas seguidas. Sanvae tomava forma de um barril esponjoso. 6) Sanvae passou a sonhar que uma cobrinha em forma de anel rubídico penetrava em suas células. As mulheres já tomavam o marido por louco completo. No desjejum ele relatava tais onirismos ao mesmo tempo em que tocava com a destra a face morena de uma e, com a sinistra, a boca de pêssego da outra. Do sonho, as sogras riam e dançavam quadrilha, pensando na herança e no dinheiro que ganhariam com a venda da kertetszia sobrevivente. E, enquanto isso, Sanvae sonhava e, ele contava que via mais cobrinhas se multiplicando velozmente até formarem uma flor caleidoscópica que de repente, explodia, despejando pequenos ofídios para todos os lados. Aí vinham kertetszias que tomavam as cobrinhas pelo bico (bico de inseto?) e, saíam em direção aos macacos displicentes que sempre existem. Então, ele acordava, com os olhos esbugalhados. As sogras se debatiam de tanta risada justamente por causa dos olhos medrosos e desesperados. As mulheres se abraçavam e dominavam o pavor que sentiam, bem como a ansiedade. As crianças jogavam bola com o vizinho. 7) Do jeito que as coisas estavam não poderiam ficar piores, mas ficaram. Era manhã de torpor e lassidão quando três mulheres montadas em fogosos ginetes adentraram o quarto de Sanvae. Elas bateram as patas dos cavalos contra a parede e pediram de volta a kertetszia, num idioma caprichoso. Sanvae escondeu-se atrás das esposas, cheio de pavor. Nunca vira coisa igual, nem sentira tanto medo desde que fora apanhado roubando jabuticaba no quintal da tia solteirona. As mulheres dos cavalos, com a facilidade que a falta do seio direito dava, puxaram arco e flecha e Coelho De Moraes 26
  • 27. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO apontaram para o peito do caçador frustrado. Pediam, pela última vez, que lhes devolvessem o acrídeo preso no plástico. Um cavalo cuspiu na cara do homem que engatinhou para os baixios da cama, entre pó e chinelos esquecidos. No entanto, nada de kertetszia aparecer. As cavaleiras desceram dos potros coloridos e arrancaram o doente do esconderijo e fizeram-no jurar que o pequeno anofelínio estava em correta situação de saúde, bem estar alimentício, e, moral elevada; pediam, também, pressão arterial e variação no peso corporal do inseto desde o início dos eventos. Quando Sanvae sorriu concordando tiram-lhe um molar. Sanvae benzeu-se quando as cavaleiras saíram – elas cantavam melodias sincopadas que imitavam corridas de formigas. As esposas abraçaram-se e maldisseram o dia em que se casaram com o poltrão caçador; já começavam a sentir pena do inseto prisioneiro. As sogras resmungaram contra as cavaleiras, tomadas de ciúmes, por duas razões: a primeira, menos importante, o fato de não terem cavalos tão bonitos para pisotear o pobre Sanvae e, a segunda, talvez a mais importante das razões, que era o sentimento de inferioridade. As selvagens eram donas de um seio farto e interessante cada uma, enquanto as sogras não tinham nem um para contar historia. Além disso, elas é que queriam desmoleculalizar o genro. O doente, inútil e desacreditado Sanvae. 8) Um dia, o paciente do Dr. Zaromeu ergueu-se decididamente. Mas, logo se deitou porque foi acometido de vertigem e dores nos artelhos. Na segunda tentativa, três semanas depois, percebeu que estava sozinho em casa e percebeu que teias de aranha se formavam em torno de si. Apesar do mal-estar, pôs-se em pé e telefonou para seu amigo o Dr. Zaromeu, tendo porém de desligar, uma vez que era domingo e o doutor não atendia, mesmo que sua mãe precisasse transfundir sangue. Sanvae tentou no dia seguinte. Contudo, ele se perdeu nas contas dos dias. Resolveu telefonar naquele mesmo dia, mas, já era sexta-feira; nas sextas-feiras o insigne Dr. Zaromeu ficava em estado de animação suspensa assistindo televisão, ou dando aulas sobre Teoria do Comportamento, baseando-se na Constituição Federal de dez anos atrás, matéria muito interessante para sua idosa esposa, tanto que ela dormia rapidinho. Sanvae