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6 editorial


Pelo conjunto da “obra”
         Correio das Artes, seguindo a                                                                                      um planeta isolado em meio à ga-

  O      trilha aberta pela Associação
         das Empresas de Transportes
         Coletivos de João Pessoa
         (AETC-JP), que lhe outorgou a
                                                                         Para Joana, através
                                                                         de petições online e
                                                                         coleta de
                                                                                                                            láxia. O universo de Joana exis-
                                                                                                                            te e brilha exatamente por estar
                                                                                                                            em guerra ou harmonia.
                                                                                                                              A harmonia nasce do carinho
         homenagem maior de seu Prêmio                                                                                      que dedica aos que lhe são pró-
         de Jornalismo, presta também um                                 assinaturas se                                     ximos e do sonho de uma socie-
         tributo à jornalista, escritora e                                                                                  dade onde vigorem a liberdade e
         professora universitária paraiba-                               consegue botar a                                   a justiça social. A guerra é de-
         na, Joana Belarmino, pelo con-                                                                                     clarada contra aqueles cujas ati-
         junto de sua "obra" política,                                   'boca no trombone' e                               tudes comprometem o bem-estar
         profissional e existencial.                                                                                        da humanidade - leia-se os maus
            Nas redações, Joana deu exem-
                                                                         praticar a mudança.                                patrões, os assassinos, os la-
         plos de competência na cobertura                                                                                   drões, os corruptos etc e tal.
         dos fatos e na construção de tex-                                                                                    Além da homenagem a Joana,
         tos, de solidariedade e de insub-                                                                                  o Correio traz, como sempre,
         missão às determinações que feri-                               como uma alternativa real e efi-                   excelentes artigos versando so-
         am sua consciência e o código de                                caz de praticar a cidadania. Para                  bre diversos temas da cultura,
         ética da profissão. Na literatura,                              ela, através de petições online e                  notadamente literatura e cinema,
         leitora assídua e atenta que é,                                 coleta de assinaturas se consegue                  além dos textos imprescindíveis
         colheu as lições que a tornaram                                 botar a 'boca no trombone' e ob-                   de sua equipe fixa de colunistas,
         cronista. E na cátedra, partilha                                ter êxito, praticar a mudança.                     formada por escritores e profes-
         com seus alunos o que os livros e                                 A natureza impôs o primeiro                      sores universitários de notório
         a experiência lhe ensinaram.                                    grande desafio, superado com a                     saber, em áreas como mitologia,
            Joana também filiou-se ao ci-                                crescente consciência de si mes-                   cinema, literatura e mídia.
         berativismo, pois, para ela, a in-                              ma, de seus limites e de suas pos-
         ternet possibilita alcançar públi-                              sibilidades. Hoje, Joana tem no
         cos de todas as idades e grupos                                 centro de seu mundo a família e
         sociais, de modo que a rede surge                               os amigos, mas não se trata de                                                     O Editor



6 índice

      ,                            4 @                                         16 D                                    19 2                                     21
      ESPECIAL                                  CINEMA                                         MEMÓRIA                               CRÍTICA
      A trajetória de sonhos, luta e            A professora Genilda                           Versos eivados de emoção,             ‘A representação minimalista

      superação da jornalista,                  Azerêdo “coteja” o filme                       saudade e revolta. Assim é            de O Quadro-Negro’, de

      escritora e professora Joana              Bright Star, de Jane                           ‘meu jovem filho’, do poeta           Ernani Sátyro, é o título do

      Belarmino, na reportagem                  Campion, com a poesia do                       e professor da UFPB,                  artigo da professora

      de Vanessa Furtado.                       inglês John Keats.                             Amador Ribeiro Neto.                  Ângela Bezerra de Castro.


                Suplemento mensal do jornal A UNIÃO, não pode ser vendido separadamente

                A União Superintendência de Imprensa e Editora             Secretário Est. de              Diretora de Operações           Editoração
                                                                           Comunicação     Institucional   Albiege Fernandes               Paulo Sérgio de Azevedo
                BR-101 - Km 3 - CEP 58.082-010 - Distrito Industrial -     Nonato Bandeira
                João Pessoa - PB                                                                           Editora Geral                   Ilustração
                PABX: (0xx83) 3218-6500 - FAX: 3218-6510                   Superintendente                 Beth Torres                     Domingos Sávio e Tônio
                                                                           Severino Ramalho Leite
                Redação: 3218-6511/3218-6512                                                               Editor do Correio das Artes     Foto da Capa
                ISSN 1984-7335                                             Diretor    Administrativo       William Costa                   João Lobo
                editor.correiodasartes@gmail.com                           José Arthur Viana Teixeira
                                                                                                           Supervisor Gráfico
                                                                                                                                           Revisão
                                                                                                                                           Antônio Moraes
                http://www.auniao.pb.gov.br                                Diretora Técnica                Paulo Sérgio de Azevedo
                                                                           Beth Torres
FOTOS: JOÃO LOBO

6 reportagem




                                               Joana
                                    Belarmino,
            A beleza de viver sob a verdadeira luz




          Vanessa Furtado


          oana Belarmino tinha apenas sete



J         anos de idade e estava descobrin-
          do o encanto das letras e o poder
          das palavras, quando o mundo
          mágico de Monteiro Lobato lhe
          foi apresentado por uma profes-
          sora. Encantada com a obra que a
          instigava e desafiava na busca por
          novas aventuras, ela se deixou le-
          var por entender que o caminho
          para enfrentar as dificuldades
          que o mundo lhe reservava e, con-
          sequentemente, desenvolver seu
          potencial, estava escondido em
          páginas de livros, à espera de sua
          curiosidade.

4 | João Pessoa, novembro de 2011               Correio das Artes – A UNIÃO
Assim, a hoje jornalista, professora e escritora en-
tregou-se ao prazer da leitura e passou também a
escrever e narrar suas próprias histórias. Descobriu
que a visão não é definida pelas imagens que se pro-
jetam na retina, e que seus sonhos e fantasias são
reais, sendo a sua imaginação tão rica e poderosa
que é capaz de maravilhar crianças e adultos.
   “À medida que fui aprendendo a ler, fui também
me aproximando cada vez mais da literatura a pon-
to de recriar as histórias a meu modo e a contá-las
com dramaticidade a meus irmãos”, disse Joana,
durante entrevista concedida ao Correio das Artes, na
sala de seu apartamento, no bairro do Cabo Branco,
em João Pessoa. Qualquer lugar servia e todo mo-
mento era uma oportunidade para ela exercitar o
gosto pela narração que a impulsionaria, alguns anos
depois, a decidir-se pelo jornalismo como profissão.
   Joana contou que o jornalismo lhe satisfaz à medi-
da que ela tem a oportunidade de contar histórias
peculiares da vida da cidade e de personagens às
vezes comuns, às vezes excêntricos, mas confessa que
gostaria mesmo é de ter sido escritora de histórias
infantis. “Ainda me aventurei pela literatura infan-
til e publiquei, de forma independente, uma reunião
de contos para crianças em 1979. Quatro anos de-
pois, publiquei pela Editora Moderna, em quatro edi-
ções, Dartanhan, Um Gato com Gosto de Pinto, e, no fim da
década de 1990, lancei, pela Editora Ideia, Era Uma
Vez Uma Vírgula”, ressaltou.                                         Joana não apenas lia, mas recriava a seu modo o que lia




                      A IMPORTÂNCIA                                    Machado de Assis pela primeira vez. “Eu
                      DA FAMÍLIA                                       progredi rapidamente e passei a ler tudo o
                         Se o incentivo da família e dos profes-       que aparecia e as obras desses autores me
                      sores é importante para o desenvolvimen-         influenciaram de forma muito positiva.
                      to saudável das crianças, ele se torna fa-       Graças à literatura eu me fortaleci, enquan-
                      tor fundamental para a educação de defi-         to pessoa, e aprimorei minha escrita e mi-
                      cientes visuais. No caso de Joana Belarmi-       nha intelectualidade”, afirmou.
                      no, a experiência com os livros proporcio-          Quando a adolescência lhe bateu à por-
                      nou uma melhor percepção das muitas              ta, Joana Belarmino já havia moldado em
                      informações do ambiente, e se tornou re-         si um aguçado olhar interior e a poesia foi
                      levante para seu crescimento e continui-         a forma escolhida para expor sua sensibi-
                      dade de sua aprendizagem. “Tive uma in-          lidade. Com a percepção mais desenvolvi-
                      fância feliz, no entanto, como deficiente        da sobre as artes, ela escrevia sobre as su-
                      visual, enfrentei muitas frustrações. Eu era     tilezas do que ouvia, tocava e sentia. A pe-
                      fascinada por esportes que eram pratica-         culiaridade presente na maneira como re-
                      dos com o uso de bola, mas nunca prati-          conhecia o mundo proporcionou brilho,
                      quei e, quando fui estudar em escola co-         contraste e colorido especial a seus versos
                      mum, vi que as pessoas não estavam pre-          e foi transplantada para sua vida pessoal.
                      paradas para lidar comigo”, revelou. Para           Atualmente, as experiências que presencia
                      compensar a ausência dessas experiênci-          em seu lar, em seu trabalho e no mundo que a
                      as, Joana fortaleceu sua personalidade,          cerca são reveladas de forma extremamente
                      aprimorando a habilidade de contar boas          fina e sensível no blog que ela mantém na in-
                      histórias e jamais se rendeu ao medo.            ternet. Através do joanabelarmino.zip.net, a
                        Ela lembra, com alegria, da sensação ain-      escritora tece comentários críticos e narrati-
                      da gravada no peito de estar lendo obras         vos de recortes da realidade que de alguma
                      de Monteiro Lobato, José de Alencar e            maneira despertaram sua atenção.

A UNIÃO     – Correio das Artes                                                  João Pessoa, novembro de 2011 | 5
“Não sei explicar ao certo o
                                             porquê, mas sou fascinada por
                                              entender o momento humano
                                                  que antecede o fim.”




FIM DE TARDE,                                                      cia. Por isso, ela mantem o hábito de escrever
                                                                   contos e participa de coletâneas e de encon-
VELHICE E MORTE                                                    tros, a exemplo do Circuito Universitário, da
       “Os temas sobre os quais constantemente                     Associação dos Docentes da Universidade
     me debruço são: a morte, os fins de tarde e a                 Federal da Paraíba (Aduf-PB) e do Clube do
     velhice. Não sei explicar ao certo o porquê, mas              Conto da Paraíba.
     sou fascinada por entender o momento huma-                      Para Joana, desvencilhar-se de seus pró-
     no que antecede o fim”, salientou. Para Joana                 prios sentimentos e escrever uma obra com-
     Belarmino, o tempo é registrado e entendido                   pletamente diferente de si é algo, por enquan-
     de forma especial, e essa peculiaridade é ins-                to, impossível. Requer um amadurecimento
     piradora. “Me surpreendo sempre com o pul-                    e uma capacidade de abstração e indiferen-
     sar de vida que há em cada lugar. Muitas ve-                  ça incompatíveis com sua personalidade. “Já
     zes estou em casa, concentrada em meus afa-                   tentei, mas não consegui. Em cada um de
     zeres e de repente sou despertada pelo cheiro                 meus textos há sentimentos, fatos e emoções
     do café na casa da vizinha, pelo doce barulho                 próprios de meu coração. Costumo afirmar
     do retorno das crianças depois da escola e pelo               que ainda não alcancei o grau desejável de
     ritmo crescente de veículos que levam pessoas                 maturação e que minha escrita é terapêuti-
     de volta a seus lares. Essa magia requer regis-               ca”, sublinhou.
     tro e é isso o que faço”, explicou.                             Indisciplinada, mas muito criativa, Joana
       Joana foi casada durante 13 anos com o poe-                 confessou o seu desejo de escrever um livro
     ta Lau Siqueira, com quem teve duas filhas                    apenas com romances implícitos em frases
     (Mariana e Mayra) e uma neta (Gabriela). Com                  de livros, histórias de personagens passa-
     ele, a jornalista publicou o livro de poemas e                geiros em romances, mas cujas aparições
     contos O Comício das Veias. “Lau é um homem                   são suficientes para desencadear questiona-
     muito importante em minha vida. Nossa fa-                     mentos sobre o futuro, que atitudes teriam
     mília foi um presente e as experiências profis-               tomado, se foram felizes ou não. A inspira-
     sionais foram enriquecedoras”, declarou.                      ção para seus contos e crônicas surge de sen-
       A capacidade que a literatura possui de en-                 timentos muitas vezes antagônicos – a pai-
     volver o seu humano nos mais diversos sen-                    xão e a tristeza –, mas que preparados com
     timentos, e de fertilizar interesses e emoções                atenção, talento e uma pitada de racionali-
     é, segundo Joana, de fundamental importân-                    dade, garantem o sucesso.


6 | João Pessoa, novembro de 2011                                                  Correio das Artes – A UNIÃO
O JORNALISMO                                               lhou, durante quase nove anos, na redação.
                                                             Outro desafio marcante na carreira desta
– DESAFIOS E VITÓRIAS                                      jornalista, na redação de O Norte, aconteceu
       Tímida e com dificuldades de relacionamen-          durante a cobertura de uma manifestação de
    to, Joana Belarmino teve a vida transformada           estudantes no Centro Universitário de João
    a partir do instante em que passou a fazer par-        Pessoa (Unipê). “Fui enviada para acompa-
    te do quadro de alunos do Curso de Comuni-             nhar a tentativa dos alunos de invadir a sala
    cação Social, com habilitação em Jornalismo,           onde funcionava o DCE, mas fui sozinha, o fo-
    da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).             tógrafo não pôde me acompanhar. Ao chegar
    Como uma borboleta que sai do casulo, ela en-          lá eu me senti muito insegura e, quando os sol-
    xergou-se, pela primeira vez, como uma pes-            dados realizaram a formação, eu achei que eles
    soa normal.                                            fossem invadir. Neste momento eu não tinha
       “Foi na UFPB que conheci as pessoas que se          a dimensão da cena que se desenrolava na
    tornaram meus grandes amigos e pude desen-             minha frente e me senti vulnerável, mas foi aí
    volver todas as minhas potencialidades. Par-           que superei e, com dificuldade, consegui en-
    ticipei de Movimento Estudantil e de uma sé-           trevistar o tenente que estava comandando os
    rie de atividades que a academia me oferecia”,         soldados e voltei para a redação com um exce-
    lembrou. Mas os desafios para esta paraibana           lente material”, relatou.
    estavam apenas começando e, por vezes, ela               Durante as entrevistas, Joana costumava
    precisou abrir mão de mais um sentido para             utilizar um gravador ao mesmo tempo em que
    permanecer no sonho. “Muitas pessoas me di-            fazia as anotações em braile, que é o sistema
    ziam que ia ser difícil e que eu não teria suces-      de escrita e leitura para cegos. Alfabetizada
    so, mas eu era jovem e não dei ouvidos a elas,         através de um grupo de pontos, costumeira-
    prossegui no curso e me graduei”, acrescen-            mente utilizados para encerrar as frases, mas
    tou.                                                   que agrupados constituem 63 símbolos dife-
       Ainda enquanto estudante da UFPB Joana              rentes, que servem para representar caracte-
    se aventurou e produziu quatro grandes re-             res na literatura, matemática, informática e
    portagens para uma revista da instituição.             música, Joana tem escrito sua própria histó-
    Com apoio do irmão - que a acompanhava - e             ria.
    uma câmera fotográfica ela registrava os mo-             Segundo ela, o medo de errar, de não conse-
    mentos que iriam compor as páginas, e pro-             guir, de decepcionar sempre existe. No entan-
    vou para todos e, especialmente, para si mes-          to, é exatamente este medo o responsável por
    ma, que este sonho era possível.                       ensinar algumas das mais importantes lições,
       Passado algum tempo, e já diplomada, a en-          entre elas, a de que é preciso avançar, sempre.
    tão jornalista Joana Belarmino recebe convite
    do jornal O Norte, de João Pessoa, e passou a
    trabalhar na empresa. Ela recordou os con-
    tratempos enfrentados como detalhes essen-
    ciais de uma experiência única, mas fez ques-       A CONQUISTA
    tão de guardar no relicário da memória, o apoio     DA CÁTEDRA
    cúmplice dos chefes e amigos que contribuiu
                                                             Depois de superar os inúmeros desafios que
    para firmar a certeza de ter escolhido a profis-
                                                           a redação de jornal lhe reservara, Joana Belar-
    são perfeita.
                                                           mino partiu para uma nova etapa. Aprovada
       “Lembro em detalhes de meu primeiro dia
                                                           em concurso público, ela se tornou, em 1994,
    na redação. Minha pauta era uma entrevista
                                                           professora do curso de Comunicação Social da
    com a então secretária estadual de Educação,
                                                           UFPB. “Foi a realização de um sonho. A possi-
    Giselda Navarro, sobre desvio de verbas. Fui
                                                           bilidade de passar meu conhecimento de aca-
    no carro da reportagem e, quando cheguei ao
                                                           demia e de profissional me trouxe energia”,
    local, aprendi o significado do termo ‘chá de
                                                           acentuou.
    cadeira’. Depois de algumas horas ela me rece-
                                                             As qualidades de mulher inquieta e de pro-
    beu e a entrevista rendeu bem”, recordou.
                                                           fissional questionadora foram levadas para
                                                           dentro da UFPB e, a partir de então, Joana tem
      Mas, para quem acha que encarar ambien-
                                                           se destacado como uma das docentes mais em-
    tes e pessoas completamente desconhecidas e
                                                           penhadas em levar ensino de qualidade aos
    “arrancar” delas as informações que precisa
                                                           estudantes daquela instituição. “Tento man-
    sem enxergá-las foram os maiores desafios en-
                                                           ter um diálogo estreito com outras interfaces,
    frentados por Joana, seria bom experimentar
                                                           sejam elas a arte, a literatura ou mesmo as
    redigir uma reportagem de página inteira em
                                                           histórias de vida de cada um”, destacou.
    uma máquina de datilografia e não poder cor-
                                                             Joana disse que ao longo dos seus 17 anos
    rigi-la. E foi exatamente assim que ela traba-
                                                           como professora descobriu que o ensino é um


A UNIÃO   – Correio das Artes                                          João Pessoa, novembro de 2011 | 7
contrato e que, para dar certo, é necessário que
      todos os envolvidos colaborem. Através de
      métodos criativos e eficientes, ela tem conquis-
      tado o comprometimento de seus alunos, con-
      seguindo, assim, desenvolver neles qualida-
      des fundamentais para a formação do bom
      profissional de comunicação. “Procuro ques-
      tionar os conceitos deles sobre a ética profissi-
      onal e fazê-los enxergar a importância do diá-
      logo constante com a literatura. A escrita é o
      instrumento do jornalista e desenvolver um
      bom texto, com narratividade e criatividade,
      é fundamental”, justificou.
        Questionada sobre o preconceito em sala
      de aula, ela diz que jamais foi hostilizada por
      sua condição física e que a maior parte dos
      estudantes é respeitosa. Convicta de que seu
      grande diferencial não é o fato de ser defici-
      ente visual, mas a maneira como trabalha,
      como orienta seus alunos, Joana tem plena
      convicção de que o estigma de seu corpo não
      pode ser um atributo depreciativo, e que a
      interiorização de quem ela é, realmente, é o
      que garante sua felicidade.




