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Marcada pelo
Passado
(Prairie Bride)
Julianne MacLean
Kansas, 1882
UM SEGREDO DO PASSADO AMEAÇAVA O AMOR DE MADELLEINE
Jedidiah sabia que sobreviver naquela região inóspita era tarefa difícil,
principalmente para uma mulher. Esperava, porém, que sua esposa fosse tão forte
quanto ele. Mas o que o levava a acreditar que uma jovem que ele acabara de conhecer
pudesse ajudá-lo a salvar um sonho?
O casamento por correspondência com Sr. Brigman caíra do céu para Madelleine
MacFarland. Ela apenas esperava que aquele fazendeiro calado fosse tão honesto
CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
quanto aparentava ser, pois seu passado já ocultava mentiras e escândalos suficientes
para o resto da vida!
Digitalização: Poly
Revisão: Edna Fiquer
Copyright © 2000 by Julianne MacLean
Publicado originalmente em 2000 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá.
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob
qualquer forma.
Esta edição é publicada por acordo com a Harlequin Enterprises B.V.
Todos os personagens desta obra, salvo os históricos, são fictícios. Qualquer outra
semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
Título original: Prairie Bride
Tradução: Sulamita Pen
Editor: Janice Florido
Chefe de Arte: Ana Suely S. Dobón
Paginador: Nair Fernandes da Silva
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Rua Paes Leme, 524 - 10e
andar CEP 05424-010 - São Paulo - Brasil
Copyright para a língua portuguesa: 2001 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Fotocomposição: Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento: Gráfica Círculo.
CAPÍTULO I
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Kansas, 1882
Mary Hellen MacFarland estava exausta e tinha certeza de que não dormiria
durante as próximas horas. Inclinou-se para a frente e espiou pela janela do trem.
A fumaça soprava, incômoda e sibilante. As rodas de ferro chiavam, fazendo
ruídos abruptos e explosivos de descarga sob a sola de seus pés, com a mesma
velocidade das batidas de seu coração.
Naquela noite ela iria perder a virgindade. Pela segunda vez.
Mary Hellen afundou na poltrona e massageou as têmporas. Rezou em silêncio,
para que tudo desse certo e para haver tomado a atitude correta, vindo para o Oeste.
Inquieta, procurou assegurar-se do acerto de sua decisão. Puxou o cordão de sua
bolsa preta para abri-la e tirou o anúncio de jornal. Leu:
"Beauregard Brigman, fazendeiro, procura esposa calma e gentil para
compartilhar uma vida simples nas pradarias do Kansas. Que não se importe em
trabalhar arduamente todos os dias nas tarefas do campo, além de cuidar da casa."
Casamento e uma existência tranqüila. Isso era tudo o que sempre desejara,
Mary Hellen lembrou a si mesma, observando duas crianças alegres que corriam uma
atrás da outra no corredor, gritando e gargalhando.
Um remorso perturbador a fez estremecer. Nem em sonhos imaginara algum dia
ter de recorrer a uma fraude para casar-se. Mas, na realidade, não tivera alternativa.
Dobrou o pedaço de papel amassado e passou os dedos pelo vinco. Se ao menos
soubesse o que esperar do futuro marido... Se ao menos tivesse idéia de como era a
aparência dele...
Enfiou a folha de novo na bolsa e, sem querer, encostou o cotovelo na mulher
que dormia a seu lado.
Decidida, refletiu que o aspecto físico de um homem não tinha a menor
importância. Já aprendera sua lição em Boston. Dessa vez, estava convicta de que agira
com a razão.
Pela janela descortinava-se um verdadeiro oceano de campos dourados. A
imensidão de terras ondulantes estendia-se a perder de vista e colidia com o céu sem
nuvens.
Uma pessoa poderia, com toda a facilidade, desaparecer no meio daquela
pradaria.
Encostou a cabeça para trás, no espaldar do assento, fechou os olhos cansados e
imaginou como seria seu novo companheiro. Quem sabe se Beauregard a esperaria
com uma daquelas carruagens pretas e leves de quatro rodas, puxada por um belo
cavalo também negro...
Assim que se encontrassem, ele tocaria a aba do chapéu para cumprimentá-la.
Mary Hellen anteviu-o usando um traje novo de casamento combinado com um
chapéu de feltro, tudo em cor cinza, parecido com o que o pai dela usava para ir à
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
igreja aos domingos. Será que Beauregard estaria com o rosto barbeado?