estava num impasse. Sozinho, pois as esposas haviam fugido com três maridos e doze filhos agregados, mais cinco sogras de várias nacionalidades, sendo duas de estimação; tonto, abatido, ele calçou os chinelos de tecido multi/estranho, rumou direto para o banheiro, onde com dedos ágeis apertou furiosamente, a bem dizer, esmagou uma bisnaga de pasta de dentes sabor lagosta, e, pôs-se, completamente fora de si, a escovar sua boca, ate que conseguiu que o branco fosse realmente branco e seu hálito estivesse agradável. Trocou de roupa e saiu. 9) Parado sobre a ponte, mirando as águas dos bebedouros e as correntes de ferro que prendiam os cães, Sanvae analisou sua vida e resolveu se afundar em pensamentos, palavras e obras. Afinal, era sua culpa, máxima culpa, por tudo aquilo que acontecera. E, ainda teria de devolver a fabulosa Kertetszia tão bravamente conseguida nas grotas da Amazônia! Às suas costas sentiu passos de cavalos. Depois, a ponta de sua orelha foi rabiscada por pontiaguda conformação em forma de dardo. Um sorriso idiota desenhou-se-lhe no rosto, mas isso não era novidade; o ar de covardia absoluta robusteceu-lhe a mímica facial. Foi obrigado a levar a mão ao bolso e retirar de lá o Coelho De Moraes 27
  • 28. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO saco plástico onde uma kertetszia ressonava qual anjinho. Olhou com olhos de lagarto para as cavaleiras que lhe devolveram com olhos de águia. Sanvae dobrou os supercílios e ficou parecendo um sabujo que tivesse levado um belo pontapé. O dardo escreveu-lhe na testa palavras só inteligíveis para cavaleiras, centauros, faunos e uirapurus alfabetizados. Enquanto isso a kertetszia despertava, abrindo a boca (boca de inseto?) num bocejo incorreto. A um sinal de mão, dado por uma das cavaleiras que também se mostrava como líder, Sanvae abriu o saco (o plástico) e o inseto voou para a atmosfera, fazendo questão de mostrar que já estava sufocado, puxando, em imitação perfeita, o colarinho do casaco. Essa atitude deixou as cavaleiras bastante irritadas, de modo que esporearam os corcéis e estes acabaram cuspindo na cara de Sanvae, numa falta de educação das maiores que já se viu. O pobre enfermo caçador baixou a cabeça, tristonho, mas, aproveitando para notar se tinha alguém olhando; repentinamente, sem que as amazonas percebessem o intento, pulou no ar, segurou o inseto incauto que ria a valer e mergulhou com ele de cima da ponte. As cavaleiras entreolharam-se espantadas. Os cavalos ficaram de queixo caído e foi um custo levantá-los. Mas, de nada adiantou todo o trabalho mandibular. Sanvae e a kertetszia debochada haviam sumido nas profundezas das águas. 10) Muito anos mais tarde soube-se que um circense fazia demonstração de um certo animalejo considerado por todos como fenômeno voador. Tratava-se de um homem barbudo dono de um pernilongo dançarino; fora tais boatos, nada mais serviu para por em claro a existência da dupla. A não ser... a não ser um fato que acabou citado nos jornais, sobre um anofelínio paranóico que assolava os casais perdidos nos matos, nas moitas ou no escuros dos cinemas do interior, onde valia tudo, inclusive assistir a filmes. Dizia o texto que de um circo sumira certo dia, o pernilongo assaltante (com coleira e tudo) e, que a partir daquele momento uma série de febres terçãs, quartãs e anãs, mais os estremecimentos, foram compilados. Além disso, havia em hospital categorizado, uma guia de internação para o tratamento de nervos em nome de Sanvae Kertetszia da Silva. O texto fora assinado por um tal de Zaromeu que se dizia da estirpe de doutores da mente; soubesse depois que não era mais do que um pobre sorveteiro especialista em distribuir resfriados para todas as crianças do bairro. Sorveteiro e aposentado, jurava que havia escrito para o jornal local sobre a tal história... que tinha ouvido falar não sabia quando nem onde e, que realmente não se preocupava com a saúde dos protagonistas da história, mesmo porque achava que não era historia e sim estória. Vá saber! Dizem que no fim ele teria dito, como já dizia seu José Coelho: - De qualquer forma, fica o dito pelo não dito. Se não gostou, vá reclamar com o Benedito! – sendo, em ato contínuo, encarcerado em célula privativa no hospital psiquiátrico, onde até hoje caça pulgas domesticáveis, preparando-se para um espetáculo beneficente. Coelho De Moraes 28