NA ARENA DAS
REDES SOCIAIS
        Durante a aventura de se tornar doutora
      em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
      Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP),
      em 2004, Joana Belarmino se rendeu ao cibe-         sibilitado uma interação valiosa entre a pro-
      rativismo e, hoje, é uma das pessoas mais in-       fessora e seus alunos, à medida que dúvidas e
      fluentes do estado nas redes sociais. “Através      alertas estão sendo transmitidos em tempo
      do avanço da tecnologia é possível que defici-      real. O mesmo acontece entre a escritora e seus
      entes visuais tenham acesso a todos os meios        leitores, que ao longo de 2011 experimentaram
      de comunicação e, assim, temos transforma-          a criação do NanoRomance. O projeto uniu
      do a internet em uma grande arena de mobi-          André Ricardo Aguiar, Beto Menezes, Joana Be-
      lização”, observou.                                 larmino, Anderson e Raoni no objetivo de de-
        Usuária assídua das ferramentas que possi-        senvolver personagens que decorreriam capí-
      bilitam trocas de informações instantâneas          tulos ligeiros sobre os mais diversos temas.
      entre pessoas de todo o mundo, Joana tem de-          O projeto encerrou-se em 2 de junho de 2011,
      senvolvido pesquisas e feito parte de fóruns e      quando Joana Belarmino, última remanescen-
      grupos de discussão. Nestes movimentos, ela         te, fez as malas e partiu. Zarpando para a “ge-
      e tantos outros exigem de políticos e da socie-     leira azul da solidão”, ela deu adeus aos leito-
      dade civil providências para questões impor-        res e amigos, afirmando que não sabe “tomar
      tantes, tais como cumprimento dos direitos          café sozinha” e alegando que, com o tempo,
      do consumidor, direitos humanos, fim da cor-        “até a ‘matilha’ de leitores se foi”.
      rupção, conservação da natureza, acessibili-          No entanto, esta paraibana multifacetada
      dade e cultura de paz.                              ainda promete surpreender muita gente com
        “A internet possibilita alcançarmos públi-        novas formas de educar, a publicação de li-
      cos de todas as idades e grupos sociais de modo     vros inéditos e campanhas mobilizadoras em
      que o ciberativismo surge como uma alterna-         redes sociais. Joana garante que não jogou as
      tiva real e eficaz de praticar nossa cidadania.     chaves de sua criatividade ao mar, e que tem
      A cada dia damos um passo, e através de peti-       “esquecido” fragmentos de si em pequenas
      ções online e coleta de assinaturas consegui-       gavetas. Ao longo dos anos que se seguirão,
      mos colocar a ‘boca no trombone’ e obter êxi-       certamente encontraremos tesouros que ape-
      to, praticar a mudança”, assegurou.                 nas as percepções de um “olhar” de guerreira
        Além disso, as plataformas virtuais têm pos-      são capazes de nos permitir vislumbrar.

8 | João Pessoa, novembro de 2011                                         Correio das Artes – A UNIÃO
6 conto




                         Sonho
                                                 de Sábado
Joana Belarmino



S   onhou que ele vinha. Não tinha sido um sonho longo, cheio de detalhes. Algo como um
telegrama, por baixo do seu sono de lexotã, sílabas aparentemente desconexas a ditar-lhe
o inusitado. Chegaria com a fome do seu corpo, e lhe despiria as parcas roupas, ali, perto
da porta, e a pressa se transmudaria em contemplação, em diálogo de respirações e
toques, em entrega.
   De manhã ergueu-se à pressa, e surrupiou, no mercadinho da rua paralela, o sabonete
de erva-doce com que se lavaria.
   Banho frio e revigorante, a lhe escorrer em grosso cone do velho cano do pequeno
banheiro, a lhe lavar todas as sujidades, a lhe purificar o espírito, aceso pelas promes-
sas do sonho.
   Imaginou-lhe a barba de muitos dias, a acumular dos cheiros da sua vida incerta,
e experimentou, no fundo do sexo, a pulsação excitante de o saber ali, a vasculhar seu
corpo, a provocar-lhe ganidos íntimos nas entranhas untadas de paixão.
   A manhã de sábado trouxe o jogo improvisado dos meninos de sempre, a berrar
com suas vozes roucas e nasaladas.
   Dentro de casa, fervia o chá e lutava por fazer calar-se o vento de outono, afim de
que não perdesse os ruídos das velhas sandálias dele, a subir a rua.
   Ele viria. Chegaria sem se anunciar, e ficaria a contemplá-la, da porta, antes
de entrar, um cinismo quase terno a enrugar-lhe o lábio superior, a exibir a
falha dentária. E com passo sorrateiro iria até a sua velha cama, e se deita-
ria, quase sem barulho, e ela sentiria a paz de tê-lo ali, num sábado
suspenso no tempo, a tremer de paixão.
   O sol do meio dia, amarelado e triste, cedia lugar à tropelia das
nuvens. Ele viria com a chuva. A água a lhe molhar o velho casa-
co, a se entranhar pelos seus cabelos, a lhe emprestar um chei-
ro a cachorro molhado, cheiro que tanto a excitava.
   A rua anoiteceu, ainda era cedo da tarde. Ele viria. Traria
o desassossego da pressa, a cachaça comprada ali, no
buteco da esquina.
   E a chuva grossa, feito marceneiro, desconjuntava
pouco a pouco a sua certeza. Fazer alguma coisa. Re-
começar. Banhar-se na tarde, entregar seu corpo ao
latejar da água, correr, correr, encurtar o caminho,
encontrar-se com ele no meio da chuva.
   E saiu porta a fora, e viu assombrada a força da
água a erguer sua casa ao colo, a destampar a
chaleira e entregar o chá fervido ao largo rio que
era agora a sua rua. Ele viria. Ele viria com os
braços erguidos, e fariam amor do meio da
chuva, no cimo da tormenta, a remarem sua
paixão intensa sobre os frágeis toros da casa
desmantelada.

            Jornalista, escritora e professora


A UNIÃO     – Correio das Artes                                       João Pessoa, novembro de 2011 | 9
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               João Batista de Brito
               brito.joaobatista@gmail.com




                               É tudo
                              mentira                                             ,

         - ou quase tudo
                         cinema começou documental. Disso nin-           esquecido. Quem hoje chamaria um fil-

            o            guém tem dúvidas. O que os irmãos Au-
                         guste e Louis Lumière fizeram em filmes
                         de 1895 como A Chegada do Trem à Estação e
                         A Saída dos Operários da Fábrica era realmen-
                                                                         me ficcional de “posado”?
                                                                           Uma ironia que não pode deixar de
                                                                         ser colocada é que, naqueles tempos
                                                                         primitivos do cinema ainda predomi-
                         te documentário, no sentido amplo de re-        nantemente documental, a ideia de
                         gistro do real. Como os irmãos Lumière          que cinema consistia no mero registro
                         foram os primeiros divulgadores do novo         da realidade era tão consensual que
                         meio, o conceito de documentário se con-        até as “poses” dos irmãos Lumière
                         fundiu, por um tempo, com o conceito de         passavam por verídicas. O Regador Re-
                         cinema. Apesar dos experimentos técni-          gado (1895), por exemplo, é um filme
                         cos do prestidigitador Georges Méliès,          todo “posado”, e, contudo, esse lado
                         que investiam na fantasia e no surreal,         ficcional não veio à tona para ninguém
                         essa confusão perdurou e na primeira            da época, em parte por culpa de seus
                         década do século XX ainda se pensava            autores que – estranhamente - defen-
                         uma coisa pela outra.                           deram sempre firmemente a ideia de
                           No Brasil daquela época, por exemplo,         que o cinematógrafo fora concebido
                         o documentário era tão comum que, nos           para o exclusivo registro do real.
                         poucos circuitos de exibição, os filmes           Essa equação cinema=documentário foi,
                         não-documentais eram anunciados como            como se sabe, corrigida pelo tempo, e o
                         “posados”, e o adjetivo significava que as      século XX viu o desabrochar e a consa-
                         pessoas que se viam na tela haviam ence-        gração do seu oposto: embora eminente-
                         nado (posado) a estória, que, verídica ou       mente representacional (ou seja, nunca
                         não, era narrada assim, a partir de suas        abstrato), o cinema efetivamente consa-
                         “poses”. O fato de que não havia um ter-        grou-se como uma arte narrativa e ficci-
                         mo para denominar os filmes que não fos-        onal (se você quiser usar o termo antigo,
                         sem “posados” deixa bem claro o predo-          “posada”). Sem se extinguir, o documen-
                         mínio do cinema documental, certamen-           tário diminuiu de tamanho: deixou de
                         te entendido como o normal. Com o pas-          ser sinônimo da arte cinematográfica
                         sar do tempo, os “posados” (principal-          como um todo e sensatamente acomo-
                         mente os advindos da então emergente            dou-se no conceito de gênero, ao lado dos
                         Hollywood) tomaram conta do mercado:            tantos outros existentes.
                         eram tantos, e os documentais tão escas-          Mas é neste ponto que aparece um
                         sos, que o adjetivo caiu em desuso e foi        equívoco crucial, recorrente nos meios c




10 | João Pessoa, novembro de 2011                                               Correio das Artes – A UNIÃO
6      imagens amadas
c cinematográficos. Por ser o gê-
  nero documentário entendido
  como “cinema sem ficção”, isso
  passou, para muita gente, a ideia
  de que um filme documental
  mostraria o real tal qual ele é,
  ou seja, sem interferência do ci-
  neasta – para usar uma expres-
  são de Roland Barthes, uma es-
  pécie de grau zero de linguagem,
  ou seja, uma forma de discurso
  em que o enunciado (o filme em
  si), cedeu lugar à enunciação (a
  realidade filmada) e sequer che-
  gou a nascer.
    A noção de um tal cinema do-
  cumental idealmente puro, e,
  portanto, hiper-realista, não foi
  só dos irmãos Lumière e, ao lon-
  go da História, ela ressurgiu em
  vários momentos, com nomes                                                                 Auguste e Louis Lumière
  variados. Nos anos cinquenta-
  sessenta, essa noção teve um                                                  no real, pois o real é assimétrico,
  renascimento significativo com
                                        A noção de um tal                       disperso, caótico: não é montado.
  o etnólogo Jean Rouch, que pas-       cinema documental                         Como se sabe, é comum que
  sou a propor e fazer um “cine-                                                um documentário tenha um co-
  ma-verdade”, esse que fala por        idealmente puro, e,                     pião extremamente longo (em al-
  si mesmo, como se à revelia de                                                guns casos, com dezenas de ho-
  quem filma. Ora, que essa pure-
                                        portanto, hiper-realista,               ras de duração) que não seria vi-
  za de linguagem não faz sentido       não foi só dos irmãos                   ável para público algum assistir.
  por uma razão muito simples:                                                  Uma tarefa do documentarista é
  embora desejada por alguns, ela       Lumière.                                sistematicamente cortar, deixan-
  é semioticamente impossível, o                                                do de lado milhares de fotogra-
  que também equivale a dizer:                                                  mas, e escolhendo o que o públi-
  cientificamente impossível.                                                   co vai ver, e em que ordem o verá.
    Como nos explica Ferdinand de                                               Bastaria o cotejo das duas metra-
  Saussure nos seus ensinamentos                                                gens (duas horas para o filme
  linguísticos, toda linguagem é fei-                                           pronto e dez para o copião, diga-
  ta de escolhas. De escolhas e de                                              mos...) para se ter uma ideia do
  combinações, é verdade, mas, es-      um determinado assunto, e não           grau de ingerência do autor so-
  tas também são escolhas, pois         outro, ele já está fazendo uma es-      bre a obra. A edição do som (fa-
  combinamos o que queremos do          colha. Quando liga a câmera e fil-      las dos depoentes e/ou voz em
  modo que queremos. A língua pos-      ma o objeto escolhido, ele o enqua-     over do autor) e, se for o caso (e
  sui um número dado de palavras        dra e ilumina de uma determina-         geralmente é) o acréscimo da
  e um número também dado de            da maneira, e não de outra, e como      música terminam por definir o
  regras, e, contudo, ao falar, você    ele o enquadrou e o iluminou foi        caráter pessoal, e, portanto, au-
  escolhe as palavras que quer usar     escolha sua. Se formos recobrir o       toral, de todo e qualquer filme
  e, sem quebrar a regra da inteli-     processo inteiro, todas as etapas       documental.
  gibilidade, as combina da forma       da filmagem de um documentá-              Agora, atenção, esse caráter
  que lhe apraz.                        rio implicam escolhas, mas, de          pessoal, subjetivo, autoral, não
     Do mesmo modo, o gesto de fil-     todas, talvez a montagem seja a         concede ao documentário uma
  mar consiste num amontoado de         que melhor ilustra a interferên-        natureza ficcional. Pelo menos,
  escolhas que se superpõem e dão       cia do cineasta sobre a forma e o       necessariamente, não. Docu-
  ao resultado final um aspecto         sentido do filme. Nessa etapa, o        mentário e filme ficcional são a
  bem particular, um pouco menos        cineasta – representado pelo            rigor duas coisas diferentes que
  objetivo do que se quer, e um pou-    montador, ou não – corta o que          não podem ser confundidas. Bas-
  co mais subjetivo do que se ima-      filmou e não quer manter, e mon-        taria o velho termo “posado”
  gina. Por mais realista que queira    ta as partes do filme do modo que       (usado em um e proibido no nou-
  ser, quando um cineasta-docu-         quer, normalmente buscando efei-        tro) para assegurar a diferença.
  mentarista decide que vai filmar      tos de sentido que não estavam          A natureza de cada um é tão evi- c


  A UNIÃO     – Correio das Artes                                             João Pessoa, novembro de 2011 | 11
6      imagens amadas
c dente que, suponho, não necessi-
  ta de definições. E mesmo o fato
  de certos documentários conte-
  rem momentos ficcionais e cer-
  tos filmes de ficção conterem tre-
  chos documentais – mesmo este
  fato não destroi a diferença entre
  os dois gêneros.
     O que iguala documentário e
  filme ficcional é algo que está
  mais embaixo – ou seria mais
  encima? –: o fato de que ambos
  são autorais. A colocação é im-
  portante para a reflexão sobre a
  relação do documentário – e por
  tabela, do cinema em geral - com
  a realidade. Ao afirmarmos que
  um filme documental é tão auto-
  ral quanto um filme ficcional, ne-
                                                  A Chegada do Trem à Estação (1895), dos irmãos Auguste e Louis Lumière
  cessariamente implicamos que a
  realidade que nele aparece não
  coincide de todo com – se for pos-                                             am? A rigor, porque os Lumière,
                                        um filme ficcional sobre
  sível o pleonasmo - a “realidade                                               de propósito ou não, escolheram
  real”, porque, inevitavelmente,       um problema real (a                      (e o verbo é chave para nós) um
  consiste numa realidade constru-                                               determinado enquadramento – e
  ída pelo documentarista.              revolução russa, por                     não outro – que propiciava esse
     Essa “realidade construída”                                                 medo: filmado de longe, o trem
                                        exemplo) pode vir a ser
  pode até ser (e geralmente é) mais                                             avançava em direção à câmera, o
  enfática, ou mais envolvente, ou      mais realista do que um                  que equivale a dizer, em direção à
  mais contundente, ou mais signi-                                               tela, ou seja, ao espectador. Tives-
  ficativa, do que a “realidade real”   documentário sobre o                     sem os autores do filme escolhido
  e, contudo, isso não torna o filme                                             um outro enquadramento (o trem
                                        mesmo assunto.
  documental mais realista, pois a                                               se afastando, ou simplesmente
  rigor, ele é um constructo, em ter-                                            cruzando a tela de um lado a ou-
  mos simples, uma visão pessoal.                                                tro), com certeza, a reação do es-
  Se fosse para continuarmos com                                                 pectador primitivo teria sido ou-
  a dicotomia documental/ficcio-                                                 tra. Aqui não interessa se os Lu-
  nal, valeria lembrar paradoxos                                                 mière quiseram ou não provocar
  que não são fáceis de entender e                                               o medo; o que interessa, para nós,
  que, no entanto, são verdadeiros      com os inventores e pioneiros            é que, num filme de uma única
  e pertinentes para a nossa refle-     com que abrimos esta matéria, os         tomada, breve e mimética, eles
  xão. Um deles é o seguinte: um        irmãos Lumière. Segundo os his-          colocaram, ao escolher o enqua-
  filme ficcional sobre um proble-      toriadores, os jornais da época          dramento, um inequívoco sinal
  ma real (o assassinato de Ken-        deixaram registradas as reações          de autoria. Assim, se o primeiro
  nedy, ou a revolução russa, ou        dos primeiros espectadores ao fil-       documentário do mundo já foi
  um campo de concentração na-          me Chegada do Trem à Estação. Ao         autoral, muito mais o seriam os
  zista, ou a vida num presídio         ver o trem se aproximando, as            outros, todos os que se fizeram
  brasileiro, por exemplo) pode vir     pessoas agitavam-se, alguns se           depois.
  a ser mais realista do que um         afastavam, outros recuavam rá-             O registro da reação dos espec-
  documentário sobre o mesmo            pido, derrubando cadeiras e cau-         tadores ao trem dos Lumière é
  assunto. O que, afinal de contas,     sando atropelos. Foi preciso que         importante, entre outras coisas,
  vai determinar o grau de realis-      os irmãos Lumière avisassem,             também porque dá a medida do
  mo serão os enfoques dados, e         antes de cada sessão, que não ha-        efeito de realismo no cinema do-
  não o gênero escolhido.               via perigo e que todos podiam            cumental. Embora correr da ima-
     Acreditando haver ficado este      permanecer em seus lugares: em           gem do trem fosse uma leitura
  ponto, passamos a mencionar al-       suma, o trem que se via era só           ingênua do cinema, não deixa de
  guns casos históricos em que o        uma imagem em movimento, e               ser uma reação similar a que quer
  constructo que é o filme foi con-     não um trem real.                        o documentarista que apresenta
  fundido com a realidade.                Se era só uma imagem, por que          o seu assunto como verídico, ver-
     Comecemos nossas ilustrações       os primeiros espectadores o temi-        dadeiro. O documentarista que c