Ou usaria barba? Seu pai sempre ostentara um largo bigode de pêlos eriçados,
que terminava em pontas recurvadas. E óculos de aros dourados.
Sorriu ao lembrar-se de como ele costumava fumar um cachimbo aos sábados,
depois do jantar. Talvez Beauregard tivesse o mesmo costume.
De novo a sensação de culpa invadiu Mary Hellen e interrompeu seus devaneios.
Não fora muito honesta com Beauregard, o futuro marido. Escondera dele muitos
fatos.
Viera até ali à procura de algo bem mais importante que um simples lar. Mary
Hellen tinha por objetivo conseguir segurança física e emocional. Precisava de um
refúgio. Queria que a esquecessem.
Na parte de trás do trem, um bebê começou a chorar. Mary Hellen ergueu as
pálpebras. Esperava que Beauregard nunca soubesse como sua noiva estava longe do
pedestal de virtudes, tão acalentado por seu pai. Rezava para que o futuro cônjuge a
perdoasse por enganá-lo no dia do matrimônio.
— Ainda acho que está cometendo um grande erro! — George Brigman afirmou,
perscrutando a parte interna escura e úmida da casa feita de torrões de barro ainda
com relva, construção comum nas grandes planícies do Oeste central norte-americano.
Beauregard Brigman, muitíssimo irritado, fitou o irmão, que limpava a superfície
de uma caixa de madeira antes de sentar-se.
Que Deus o perdoasse, George refletiu, se viesse a estragar a roupa nova
durante o tempo em que ficava ali, conversando com Beauregard e externando suas
opiniões.
Beauregard tentou ignorar os conselhos de George e olhou para dentro da
habitação de um cômodo.
A chuva do dia anterior infiltrara-se nas paredes e chegava ao interior. A lama
pingava do teto em um enfadonho taque-taque. O cheiro de terra molhada vinha de
todas as fendas, e a umidade penetrava por debaixo da roupa.
Uma grande desordem aguardava a chegada de sua nova esposa.
— Você ainda não esqueceu Isabelle. — George esmagou um gafanhoto com o
pé, afundando-o no chão de barro. Limpou as botas brilhantes com o dorso da mão.
Beauregard encolheu os ombros dentro do casaco franjado de pele de veado e
estremeceu ao ouvir o nome de Isabelle. Esperava que, a partir daquele dia, não ter de
ouvi-lo mais.
Procurou com o olhar o "esconderijo" de suas luvas gastas de couro. Deu três
passos e apanhou-as de cima do barrilete, que ficava ao lado da porta. Bateu-as de
encontro às coxas.
Pensou se não deveria ter feito a barba. Paciência... Não dava mais tempo.
Estivera trabalhando nos campos de milho desde o alvorecer, e não recordara aquele
detalhe.
— Você não está me escutando, Beauregard. Faz apenas três meses, e ainda nem
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
está em condições para assumir uma nova mulher.
— Claro que estou! Tenho terras e uma casa. — Abriu os braços, e as franjas das
mangas balançaram. — O que mais eu poderia querer?
— E chama isto de casa?! — George foi até a parede feita de blocos de terra e
arrancou um pouco da grama murcha e marrom. — Você pôs anúncio em jornal que
circula na cidade e espera que ela viva aqui?
Beauregard cerrou os maxilares diante do que considerou um insulto. Estava
muito orgulhoso do que conseguira amealhar durante o ano que passara. Comprara
aquele rancho e havia plantado milho, trigo e outros grãos. Assim que a ceifeira
chegasse, obteria um belo lucro proveniente do trigo e do centeio.
— Fui bastante direto ao declarar que procurava por alguém que se dispusesse a
trabalhar na lavoura, George. Já que esse alguém respondeu, não há o que falar sobre
o assunto. Necessito de ajuda, assim como de uma esposa. Tenho sido tão solitário
quanto o ermitão que dizem que me tornei, na tentativa de esquecer...
Sem coragem de pronunciar o nome, Beauregard coçou a nuca, debaixo do
manto espesso de cabelos que lhe iam até os ombros.
— Você nunca se incomodou com a opinião de quem quer que fosse. — Com
isso, George só fez aumentar a irritação de Beauregard.
Ele respirou fundo, tentando se acalmar. Só teve sucesso ao inteirar-se mais uma
vez do cheiro sempre presente de relva e barro. Tudo estava terrivelmente úmido.