  • 29. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO O CAPETA ARREPENDIDO (uma novela dos quintos) 1) O Gênio do Mal, pensabundo, ensimesmado lia, voraz, alguns contos do Machado de Assis, quando um de seus ajudantes adentrou na vetusta câmara principesca, à direita do palácio de rocha vulcânica, como quem vem dos ínferos, aos berros: - Oh Senhor! Oh Senhor! - Não é preciso gritar, palerma, não sou surdo. Esses cornos não são auriculares, mula! O que quer? - Mas, Senhor... - E, não me chame desta maneira se não me confundem com... o outro. - Como chamá-lo, então? - Que tal... Dragão... Dragãozão... Que tal? – e girou a mão no ar, em pose, exibindo certo panache, - e estalou os dedos. - Não sei não..., - fez o outro, - Dragãozão...? Acho que pega mal. - Então, tudo bem. Vire-se. Chega de papo! – o Gênio do Mal falou rispidamente – Qual o problema, afinal? Abre esse focinho e despeja. - Avisaram da portaria que chegaram mais pessoas! - Mais pessoas? Que jeito? - Almas, quero dizer... alminhas... O Gênio pulou no trono. - Mais almas! Pombas! – ele estava, decididamente, enraivecido. – O que o Pedro pretende? Entupir de rebotalho isso aqui? Não há mais controle sobre esta gentama!? Coelho De Moraes 29
  • 30. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO - Pois é, caro mestre... do Mal. - Puxa saco! Mestre do que? - Do Mal, mestre... do Mal. - Eu, heim?! Vai de retro Arrenegado! – falou bem alto o Gênio. Depois, dirigiu-se a um telefone e se entendeu com a portaria do inferno. - Alo! Aqui sou ele. - Oi, ele. O que manda? – a vozinha através do fone perguntou. - Seguinte: não deixa mais ninguém entrar. - Não, mesmo? - Não, mesmo! Manda tudo de volta para a Terra. É quase a mesma coisa. Tem menos fogo que aqui, mas, é quase a mesma coisa. - Por mim tudo bem, mas tem um Querubim aqui que não arreda pé enquanto não depositar a encomenda no primeiro poço sulfuroso que aparecer. O Gênio tapou o fone com a mão e virou-se sorrindo para o ajudante: - Esses Querubins nem sabem que o enxofre já acabou faz tempo. São completamente desatualizados esses velhos mensageiros. Muito bem! – virou-se para falar no comunicador – vou já para ai, tá bom? – e virando-se para o Arrenegado: - Vou lá numa asa e volto na outra. Fica de olho nesses pecadores. Já passaram do ponto e eu os prefiro mau-passado. Ajoelhou não rezou o pau comeu... 2) Uma dezena de pessoas se deitava no salão de espera do inferno quando o Gênio apareceu. Alguns se levantaram, mas, a maioria nem se deu ao trabalho. Aliás, quando o Gênio apareceu começaram a vaiá-lo e jogar zombaria, coisa que o desgostou deveras. Mesmo assim, aproximou-se do Homem de Asas. - Queruba velho! Como vai? E o céu, gelado ainda? - Diabolous! Tanto tempo não o vejo. Que história e essa de céu gelado? Anda estudando os gregos? - Ora, aqui um calor desgraçado, obviamente, pelo contraste, lá um frio do caramba, não será assim? - É que andamos passando por reformas, sabe? – e, o anjo sentou-se na poltrona de vegetais secos. – Faz tempo que você não aparece por lá, estou certo? Não tem saudades? Ou será que não resta uma certa... uma certa melancolia de fim de tarde? O Gênio torceu o rosto e disse: - Não sei, estou um pouco desorientado quanto a esse negócio de religiosidade e fé. Olha aí, eu entrei na sala e fui vaiado. Esses caras pensam que são piores do que eu? - São novatos. Pecadores recentes. Desinformados... apesar da rede mundial. - Tudo, tudo bem! Eu compreendo, mas, o pior é que continuam a fazer das suas lá dentro, com ou sem piscina de lava ardente. Ninguém sofre aqui, a não ser eu! Em vez de penarem seus erros, não! cometem mais. – O Gênio bateu a mão no joelho: – São insuportáveis. Se não fosse a minha responsabilidade perante o Universo, já teria pedido demissão. Ficaram instantes em silêncio que foi quebrado pelo querubim. - Lembra da revolução? - Sempre. Como haveria de esquecer? Entrei pelo cano, – disse o Gênio. - Penso sempre nela. Atualmente estamos chegando no ponto que você queria alcançar já naquela época. Realmente, você estava muitos anos à frente, meu velho. Tinha que botar um freio nisso, afinal as instituições... - Que instituições, velho... - Caramba... quase que o mundo fica de cabeça pro ar... Coelho De Moraes 30