  12 | João Pessoa, novembro de 2011                                                Correio das Artes – A UNIÃO
6      imagens amadas
c filma hoje, por exemplo, o exter-
  mínio da raça indígena no Brasil
  quer que o espectador saia do ci-
  nema indignado, chocado ou ira-
  do. A indiferença dos espectado-
  res informados pelos Lumière de
  era só uma imagem de trem, e não
  um trem de verdade – essa indi-
  ferença não convém aos cineastas
  que realizam documentários.
     E o círculo é vicioso: porque
  não querem indiferença é que os
  cineastas-documentaristas bus-
                                                                O Homem de Aran (1934), do americano Robert Flaherty
  cam efeitos além dos meramen-
  te descritivos, miméticos, docu-
  mentais, efeitos estes que, por                                              até que ponto O Homem de Aran é
                                        O que parece ficar
  sua vez, acentuam o caráter au-                                              um filme realista? O óbvio é que
  toral de seus filmes.                 evidente é que o                       a resposta é ambígua. Se for para
     Às vezes a busca desses efeitos                                           tomar o incidente como parâme-
  vai longe demais. Foi o que acon-     conceito de realismo no                tro, o que parece ficar evidente é
  teceu com o nosso segundo exem-                                              que o conceito de realismo no fil-
                                        filme documental é bem
  plo, o filme O Homem de Aran                                                 me documental é bem mais com-
  (1934) do americano Robert            mais complexo do que                   plexo do que comumente se ima-
  Flaherty, um clássico que críticos                                           gina.
  e historiadores consideram um         comumente se imagina.                     Um outro caso desse tipo em que
  avatar do gênero.                                                            – por assim dizer – o cinema do-
     Todo rodado numa ilha da cos-                                             cumental quis ser “melhor” que a
  ta oeste da Irlanda, o filme apa-                                            realidade, aconteceu na URSS nos
  rentemente retrata a vida de uma                                             tempos duros de Josef Stalin, e não
  aldeia de pescadores que retira o                                            apenas em um filme, mas em toda
  seu sustento do mar bravio, que                                              uma filmografia estatal. Na épo-
  castiga as falésias com sua fúria                                            ca tinha o Kremlin a sua equipe
  indomável. Para maior familiari-      do não existia eletricidade, tinha     de cinegrafistas, encarregada de
  dade com o assunto, Flaherty e sua    sido costume dos tetravôs, costu-      acompanhar os acontecimentos
  equipe foram morar na ilha, onde      me abandonado por ter feito mui-       mais importantes que, filmados,
  ficaram por quase dois anos, fil-     tas vítimas. Flaherty havia lido       eram exibidos em naturais nos
  mando praticamente todos os as-       sobre o tubarão branco e tentou        cinemas do país. Além disso, es-
  pectos do modesto cotidiano dos       convencer os pescadores de Aran        ses cinegrafistas do governo tam-
  habitantes, e de fato, para quem      a retomar a caça, pelo menos uma       bém tinham a missão de viajar
  assiste ao filme, a impressão é de    vez, para que ele pudesse filmar.      país afora, filmando a vida coti-
  rigorosa fidelidade. O cotidiano      Apavorados com a perspectiva,          diana do camponês russo.
  da ilha está registrado, mas, o que   os pescadores se recusaram ter-           Era uma vida difícil, precária,
  mais impressiona – na verdade, o      minantemente, inclusive, alegan-       sofrida, mas o problema era que,
  ponto alto do filme - são as toma-    do que, como a prática fora aban-      previamente censurados pelos
  das no mar onde, entre ondas          donada havia tanto tempo, não          assessores de Stalin, esses cine-
  avassaladoras, os pescadores ca-      conheciam a técnica necessária         grafistas não podiam mostrar di-
  çam o temível tubarão branco.         para a captura do temível tuba-        ficuldades, e, ao contrário, tinham
  Assistindo a essa sequência, é pos-   rão. O que fez Flaherty? Embre-        que passar ao público uma ima-
  sível perceber o perigo a que es-     nhou-se na leitura de compêndi-        gem extremamente positiva da
  tão sujeitos os pescadores, e por     os sobre pesca, aprendeu – pelo        vida rural. Assim, a penúria e a
  tabela, o mesmo perigo a que se       menos teoricamente - a técnica da      dor eram evitadas (e se filmadas,
  sujeitou a equipe que os filmava.     pesca do tubarão branco e a re-        eram cortadas na montagem) e os
     Mas, ora, o que de fato aconte-    passou para os pescadores, que só      cinegrafistas faziam esforços so-
  ceu em Aran não é propriamente        aceitaram a empreitada quando          bre-humanos no sentido de en-
  o que está na tela de Flaherty.       Flaherty lhes pagou uma soma de        contrar sempre figuras bem nu-
  Quando este lá chegou, por volta      dinheiro considerável para os          tridas e saudáveis a quem se pe-
  de 1933, já não se pescava o tuba-    seus modestos padrões financei-        dia que rissem diante das câme-
  rão branco havia quase um sécu-       ros. A cena foi “posada”, portan-      ras, isso tendo se escolhido capri-
  lo. A caça desse violento cetáceo,    to.                                    chosamente um fundo verdejan-
  cujo óleo iluminava a aldeia quan-      A essa altura, a pergunta seria:     te de plantações viçosas e auro- c


  A UNIÃO     – Correio das Artes                                            João Pessoa, novembro de 2011 | 13
6      imagens amadas
c ras encantadoras, claro, com o
  acréscimo posterior de uma mú-
  sica sublimemente revigorante.
    O povo russo acreditava nesses
  filmes? Se acreditava, não se
  sabe, mas sabe-se muito bem
  (pois há registro do fato) que den-
  tro das portas fechadas do Kre-
  mlin houve quem acreditasse – e
  o pior, o maior crédulo foi o au-
  tor do projeto. Sim, o que consta
  é que Stalin, de tanto assistir a
  esses documentários em sua sala
  de projeção particular, passou,
  com o tempo, a acreditar neles, e
  na fase mais madura de sua exis-
  tência, pública e privadamente,
  apresentava o sincero comporta-
  mento de quem cria piamente
                                        Sobre Crise a primeira
  que a vida rural na URSS era ver-
  dadeiramente idílica e paradisí-      coisa a ser dita é que é,
  aca. Um caso curioso de um
  pseudo-feiticeiro convencido          ainda hoje, impactante.
  pelo seu falso feitiço, mas, para
                                        Através do olho curioso
  nós, aqui, ilustra os poderes
  transformadores do cinema apre-       da câmera, o espectador
  sentado como documental.
    Um pouco mais próximo da            é introduzido aos dois                ral ou de outra ordem.
  realidade está um documentá-                                                  Sobre Crise a primeira coisa a
                                        lados da questão.
  rio americano que relatou um                                                ser dita é que é, ainda hoje, im-
  caso famoso do começo dos                                                   pactante. Através do olho curio-
  anos sessenta.                                                              so da câmera, o espectador é in-
    Não sei quem ainda recorda os                                             troduzido aos dois lados da ques-
  fatos, mas, em junho de 1963, a                                             tão. Enquanto as negociações
  imprensa mundial noticiou o caso                                            prosseguem, vê-se o cotidiano
  do Governador de Alabama, Es-                                               doméstico do Secretário de Justi-
  tados Unidos, que, em pessoa,         cidade também sulista.                ça, Robert Kennedy, do mesmo
  pôs-se em frente à porta da Uni-        Pois bem, o caso inteiro foi fil-   modo como se vê o cotidiano do
  versidade para impedir a entra-       mado em seus bastidores, priva-       intransigente Governador Geor-
  da de dois estudantes negros que      dos e públicos, e pode ser visto      ge Wallace. Cafés da manhã, tele-
  pretendiam matricular-se. Escan-      no documentário de 52 minutos         fonemas, reuniões internas, entre-
  daloso, o caso gerou uma crise na     chamado Crise (Crisis: Behind a       vistas, confrontos públicas, cada
  Casa Branca, onde o Pres. Kenne-      Presidential Commitment, 1963),       passo do impasse nos é mostra-
  dy já sancionara a lei que obriga-    do cineasta Robert Drew.              do, até o momento final em que os
  va as universidades americanas          Como foi possível filmar por        dois estudantes negros, vitoriosa-
  a aceitarem negros como alunos.       dentro uma crise política com         mente, adentram o recinto uni-
  Os assessores da presidência ten-     tanta liberdade? Acontece que         versitário, e o filme se conclui com
  taram “negociar” com o Gover-         Drew havia coberto a campanha         um pronunciamento televisivo de
  nador sulista, que não transigiu,     eleitoral de Kennedy em 1960 e o      Kennedy, citando Lincoln (outro
  e a solução de última hora foi o      Presidente eleito gostou tanto do     presidente assassinado) a respei-
  golpe diplomático de federalizar      resultado (o filme se chama “Pri-     to de igualdade e justiça social
  a Guarda estadual. Vivian Malo-       márias”) que deu o sinal verde para   para todos.
  ne e James Hood foram os últimos      o registro do caso em questão.          Em que pese à defesa de Drew
  negros a serem barrados em por-       Para quem não lembra, Robert          de um cinema-verdade, ou de um
  tas de universidades americanas,      Drew (1924-) foi, e é, o defensor     “cinema direto”, como preferem
  mas o caso deu o que falar e aba-     americano do que os franceses         os americanos, o filme tem, sim, a
  lou a unanimidade da política de      chamam de “cinéma-verité”, ci-        sua inevitável ingerência autoral.
  John F Kennedy, o qual, com ou        nema-verdade, aquele que, em          Tudo é ardilosamente montado de
  sem coincidência, seria assassi-      princípio mostraria a realidade       uma maneira pessoal que dá ao
  nado cinco meses depois, numa         como ela é, sem ingerência auto-      espectador, em certos momentos, c


  14 | João Pessoa, novembro de 2011                                            Correio das Artes – A UNIÃO
6       imagens amadas
c a impressão de estar assistindo a     O que Crônica de um                       sas de restaurantes onde pratica-
  um filme de ficção. Um exemplo                                                  mente todos entrevistam todos.
  entre tantos está nas cenas de con-   Verão revela é que o                      Várias cenas são encenações os-
  versas telefônicas: filmando em                                                 tensivas, como aquela que mostra
  locais diferentes (Washington,        conceito de verdade/                      o dia de um operário, desde o mo-
  Montgomery, Tuscaloosa, etc) o                                                  mento que acorda até a sua ativi-
                                        realidade no
  diretor corta e ordena as toma-                                                 dade no trabalho; ou aquela outra,
  das de modo a acompanharmos           documentário foi                          onde uma das moças participan-
  a conversa com revezamento de                                                   tes faz uma longa caminhada, da
  perguntas e respostas, como se        atingido de cheio e o foi                 Place de La Concorde até o setor
  faz no onisciente cinema ficcio-                                                do Havre, recitando um monólogo
                                        de propósito.
  nal. O corolário é um maior en-                                                 sem interlocutor presente. Antes
  volvimento do espectador, sem                                                   de o filme se concluir, há uma cena-
  que a “verdade” dos fatos fique                                                 chave em que o tanto do filme ro-
  comprometida.                                                                   dado é mostrado a todos os parti-
     A sequência que, nos batentes                                                cipantes, que dão as suas opiniões
  da Universidade de Alabama, em                                                  sobre o conjunto, na maior parte
  Tuscaloosa, registra o confronto                                                dos casos, opiniões desfavoráveis.
  entre o governador Wallace e o                                                  Um ponto que fica claro, nessa dis-
  assessor do presidente, Nicholas                                                cussão coletiva, por exemplo, é se,
  Katzenbach, é um documento pre-       for o caso, sobre o seu estado de         ou até que ponto os desabafos fo-
  cioso para qualquer estudo sobre      espírito naquele verão de 1960,           ram sinceros ou encenados, para
  segregação racial, nos Estados        porém, o roteiro é frouxo demais          retomar um termo com que abri-
  Unidos ou alhures. Nela, como no      para assegurar uma linha de an-           mos esta metéria, “posados”.
  filme todo, se não se puder falar     damento. As sequências são inde-             Uma mistura evidente da etno-
  de “verdade” em si, pode-se pelo      pendentes e, se cotejadas, não for-       grafia de Rouch com a sociologia
  menos defender o conceito de re-      mam uma estrutura de sentido.             de Morin, o que Crônica de um Ve-
  alidade histórica assegurada por         Assim, o filme começa com uma          rão revela é que o conceito de ver-
  uma câmera investigativa.             moça, Marceline, amiga dos cine-          dade/realidade no documentário
     Temos usado a expressão “ci-       astas sendo, com alguma relutân-          foi atingido de cheio e o foi de
  nema-verdade” no amplo senti-         cia, convencida a fazer o papel de        propósito. Somente de uma ma-
  do rouchiano de documentário          repórter de rua e interpelar os           neira enviesada, indireta, disfor-
  que dá vez à realidade. Por isso      passantes nas calçadas lhes for-          me, a realidade se presentifica no
  mesmo, - e para fazer justiça -       mulando de chofre uma pergun-             cinema documental, e há mesmo
  nos sentimos na obrigação de          ta estranha e difícil de responder:       um mistério que sequer explica
  fechar esta matéria fazendo re-       “Você é feliz?”. As reações dos           a sua presença. Por isso, na cena
  ferência a um filme do próprio        anônimos entrevistados são as             final, a câmera que, em movimen-
  Jean Rouch que, ironicamente,         mais variadas, mas, quando se             to, durante algum tempo acom-
  problematiza a presença do real       pensa que este método guiará o            panha os dois cineastas enquan-
  no documentário.                      filme todo, ele é abandonado. De          to estes caminham e discutem o
     Hoje um clássico do gênero (com    repente, é Marceline a entrevista-        filme, em dado momento, se de-
  um prêmio em Cannes), o filme se      da, agora pela dupla de cineastas,        tém e os deixa ir embora, sem que
  chama Crônica de um Verão(Chro-      que vai variando os seus infor-           mais ouçamos as suas palavras
  nique d´un Été, 1961) e foi rodado    mantes de uma maneira mais ou             sobre o filme realizado.
  a quatro mãos, com o sociólogo        menos aleatória. Há artistas, ope-           Como mais tarde admitiria o pró-
  do cinema Edgar Morin, no verão       rários, estudantes, imigrantes            prio Rouch, “o cinema-verdade é
  de 1960 em Paris. A projeção co-      negros, crianças, mas a pergunta          um cinema de mentiras, mas as
  meça com Rouch e Morin discu-         do início (“Você é feliz?”) ficou es-     mentiras são mais verdadeiras que
  tindo o filme que se vai ver, e se    quecida, na medida em que as pes-         a verdade”. Acho que, sem falsea-
  conclui com a mesma dupla fa-         soas debulham os seus dramas,             mentos, poderíamos mudar a pa-
  zendo a avaliação da realização,      com certo nível de entrega emoci-         lavra “verdade” para “realidade”.
  como se o making of (termo ine-       onal. Até mesmo a paisagem pa-
  xistente na época) fizesse parte do   risiense foi esquecida, já que a se-        Em tempo: o título desta maté-
  filme. Esse grau de metalingua-       quência final (um dos imigrantes          ria é uma brincadeira com o pro-
  gem assumida é uma constante, e       negros entrevistados, agora en-           grama televisivo É Tudo Verda-
  o filme não se incomoda de ser        trevistando uma moça branca na            de, do crítico Amir Labaki. I
  desigual no método e na aborda-       praia) acontece em Saint Tropez.
  gem. Composto basicamente de             Algumas vezes as entrevistas
  entrevistas, em princípio, seria      são no estilo “tête-à-tête”, outras              Crítico de cinema e de literatura e
  sobre a vida do parisiense, ou se     em grupo e com frequência em me-                                 professor da UFPB



  A UNIÃO     – Correio das Artes                                               João Pessoa, novembro de 2011 | 15
6 crítica




                           A estrela
                           brilhante
                                     de Keats e Campion
                                         Genilda Azerêdo




                                         filme Bright Star (ao pé da letra, Estrela Brilhante; tradu-


                                     O   zido no Brasil como Brilho de uma Paixão), de Jane Cam-
                                         pion, faz jus a um dos versos mais famosos da litera-
                                         tura inglesa: A thing of beauty is a joy forever / Uma
                                         coisa de beleza (ou um objeto de beleza) é uma ale-
                                         gria para sempre, do poeta romântico inglês John
                                         Keats. O filme conta justamente a história de amor e
                                         sofrimento entre Fanny Brawn e John Keats e, ao fazê-
                                         lo, oferece um painel sensível e instigante da Inglater-
                                         ra nas primeiras décadas do século XIX, seja quanto
                                         às convenções familiares e sociais, à sensibilidade
                                         poética, à dificuldade de aliar produção literária à pu-
                                         blicação, à questão da sobrevivência de artistas po-
                                         bres (a exemplo do próprio Keats), à impossibilidade
                                         de amar (materializar o sentimento) em um contexto
                                         de pobreza e rígidas regras sociais.                         c