— Não me importo mais com Isabelle, George. Fiquei furioso por ela ter me
tomado por um idiota e rompido nosso compromisso.
Beauregard virou-se de costas para o irmão. Não queria pensar no assunto.
Tinham uma longa jornada pela frente, e devia se concentrar no juramento
matrimonial que estava para fazer. Afinal, e mesmo que George o criticasse, sabia
muito bem da seriedade da atitude que iria assumir.
— Olhe para você — George ironizou. — Todo coberto de poeira. Parece mesmo
que acabou de chegar do campo. Por que, pelo menos, não se lembrou de pedir
emprestado um de meus ternos?
Beauregard espiou a calça bege desbotada e as botas de couro já gastas.
— Mas eu acabei de chegar da plantação de milho! É desse jeito que me visto, e
você também sabe que seus ternos não me servem.
— Poderíamos fazer uma parada no armarinho...
Beauregard ergueu uma sobrancelha e desejou que George parasse de fazer
sugestões sobre seu traje de núpcias. Não pretendia fazer da cerimônia um
acontecimento mais importante do que era. Uma mera formalidade legal.
Beauregard atirou uma manta cinzenta e velha sobre a cama estreita e afofou o
único travesseiro. De repente, sentiu um frio no estômago. Estava habituado a morar
sozinho. Logo mais estaria dormindo naquele leito com uma... estranha!
— Beauregard, acho que não precisa casar-se com ela hoje. Você nem sabe como
a moça é.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
— Não me importa nem um pouco o aspecto físico, George. Na verdade, um
rosto bonito empana o raciocínio de um homem. Preciso de uma jovem capaz, que não
esteja preocupada com chapéus, roupas bonitas e tudo o mais que elas usam.
Beauregard afastou alguns fios de cabelo da testa.
— Ela vai morar aqui, muito longe da cidade, e acenderá o fogo com estrume
seco de vaca.
George lançou um olhar depreciativo ao recinto e empurrou os óculos de aro
dourado para cima do nariz.
— Ainda há tempo de mudar de idéia, Beauregard. Poderia até conhecê-la
primeiro e cortejá-la um pouco, antes de dar o passo definitivo.
— Não tenho tempo a perder. Estou com trinta anos. Por outro lado, se eu
gostasse de namorar, o faria com uma garota aqui do Kansas. Não precisaria trazê-la lá
de... — Beauregard franziu o cenho, sem se lembrar de onde era o jornal ao qual ela
respondera.
— Boston! — George terminou por ele. — Você mandou-a vir de Boston!
— Isso mesmo. De Boston. — Beauregard esfregou o queixo com a barba por
fazer. — Agora, vamos tratar de pegar a estrada. Se chegarmos tarde, minha noiva
ficará perdida na estação, pensando haver desembarcado em lugar errado.
— Tenho certeza de que ela ficará perdida de qualquer maneira, ao ver onde
terá de morar.
George passou primeiro pela porta estreita e baixou a cabeça para o chapéu de
feltro não esbarrar no marco. Beauregard seguiu o irmão, e os dois saíram ao vento,
em direção à carroça sem pintura e tão escura como uma nuvem negra de trovoada.
Beauregard subiu e sentou-se no assento duro. Pegou as rédeas, deu uma
guinada para o outro lado e pôs o veículo em movimento rumo à cidade, levando o
cavalo de George a reboque.
Suspirou. George estava certo. Talvez ele devesse ter esperado pelo menos até
depois da colheita. Mas o que estava feito, estava feito. Havia assumido um
compromisso, e não voltaria atrás com sua palavra.
A jovem insistira em viajar logo. Ela atravessara o país, e Beauregard lhe
prometera uma certidão de casamento no mesmo dia de sua chegada.
Beauregard estreitou os olhos, espiou o céu azul, tirou o chapéu velho de aba
larga e enxugou a testa com a manga do paletó.
Casamento... Nunca supusera que seria daquela forma. Todavia, ao recordar-se
da primeira proposta que fizera, decidira que seria a melhor maneira.
Cometera um erro ao escolher Isabelle. Ela era inadequada para o tipo de vida
que ele pretendia levar. Mas Beauregard ficara ofuscado com sua beleza e seu charme.
Isabelle jamais poderia ser a esposa de um fazendeiro. Ele deveria ter notado e
entendido isso desde o princípio.