  • 31. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO - Eu e o Chefe. Mas, o que faz aqui um anjo de primeiro escalão? - Foi o que eu disse, estamos passando por reformas. Agora resolveram que somos todos iguais, que esse negócio de hierarquia fica por conta da escolástica e, para dar o exemplo, tenho de fazer um trabalho humilde... Coube a mim entregar essas... porcarias pecadoras. - O Chefe disse o que? - Ele falou que deixamos correr frouxo... a criatura inventou a civilização e agora que resolvêssemos o problema... Ele não tinha inventado aquilo... e foi saiu a cuidar de suas orquídeas... - Reformas, reformas, mas os pecados continuam os mesmos. No entanto... – o Gênio dizia bem alto... – Não há vagas! Estamos lotados, Queruba velho. - E, o que e que eu faço com esse lixo? – perguntou o anjo, mantendo a calma notória de quem pouco se importa com o negócio. - Leva de volta para a Terra. Joga num daqueles aterros sanitários... - Nem toda cidade tem... - Joga no rio... Ninguém vai perceber. Aquilo esta pior do que aqui. Além do mais, - o Gênio completou, coçando a barbichela, – eu também preciso de sossego. Reciclagem... reciclagem.,.. - Devo entender que não há negociação?! - Não... não há... Você sabe que não há Queruba. Olha, fala para o Chefe mandar doutrinadores de várias igrejas para desafogar um pouco o local! Liberei a alfândega. Esse pessoal vai ficar assim até quando? Pra sempre, por acaso...? - Segundo as escrituras... - Eternamente, tá, eu sei, mas, reforme isso também. O Querubim bateu nas costas do Gênio do Mal, levantou o polegar com a intenção de se despedir, mais entediado do que insatisfeito. - Voltando, pessoal. Não é aqui que ficam. Muita gente começou a se lamuriar e pecadores desavisados não queriam sair daquele antro, mas, alguns anjos auxiliares passaram a empurrar os pecadores para fora do inferno. O Gênio sorria debochando, braços cruzados; quando o último se retirou ele armou uma banana com os braços e pensou: - Vão amolar o boi-tatá! 3) Um dia, porém, o Gênio reuniu todo o plantel demoníaco e passou a discursar dessa maneira: - Senhores. A partir de hoje devo declinar da minha posição de Maior entre os Maléficos, se bem que eu pessoalmente odeie essa denominação, afinal, não fui eu quem mandou cortar as cabeças dos filisteus, fossem crianças, mulheres ou velhos... (baixou a cabeça)... tergiverso... bem... (elevando a cabeça) A ordem veio de cima... devo deixar isso bem claro. – e o Gênio estava sob aplausos e assobios de apoio. - Deixo o meu cargo, enfim, abdico, em nome de Exu, uma vez que ele está muito bem cotado nas bases populares e merece gozar desses direitos e esquerdos do poder. Exu recebeu acenos e polegares erguidos. - Espero que mantenham a obediência a ele e mantenham aquela ordem que sempre nos honrou. - Mas, o que aconteceu, Gênio do Mal? Porque a mudança de idéia? O Gênio olhou para o chão, pigarreou, passou levemente a mão na testa, como quem tira gotículas de suor e continuou: - Devo esclarecer que estou em crise ideológica. A minha fé esta abalada. Coelho De Moraes 31