16 | João Pessoa, novembro de 2011                                Correio das Artes – A UNIÃO
c      Bright Star é inicialmente o títu-                                          prio Wordsworth quem também
    lo de um poema de Keats dedica-                                                define a poesia como emoção re-
    do a Fanny. Este aspecto já amal-                                              colhida/relembrada na tranquili-
    gama a importância que o casal                                                 dade, contraponto perfeito para
    possui na narrativa fílmica, cons-                                             aludir ao caráter já moderno da
    truída de modo a valorizar a poe-                                              poesia romântica inglesa. E é exa-
    sia de Keats e a poesia de Fanny.                                            tamente dentro deste contexto -
    A sequência fílmica de abertura                                                emoção e recolhimento/resgate da
    valoriza a costura e o bordado, ao                                             emoção - que devemos compreen-
    preencher a tela com agulha, teci-                                             der o verso A thing of beauty is a
    do e linha. O filme coloca em pé de     As discussões sobre poesia             joy forever. Em seus ensinamen-
    igualdade a poesia das palavras e                                              tos a Fanny sobre poesia, Keats en-
    a criatividade e beleza dos pon-        entre Keats e Fanny                    fatiza a importância dos sentidos
    tos e bordados. Ambas as ativi-                                                na apreensão do poético. Diz ele que
    dades têm inclusive uma função          servem inclusive para                  a poesia é uma experiência para
    catártica. Quando o irmão de Ke-                                               além do pensamento, devendo ser
    ats morre de tuberculose (doença        desmistificar noções                   compreendida através dos senti-
    que também mataria o próprio                                                   dos. Em meio ao jogo de sentidos, a
    Keats, aos 26 anos), Fanny passa        convencionais sobre o                  memória afetiva possui lugar de
    a noite inteira costurando e bor-                                              destaque. A eternização da beleza
    dando uma fronha para ele.              poeta (em sentido amplo)               se faz através da memória, sempre
    Quando Keats parte para a Itália,                                              que a memória da beleza é aciona-
    numa última tentativa de recu-          e a função da poesia.                  da. Em dois poemas de Wordswor-
    peração da doença, escreve, em                                                 th, esta relação entre memória e
    pouco tempo, uma quantidade                                                    beleza é mediada pela natureza,
    significativa de poemas.                                                       através de duas metonímias - um
       Embora o filme se situe em um                                               campo de narcisos e um arco-íris.
    contexto de sensibilidade român-        tesanato da poesia, Keats defende      É, inclusive no poema sobre o arco-
    tica e tenha como foco a história de    um princípio caro aos poetas ro-       íris que encontramos o verso The
    amor intensa e dolorosa entre           mânticos, ao declarar que a forma      Child is father of the Man/A Cri-
    Fanny e Keats, sua tonalidade é         é uma carcaça e se a poesia não       ança é o pai do Homem, que resu-
    contida e jamais descamba para o        vier tão naturalmente quanto as        me a reverberação da memória da
    melodramático ou sentimentalis-         folhas de uma árvore, melhor que       infância, do olhar encantado da cri-
    mo exacerbado. As discussões so-        não venha. É preciso não confun-      ança naquilo que somos quando
    bre poesia entre Keats e Fanny ser-     dir essa defesa da espontaneidade      adultos. Em Keats, diferentemente
    vem inclusive para desmistificar        - que ecoa um princípio também         de Wordsworth, há uma indefini-
    noções convencionais sobre o poe-       famoso de William Wordsworth           ção (e consequentemente, elastici-
    ta (em sentido amplo) e a função da     (outro poeta romântico inglês),        dade) quanto ao objeto de beleza,
    poesia: o poeta é o ser mais não-      quando diz que a poesia é o fluir     já que o mesmo é referido como a
    poético que existe; é sem identida-     espontâneo de sentimentos pode-        thing of beauty, de modo a trans-
    de, vive de preencher outros cor-       rosos - com confissão, desabafo ou    cender o próprio contexto român-
    pos, como o sol e a lua. Sobre o ar-   negligência formal. Aliás, é o pró-    tico. E não é esta uma das funções c


    A UNIÃO     – Correio das Artes                                               João Pessoa, novembro de 2011 | 17
c da arte? Materializar a beleza, possibilitar    mos exercitando instrumentos musicais,
                 sua perenidade?                                 mas também aprendendo a dançar, com
                    A meu ver, foi exatamente isto que Jane      um instrutor que fala francês). E há refe-
                 Campion fez, ao construir a história de Bri-    rências à participação de Fanny em bailes
                 ght star. O brilho da estrela, referido no      e ao quanto ela gosta de dançar. Também
                 poema de Keats como constante, imutá-          assistimos, logo no início do filme, a uma
                 vel, é duplicado metaforicamente através       espécie de sarau artístico com canto e mú-
                 da constância de sentimento entre Keats e       sica, além de diálogos que aludem a poetas
                 Fanny - um sentimento que ganha expres-         (a Coleridge e ao próprio Keats).
                 são, iconicamente, através da delicadeza e        Quanto aos códigos morais que regem as
                 beleza no nível da visualidade fílmica. Ci-     relações amorosas, não são poucas as refe-
                 temos um exemplo. Quando Fanny e Keats          rências à separação física e sexual entre
                 já vivenciam a vertigem da experiência          Fanny e Keats. A propósito, desde o pri-
                 amorosa, a narrativa fílmica metaforiza a       meiro encontro amoroso entre eles, media-
                 sensação de leveza através de paralelismos      do pela vigilância de Toots (a irmã caçula
                 - Fanny desmaiando sobre a cama, Keats        de Fanny), até os momentos em que fica-
                 deitado sobre a copa de uma árvore - que        vam a sós na casa de Keats, ou quando,
                 dramatizam a convergência de seus senti-        doente, ele se hospedou na casa de Fanny,
                 mentos. O verso de Keats que diz Wish          podemos testemunhar o distanciamento
                 we were butterflies and lived but three         físico (e a ansiedade e angústia resultan-
                 summer days/quisera fôssemos borbole-         tes) entre os dois - bilhetes eram trocados
                 tas e vivêssemos apenas três dias de ve-        embaixo da porta; mãos acariciavam pa-
                 rão contamina ironicamente a leveza          redes que, ao tempo em que ligavam seus
                 (embriaguês) dos apaixonados do caráter         aposentos, também serviam de obstáculos.
                 trágico inerente ao tempo, que põe fim a          Jane Campion escolheu terminar o filme
                 tudo. A ressonância que tal verso ganha         com Fanny recitando o poema ‘Bright
                 no contexto imagético do filme demonstra        Star’, escrito por Keats para ela. A fotogra-
                 não apenas a atitude hiperbólica do ser         fia, nessa parte do filme, é escura, não ape-
                 amoroso - fazendo Fanny encher seu quar-        nas porque é frio, inverno e cedo da ma-
                 to de borboletas - mas antecipa a dor ad-       nhã, mas porque reflete a melancolia e o
                 vinda da experiência: Estou apaixonada?        luto pela morte do poeta. Antes de sair de
                 Isto é amor? Nunca mais vou brincar com         casa, em meio à frieza da madrugada,
                 isso de novo. É tão ruim que eu acho que        Fanny corta os cabelos e veste-se de preto
                 posso morrer. É relevante perceber, a pro-     (rituais que também dizem do luto). A reci-
                 pósito desta situação, a solidariedade da       tação de um poema que fala de um desejo
                 família de Fanny, cuja mãe nunca a censu-       de constância e imutabilidade, em momen-
                 ra ou critica.                                  to de profunda dor, torna-se irônica ao
                    Um contraponto interessante aos diá-         menos em dois aspectos: nesse momento, a
                 logos entre Keats e Fanny sobre a poesia        homenagem é de Fanny a Keats, que, atra-
                 é oferecido por Mr. Brown, também poe-          vés da recitação do poema, traz à tona o
                 ta, amigo de Keats. Mr. Brown não ape-          poeta, ressuscitando-o através da sua pa-
                 nas quer viver a criação poética como um        lavra. A recitação (embora catártica) tam-
                 sacerdócio, controlando a vida de Keats,        bém parece dizer que, apesar da perda, seu
                 seguindo à risca uma rotina de trabalho,        sentimento vai perdurar, que o brilho da
                 como se sente altamente enciumado com           estrela (agora Keats) será eterno. O filme
                 a convivência entre Keats, Fanny e sua          termina, mas a poesia de Keats continua a
                 família. Em oposição a tal seriedade, o fil-    pontuar, em voz-over, toda a passagem dos
                 me capta, de modo divertido, o senso de         créditos. É, enfim, mais um modo de refor-
                 humor de Keats e seu modo sempre sub-           çar que a poesia, quando um objeto de be-
                 versivo de romper com etiquetas e con-          leza, é passível de ser rememorada, consti-
                 venções. Keats gosta de brincar e passe-        tuindo-se uma alegria eterna. I
                 ar no jardim, e em várias das cenas com
                 Fanny, mais parece uma criança frágil,
                 protegida por ela.
                    Em se tratando de convenções, o filme ofe-
                 rece um retrato em miniatura (ao modo de
                 Jane Austen) da sensibilidade artística da
                 época. A família de Fanny, embora visivel-
                 mente com parcos recursos materiais, edu-
                 ca os filhos musicalmente (não só os ve-                                     Professora da UFPB



18 | João Pessoa, novembro de 2011                                            Correio das Artes – A UNIÃO
6 festas semióticas
             Amador Ribeiro Neto
              amador.ribeiro@uol.com.br




                                          meu jovem filho
                                          PARA O MEU FILHO PEDRO, FALECIDO AOS 24 ANOS



              o mau agouro de agosto                        [ pai também vive revolto em turbilhões de
              nublou 30 de julho com as tintas corrosivas   pensamentos-cacos que molestam
              da morte
                                                            um sujeito comum
              no meio do meu amor e zelo de pai             que tão só e somente
              fui obrigado a medir os passos do berço
                                                            luta pra manter uma
              de meu filho                                  saúde comum ]
              até sua insepulta sepultura 
                                                            eu antevira a lúcidaimagem do meu filho
              num tiscar do tempo                           na noite anterior
              engolfando aos borbotões seus e meus pul-
              mões                                          envolto num grosso saco plástico
                                                            retirado das águas ainda pesadas
              águas revoltas
              solvem com avidez o corpo do meu filho        ah na certa os excessos medicamentosos
                                                            gerando a clarividente antevisão dantesca
              [ como sal
              em água ]                                     um filho não morre antes do pai
                                                            o pai foi feito pra morrer antes
              nem um fio de cabelo resta de seus
              24 anos de puríssima juventude-luz            um filho não morre antes do pai
                                                            o pai foi feito pra morrer antes
              havia um rio no meio do caminho e
              o fatal mergulho no escuro                    a imersão do corpo do filho
                                                            craveja a memória do pai, do irmão, da irmã
              um único e atroz
              embate com                                    filho, irmão, tu, submerso nas águas,
                                                            tens batismo às avessas
              o paredão de pedras
              encobertas pelo mar subfluvial                batismo de corte de ceifa
                                                            de morte
              e meu filho boiou
              inerte pra nunca mais respirar                filho onde anda a luz
                                                            de teus olhos azuis?
              eu o pai encontrava-me alienado numa
              clínica psiquiátrica                          onde as pernas jogando passos
                                                            como um andarilho bailarino, filho?



A UNIÃO   – Correio das Artes                                       João Pessoa, novembro de 2011 | 19
6   festas semióticas

                                                olho pro mundo e a prostração maldita
                                                recai sobre mim num abatimento funesto

                                                desgraçada luz filha da puta
                                                que cegara meu filho pra toda vida

                                                desinfeliz dia de trevas aquosas
                                                maldição trevosa sobre a falta que fiat

                                                trucidado meu coração
                                                é caudal de sangue que im(ex)plode

                                                diante de tua falta, filho
                                                eu contigo me asfixio

                                                sufoco na tua afogadura
                                                na estrangulação da tua execução

                                                os céus em imolação
                                                colhem a ceifa prematura

                                                a natureza é carrasco verdugo carnífice
                                                executor algoz assassino que

                                                se alimenta de teus despojos mortais
                                                ainda tão juvenis

                                                quisera eu cosê-la (a natureza)
                                                a canivetadas a facadas a punhaladas a espadadas

                                                a enxadadas a
                                                machadadas e sová-la

                                                até devolver-me o filho
                                                intacto em sua alegria ensolarada

                                                de meu menino
                                                do rio




                                                                                     Poeta, crítico literário
                                                                                       e professor da UFPB



20 | João Pessoa, novembro de 2011                                     Correio das Artes – A UNIÃO
6 artigo


A representação minimalista de
                O Quadro-Negro




                                    Ângela Bezerra de Castro



                        Q       uando O Quadro-Negrofoi lançado pela José
                                Olympio, em 1954, era improvável que a ele
                               eu pudesse ter acesso, nem mesmo à notícia
                             de sua publicação. Estava iniciando o ginásio
                           mas, àquela época, nenhum professor teria a
                                                                                  Ernany Sátyro e a
                          ousada iniciativa de estudar o autor contemporâ-
                                                                                   capa da edição de
                         neo local ou de indicá-lo para a leitura.                  O Quadro-Negro
                         Ancorada no passado, nossa Escola recusava                   com projeto da
                      o presente e se tornava incapaz de prenunciar as                  José Olympio
                    incertezas do futuro. Naquela visão alienada, che-
                  gava-se à aberração de proibir os livros de José Lins
                 do Rego, privando-nos do texto renovador e revolucio-
               nário que deveria ter sido a motivação e o exemplo, para
              que os jovens estudantes de então se expressassem na
            linguagem de seu tempo, superando a submissão colonial
          aos “barões assinalados”.
           Mesmo depois que me tornei leitora apaixonada dos grandes
        romancistas nordestinos, jamais tive o interesse despertado para
      o escritor Ernani Sátyro. E, quando isto parecia possível, na efer-
     vescente convivência universitária, o político de destaque, no regi-
    me vigente a partir de 64, projetou-se como sombra deformadora c


A UNIÃO   – Correio das Artes                                      João Pessoa, novembro de 2011 | 21
c sobre o intelectual, erguendo a barreira de preconceito responsá-
                                       vel pela ignorância de minha geração sobre a obra literária do aca-
                                       dêmico centenário que hoje reverenciamos.
                                          Foi a devoção do estimado confrade Evaldo Gonçalves ao “Amigo
                                       Velho”, que despertou em mim a necessidade de conhecer Ernani
                                       Sátyro, para além da memória fixada, com a verdade do depoimen-
                                       to e da pesquisa, no livro Ernani Sátyro: Convivência e Participação. A
                                       necessidade de conhecer o escritor, em decorrência do compromis-
                                       so assumido com os objetivos da Academia Paraibana de Letras.
                                          Procurei O Quadro-Negro e Flávio Sátiro, gentilmente, me presen-
                                       teou a 3ª edição, possibilitando-me uma entusiástica descoberta e
                                       a feliz superação do velho preconceito.
                                          Antes que chegasse ao texto do romance, já tinha a certeza de
                                       que estava diante de um verdadeiro escritor. Menos pelo estudo e
                                       pelos artigos que o antecedem e revelam o interesse crítico pela
                                       ficção de Ernani Sátyro. A grande surpresa veio com o depoimen-
                                       to do autor para os Arquivos Implacáveis, de João Condé. Uma ver-
                                       dadeira síntese de mestre.
                                          Iniciando com a ressalva de que “Não é fácil dizer como nasce um
                                       romance”, o escritor encara o desafio. E com estilo sóbrio, em frases
                                       curtas e precisas, revelando uma aguda consciência do processo de
                                       elaboração ficcional, expõe a gênese de O Quadro-Negro, dando ên-
                                       fase ao tempo de gestação e aos limites transcendentes entre a rea-
                                       lidade e a criação literária. Depoimento capaz de enriquecer qual-
                                       quer lição de teoria sobre a ficção narrativa.
                                          O Quadro-Negro é um romance escrito em forma de diário. Com
                                       esta escolha do modo de narrar, o autor confere intencionalmente ao
                                       protagonista, Paulo Márcio, a grande liberdade confessional que se
                                       desdobra na análise de si mesmo, do ambiente e dos outros persona-
                                       gens, concretizando o princípio que ele repete até as últimas pági-
                                       nas: “Só tem importância o que se passa dentro de mim”. Com a
                                       variante: “me importam as pessoas e nestas, principalmente, os re-
                                       tratos que me ficam cá dentro”.
                                          Na abertura do “diário”, reflexões sobre a linguagem, sobre o pro-
                                       cesso narrativo, sobre a correspondência necessária entre forma e
                                       conteúdo, sobre o estilo. Essa intenção programática da construção
                                       literária, inserindo Ernani Sátyro na tendência ostensiva dos escri-
                                       tores modernos que elegeram a metalinguagem como recurso temá-
                                       tico e estético, chegando a elaborar uma teoria do conhecimento.
                                          Perfaz um ano e um mês o tempo da narrativa. Tem início com a
                                       chegada do jovem bacharel recém-formado à cidadezinha natal, para
                                       viver os conflitos que irão despertá-lo da inexperiência e dos sonhos,
                                       até a decisão de partir.
                                          Torna-se instigante a comparação entre Paulo Márcio e dois outros
                                       personagens: Lúcio, de A Bagaceira, e Carlos de Melo, em Banguê.
                                       Todos bacharéis, de volta para casa, e em crise de afirmação pessoal.
                                       No entanto, Lúcio e Carlos de Melo não sabem o que fazer do diploma
                                       e se desviam para a terra, numa espécie de fuga. O protagonista de
                                       O Quadro-Negro é o bacharel em ação, buscando na ordem jurídica
                                       a restauração e a garantia dos direitos.
                                          Essa diferença substancial entre os três personagens permite que
Antes que chegasse ao                  se identifique em Paulo Márcio uma transfiguração inovadora, com
                                       a redescoberta da tradicional formação bacharelesca, predominante
texto do romance                       em nossa cultura, numa perspectiva de interferência positiva para o
                                       meio social, vislumbrando a prevalência do Direito na solução dos
(Quadro-Negro) , já                    conflitos. Podemos constatar que Lúcio e Carlos de Melo são anti-
                                       herois desistentes. Enquanto o personagem criado por Ernani Sátyro
tinha a certeza de que                 é o heroi comprometido com a luta, opondo-se à realidade estagna-
                                       da da cidadezinha simbolicamente denominada de Lagoa, espaço
estava diante de um                    imaginário do romance.
                                          Em terra de sapos, Paulo Márcio não fica de cócoras com eles. E é
                                       pela ação do jovem bacharel que se estrutura o conflito central do c
verdadeiro escritor.