Com certeza, fora para seu bem, Beauregard pensou, distraído, enquanto dirigia
a carroça através de um vale profundo.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Não podia negar que sofrerá quando Isabelle o deixara. A cólera não o
abandonara durante muitos dias. Porém, a raiva era mais de si mesmo, por ter sido tão
idiota. Na certa, perdera a capacidade de raciocinar, quando fizera a proposta a
Isabelle.
Dessa vez não, refletiu, satisfeito, observando um dos cavalos abanar a cauda
para afastar uma abelha.
Beauregard fora bem claro no anúncio, e um rosto bonito não estava entre os
requisitos necessários. Nessas circunstâncias, o enlace seria alicerçado no respeito e
no desejo mútuo de companheirismo, sentimentos que haviam se perdido ao longo
dos anos.
A voz de George arrancou Beauregard de seus pensamentos:
— Comprou um presente para sua noiva?
— Presente? O fato de eu ter pago a passagem dela de Boston até aqui já não é
suficiente?
George meneou a cabeça devagar, como era seu costume.
— Uma mulher gosta de algo palpável. Alguma coisa que terá significado durante
uns vinte anos, pelo menos, toda vez que ela o tirar do armário. Por que não lhe dá o
colar?
— Ficou louco, George?! E o que eu faria com a gravação do verso? Riscaria
"Isabelle" e gravaria o outro nome na frente?
— Mary Hellen.
— Eu sei o nome dela!
— Seria interessante se o usasse no momento do primeiro encontro.
— Pode ficar sossegado, eu não me esquecerei.
— Também não quero vê-lo se queixar se a garota não for a coisinha mais linda
que você já viu. Sei que tem um fraco pelas moças bonitas, e por isso se apaixonou por
Isabelle, apesar de ela não...
Beauregard fuzilou o irmão com o olhar.
— Espero que minha esposa tenha quadris tão grandes como um celeiro e braços
mais fortes que os de um lutador. Ela precisará deles para trazer água do ribeirão,
enquanto eu estiver fazendo meu trabalho nas plantações.
— E quando planeja fazer aquilo!
Beauregard estalou a língua para os cavalos.
— Quando houver condições.
George não retrucou, e Beauregard sentiu a desaprovação dele.
George era advogado e acostumado com a cidade. Nunca poderia entender o
quanto se trabalhava em uma fazenda. Ou como isso poderia ser gratificante.
— Espero que seja amável com ela hoje.
— Serei — Beauregard assentiu, na defensiva. — E não quero mais ouvir falar a
respeito.
A carroça inclinou-se, ao passar por uma saliência na estrada.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
— Eia! — ele gritou para os cavalos, que lutavam para equilibrar-se, dando-lhes
uma pancada leve com as rédeas.
Entendeu que, ao anoitecer, seria um homem casado.
Pensou na estranha que se preparava para encontrá-lo e sentiu um aperto no
coração. Apesar de tudo, gostaria de saber o que o aguardava.
CAPÍTULO II
— Próxima parada: Dodge City! — o inspetor do trem anunciou, apoiando-se no
encosto das poltronas, enquanto caminhava pelo corredor.
Mary Hellen arrepiou-se, com o medo que a invadia. Sentada na beira do
assento, estava ansiosa para ver pela primeira vez o lugar que se tornaria seu lar.
Naquele momento, era uma realidade, e não mais uma fantasia. Passou as mãos
nos cabelos castanhos, para ver se estavam arrumados e sem mechas soltas fora do
lugar. Verificou se os botões não haviam escapado das casas e beliscou as faces, para
dar-lhes cor.
— Você é linda — a mulher ao lado comentou. — Tenho certeza de que ele se
apaixonará assim que a encontrar.
— Como é que sabe? — Mary Hellen forçou um sorriso.
— Eu a vi lendo o anúncio, e não foi difícil adivinhar que estava nervosa. Não se
preocupe. Você é uma jovem muito atraente, e o rapaz ficará satisfeito. Pode
acreditar.
Mary Hellen observou pela janela as construções de madeira cobertas de poeira.
A locomotiva diminuiu a marcha ao aproximar-se de Dodge City e deixou escapar
os ruídos fortes de descarga.
O passeio de tábuas envergadas rangia sob o torvelinho dos caubóis e dos
cidadãos. A larga rua principal, enlameada em virtude da chuva recente, mostrava
marcas profundas dos cascos de cavalos e rastros das carroças.
A locomotiva deixou escapar um grito estridente e parou na estação, chiando seu
cansaço. Uma multidão estava reunida na plataforma.