  • 32. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Os Satananases (demônios apreciadores de abacaxi), as Sapatãs (demônios fêmeas cujo pecado era o lesbianismo explícito), Belzebus (os capetas bois-da-cara- preta) e Anhangás (uns bichos perdidos dos índios), fizeram um Ó coletivo, com suas ovaladas bocas, que mais pareciam cantantes em finales de peças corais a capela. Estavam desolados. O Gênio das Trevas levantou os braços, fez um corte e pediu calma. - Acontece que não acredito mais em deus. Não acredito no Chefe! Piorou. Todos estavam solidários com o conflito do líder; tentavam, inutilmente, dar conselhos e caminhos para que o Gênio se posicionasse, mas, falavam todos ao mesmo tempo, uma algaravia, e ninguém se entendia; a caverna estava cheia e até terráqueos palpiteiros queriam dar opiniões tentando entender a burocracia do tal processo da abdicação. O Gênio, percebendo a presença dos pecadores gritou: - Mas, não pensem vocês, – e apontava para os pecadores que retrocediam com as chamas dos olhos do Gênio, – que as coisas ficarão moles por aqui. Exu será devidamente assessorado por Ariel, o espírito do Ar e, ai de vocês desobedecerem as recomendações dos dois. Eles soltam o Bicho-Preto encima de vocês, porcos azedos! - Não adianta Gênio... – o Arrenegado puxava-o pelo rabo, – fiquei sabendo que eles adoram o Bicho-Preto... principalmente quando o Bicho-Preto morde a bunda deles. Pausa imensa no recinto baforento. - É, amigos. O inferno já não é mais como antes. Ainda bem! – o Gênio ainda falou, – o problema é que em breve perderemos nossas conquistas. Eu queria transformar o homem em deus, no entanto, ele prefere ser porco. Por isso, me vou. - Para onde? – gritaram todos, – Para onde, Gênio? - Para a Terra! – e sumiu na luz. 4) O padre Benedes acordara cedo. Era impossível dormir até tarde na cidadezinha de Muganga, a Nordeste do Estado, por dois motivos: o primeiro: tinha uma missa para rezar, e segundo: tinha de tratar de política todo dia. Eram as coisas que mais lhe interessavam. Mas não mais do que uma terceira coisa. Espreguiçou- se na cama e seu braço bateu nos ombros de sua secretária, a qual, por questão de trabalho, fizera serão naquela noite. Ela imediatamente pediu benção, ajoelhou e padre Benedes deu-lhe algo para chupar, e, como estava teso, aspergiu-a com sêmen santo. Não se sabe até hoje se foi epifania ou orgasmo. Padre Benedes se levantou, lavou o rosto com sabonete dos mais cheirosos, aroma de Mel glicerinado, pôs os óculos, lançou uma pasta oleosa sobre os cabelos pretos nº 32, tomou café puro e saiu para sacristia. Tomou da estola adequada e rumou para o confessionário, ainda guardando lembranças da noite exemplar que a secretária trouxe para ele. A moça ensinara-lhe truques desconhecidos, como por exemplo, aquele do número. Ao sentar-se no banco dos confessores, ainda cantarolando um salmo, após fechar o cortinado, sentiu um hálito quente, através da janelinha gradeada. Achou estranho, mas mesmo assim benzeu-se e benzeu o penitente através da janela e perguntou: - Qual o seu problema, meu filho? Após uma breve pausa, uma voz resolveu se fazer perceber, mostrando uma cor de tenor, contrariamente ao que dizem as lendas faustianas. - Padre, eu pequei. Coelho De Moraes 32
  • 33. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Benedes, no reflexo, quase que disse, “eu também e daí?”, mas se conteve. Tinha um papel a desempenhar, papel decorado arduamente em anos de seminário. - De que forma o filho tem pecado? – o padre perguntou, ajustando os botões. - De muitas formas... eu... por exemplo, acho que governo metade do mundo... mas, a principal delas, que eu acho, é a ocultação de criminosos. - O filho precisa entregar os criminosos para a justiça. – Benedes aconselhou piamente sem atinar muito com a coisa. - Qual justiça? – apesar de tudo a dúvida continuava. - A justiça dos homens... é claro. - E na justiça de Deus, não vai nada? - Deus já terá julgado tais criminosos, mas mesmo assim eles precisam prestar contas à comunidade onde vivem. Precisam ir a julgamento. - Mas, isso já aconteceu. Foram punidos, foram condenados e coube a mim, sob ordens de Deus, ocultar pra sempre tais criminosos! O padre Benedes pensou: “De todos... esse é o mais louco”! - Não estou entendendo. - Mas vai entender já já! Durante alguns segundos o padre Benedes