22 | João Pessoa, novembro de 2011                                            Correio das Artes – A UNIÃO
c romance. Entre a arbitrariedade da força político-econômica domi-
                                  nante e a justa aplicação da lei, o poder do Direito.
                                     É esse o problema que se desenvolve na representação minimalista
                                  de O Quadro-Negro. Problema universal que se reproduz em todas
                                  as escalas da chamada sociedade politicamente organizada.
                                     Quer se trate de uma cidadezinha do sertão ou da metrópole mais
                                  progressista; de um país em desenvolvimento ou de uma potência
                                  do considerado primeiro mundo, em qualquer das realidades o Esta-
                                  do de Direito é ainda uma miragem ou um projeto sempre em pro-
                                  cesso de consolidação. Pois em cada instância se vê ameaçado por
                                  uma estrutura de poder, com seus “coroneis” que se colocam, arbi-
                                  trariamente, acima das leis.
                                     Na estreia como romancista, Ernani Sátyro acumulou considerá-
                                  vel fortuna crítica, com a unânime constatação de que não dava con-
                                  tinuidade aos grandes regionalistas nordestinos, seguia outra ori-
                                  entação estética. E é verdade. No entanto, a identificação do espaço
                                  romanesco com o sertão levou os críticos a uma visão reducionista
                                  da temática do romance e de outros elementos estruturantes da nar-
                                  rativa, esquecendo a natureza simbólica que os constitui. Os críticos
                                  não se aperceberam de que “o sertão” existe em todo lugar.
                                     Pressuponho que a percepção estereotipada da realidade sertaneja
                                  prejudicou as leituras de O Quadro-Negro, de tal maneira que o con-
                                  flito central do romance não foi identificado, ou melhor, foi confun-
                                  dido com problemas menores. E personagens marcantes como Adri-
                                  ano Pereira, o juiz, e Maria Augusta, a enigmática e desafiadora na-
                                  morada de Paulo Márcio, são injustamente subestimados, por certo,
                                  em decorrência da falta de análise do romance.
                                     Somente José Lins do Rego identifica em Adriano Pereira “um pa-
                                  tético que nos enche os olhos de lágrimas” lembrando a cena dramá-
                                  tica em que o juiz, desarmado, enfrenta o fuzil de um capitão de
                                  polícia, reforçado pelas carabinas dos soldados que apontam para
                                  sua cabeça e, tomando as chaves do carcereiro paralisado, abre as
                                  portas da cadeia para dar cumprimento a um habeas corpus, que fora
                                  rasgado pela suprema arrogância político-partidária.
                                     Onde a deficiência crítica enxerga apenas um juiz preguiçoso, o
                                  grande romancista do moderno regionalismo brasileiro descobre o
                                  patético, uma categoria do trágico.
                                     E não há dúvida de que Ernani Sátyro construiu essa dimensão
                                  para Adriano Pereira, personagem de vital importância na consti-
                                  tuição do conflito central de seu romance. Tanto que o protagonista-
                                  narrador reconhece no juiz o “homem que encarna a única reação
                                  possível à brutalidade e à violência”.
                                     A difícil missão do magistrado, isolado na comarca distante, cria
                                  para o personagem uma aparente rendição. Adriano Pereira quase
                                  não fala, recolhido à solidão do seu desamparo. Suportar o peso de
                                  ter confundida sua individualidade com a instituição que represen-
                                  ta parece esmagar o juiz, consumindo-lhe a vontade e a iniciativa.
                                  No entanto, uma grande reserva de energia e ação está contida na
A identificação do espaço
                                  enganosa passividade, naquele silêncio onde se concentra a convic-
                                  ção abismal da defesa do Direito.
romanesco com o sertão               Adriano Pereira é um personagem-símbolo. A ambiguidade que o
                                  constitui não converge para a formação de um caráter, mas para a
levou os críticos a uma           transfiguração das dificuldades, defeitos e qualidades da complexa
                                  prestação jurisdicional. Acompanha-se uma constante e até chocan-
visão reducionista da             te exposição da morosidade dos seus despachos, mas a grande ênfase
                                  é para o gesto definitivo do juiz, que evidencia um compromisso de
temática do romance e de          vida ou morte com a prevalência do Direito, em sua função social
                                  insubstituível. I
outros elementos
                                    (Apresentado na APL em 14 de outubro de 2011)
estruturantes da
narrativa.                                                                   Escritora e professora da UFPB


A UNIÃO   – Correio das Artes                                       João Pessoa, novembro de 2011 | 23
Estátua da Justiça (1961) de
6 artigo                                                                            Alfredo Ceschiatti, Banco de
                                                                                 Imagens do STF (www.stf.jus.br)




                                             O
                                       Gesto
                                     e o Momento
                                      O CINQUENTENÁRIO DA JUSTIÇA DE
                                                  ALFREDO CESCHIATTI


                                       Marcilio Toscano Franca Filho


                                        “Meu pai, um imigrante italiano chegado no começo
                                        do século ao Brasil, era padeiro. Vivia com as mãos
                                        na massa. E eu, afinal, repito a mesma coisa. Só que
                                        troquei o trigo pela argila e, em vez de pães, faço
                                        estátuas.”
                                                                       Alfredo Ceschiatti