A maioria dos homens soltava bafos de fumaça de cachimbo sob a aba dos
chapéus. Mary Hellen deu uma última e rápida mirada, engoliu a apreensão e pegou a
valise.
Moveu-se pela passagem entre as poltronas, carregando a mala. Chegou aos
degraus e semicerrou os olhos por causa da luz forte do sol, e ergueu uma das mãos
em pala, para fazer sombra.
Procurou entre os rostos desconhecidos que a fitavam. Qual seria o homem que
prometera vir a seu encontro, aquele que logo se tornaria seu marido?
Deu um passo incerto para baixo. Naquele exato momento, uma rajada de vento
bateu-lhe no rosto e tirou-lhe o chapéu da cabeça. Ele deu um salto mortal, aterrissou
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
no pátio enlameado da estação e virou-se para todos os lados, impelido pelo ar em
movimento.
— Oh, Deus! — Mary Hellen gritou, tentando segurar os cabelos amarrados no
lugar.
Nisso, ela o viu. Seu noivo perseguia o chapéu dela. Mary Hellen animou-se.
Tinha de ser ele. Adivinhava que seria. Usava óculos de aro dourado, terno cinza e
chapéu de feltro, igualzinho ao que imaginara! Parecia-se muito com seu pai.
O rapaz apanhou o fugitivo e limpou-o com todo o cuidado com um lenço branco
imaculado. Quando pareceu satisfeito com a limpeza, virou-se e caminhou direto para
ela.
— Mary Hellen MacFarland? — perguntou, ao aproximar-se, tomando-lhe a
valise pesada das mãos, ao mesmo tempo que lhe entregava o chapéu rebelde.
— Sim, sou. — Ela ajeitou-o de novo na cabeça e prendeu-o com o alfinete.
— Por favor, por aqui. — Conduziu-se pela frente de um grupo de cavalheiros. —
Permita-me que me apresente. Sou George Brigman.
Mary Hellen fitou-o, confusa.
— George? Achei que o senhor fosse... Beauregard é o segundo nome?
Ele parou, riu e estendeu-lhe a mão.
— Receio que tenha se enganado. Sou George, irmão de Beauregard.
Mary Hellen estava muito apreensiva.
— Por favor, senhorita, a carroça está logo ali.
George guiou-a até os fundos da estação ferroviária. Ao se ver caminhando com
ele de braço dado, Mary
Hellen perguntava-se por que Beauregard não viera buscá-la. Talvez fosse um
homem tímido.
É, devia ser isso, procurou convencer-se, lutando contra os maus
pressentimentos. Por esse motivo procurara uma esposa por meio de um anúncio, em
vez de cortejar alguma.
Bem, a vergonha seria bem apropriada para Mary Hellen. De fato, até preferia
que assim fosse. Um marido simpático, gentil e reservado. Sim, seria agradabilíssimo.
— Ali está meu irmão. — George apontou a carroça, com um gesto de cabeça.
Mary Hellen estacou. Viu apenas uma grande caixa velha sobre rodas, puxada
por dois cavalos com ares pré-históricos e cascos peludos.
— Onde?
Nisso, um rapaz de cabelos compridos saiu de detrás da parelha.
Mary Hellen não conseguiu respirar por uns dois ou três segundos. A primeira
impressão foi de que ele precisava barbear-se e de um banho urgente. Será que
Beauregard se esquecera de que era o dia de seu casamento? Usava um casaco
marrom de pele de gamo, com mangas franjadas e balançantes e um colar feito de
garras de animais. Não se parecia em nada com George.
Mary Hellen lutou contra a náusea súbita que a invadiu e deu um passo incerto à
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
frente. Beauregard abaixou-se e examinou a pata de um dos animais.
— Acho que meu irmão ainda não nos viu — George afirmou, à guisa de
desculpas.
Na opinião dela, Beauregard estava mais preocupado com o cavalo do que com a
chegada da futura esposa. Mas aquele momento deu tempo para Mary Hellen
controlar as emoções e reconsiderar a situação.
Não era certo julgá-lo pela aparência. Nem ainda lhe fora apresentada.
Beauregard poderia ser um camarada muito educado.
Seu noivo largou a pata e olhou para cima. Mary Hellen fitou-lhe os olhos verdes
da cor do mar e estremeceu. Beauregard pareceu desapontado, como se ela não
correspondesse às expectativas.