ficou entre sair do confessionário ou esperar, mas, repentinamente a cortina abriu e uma alegoria vermelha começou a saltar em sua frente, abrindo um tridente e chacoalhando o rabo, rindo de gaiato. Benedes, estupefato, levantou-se, cenho franzido. -E, agora, entendeu? - Ainda não. Quem é você? Ainda não estamos em fevereiro. O Gênio parou, desalentado. Baixou o tridente. Comentou consigo mesmo: - Sem moral! Completamente desmoralizado! E, ainda, com essa roupa de palhaço medieval! - Quem é o senhor, se me pode dizer? – pediu Benedes, saindo do confessionário e fechando o breviário com certo barulho brusco. - Eu sou... – estufou o peito para dizer pomposamente – Lúcifer! O padre Benedes olhou lentamente, de cabo a rabo, para assim dizer, aprumou os óculos, passou as mãos pelos cabelos pintados, coçou a ilharga e começou a rir, desbragadamente, às bandeiras soltas, às escâncaras. - Lúcifer! Rá, rá, rá, rá, rá Lúcifer? Essa foi muito boa, conta outra! Que coisa de louco, mesmo; louco, louco! – De repente ficou sério. – Quer brincar comigo, seu palhaço? Pensa que tenho tempo pra perder? Mas, o Gênio não se fez de rogado, pegou a deixa e não aceitou a reprimenda. - Ah! Então ficou nervozinho, heim? Vai mesmo me esnobar, padreco? pois fique sabendo que Tonica acaba de se levantar, está se lavando, limpando o que ficou preso nos pelos... O padre ficou lívido. Perguntou: - Como é que você sabe? - Já falei o meu nome. Mas você custa a acreditar... ainda... posso garantir que o seu pedido de empréstimo ao governo não passa na câmara. Será rejeitado, pois descobriram que o seu interesse é aliviar os cofres públicos de recheio, não é? Além do que a cidade ficaria com uma dívida até o ano 2010. O Padre Benedes retrocedeu um passo. - Você deve ser agente dos fiscais! - Não, meu inimigo, não! Sou o anjo das trevas! – e sua voz tremeu. Coelho De Moraes 33
  • 34. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Imediatamente o céu se fez negro, vestindo túnica de ventos e nuvens cinzentas, lançando coriscos prateados por todos os lados. A chuva desabou soturna sobre a igreja. Somente sobre a Igreja. O pároco não conseguiu fechar a boca e benzeu-se. - Não acredito em você! – Benedes gritou. - Mas, eu acredito em você e sei que o inferno está lotado, por causa da existência de pessoas do seu tipo – e, o sol voltou escandaloso, ardente e súbito. O Gênio coçou a barbicha. O rabo, com um volteio se aproximou do padre, que retrocedeu mais um passo, retirando o crucifixo e passando a rezar. - O que você deseja... Anjo decaído? - Nada. Apenas vim para me confessar, mas, parece que são poucos os que levam suas funções a sério neste planeta. – e, a voz do Gênio pareceu a dos narradores dos antigos filmes noir, meio anasalada e veludosa. - Os terrenos merecem! Mostrei-lhes o fruto e me chamaram de Serpente Maldita. Quis esclarecê-los e me prenderam na pedra para que Abutre comesse minhas entranhas, eternamente. Sabia que o enxofre acabou há muito tempo? Desde que Sodoma e Gomorra foram destruídas por aquelas bombas atômicas gastaram todo meu estoque. Benedes já estava escorado entre a parede e a porta da sacristia perto do altar. - E, estou aqui, perambulando pela terra, tentando encontrar um motivo... um único motivo que explique porque eu sou tão amaldiçoado o tempo todo, sendo que nada fiz. Nunca matei ninguém. O primeiro assassino foi Caim. Eu apenas tinha dado um fruto a dois pelados que encontrei no caminho. Falaram que se eles comessem do tal fruto morreriam e, não morreram coisa nenhuma... por aí se vê que o mentiroso não sou eu, no entanto fui chamado de Pai da Mentira. E aí! Como se explica isso? - A culpa não é minha, Bruxo do Inferno. - É sim... também... pois você propaga essa informação por todo canto. Ainda por cima, na escondida, não cumpre o que prega, quer dizer, é um hipócrita! E, eu... – o Gênio abaixara-se para pegar o tridente que estava no chão, – ... sou mandado para as profundezas da terra, tomar desoladas ondas de calor e alojar bandos irremediáveis de pecadores. – Virou-se para Benedes: – Afinal, você absolveu ou não, aquela cambada? - Alguns têm pecado mortal, seu pai do Mal. - Detalhes Burocráticos. O Chefe está fazendo reformas, você sabia? - Que Chefe? - O nosso Chefe, Padre Benedes Pará Brasília Ruas; o nosso Chefe padreco! Nisso, o Gênio se espreguiçou e pediu água. Estava com muita sede, uma vez que falara demais. Concluiu que ia zanzar pela cidade para ver se encontrava subsídio para a sua fé combalida, aproveitando para tirar a ridícula roupa. Devolveu o copo e partiu. 