24 | João Pessoa, novembro de 2011                                         Correio das Artes – A UNIÃO
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  • 1. 6 6
  • 2. 6 editorial Pelo conjunto da “obra” Correio das Artes, seguindo a um planeta isolado em meio à ga- O trilha aberta pela Associação das Empresas de Transportes Coletivos de João Pessoa (AETC-JP), que lhe outorgou a Para Joana, através de petições online e coleta de láxia. O universo de Joana exis- te e brilha exatamente por estar em guerra ou harmonia. A harmonia nasce do carinho homenagem maior de seu Prêmio que dedica aos que lhe são pró- de Jornalismo, presta também um assinaturas se ximos e do sonho de uma socie- tributo à jornalista, escritora e dade onde vigorem a liberdade e professora universitária paraiba- consegue botar a a justiça social. A guerra é de- na, Joana Belarmino, pelo con- clarada contra aqueles cujas ati- junto de sua "obra" política, 'boca no trombone' e tudes comprometem o bem-estar profissional e existencial. da humanidade - leia-se os maus Nas redações, Joana deu exem- praticar a mudança. patrões, os assassinos, os la- plos de competência na cobertura drões, os corruptos etc e tal. dos fatos e na construção de tex- Além da homenagem a Joana, tos, de solidariedade e de insub- o Correio traz, como sempre, missão às determinações que feri- como uma alternativa real e efi- excelentes artigos versando so- am sua consciência e o código de caz de praticar a cidadania. Para bre diversos temas da cultura, ética da profissão. Na literatura, ela, através de petições online e notadamente literatura e cinema, leitora assídua e atenta que é, coleta de assinaturas se consegue além dos textos imprescindíveis colheu as lições que a tornaram botar a 'boca no trombone' e ob- de sua equipe fixa de colunistas, cronista. E na cátedra, partilha ter êxito, praticar a mudança. formada por escritores e profes- com seus alunos o que os livros e A natureza impôs o primeiro sores universitários de notório a experiência lhe ensinaram. grande desafio, superado com a saber, em áreas como mitologia, Joana também filiou-se ao ci- crescente consciência de si mes- cinema, literatura e mídia. berativismo, pois, para ela, a in- ma, de seus limites e de suas pos- ternet possibilita alcançar públi- sibilidades. Hoje, Joana tem no cos de todas as idades e grupos centro de seu mundo a família e sociais, de modo que a rede surge os amigos, mas não se trata de O Editor 6 índice , 4 @ 16 D 19 2 21 ESPECIAL CINEMA MEMÓRIA CRÍTICA A trajetória de sonhos, luta e A professora Genilda Versos eivados de emoção, ‘A representação minimalista superação da jornalista, Azerêdo “coteja” o filme saudade e revolta. Assim é de O Quadro-Negro’, de escritora e professora Joana Bright Star, de Jane ‘meu jovem filho’, do poeta Ernani Sátyro, é o título do Belarmino, na reportagem Campion, com a poesia do e professor da UFPB, artigo da professora de Vanessa Furtado. inglês John Keats. Amador Ribeiro Neto. Ângela Bezerra de Castro. Suplemento mensal do jornal A UNIÃO, não pode ser vendido separadamente A União Superintendência de Imprensa e Editora Secretário Est. de Diretora de Operações Editoração Comunicação Institucional Albiege Fernandes Paulo Sérgio de Azevedo BR-101 - Km 3 - CEP 58.082-010 - Distrito Industrial - Nonato Bandeira João Pessoa - PB Editora Geral Ilustração PABX: (0xx83) 3218-6500 - FAX: 3218-6510 Superintendente Beth Torres Domingos Sávio e Tônio Severino Ramalho Leite Redação: 3218-6511/3218-6512 Editor do Correio das Artes Foto da Capa ISSN 1984-7335 Diretor Administrativo William Costa João Lobo editor.correiodasartes@gmail.com José Arthur Viana Teixeira Supervisor Gráfico Revisão Antônio Moraes http://www.auniao.pb.gov.br Diretora Técnica Paulo Sérgio de Azevedo Beth Torres
  • 3. FOTOS: JOÃO LOBO 6 reportagem Joana Belarmino, A beleza de viver sob a verdadeira luz Vanessa Furtado oana Belarmino tinha apenas sete J anos de idade e estava descobrin- do o encanto das letras e o poder das palavras, quando o mundo mágico de Monteiro Lobato lhe foi apresentado por uma profes- sora. Encantada com a obra que a instigava e desafiava na busca por novas aventuras, ela se deixou le- var por entender que o caminho para enfrentar as dificuldades que o mundo lhe reservava e, con- sequentemente, desenvolver seu potencial, estava escondido em páginas de livros, à espera de sua curiosidade. 4 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 4. Assim, a hoje jornalista, professora e escritora en- tregou-se ao prazer da leitura e passou também a escrever e narrar suas próprias histórias. Descobriu que a visão não é definida pelas imagens que se pro- jetam na retina, e que seus sonhos e fantasias são reais, sendo a sua imaginação tão rica e poderosa que é capaz de maravilhar crianças e adultos. “À medida que fui aprendendo a ler, fui também me aproximando cada vez mais da literatura a pon- to de recriar as histórias a meu modo e a contá-las com dramaticidade a meus irmãos”, disse Joana, durante entrevista concedida ao Correio das Artes, na sala de seu apartamento, no bairro do Cabo Branco, em João Pessoa. Qualquer lugar servia e todo mo- mento era uma oportunidade para ela exercitar o gosto pela narração que a impulsionaria, alguns anos depois, a decidir-se pelo jornalismo como profissão. Joana contou que o jornalismo lhe satisfaz à medi- da que ela tem a oportunidade de contar histórias peculiares da vida da cidade e de personagens às vezes comuns, às vezes excêntricos, mas confessa que gostaria mesmo é de ter sido escritora de histórias infantis. “Ainda me aventurei pela literatura infan- til e publiquei, de forma independente, uma reunião de contos para crianças em 1979. Quatro anos de- pois, publiquei pela Editora Moderna, em quatro edi- ções, Dartanhan, Um Gato com Gosto de Pinto, e, no fim da década de 1990, lancei, pela Editora Ideia, Era Uma Vez Uma Vírgula”, ressaltou. Joana não apenas lia, mas recriava a seu modo o que lia A IMPORTÂNCIA Machado de Assis pela primeira vez. “Eu DA FAMÍLIA progredi rapidamente e passei a ler tudo o Se o incentivo da família e dos profes- que aparecia e as obras desses autores me sores é importante para o desenvolvimen- influenciaram de forma muito positiva. to saudável das crianças, ele se torna fa- Graças à literatura eu me fortaleci, enquan- tor fundamental para a educação de defi- to pessoa, e aprimorei minha escrita e mi- cientes visuais. No caso de Joana Belarmi- nha intelectualidade”, afirmou. no, a experiência com os livros proporcio- Quando a adolescência lhe bateu à por- nou uma melhor percepção das muitas ta, Joana Belarmino já havia moldado em informações do ambiente, e se tornou re- si um aguçado olhar interior e a poesia foi levante para seu crescimento e continui- a forma escolhida para expor sua sensibi- dade de sua aprendizagem. “Tive uma in- lidade. Com a percepção mais desenvolvi- fância feliz, no entanto, como deficiente da sobre as artes, ela escrevia sobre as su- visual, enfrentei muitas frustrações. Eu era tilezas do que ouvia, tocava e sentia. A pe- fascinada por esportes que eram pratica- culiaridade presente na maneira como re- dos com o uso de bola, mas nunca prati- conhecia o mundo proporcionou brilho, quei e, quando fui estudar em escola co- contraste e colorido especial a seus versos mum, vi que as pessoas não estavam pre- e foi transplantada para sua vida pessoal. paradas para lidar comigo”, revelou. Para Atualmente, as experiências que presencia compensar a ausência dessas experiênci- em seu lar, em seu trabalho e no mundo que a as, Joana fortaleceu sua personalidade, cerca são reveladas de forma extremamente aprimorando a habilidade de contar boas fina e sensível no blog que ela mantém na in- histórias e jamais se rendeu ao medo. ternet. Através do joanabelarmino.zip.net, a Ela lembra, com alegria, da sensação ain- escritora tece comentários críticos e narrati- da gravada no peito de estar lendo obras vos de recortes da realidade que de alguma de Monteiro Lobato, José de Alencar e maneira despertaram sua atenção. A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 5
  • 5. “Não sei explicar ao certo o porquê, mas sou fascinada por entender o momento humano que antecede o fim.” FIM DE TARDE, cia. Por isso, ela mantem o hábito de escrever contos e participa de coletâneas e de encon- VELHICE E MORTE tros, a exemplo do Circuito Universitário, da “Os temas sobre os quais constantemente Associação dos Docentes da Universidade me debruço são: a morte, os fins de tarde e a Federal da Paraíba (Aduf-PB) e do Clube do velhice. Não sei explicar ao certo o porquê, mas Conto da Paraíba. sou fascinada por entender o momento huma- Para Joana, desvencilhar-se de seus pró- no que antecede o fim”, salientou. Para Joana prios sentimentos e escrever uma obra com- Belarmino, o tempo é registrado e entendido pletamente diferente de si é algo, por enquan- de forma especial, e essa peculiaridade é ins- to, impossível. Requer um amadurecimento piradora. “Me surpreendo sempre com o pul- e uma capacidade de abstração e indiferen- sar de vida que há em cada lugar. Muitas ve- ça incompatíveis com sua personalidade. “Já zes estou em casa, concentrada em meus afa- tentei, mas não consegui. Em cada um de zeres e de repente sou despertada pelo cheiro meus textos há sentimentos, fatos e emoções do café na casa da vizinha, pelo doce barulho próprios de meu coração. Costumo afirmar do retorno das crianças depois da escola e pelo que ainda não alcancei o grau desejável de ritmo crescente de veículos que levam pessoas maturação e que minha escrita é terapêuti- de volta a seus lares. Essa magia requer regis- ca”, sublinhou. tro e é isso o que faço”, explicou. Indisciplinada, mas muito criativa, Joana Joana foi casada durante 13 anos com o poe- confessou o seu desejo de escrever um livro ta Lau Siqueira, com quem teve duas filhas apenas com romances implícitos em frases (Mariana e Mayra) e uma neta (Gabriela). Com de livros, histórias de personagens passa- ele, a jornalista publicou o livro de poemas e geiros em romances, mas cujas aparições contos O Comício das Veias. “Lau é um homem são suficientes para desencadear questiona- muito importante em minha vida. Nossa fa- mentos sobre o futuro, que atitudes teriam mília foi um presente e as experiências profis- tomado, se foram felizes ou não. A inspira- sionais foram enriquecedoras”, declarou. ção para seus contos e crônicas surge de sen- A capacidade que a literatura possui de en- timentos muitas vezes antagônicos – a pai- volver o seu humano nos mais diversos sen- xão e a tristeza –, mas que preparados com timentos, e de fertilizar interesses e emoções atenção, talento e uma pitada de racionali- é, segundo Joana, de fundamental importân- dade, garantem o sucesso. 6 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 6. O JORNALISMO lhou, durante quase nove anos, na redação. Outro desafio marcante na carreira desta – DESAFIOS E VITÓRIAS jornalista, na redação de O Norte, aconteceu Tímida e com dificuldades de relacionamen- durante a cobertura de uma manifestação de to, Joana Belarmino teve a vida transformada estudantes no Centro Universitário de João a partir do instante em que passou a fazer par- Pessoa (Unipê). “Fui enviada para acompa- te do quadro de alunos do Curso de Comuni- nhar a tentativa dos alunos de invadir a sala cação Social, com habilitação em Jornalismo, onde funcionava o DCE, mas fui sozinha, o fo- da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). tógrafo não pôde me acompanhar. Ao chegar Como uma borboleta que sai do casulo, ela en- lá eu me senti muito insegura e, quando os sol- xergou-se, pela primeira vez, como uma pes- dados realizaram a formação, eu achei que eles soa normal. fossem invadir. Neste momento eu não tinha “Foi na UFPB que conheci as pessoas que se a dimensão da cena que se desenrolava na tornaram meus grandes amigos e pude desen- minha frente e me senti vulnerável, mas foi aí volver todas as minhas potencialidades. Par- que superei e, com dificuldade, consegui en- ticipei de Movimento Estudantil e de uma sé- trevistar o tenente que estava comandando os rie de atividades que a academia me oferecia”, soldados e voltei para a redação com um exce- lembrou. Mas os desafios para esta paraibana lente material”, relatou. estavam apenas começando e, por vezes, ela Durante as entrevistas, Joana costumava precisou abrir mão de mais um sentido para utilizar um gravador ao mesmo tempo em que permanecer no sonho. “Muitas pessoas me di- fazia as anotações em braile, que é o sistema ziam que ia ser difícil e que eu não teria suces- de escrita e leitura para cegos. Alfabetizada so, mas eu era jovem e não dei ouvidos a elas, através de um grupo de pontos, costumeira- prossegui no curso e me graduei”, acrescen- mente utilizados para encerrar as frases, mas tou. que agrupados constituem 63 símbolos dife- Ainda enquanto estudante da UFPB Joana rentes, que servem para representar caracte- se aventurou e produziu quatro grandes re- res na literatura, matemática, informática e portagens para uma revista da instituição. música, Joana tem escrito sua própria histó- Com apoio do irmão - que a acompanhava - e ria. uma câmera fotográfica ela registrava os mo- Segundo ela, o medo de errar, de não conse- mentos que iriam compor as páginas, e pro- guir, de decepcionar sempre existe. No entan- vou para todos e, especialmente, para si mes- to, é exatamente este medo o responsável por ma, que este sonho era possível. ensinar algumas das mais importantes lições, Passado algum tempo, e já diplomada, a en- entre elas, a de que é preciso avançar, sempre. tão jornalista Joana Belarmino recebe convite do jornal O Norte, de João Pessoa, e passou a trabalhar na empresa. Ela recordou os con- tratempos enfrentados como detalhes essen- ciais de uma experiência única, mas fez ques- A CONQUISTA tão de guardar no relicário da memória, o apoio DA CÁTEDRA cúmplice dos chefes e amigos que contribuiu Depois de superar os inúmeros desafios que para firmar a certeza de ter escolhido a profis- a redação de jornal lhe reservara, Joana Belar- são perfeita. mino partiu para uma nova etapa. Aprovada “Lembro em detalhes de meu primeiro dia em concurso público, ela se tornou, em 1994, na redação. Minha pauta era uma entrevista professora do curso de Comunicação Social da com a então secretária estadual de Educação, UFPB. “Foi a realização de um sonho. A possi- Giselda Navarro, sobre desvio de verbas. Fui bilidade de passar meu conhecimento de aca- no carro da reportagem e, quando cheguei ao demia e de profissional me trouxe energia”, local, aprendi o significado do termo ‘chá de acentuou. cadeira’. Depois de algumas horas ela me rece- As qualidades de mulher inquieta e de pro- beu e a entrevista rendeu bem”, recordou. fissional questionadora foram levadas para dentro da UFPB e, a partir de então, Joana tem Mas, para quem acha que encarar ambien- se destacado como uma das docentes mais em- tes e pessoas completamente desconhecidas e penhadas em levar ensino de qualidade aos “arrancar” delas as informações que precisa estudantes daquela instituição. “Tento man- sem enxergá-las foram os maiores desafios en- ter um diálogo estreito com outras interfaces, frentados por Joana, seria bom experimentar sejam elas a arte, a literatura ou mesmo as redigir uma reportagem de página inteira em histórias de vida de cada um”, destacou. uma máquina de datilografia e não poder cor- Joana disse que ao longo dos seus 17 anos rigi-la. E foi exatamente assim que ela traba- como professora descobriu que o ensino é um A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 7
  • 7. contrato e que, para dar certo, é necessário que todos os envolvidos colaborem. Através de métodos criativos e eficientes, ela tem conquis- tado o comprometimento de seus alunos, con- seguindo, assim, desenvolver neles qualida- des fundamentais para a formação do bom profissional de comunicação. “Procuro ques- tionar os conceitos deles sobre a ética profissi- onal e fazê-los enxergar a importância do diá- logo constante com a literatura. A escrita é o instrumento do jornalista e desenvolver um bom texto, com narratividade e criatividade, é fundamental”, justificou. Questionada sobre o preconceito em sala de aula, ela diz que jamais foi hostilizada por sua condição física e que a maior parte dos estudantes é respeitosa. Convicta de que seu grande diferencial não é o fato de ser defici- ente visual, mas a maneira como trabalha, como orienta seus alunos, Joana tem plena convicção de que o estigma de seu corpo não pode ser um atributo depreciativo, e que a interiorização de quem ela é, realmente, é o que garante sua felicidade. NA ARENA DAS REDES SOCIAIS Durante a aventura de se tornar doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP), em 2004, Joana Belarmino se rendeu ao cibe- sibilitado uma interação valiosa entre a pro- rativismo e, hoje, é uma das pessoas mais in- fessora e seus alunos, à medida que dúvidas e fluentes do estado nas redes sociais. “Através alertas estão sendo transmitidos em tempo do avanço da tecnologia é possível que defici- real. O mesmo acontece entre a escritora e seus entes visuais tenham acesso a todos os meios leitores, que ao longo de 2011 experimentaram de comunicação e, assim, temos transforma- a criação do NanoRomance. O projeto uniu do a internet em uma grande arena de mobi- André Ricardo Aguiar, Beto Menezes, Joana Be- lização”, observou. larmino, Anderson e Raoni no objetivo de de- Usuária assídua das ferramentas que possi- senvolver personagens que decorreriam capí- bilitam trocas de informações instantâneas tulos ligeiros sobre os mais diversos temas. entre pessoas de todo o mundo, Joana tem de- O projeto encerrou-se em 2 de junho de 2011, senvolvido pesquisas e feito parte de fóruns e quando Joana Belarmino, última remanescen- grupos de discussão. Nestes movimentos, ela te, fez as malas e partiu. Zarpando para a “ge- e tantos outros exigem de políticos e da socie- leira azul da solidão”, ela deu adeus aos leito- dade civil providências para questões impor- res e amigos, afirmando que não sabe “tomar tantes, tais como cumprimento dos direitos café sozinha” e alegando que, com o tempo, do consumidor, direitos humanos, fim da cor- “até a ‘matilha’ de leitores se foi”. rupção, conservação da natureza, acessibili- No entanto, esta paraibana multifacetada dade e cultura de paz. ainda promete surpreender muita gente com “A internet possibilita alcançarmos públi- novas formas de educar, a publicação de li- cos de todas as idades e grupos sociais de modo vros inéditos e campanhas mobilizadoras em que o ciberativismo surge como uma alterna- redes sociais. Joana garante que não jogou as tiva real e eficaz de praticar nossa cidadania. chaves de sua criatividade ao mar, e que tem A cada dia damos um passo, e através de peti- “esquecido” fragmentos de si em pequenas ções online e coleta de assinaturas consegui- gavetas. Ao longo dos anos que se seguirão, mos colocar a ‘boca no trombone’ e obter êxi- certamente encontraremos tesouros que ape- to, praticar a mudança”, assegurou. nas as percepções de um “olhar” de guerreira Além disso, as plataformas virtuais têm pos- são capazes de nos permitir vislumbrar. 8 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 8. 6 conto Sonho de Sábado Joana Belarmino S onhou que ele vinha. Não tinha sido um sonho longo, cheio de detalhes. Algo como um telegrama, por baixo do seu sono de lexotã, sílabas aparentemente desconexas a ditar-lhe o inusitado. Chegaria com a fome do seu corpo, e lhe despiria as parcas roupas, ali, perto da porta, e a pressa se transmudaria em contemplação, em diálogo de respirações e toques, em entrega. De manhã ergueu-se à pressa, e surrupiou, no mercadinho da rua paralela, o sabonete de erva-doce com que se lavaria. Banho frio e revigorante, a lhe escorrer em grosso cone do velho cano do pequeno banheiro, a lhe lavar todas as sujidades, a lhe purificar o espírito, aceso pelas promes- sas do sonho. Imaginou-lhe a barba de muitos dias, a acumular dos cheiros da sua vida incerta, e experimentou, no fundo do sexo, a pulsação excitante de o saber ali, a vasculhar seu corpo, a provocar-lhe ganidos íntimos nas entranhas untadas de paixão. A manhã de sábado trouxe o jogo improvisado dos meninos de sempre, a berrar com suas vozes roucas e nasaladas. Dentro de casa, fervia o chá e lutava por fazer calar-se o vento de outono, afim de que não perdesse os ruídos das velhas sandálias dele, a subir a rua. Ele viria. Chegaria sem se anunciar, e ficaria a contemplá-la, da porta, antes de entrar, um cinismo quase terno a enrugar-lhe o lábio superior, a exibir a falha dentária. E com passo sorrateiro iria até a sua velha cama, e se deita- ria, quase sem barulho, e ela sentiria a paz de tê-lo ali, num sábado suspenso no tempo, a tremer de paixão. O sol do meio dia, amarelado e triste, cedia lugar à tropelia das nuvens. Ele viria com a chuva. A água a lhe molhar o velho casa- co, a se entranhar pelos seus cabelos, a lhe emprestar um chei- ro a cachorro molhado, cheiro que tanto a excitava. A rua anoiteceu, ainda era cedo da tarde. Ele viria. Traria o desassossego da pressa, a cachaça comprada ali, no buteco da esquina. E a chuva grossa, feito marceneiro, desconjuntava pouco a pouco a sua certeza. Fazer alguma coisa. Re- começar. Banhar-se na tarde, entregar seu corpo ao latejar da água, correr, correr, encurtar o caminho, encontrar-se com ele no meio da chuva. E saiu porta a fora, e viu assombrada a força da água a erguer sua casa ao colo, a destampar a chaleira e entregar o chá fervido ao largo rio que era agora a sua rua. Ele viria. Ele viria com os braços erguidos, e fariam amor do meio da chuva, no cimo da tormenta, a remarem sua paixão intensa sobre os frágeis toros da casa desmantelada. Jornalista, escritora e professora A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 9