O sol escondeu-se atrás de uma nuvem, e Beauregard aproximou-se, envolvido
pela sombra. Alto e musculoso, movia-se com graça surpreendente.
— A senhorita é Mary Hellen MacFarland?
Ela engoliu em seco, nervosa, e esforçou-se para manter a voz natural:
— Sou, sim.
— Mary Hellen — George interveio —, este é meu irmão, Beauregard.
Beauregard, esta é Mary Hellen.
O fazendeiro de porte avantajado fitou-lhe o corpo e depois o chapéu grande,
emplumado e de cor púrpura.
— Não posso imaginá-la carregando água — comentou, num murmúrio, com
George.
— Eu posso fazer isso — Mary Hellen afirmou, embora sem muita ênfase, mas
nenhum dos dois pareceu escutá-la.
George deu de ombros e fitou o irmão. Mary Hellen teve certeza de que ele
pretendia dizer: "Viu? Eu não lhe disse?".
— Ponha a bagagem dela dentro da carroça e entre, George — Beauregard
ordenou.
George entrou por trás, e Mary Hellen perguntou-se por que aquele rapaz um
tanto primitivo parecia tão aborrecido com ela, que tentara parecer agradável. Havia
se arrumado com o maior cuidado e bom gosto, só para ficar bonita para ele.
— Vamos. — Beauregard subiu no veículo e sentou-se no banco alto. — As
repartições municipais fecham às cinco.
Mary Hellen hesitou, e ele franziu o cenho. Ela sentiu-se corar até a raiz dos
cabelos.
— A senhorita não vem?
Algo lhe dizia para não ir e voltar correndo em direção às colinas. Que ridículo!
As montanhas estavam muito distantes dali.
Mary Hellen permaneceu imóvel, observando a cidade plana e acariciada pelo
vento.
O sol saiu de trás da nuvem. Mary Hellen teve de voltar a proteger a vista para
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
olhar a silhueta avantajada de Beauregard.
Ele era bem menos gentil do que ela gostaria que fosse, mas não estava em
condições de mudar nada. Seria melhor aproveitar a oportunidade de ficar ali a voltar
para Boston e ter Garrison em seu encalço a qualquer momento. Se se casasse com
Beauregard, tudo seria legalizado,.e Mary Hellen mudaria de nome.
Mesmo que o casamento não desse certo, sua pista se perderia com o passar do
tempo. Garrison não poderia encontrá-la.
Era evidente que Mary Hellen esperava que tudo saísse conforme seus sonhos.
Ela e Beauregard acabariam se conhecendo, no sentido bíblico do termo. E, juntos,
desfrutariam uma existência agradável. Depois de ganhar sua confiança... poderia
contar a verdade ao marido.
Mary Hellen ergueu a barra da saia e subiu, desajeitada, para acomodar-se no
banco, ao lado dele.
— Eia! — Beauregard gritou e bateu as rédeas no dorso dos animais.
Sem aviso, a carroça movimentou-se para a frente com um movimento súbito e
brusco. Mary Hellen não controlou a cabeça, que foi para trás, com um estalo, e teve
de usar todo seu vigor para não acabar sentada no colo de Beauregard, quando ele
virou a carroça em uma curva fechada, para entrar na rua larga.
Ele não disse uma única sílaba durante o trajeto.
Mary Hellen refletiu, infeliz, se não havia escapado de uma situação horrível para
entrar, por vontade própria, no meio de outra.
CAPÍTULO III
Sentado ereto no banco deformado da carroça, Beauregard agarrava-se às
rédeas gastas de couro, determinado a não tirar os olhos do caminho a sua frente. A
tensão que não sentia havia meses fazia agora sua cabeça latejar.
Que grande confusão! Como pudera se meter com uma mulher tão linda?
Precisava de alguém para apanhar do chão o combustível, limpar os estábulos e
ordenhar as vacas!
Isso sem falar em ajuda na época da colheita e na da matança dos porcos. Fora
todo o resto! Teria Mary Hellen entendido o anúncio? E quando visse a casa de terra
onde teria de morar?
E o pior: Mary Hellen era do exato tipo de moça que Beauregard sempre achara
atraente. Os cabelos escuros estavam presos em um coque frouxo no alto da cabeça.
Seus olhos grandes e castanhos poderiam ser a perdição de qualquer um. A pele era
clara, e os lábios, da cor das framboesas.