5) Era bem tarde na tarde e o Gênio caminhava absorto e sorumbático, olhando para uma ponte sobre o pequeno rio que cortava a cidade, chamado Ribeirão da Enxente. Parou por ali e se pôs a jogar pedregulho sobre a água. Às suas costas, o sol descia para a noite e ela, a noite, veio se aproximando cautelosa, mas, bem escura. Não havia estrelas, somente névoas, nem lua, tão pouco. Breu solene acampou sobre a cidade. O Gênio permanecia sobre a ponte e muitas vezes um transeunte aconselhou-o a se retirar dali, pois a noite era de ninfas e duendes. O gênio riu, mas, fingiu-se de assustado. Mais tarde, um velho se aproximou. Coelho De Moraes 34
  • 35. HISTÓRIAS DA ARCA DO VELHO Longas barbas, chapelão, cajado e voz gutural. Aproximou-se; falava sem parar, olhos assustados, e apontava o dedo para o Gênio das trevas: - Eu o conheço muito bem. O reconhecido punha as mãos na cintura, olhando de lado.“Epa!”, pensou “ Não me deixam em paz!” - Eu o conheço muito bem, você é o beiçudo... – instantaneamente o Gênio tomou forma de um macaco que mostra os lábios com acinte, – você é o bicho, o bode- preto... – e, novamente a transmutação em bode, mágica rápida e certeira, no entanto o velho continuou: - O Bute, o Cafuzo, o Caneco, o Caneta... - Eh! Péra lá. Ta legal que inventem um monte de apelidos, mas, Caneco... Caneta... O que mais? - Canheta! - Essa é boa canheta... nunca tinha ouvido... Qual é? - Você é aquele que destrói as famílias, os casamentos, os amores. Você é aquele que acaba com a vida das pessoas... o Esquerdo, o Cão... - Acho que o senhor me confundiu com algum bandido por aí... - Não, não confundi coisa alguma. Você é o Canhim, o Diacho, o Futrico, o Grão tinhoso... - Tai! Grão-Tinhoso gostei: Tem o seu valor, a sua nobreza! Mas, e você é quem? O outro começou a retirar a fantasia. - Sou o Moleque de Surrão! - Primo do Pererê. - Exato! Às suas ordens. – Abraçaram-se. – Mas, me diga, senhor... O que é que o Gênio faz por aqui? - Peregrinação. Tento encontrar o caminho da nova costela de Adão. Abdiquei o meu trono sub-terráqueo e me pus a procurar uma nova ideologia. - Sempre soube que você era revolução pura, desde o começo dos tempos. Pau puro... lenha na fogueira... - Como... você nunca foi lá para baixo? - Nunca... não é meu nível... não tenho permissão... Eu perambulo nesse nível de Terra mesmo... Depois, fiquei sabendo que tinha ganhado um cargo no Hades. Procurador Infernal e os cambáu, ou coisa que o valha. Eu e minha turma tiramos você da nossa idéia, pois pensávamos que tinha traído a causa. Aburguesou, pensamos... - Nunca traí, na verdade. Mas, que eu me acomodei, lá isso também é verdade. – O Gênio coçou a cabeça. Convidou o outro para andarem pelas ruas. Tomaram a direção do cinema, perto da praça. – Estou disposto a corromper todo mundo novamente. Dar maçã para todo mundo, pelado ou não, e ver até que ponto, conhecendo as informações que temos, até que ponto continuam viver como porcos. - Isso tá difícil, Gênio, muito difícil. Vai por mim. - Quero voltar pra ativa. - Conte conosco. - Obrigado. Mas, acredito que tenhamos de mudar a imagem. Assumir, definitivamente a nossa posição de iluminados. Ser Lúcifer e ser o Guardião da Luz. Uma volta às origens... Não é à toa que o inferno queima em luz... - A luz da inteligência e do conhecimento... – o outro completou. - Você quer coisa pior do que ser chamado de Dialho, Mafarrico, Rabudo, ou mesmo, Pedro-Botelho? Baixo nível. Coelho De Moraes 35