  • 9. 6 imagens amadas João Batista de Brito brito.joaobatista@gmail.com É tudo mentira , - ou quase tudo cinema começou documental. Disso nin- esquecido. Quem hoje chamaria um fil- o guém tem dúvidas. O que os irmãos Au- guste e Louis Lumière fizeram em filmes de 1895 como A Chegada do Trem à Estação e A Saída dos Operários da Fábrica era realmen- me ficcional de “posado”? Uma ironia que não pode deixar de ser colocada é que, naqueles tempos primitivos do cinema ainda predomi- te documentário, no sentido amplo de re- nantemente documental, a ideia de gistro do real. Como os irmãos Lumière que cinema consistia no mero registro foram os primeiros divulgadores do novo da realidade era tão consensual que meio, o conceito de documentário se con- até as “poses” dos irmãos Lumière fundiu, por um tempo, com o conceito de passavam por verídicas. O Regador Re- cinema. Apesar dos experimentos técni- gado (1895), por exemplo, é um filme cos do prestidigitador Georges Méliès, todo “posado”, e, contudo, esse lado que investiam na fantasia e no surreal, ficcional não veio à tona para ninguém essa confusão perdurou e na primeira da época, em parte por culpa de seus década do século XX ainda se pensava autores que – estranhamente - defen- uma coisa pela outra. deram sempre firmemente a ideia de No Brasil daquela época, por exemplo, que o cinematógrafo fora concebido o documentário era tão comum que, nos para o exclusivo registro do real. poucos circuitos de exibição, os filmes Essa equação cinema=documentário foi, não-documentais eram anunciados como como se sabe, corrigida pelo tempo, e o “posados”, e o adjetivo significava que as século XX viu o desabrochar e a consa- pessoas que se viam na tela haviam ence- gração do seu oposto: embora eminente- nado (posado) a estória, que, verídica ou mente representacional (ou seja, nunca não, era narrada assim, a partir de suas abstrato), o cinema efetivamente consa- “poses”. O fato de que não havia um ter- grou-se como uma arte narrativa e ficci- mo para denominar os filmes que não fos- onal (se você quiser usar o termo antigo, sem “posados” deixa bem claro o predo- “posada”). Sem se extinguir, o documen- mínio do cinema documental, certamen- tário diminuiu de tamanho: deixou de te entendido como o normal. Com o pas- ser sinônimo da arte cinematográfica sar do tempo, os “posados” (principal- como um todo e sensatamente acomo- mente os advindos da então emergente dou-se no conceito de gênero, ao lado dos Hollywood) tomaram conta do mercado: tantos outros existentes. eram tantos, e os documentais tão escas- Mas é neste ponto que aparece um sos, que o adjetivo caiu em desuso e foi equívoco crucial, recorrente nos meios c 10 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 10. 6 imagens amadas c cinematográficos. Por ser o gê- nero documentário entendido como “cinema sem ficção”, isso passou, para muita gente, a ideia de que um filme documental mostraria o real tal qual ele é, ou seja, sem interferência do ci- neasta – para usar uma expres- são de Roland Barthes, uma es- pécie de grau zero de linguagem, ou seja, uma forma de discurso em que o enunciado (o filme em si), cedeu lugar à enunciação (a realidade filmada) e sequer che- gou a nascer. A noção de um tal cinema do- cumental idealmente puro, e, portanto, hiper-realista, não foi só dos irmãos Lumière e, ao lon- go da História, ela ressurgiu em vários momentos, com nomes Auguste e Louis Lumière variados. Nos anos cinquenta- sessenta, essa noção teve um no real, pois o real é assimétrico, renascimento significativo com A noção de um tal disperso, caótico: não é montado. o etnólogo Jean Rouch, que pas- cinema documental Como se sabe, é comum que sou a propor e fazer um “cine- um documentário tenha um co- ma-verdade”, esse que fala por idealmente puro, e, pião extremamente longo (em al- si mesmo, como se à revelia de guns casos, com dezenas de ho- quem filma. Ora, que essa pure- portanto, hiper-realista, ras de duração) que não seria vi- za de linguagem não faz sentido não foi só dos irmãos ável para público algum assistir. por uma razão muito simples: Uma tarefa do documentarista é embora desejada por alguns, ela Lumière. sistematicamente cortar, deixan- é semioticamente impossível, o do de lado milhares de fotogra- que também equivale a dizer: mas, e escolhendo o que o públi- cientificamente impossível. co vai ver, e em que ordem o verá. Como nos explica Ferdinand de Bastaria o cotejo das duas metra- Saussure nos seus ensinamentos gens (duas horas para o filme linguísticos, toda linguagem é fei- pronto e dez para o copião, diga- ta de escolhas. De escolhas e de mos...) para se ter uma ideia do combinações, é verdade, mas, es- um determinado assunto, e não grau de ingerência do autor so- tas também são escolhas, pois outro, ele já está fazendo uma es- bre a obra. A edição do som (fa- combinamos o que queremos do colha. Quando liga a câmera e fil- las dos depoentes e/ou voz em modo que queremos. A língua pos- ma o objeto escolhido, ele o enqua- over do autor) e, se for o caso (e sui um número dado de palavras dra e ilumina de uma determina- geralmente é) o acréscimo da e um número também dado de da maneira, e não de outra, e como música terminam por definir o regras, e, contudo, ao falar, você ele o enquadrou e o iluminou foi caráter pessoal, e, portanto, au- escolhe as palavras que quer usar escolha sua. Se formos recobrir o toral, de todo e qualquer filme e, sem quebrar a regra da inteli- processo inteiro, todas as etapas documental. gibilidade, as combina da forma da filmagem de um documentá- Agora, atenção, esse caráter que lhe apraz. rio implicam escolhas, mas, de pessoal, subjetivo, autoral, não Do mesmo modo, o gesto de fil- todas, talvez a montagem seja a concede ao documentário uma mar consiste num amontoado de que melhor ilustra a interferên- natureza ficcional. Pelo menos, escolhas que se superpõem e dão cia do cineasta sobre a forma e o necessariamente, não. Docu- ao resultado final um aspecto sentido do filme. Nessa etapa, o mentário e filme ficcional são a bem particular, um pouco menos cineasta – representado pelo rigor duas coisas diferentes que objetivo do que se quer, e um pou- montador, ou não – corta o que não podem ser confundidas. Bas- co mais subjetivo do que se ima- filmou e não quer manter, e mon- taria o velho termo “posado” gina. Por mais realista que queira ta as partes do filme do modo que (usado em um e proibido no nou- ser, quando um cineasta-docu- quer, normalmente buscando efei- tro) para assegurar a diferença. mentarista decide que vai filmar tos de sentido que não estavam A natureza de cada um é tão evi- c A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 11
  • 11. 6 imagens amadas c dente que, suponho, não necessi- ta de definições. E mesmo o fato de certos documentários conte- rem momentos ficcionais e cer- tos filmes de ficção conterem tre- chos documentais – mesmo este fato não destroi a diferença entre os dois gêneros. O que iguala documentário e filme ficcional é algo que está mais embaixo – ou seria mais encima? –: o fato de que ambos são autorais. A colocação é im- portante para a reflexão sobre a relação do documentário – e por tabela, do cinema em geral - com a realidade. Ao afirmarmos que um filme documental é tão auto- ral quanto um filme ficcional, ne- A Chegada do Trem à Estação (1895), dos irmãos Auguste e Louis Lumière cessariamente implicamos que a realidade que nele aparece não coincide de todo com – se for pos- am? A rigor, porque os Lumière, um filme ficcional sobre sível o pleonasmo - a “realidade de propósito ou não, escolheram real”, porque, inevitavelmente, um problema real (a (e o verbo é chave para nós) um consiste numa realidade constru- determinado enquadramento – e ída pelo documentarista. revolução russa, por não outro – que propiciava esse Essa “realidade construída” medo: filmado de longe, o trem exemplo) pode vir a ser pode até ser (e geralmente é) mais avançava em direção à câmera, o enfática, ou mais envolvente, ou mais realista do que um que equivale a dizer, em direção à mais contundente, ou mais signi- tela, ou seja, ao espectador. Tives- ficativa, do que a “realidade real” documentário sobre o sem os autores do filme escolhido e, contudo, isso não torna o filme um outro enquadramento (o trem mesmo assunto. documental mais realista, pois a se afastando, ou simplesmente rigor, ele é um constructo, em ter- cruzando a tela de um lado a ou- mos simples, uma visão pessoal. tro), com certeza, a reação do es- Se fosse para continuarmos com pectador primitivo teria sido ou- a dicotomia documental/ficcio- tra. Aqui não interessa se os Lu- nal, valeria lembrar paradoxos mière quiseram ou não provocar que não são fáceis de entender e o medo; o que interessa, para nós, que, no entanto, são verdadeiros com os inventores e pioneiros é que, num filme de uma única e pertinentes para a nossa refle- com que abrimos esta matéria, os tomada, breve e mimética, eles xão. Um deles é o seguinte: um irmãos Lumière. Segundo os his- colocaram, ao escolher o enqua- filme ficcional sobre um proble- toriadores, os jornais da época dramento, um inequívoco sinal ma real (o assassinato de Ken- deixaram registradas as reações de autoria. Assim, se o primeiro nedy, ou a revolução russa, ou dos primeiros espectadores ao fil- documentário do mundo já foi um campo de concentração na- me Chegada do Trem à Estação. Ao autoral, muito mais o seriam os zista, ou a vida num presídio ver o trem se aproximando, as outros, todos os que se fizeram brasileiro, por exemplo) pode vir pessoas agitavam-se, alguns se depois. a ser mais realista do que um afastavam, outros recuavam rá- O registro da reação dos espec- documentário sobre o mesmo pido, derrubando cadeiras e cau- tadores ao trem dos Lumière é assunto. O que, afinal de contas, sando atropelos. Foi preciso que importante, entre outras coisas, vai determinar o grau de realis- os irmãos Lumière avisassem, também porque dá a medida do mo serão os enfoques dados, e antes de cada sessão, que não ha- efeito de realismo no cinema do- não o gênero escolhido. via perigo e que todos podiam cumental. Embora correr da ima- Acreditando haver ficado este permanecer em seus lugares: em gem do trem fosse uma leitura ponto, passamos a mencionar al- suma, o trem que se via era só ingênua do cinema, não deixa de guns casos históricos em que o uma imagem em movimento, e ser uma reação similar a que quer constructo que é o filme foi con- não um trem real. o documentarista que apresenta fundido com a realidade. Se era só uma imagem, por que o seu assunto como verídico, ver- Comecemos nossas ilustrações os primeiros espectadores o temi- dadeiro. O documentarista que c 12 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 12. 6 imagens amadas c filma hoje, por exemplo, o exter- mínio da raça indígena no Brasil quer que o espectador saia do ci- nema indignado, chocado ou ira- do. A indiferença dos espectado- res informados pelos Lumière de era só uma imagem de trem, e não um trem de verdade – essa indi- ferença não convém aos cineastas que realizam documentários. E o círculo é vicioso: porque não querem indiferença é que os cineastas-documentaristas bus- O Homem de Aran (1934), do americano Robert Flaherty cam efeitos além dos meramen- te descritivos, miméticos, docu- mentais, efeitos estes que, por até que ponto O Homem de Aran é O que parece ficar sua vez, acentuam o caráter au- um filme realista? O óbvio é que toral de seus filmes. evidente é que o a resposta é ambígua. Se for para Às vezes a busca desses efeitos tomar o incidente como parâme- vai longe demais. Foi o que acon- conceito de realismo no tro, o que parece ficar evidente é teceu com o nosso segundo exem- que o conceito de realismo no fil- filme documental é bem plo, o filme O Homem de Aran me documental é bem mais com- (1934) do americano Robert mais complexo do que plexo do que comumente se ima- Flaherty, um clássico que críticos gina. e historiadores consideram um comumente se imagina. Um outro caso desse tipo em que avatar do gênero. – por assim dizer – o cinema do- Todo rodado numa ilha da cos- cumental quis ser “melhor” que a ta oeste da Irlanda, o filme apa- realidade, aconteceu na URSS nos rentemente retrata a vida de uma tempos duros de Josef Stalin, e não aldeia de pescadores que retira o apenas em um filme, mas em toda seu sustento do mar bravio, que uma filmografia estatal. Na épo- castiga as falésias com sua fúria ca tinha o Kremlin a sua equipe indomável. Para maior familiari- do não existia eletricidade, tinha de cinegrafistas, encarregada de dade com o assunto, Flaherty e sua sido costume dos tetravôs, costu- acompanhar os acontecimentos equipe foram morar na ilha, onde me abandonado por ter feito mui- mais importantes que, filmados, ficaram por quase dois anos, fil- tas vítimas. Flaherty havia lido eram exibidos em naturais nos mando praticamente todos os as- sobre o tubarão branco e tentou cinemas do país. Além disso, es- pectos do modesto cotidiano dos convencer os pescadores de Aran ses cinegrafistas do governo tam- habitantes, e de fato, para quem a retomar a caça, pelo menos uma bém tinham a missão de viajar assiste ao filme, a impressão é de vez, para que ele pudesse filmar. país afora, filmando a vida coti- rigorosa fidelidade. O cotidiano Apavorados com a perspectiva, diana do camponês russo. da ilha está registrado, mas, o que os pescadores se recusaram ter- Era uma vida difícil, precária, mais impressiona – na verdade, o minantemente, inclusive, alegan- sofrida, mas o problema era que, ponto alto do filme - são as toma- do que, como a prática fora aban- previamente censurados pelos das no mar onde, entre ondas donada havia tanto tempo, não assessores de Stalin, esses cine- avassaladoras, os pescadores ca- conheciam a técnica necessária grafistas não podiam mostrar di- çam o temível tubarão branco. para a captura do temível tuba- ficuldades, e, ao contrário, tinham Assistindo a essa sequência, é pos- rão. O que fez Flaherty? Embre- que passar ao público uma ima- sível perceber o perigo a que es- nhou-se na leitura de compêndi- gem extremamente positiva da tão sujeitos os pescadores, e por os sobre pesca, aprendeu – pelo vida rural. Assim, a penúria e a tabela, o mesmo perigo a que se menos teoricamente - a técnica da dor eram evitadas (e se filmadas, sujeitou a equipe que os filmava. pesca do tubarão branco e a re- eram cortadas na montagem) e os Mas, ora, o que de fato aconte- passou para os pescadores, que só cinegrafistas faziam esforços so- ceu em Aran não é propriamente aceitaram a empreitada quando bre-humanos no sentido de en- o que está na tela de Flaherty. Flaherty lhes pagou uma soma de contrar sempre figuras bem nu- Quando este lá chegou, por volta dinheiro considerável para os tridas e saudáveis a quem se pe- de 1933, já não se pescava o tuba- seus modestos padrões financei- dia que rissem diante das câme- rão branco havia quase um sécu- ros. A cena foi “posada”, portan- ras, isso tendo se escolhido capri- lo. A caça desse violento cetáceo, to. chosamente um fundo verdejan- cujo óleo iluminava a aldeia quan- A essa altura, a pergunta seria: te de plantações viçosas e auro- c A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 13
  • 13. 6 imagens amadas c ras encantadoras, claro, com o acréscimo posterior de uma mú- sica sublimemente revigorante. O povo russo acreditava nesses filmes? Se acreditava, não se sabe, mas sabe-se muito bem (pois há registro do fato) que den- tro das portas fechadas do Kre- mlin houve quem acreditasse – e o pior, o maior crédulo foi o au- tor do projeto. Sim, o que consta é que Stalin, de tanto assistir a esses documentários em sua sala de projeção particular, passou, com o tempo, a acreditar neles, e na fase mais madura de sua exis- tência, pública e privadamente, apresentava o sincero comporta- mento de quem cria piamente Sobre Crise a primeira que a vida rural na URSS era ver- dadeiramente idílica e paradisí- coisa a ser dita é que é, aca. Um caso curioso de um pseudo-feiticeiro convencido ainda hoje, impactante. pelo seu falso feitiço, mas, para Através do olho curioso nós, aqui, ilustra os poderes transformadores do cinema apre- da câmera, o espectador sentado como documental. Um pouco mais próximo da é introduzido aos dois ral ou de outra ordem. realidade está um documentá- Sobre Crise a primeira coisa a lados da questão. rio americano que relatou um ser dita é que é, ainda hoje, im- caso famoso do começo dos pactante. Através do olho curio- anos sessenta. so da câmera, o espectador é in- Não sei quem ainda recorda os troduzido aos dois lados da ques- fatos, mas, em junho de 1963, a tão. Enquanto as negociações imprensa mundial noticiou o caso prosseguem, vê-se o cotidiano do Governador de Alabama, Es- doméstico do Secretário de Justi- tados Unidos, que, em pessoa, cidade também sulista. ça, Robert Kennedy, do mesmo pôs-se em frente à porta da Uni- Pois bem, o caso inteiro foi fil- modo como se vê o cotidiano do versidade para impedir a entra- mado em seus bastidores, priva- intransigente Governador Geor- da de dois estudantes negros que dos e públicos, e pode ser visto ge Wallace. Cafés da manhã, tele- pretendiam matricular-se. Escan- no documentário de 52 minutos fonemas, reuniões internas, entre- daloso, o caso gerou uma crise na chamado Crise (Crisis: Behind a vistas, confrontos públicas, cada Casa Branca, onde o Pres. Kenne- Presidential Commitment, 1963), passo do impasse nos é mostra- dy já sancionara a lei que obriga- do cineasta Robert Drew. do, até o momento final em que os va as universidades americanas Como foi possível filmar por dois estudantes negros, vitoriosa- a aceitarem negros como alunos. dentro uma crise política com mente, adentram o recinto uni- Os assessores da presidência ten- tanta liberdade? Acontece que versitário, e o filme se conclui com taram “negociar” com o Gover- Drew havia coberto a campanha um pronunciamento televisivo de nador sulista, que não transigiu, eleitoral de Kennedy em 1960 e o Kennedy, citando Lincoln (outro e a solução de última hora foi o Presidente eleito gostou tanto do presidente assassinado) a respei- golpe diplomático de federalizar resultado (o filme se chama “Pri- to de igualdade e justiça social a Guarda estadual. Vivian Malo- márias”) que deu o sinal verde para para todos. ne e James Hood foram os últimos o registro do caso em questão. Em que pese à defesa de Drew negros a serem barrados em por- Para quem não lembra, Robert de um cinema-verdade, ou de um tas de universidades americanas, Drew (1924-) foi, e é, o defensor “cinema direto”, como preferem mas o caso deu o que falar e aba- americano do que os franceses os americanos, o filme tem, sim, a lou a unanimidade da política de chamam de “cinéma-verité”, ci- sua inevitável ingerência autoral. John F Kennedy, o qual, com ou nema-verdade, aquele que, em Tudo é ardilosamente montado de sem coincidência, seria assassi- princípio mostraria a realidade uma maneira pessoal que dá ao nado cinco meses depois, numa como ela é, sem ingerência auto- espectador, em certos momentos, c 14 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 14. 6 imagens amadas c a impressão de estar assistindo a O que Crônica de um sas de restaurantes onde pratica- um filme de ficção. Um exemplo mente todos entrevistam todos. entre tantos está nas cenas de con- Verão revela é que o Várias cenas são encenações os- versas telefônicas: filmando em tensivas, como aquela que mostra locais diferentes (Washington, conceito de verdade/ o dia de um operário, desde o mo- Montgomery, Tuscaloosa, etc) o mento que acorda até a sua ativi- realidade no diretor corta e ordena as toma- dade no trabalho; ou aquela outra, das de modo a acompanharmos documentário foi onde uma das moças participan- a conversa com revezamento de tes faz uma longa caminhada, da perguntas e respostas, como se atingido de cheio e o foi Place de La Concorde até o setor faz no onisciente cinema ficcio- do Havre, recitando um monólogo de propósito. nal. O corolário é um maior en- sem interlocutor presente. Antes volvimento do espectador, sem de o filme se concluir, há uma cena- que a “verdade” dos fatos fique chave em que o tanto do filme ro- comprometida. dado é mostrado a todos os parti- A sequência que, nos batentes cipantes, que dão as suas opiniões da Universidade de Alabama, em sobre o conjunto, na maior parte Tuscaloosa, registra o confronto dos casos, opiniões desfavoráveis. entre o governador Wallace e o Um ponto que fica claro, nessa dis- assessor do presidente, Nicholas cussão coletiva, por exemplo, é se, Katzenbach, é um documento pre- for o caso, sobre o seu estado de ou até que ponto os desabafos fo- cioso para qualquer estudo sobre espírito naquele verão de 1960, ram sinceros ou encenados, para segregação racial, nos Estados porém, o roteiro é frouxo demais retomar um termo com que abri- Unidos ou alhures. Nela, como no para assegurar uma linha de an- mos esta metéria, “posados”. filme todo, se não se puder falar damento. As sequências são inde- Uma mistura evidente da etno- de “verdade” em si, pode-se pelo pendentes e, se cotejadas, não for- grafia de Rouch com a sociologia menos defender o conceito de re- mam uma estrutura de sentido. de Morin, o que Crônica de um Ve- alidade histórica assegurada por Assim, o filme começa com uma rão revela é que o conceito de ver- uma câmera investigativa. moça, Marceline, amiga dos cine- dade/realidade no documentário Temos usado a expressão “ci- astas sendo, com alguma relutân- foi atingido de cheio e o foi de nema-verdade” no amplo senti- cia, convencida a fazer o papel de propósito. Somente de uma ma- do rouchiano de documentário repórter de rua e interpelar os neira enviesada, indireta, disfor- que dá vez à realidade. Por isso passantes nas calçadas lhes for- me, a realidade se presentifica no mesmo, - e para fazer justiça - mulando de chofre uma pergun- cinema documental, e há mesmo nos sentimos na obrigação de ta estranha e difícil de responder: um mistério que sequer explica fechar esta matéria fazendo re- “Você é feliz?”. As reações dos a sua presença. Por isso, na cena ferência a um filme do próprio anônimos entrevistados são as final, a câmera que, em movimen- Jean Rouch que, ironicamente, mais variadas, mas, quando se to, durante algum tempo acom- problematiza a presença do real pensa que este método guiará o panha os dois cineastas enquan- no documentário. filme todo, ele é abandonado. De to estes caminham e discutem o Hoje um clássico do gênero (com repente, é Marceline a entrevista- filme, em dado momento, se de- um prêmio em Cannes), o filme se da, agora pela dupla de cineastas, tém e os deixa ir embora, sem que chama Crônica de um Verão(Chro- que vai variando os seus infor- mais ouçamos as suas palavras nique d´un Été, 1961) e foi rodado mantes de uma maneira mais ou sobre o filme realizado. a quatro mãos, com o sociólogo menos aleatória. Há artistas, ope- Como mais tarde admitiria o pró- do cinema Edgar Morin, no verão rários, estudantes, imigrantes prio Rouch, “o cinema-verdade é de 1960 em Paris. A projeção co- negros, crianças, mas a pergunta um cinema de mentiras, mas as meça com Rouch e Morin discu- do início (“Você é feliz?”) ficou es- mentiras são mais verdadeiras que tindo o filme que se vai ver, e se quecida, na medida em que as pes- a verdade”. Acho que, sem falsea- conclui com a mesma dupla fa- soas debulham os seus dramas, mentos, poderíamos mudar a pa- zendo a avaliação da realização, com certo nível de entrega emoci- lavra “verdade” para “realidade”. como se o making of (termo ine- onal. Até mesmo a paisagem pa- xistente na época) fizesse parte do risiense foi esquecida, já que a se- Em tempo: o título desta maté- filme. Esse grau de metalingua- quência final (um dos imigrantes ria é uma brincadeira com o pro- gem assumida é uma constante, e negros entrevistados, agora en- grama televisivo É Tudo Verda- o filme não se incomoda de ser trevistando uma moça branca na de, do crítico Amir Labaki. I desigual no método e na aborda- praia) acontece em Saint Tropez. gem. Composto basicamente de Algumas vezes as entrevistas entrevistas, em princípio, seria são no estilo “tête-à-tête”, outras Crítico de cinema e de literatura e sobre a vida do parisiense, ou se em grupo e com frequência em me- professor da UFPB A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 15
  • 15. 6 crítica A estrela brilhante de Keats e Campion Genilda Azerêdo filme Bright Star (ao pé da letra, Estrela Brilhante; tradu- O zido no Brasil como Brilho de uma Paixão), de Jane Cam- pion, faz jus a um dos versos mais famosos da litera- tura inglesa: A thing of beauty is a joy forever / Uma coisa de beleza (ou um objeto de beleza) é uma ale- gria para sempre, do poeta romântico inglês John Keats. O filme conta justamente a história de amor e sofrimento entre Fanny Brawn e John Keats e, ao fazê- lo, oferece um painel sensível e instigante da Inglater- ra nas primeiras décadas do século XIX, seja quanto às convenções familiares e sociais, à sensibilidade poética, à dificuldade de aliar produção literária à pu- blicação, à questão da sobrevivência de artistas po- bres (a exemplo do próprio Keats), à impossibilidade de amar (materializar o sentimento) em um contexto de pobreza e rígidas regras sociais. c 16 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 16. c Bright Star é inicialmente o títu- prio Wordsworth quem também lo de um poema de Keats dedica- define a poesia como emoção re- do a Fanny. Este aspecto já amal- colhida/relembrada na tranquili- gama a importância que o casal dade, contraponto perfeito para possui na narrativa fílmica, cons- aludir ao caráter já moderno da truída de modo a valorizar a poe- poesia romântica inglesa. E é exa- sia de Keats e a poesia de Fanny. tamente dentro deste contexto - A sequência fílmica de abertura emoção e recolhimento/resgate da valoriza a costura e o bordado, ao emoção - que devemos compreen- preencher a tela com agulha, teci- der o verso A thing of beauty is a do e linha. O filme coloca em pé de As discussões sobre poesia joy forever. Em seus ensinamen- igualdade a poesia das palavras e tos a Fanny sobre poesia, Keats en- a criatividade e beleza dos pon- entre Keats e Fanny fatiza a importância dos sentidos tos e bordados. Ambas as ativi- na apreensão do poético. Diz ele que dades têm inclusive uma função servem inclusive para a poesia é uma experiência para catártica. Quando o irmão de Ke- além do pensamento, devendo ser ats morre de tuberculose (doença desmistificar noções compreendida através dos senti- que também mataria o próprio dos. Em meio ao jogo de sentidos, a Keats, aos 26 anos), Fanny passa convencionais sobre o memória afetiva possui lugar de a noite inteira costurando e bor- destaque. A eternização da beleza dando uma fronha para ele. poeta (em sentido amplo) se faz através da memória, sempre Quando Keats parte para a Itália, que a memória da beleza é aciona- numa última tentativa de recu- e a função da poesia. da. Em dois poemas de Wordswor- peração da doença, escreve, em th, esta relação entre memória e pouco tempo, uma quantidade beleza é mediada pela natureza, significativa de poemas. através de duas metonímias - um Embora o filme se situe em um campo de narcisos e um arco-íris. contexto de sensibilidade român- tesanato da poesia, Keats defende É, inclusive no poema sobre o arco- tica e tenha como foco a história de um princípio caro aos poetas ro- íris que encontramos o verso The amor intensa e dolorosa entre mânticos, ao declarar que a forma Child is father of the Man/A Cri- Fanny e Keats, sua tonalidade é é uma carcaça e se a poesia não ança é o pai do Homem, que resu- contida e jamais descamba para o vier tão naturalmente quanto as me a reverberação da memória da melodramático ou sentimentalis- folhas de uma árvore, melhor que infância, do olhar encantado da cri- mo exacerbado. As discussões so- não venha. É preciso não confun- ança naquilo que somos quando bre poesia entre Keats e Fanny ser- dir essa defesa da espontaneidade adultos. Em Keats, diferentemente vem inclusive para desmistificar - que ecoa um princípio também de Wordsworth, há uma indefini- noções convencionais sobre o poe- famoso de William Wordsworth ção (e consequentemente, elastici- ta (em sentido amplo) e a função da (outro poeta romântico inglês), dade) quanto ao objeto de beleza, poesia: o poeta é o ser mais não- quando diz que a poesia é o fluir já que o mesmo é referido como a poético que existe; é sem identida- espontâneo de sentimentos pode- thing of beauty, de modo a trans- de, vive de preencher outros cor- rosos - com confissão, desabafo ou cender o próprio contexto român- pos, como o sol e a lua. Sobre o ar- negligência formal. Aliás, é o pró- tico. E não é esta uma das funções c A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 17
  • 17. c da arte? Materializar a beleza, possibilitar mos exercitando instrumentos musicais, sua perenidade? mas também aprendendo a dançar, com A meu ver, foi exatamente isto que Jane um instrutor que fala francês). E há refe- Campion fez, ao construir a história de Bri- rências à participação de Fanny em bailes ght star. O brilho da estrela, referido no e ao quanto ela gosta de dançar. Também poema de Keats como constante, imutá- assistimos, logo no início do filme, a uma vel, é duplicado metaforicamente através espécie de sarau artístico com canto e mú- da constância de sentimento entre Keats e sica, além de diálogos que aludem a poetas Fanny - um sentimento que ganha expres- (a Coleridge e ao próprio Keats). são, iconicamente, através da delicadeza e Quanto aos códigos morais que regem as beleza no nível da visualidade fílmica. Ci- relações amorosas, não são poucas as refe- temos um exemplo. Quando Fanny e Keats rências à separação física e sexual entre já vivenciam a vertigem da experiência Fanny e Keats. A propósito, desde o pri- amorosa, a narrativa fílmica metaforiza a meiro encontro amoroso entre eles, media- sensação de leveza através de paralelismos do pela vigilância de Toots (a irmã caçula - Fanny desmaiando sobre a cama, Keats de Fanny), até os momentos em que fica- deitado sobre a copa de uma árvore - que vam a sós na casa de Keats, ou quando, dramatizam a convergência de seus senti- doente, ele se hospedou na casa de Fanny, mentos. O verso de Keats que diz Wish podemos testemunhar o distanciamento we were butterflies and lived but three físico (e a ansiedade e angústia resultan- summer days/quisera fôssemos borbole- tes) entre os dois - bilhetes eram trocados tas e vivêssemos apenas três dias de ve- embaixo da porta; mãos acariciavam pa- rão contamina ironicamente a leveza redes que, ao tempo em que ligavam seus (embriaguês) dos apaixonados do caráter aposentos, também serviam de obstáculos. trágico inerente ao tempo, que põe fim a Jane Campion escolheu terminar o filme tudo. A ressonância que tal verso ganha com Fanny recitando o poema ‘Bright no contexto imagético do filme demonstra Star’, escrito por Keats para ela. A fotogra- não apenas a atitude hiperbólica do ser fia, nessa parte do filme, é escura, não ape- amoroso - fazendo Fanny encher seu quar- nas porque é frio, inverno e cedo da ma- to de borboletas - mas antecipa a dor ad- nhã, mas porque reflete a melancolia e o vinda da experiência: Estou apaixonada? luto pela morte do poeta. Antes de sair de Isto é amor? Nunca mais vou brincar com casa, em meio à frieza da madrugada, isso de novo. É tão ruim que eu acho que Fanny corta os cabelos e veste-se de preto posso morrer. É relevante perceber, a pro- (rituais que também dizem do luto). A reci- pósito desta situação, a solidariedade da tação de um poema que fala de um desejo família de Fanny, cuja mãe nunca a censu- de constância e imutabilidade, em momen- ra ou critica. to de profunda dor, torna-se irônica ao Um contraponto interessante aos diá- menos em dois aspectos: nesse momento, a logos entre Keats e Fanny sobre a poesia homenagem é de Fanny a Keats, que, atra- é oferecido por Mr. Brown, também poe- vés da recitação do poema, traz à tona o ta, amigo de Keats. Mr. Brown não ape- poeta, ressuscitando-o através da sua pa- nas quer viver a criação poética como um lavra. A recitação (embora catártica) tam- sacerdócio, controlando a vida de Keats, bém parece dizer que, apesar da perda, seu seguindo à risca uma rotina de trabalho, sentimento vai perdurar, que o brilho da como se sente altamente enciumado com estrela (agora Keats) será eterno. O filme a convivência entre Keats, Fanny e sua termina, mas a poesia de Keats continua a família. Em oposição a tal seriedade, o fil- pontuar, em voz-over, toda a passagem dos me capta, de modo divertido, o senso de créditos. É, enfim, mais um modo de refor- humor de Keats e seu modo sempre sub- çar que a poesia, quando um objeto de be- versivo de romper com etiquetas e con- leza, é passível de ser rememorada, consti- venções. Keats gosta de brincar e passe- tuindo-se uma alegria eterna. I ar no jardim, e em várias das cenas com Fanny, mais parece uma criança frágil, protegida por ela. Em se tratando de convenções, o filme ofe- rece um retrato em miniatura (ao modo de Jane Austen) da sensibilidade artística da época. A família de Fanny, embora visivel- mente com parcos recursos materiais, edu- ca os filhos musicalmente (não só os ve- Professora da UFPB 18 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 18. 6 festas semióticas Amador Ribeiro Neto amador.ribeiro@uol.com.br meu jovem filho PARA O MEU FILHO PEDRO, FALECIDO AOS 24 ANOS o mau agouro de agosto [ pai também vive revolto em turbilhões de nublou 30 de julho com as tintas corrosivas pensamentos-cacos que molestam da morte um sujeito comum no meio do meu amor e zelo de pai que tão só e somente fui obrigado a medir os passos do berço luta pra manter uma de meu filho saúde comum ] até sua insepulta sepultura eu antevira a lúcidaimagem do meu filho num tiscar do tempo na noite anterior engolfando aos borbotões seus e meus pul- mões envolto num grosso saco plástico retirado das águas ainda pesadas águas revoltas solvem com avidez o corpo do meu filho ah na certa os excessos medicamentosos gerando a clarividente antevisão dantesca [ como sal em água ] um filho não morre antes do pai o pai foi feito pra morrer antes nem um fio de cabelo resta de seus 24 anos de puríssima juventude-luz um filho não morre antes do pai o pai foi feito pra morrer antes havia um rio no meio do caminho e o fatal mergulho no escuro a imersão do corpo do filho craveja a memória do pai, do irmão, da irmã um único e atroz embate com filho, irmão, tu, submerso nas águas, tens batismo às avessas o paredão de pedras encobertas pelo mar subfluvial batismo de corte de ceifa de morte e meu filho boiou inerte pra nunca mais respirar filho onde anda a luz de teus olhos azuis? eu o pai encontrava-me alienado numa clínica psiquiátrica onde as pernas jogando passos como um andarilho bailarino, filho? A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 19
  • 19. 6 festas semióticas olho pro mundo e a prostração maldita recai sobre mim num abatimento funesto desgraçada luz filha da puta que cegara meu filho pra toda vida desinfeliz dia de trevas aquosas maldição trevosa sobre a falta que fiat trucidado meu coração é caudal de sangue que im(ex)plode diante de tua falta, filho eu contigo me asfixio sufoco na tua afogadura na estrangulação da tua execução os céus em imolação colhem a ceifa prematura a natureza é carrasco verdugo carnífice executor algoz assassino que se alimenta de teus despojos mortais ainda tão juvenis quisera eu cosê-la (a natureza) a canivetadas a facadas a punhaladas a espadadas a enxadadas a machadadas e sová-la até devolver-me o filho intacto em sua alegria ensolarada de meu menino do rio Poeta, crítico literário e professor da UFPB 20 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 20. 6 artigo A representação minimalista de O Quadro-Negro Ângela Bezerra de Castro Q uando O Quadro-Negrofoi lançado pela José Olympio, em 1954, era improvável que a ele eu pudesse ter acesso, nem mesmo à notícia de sua publicação. Estava iniciando o ginásio mas, àquela época, nenhum professor teria a Ernany Sátyro e a ousada iniciativa de estudar o autor contemporâ- capa da edição de neo local ou de indicá-lo para a leitura. O Quadro-Negro Ancorada no passado, nossa Escola recusava com projeto da o presente e se tornava incapaz de prenunciar as José Olympio incertezas do futuro. Naquela visão alienada, che- gava-se à aberração de proibir os livros de José Lins do Rego, privando-nos do texto renovador e revolucio- nário que deveria ter sido a motivação e o exemplo, para que os jovens estudantes de então se expressassem na linguagem de seu tempo, superando a submissão colonial aos “barões assinalados”. Mesmo depois que me tornei leitora apaixonada dos grandes romancistas nordestinos, jamais tive o interesse despertado para o escritor Ernani Sátyro. E, quando isto parecia possível, na efer- vescente convivência universitária, o político de destaque, no regi- me vigente a partir de 64, projetou-se como sombra deformadora c A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 21
  • 21. c sobre o intelectual, erguendo a barreira de preconceito responsá- vel pela ignorância de minha geração sobre a obra literária do aca- dêmico centenário que hoje reverenciamos. Foi a devoção do estimado confrade Evaldo Gonçalves ao “Amigo Velho”, que despertou em mim a necessidade de conhecer Ernani Sátyro, para além da memória fixada, com a verdade do depoimen- to e da pesquisa, no livro Ernani Sátyro: Convivência e Participação. A necessidade de conhecer o escritor, em decorrência do compromis- so assumido com os objetivos da Academia Paraibana de Letras. Procurei O Quadro-Negro e Flávio Sátiro, gentilmente, me presen- teou a 3ª edição, possibilitando-me uma entusiástica descoberta e a feliz superação do velho preconceito. Antes que chegasse ao texto do romance, já tinha a certeza de que estava diante de um verdadeiro escritor. Menos pelo estudo e pelos artigos que o antecedem e revelam o interesse crítico pela ficção de Ernani Sátyro. A grande surpresa veio com o depoimen- to do autor para os Arquivos Implacáveis, de João Condé. Uma ver- dadeira síntese de mestre. Iniciando com a ressalva de que “Não é fácil dizer como nasce um romance”, o escritor encara o desafio. E com estilo sóbrio, em frases curtas e precisas, revelando uma aguda consciência do processo de elaboração ficcional, expõe a gênese de O Quadro-Negro, dando ên- fase ao tempo de gestação e aos limites transcendentes entre a rea- lidade e a criação literária. Depoimento capaz de enriquecer qual- quer lição de teoria sobre a ficção narrativa. O Quadro-Negro é um romance escrito em forma de diário. Com esta escolha do modo de narrar, o autor confere intencionalmente ao protagonista, Paulo Márcio, a grande liberdade confessional que se desdobra na análise de si mesmo, do ambiente e dos outros persona- gens, concretizando o princípio que ele repete até as últimas pági- nas: “Só tem importância o que se passa dentro de mim”. Com a variante: “me importam as pessoas e nestas, principalmente, os re- tratos que me ficam cá dentro”. Na abertura do “diário”, reflexões sobre a linguagem, sobre o pro- cesso narrativo, sobre a correspondência necessária entre forma e conteúdo, sobre o estilo. Essa intenção programática da construção literária, inserindo Ernani Sátyro na tendência ostensiva dos escri- tores modernos que elegeram a metalinguagem como recurso temá- tico e estético, chegando a elaborar uma teoria do conhecimento. Perfaz um ano e um mês o tempo da narrativa. Tem início com a chegada do jovem bacharel recém-formado à cidadezinha natal, para viver os conflitos que irão despertá-lo da inexperiência e dos sonhos, até a decisão de partir. Torna-se instigante a comparação entre Paulo Márcio e dois outros personagens: Lúcio, de A Bagaceira, e Carlos de Melo, em Banguê. Todos bacharéis, de volta para casa, e em crise de afirmação pessoal. No entanto, Lúcio e Carlos de Melo não sabem o que fazer do diploma e se desviam para a terra, numa espécie de fuga. O protagonista de O Quadro-Negro é o bacharel em ação, buscando na ordem jurídica a restauração e a garantia dos direitos. Essa diferença substancial entre os três personagens permite que Antes que chegasse ao se identifique em Paulo Márcio uma transfiguração inovadora, com a redescoberta da tradicional formação bacharelesca, predominante texto do romance em nossa cultura, numa perspectiva de interferência positiva para o meio social, vislumbrando a prevalência do Direito na solução dos (Quadro-Negro) , já conflitos. Podemos constatar que Lúcio e Carlos de Melo são anti- herois desistentes. Enquanto o personagem criado por Ernani Sátyro tinha a certeza de que é o heroi comprometido com a luta, opondo-se à realidade estagna- da da cidadezinha simbolicamente denominada de Lagoa, espaço estava diante de um imaginário do romance. Em terra de sapos, Paulo Márcio não fica de cócoras com eles. E é pela ação do jovem bacharel que se estrutura o conflito central do c verdadeiro escritor. 22 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO
  • 22. c romance. Entre a arbitrariedade da força político-econômica domi- nante e a justa aplicação da lei, o poder do Direito. É esse o problema que se desenvolve na representação minimalista de O Quadro-Negro. Problema universal que se reproduz em todas as escalas da chamada sociedade politicamente organizada. Quer se trate de uma cidadezinha do sertão ou da metrópole mais progressista; de um país em desenvolvimento ou de uma potência do considerado primeiro mundo, em qualquer das realidades o Esta- do de Direito é ainda uma miragem ou um projeto sempre em pro- cesso de consolidação. Pois em cada instância se vê ameaçado por uma estrutura de poder, com seus “coroneis” que se colocam, arbi- trariamente, acima das leis. Na estreia como romancista, Ernani Sátyro acumulou considerá- vel fortuna crítica, com a unânime constatação de que não dava con- tinuidade aos grandes regionalistas nordestinos, seguia outra ori- entação estética. E é verdade. No entanto, a identificação do espaço romanesco com o sertão levou os críticos a uma visão reducionista da temática do romance e de outros elementos estruturantes da nar- rativa, esquecendo a natureza simbólica que os constitui. Os críticos não se aperceberam de que “o sertão” existe em todo lugar. Pressuponho que a percepção estereotipada da realidade sertaneja prejudicou as leituras de O Quadro-Negro, de tal maneira que o con- flito central do romance não foi identificado, ou melhor, foi confun- dido com problemas menores. E personagens marcantes como Adri- ano Pereira, o juiz, e Maria Augusta, a enigmática e desafiadora na- morada de Paulo Márcio, são injustamente subestimados, por certo, em decorrência da falta de análise do romance. Somente José Lins do Rego identifica em Adriano Pereira “um pa- tético que nos enche os olhos de lágrimas” lembrando a cena dramá- tica em que o juiz, desarmado, enfrenta o fuzil de um capitão de polícia, reforçado pelas carabinas dos soldados que apontam para sua cabeça e, tomando as chaves do carcereiro paralisado, abre as portas da cadeia para dar cumprimento a um habeas corpus, que fora rasgado pela suprema arrogância político-partidária. Onde a deficiência crítica enxerga apenas um juiz preguiçoso, o grande romancista do moderno regionalismo brasileiro descobre o patético, uma categoria do trágico. E não há dúvida de que Ernani Sátyro construiu essa dimensão para Adriano Pereira, personagem de vital importância na consti- tuição do conflito central de seu romance. Tanto que o protagonista- narrador reconhece no juiz o “homem que encarna a única reação possível à brutalidade e à violência”. A difícil missão do magistrado, isolado na comarca distante, cria para o personagem uma aparente rendição. Adriano Pereira quase não fala, recolhido à solidão do seu desamparo. Suportar o peso de ter confundida sua individualidade com a instituição que represen- ta parece esmagar o juiz, consumindo-lhe a vontade e a iniciativa. No entanto, uma grande reserva de energia e ação está contida na A identificação do espaço enganosa passividade, naquele silêncio onde se concentra a convic- ção abismal da defesa do Direito. romanesco com o sertão Adriano Pereira é um personagem-símbolo. A ambiguidade que o constitui não converge para a formação de um caráter, mas para a levou os críticos a uma transfiguração das dificuldades, defeitos e qualidades da complexa prestação jurisdicional. Acompanha-se uma constante e até chocan- visão reducionista da te exposição da morosidade dos seus despachos, mas a grande ênfase é para o gesto definitivo do juiz, que evidencia um compromisso de temática do romance e de vida ou morte com a prevalência do Direito, em sua função social insubstituível. I outros elementos (Apresentado na APL em 14 de outubro de 2011) estruturantes da narrativa. Escritora e professora da UFPB A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2011 | 23
  • 23. Estátua da Justiça (1961) de 6 artigo Alfredo Ceschiatti, Banco de Imagens do STF (www.stf.jus.br) O Gesto e o Momento O CINQUENTENÁRIO DA JUSTIÇA DE ALFREDO CESCHIATTI Marcilio Toscano Franca Filho “Meu pai, um imigrante italiano chegado no começo do século ao Brasil, era padeiro. Vivia com as mãos na massa. E eu, afinal, repito a mesma coisa. Só que troquei o trigo pela argila e, em vez de pães, faço estátuas.” Alfredo Ceschiatti 24 | João Pessoa, novembro de 2011 Correio das Artes – A UNIÃO