Não adiantava notar tudo isso, porém, pois, assim que ela visse a casa, pediria
para voltar para Boston. Seria uma tolice imaginar o contrário.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Quando subiam a Railroad Avenue, a carroça bateu em uma pedra e
desequilibrou-se. De novo, Mary Hellen foi sacudida e quase sentou-se no colo dele.
— Desculpe-me — ela falou e endireitou-se.
Beauregard enrijeceu por inteiro. Não era tarefa fácil ignorar a presença que o
fazia perder a razão, e a tensão que o invadia. Mary Hellen parecia uma borboleta
delicada em meio a um vendaval.
George deslizou no estrado, do fundo para a frente, até ficar bem atrás deles.
— Está cansada da viagem, srta. MacFarland? — o advogado perguntou.
— Um pouco...
A perna de Mary Hellen, em algum lugar debaixo daquelas saias de cor púrpura,
colidiu com a de Beauregard. Ela se afastou depressa e manteve-se a uma distância
apropriada, para alívio dele.
— Bem, pode alegrar-se. — George sorriu. — Poderá descansar até amanhã.
Depois, teremos um trajeto de seis horas até chegar ao nosso destino.
Beauregard virou-se.
— Amanhã por quê? Será uma noite de lua cheia. Poderemos voltar esta tarde,
assim que o juiz conceder-nos a certidão.
George tirou um lenço branco e assoou o nariz.
— Bem, tomei a liberdade de reservar um quarto no Dodge House para hoje. É o
melhor da cidade. Pensei que seria um bom presente de casamento, após o longo
caminho que a srta. MacFarland teve de enfrentar.
Beauregard não escondeu a irritação. Não era sua intenção fazer daquela
cerimônia um evento romântico. Planejava estar no campo já ao amanhecer da manhã
seguinte. Por causa da intervenção inoportuna de George, teria de desperdiçar as
melhores horas do dia.
— Agradeço muito, sr. Brigman. — A alegria de Mary Hellen atingiu Beauregard
como uma pedrada.
Ele voltou-se para ela e notou, pela primeira vez, como era maravilhoso seu
sorriso. As pupilas dela cintilavam para George, e os dentes eram perfeitos e
imaculados.
Não haveria nada de feio naquela mulher?!
— Não há... por que, srta. MacFarland — o irmão de Beauregard gaguejou, como
um colegial. — Por favor, me chame de George.
Beauregard balançou a cabeça, ao ouvir o tom meloso do irmão.
Depois de rodar por alguns minutos, chegaram até uma construção de tijolos.
Beauregard parou a carroça, amarrou as rédeas e apeou. Deu a volta na frente
dos dois cavalos e observou Mary Hellen mexer-se, desajeitada, para descer.
Ela se agarrou na lateral lascada do veículo e, com a outra mão, segurou o
chapéu, para que não voasse. Ao tentar apanhar as saias, tudo ao mesmo tempo,
franziu o nariz delicado.
Beauregard não se conformou com o espetáculo ridículo que Mary Hellen
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
oferecia, até notar que George pulara da carroça para ajudá-la.
Muito bem, o irmão estava muito enganado se pensava que Beauregard o
deixaria suplantá-lo!
Beauregard apressou-se para alcançar a recém-chegada e estacou bem atrás do
traseiro oscilante. Fitou-a por um segundo. Um pé pequeno encostava no chão, e a
outra perna estava dobrada em um ângulo impossível, com o outro pé ainda no piso
do veículo.
— Pode vir para trás — ele instruiu.
Beauregard pegou-a pela cintura estreita, ergueu o corpo delgado e colocou-a a
salvo, sobre o solo. Pôde comprovar o aroma de limpeza dos cabelos dela e o perfume
de água de rosas de sua pele. Teve de lutar contra a inclinação de apreciar ambos.
— Obrigada, sr. Brigman. — Corada, Mary Hellen alisou a saia.
Uma das coisas que o encantava era uma mulher fazendo aquele gesto, mas
Beauregard recusou-se a aceitar o fato.
— Bem, não espere uma assistência como rotina. A senhorita terá de acostumar-
se com coisas bem difíceis.
Mary Hellen o encarou boquiaberta, e Beauregard desejou ter guardado as
palavras para si. De qualquer forma, sua esposa teria de esquecer as tendências à
vaidade, se pretendesse sobreviver nas planícies, com incêndios nas pradarias,
tempestades de vento e gafanhotos.
Não tinha a mínima intenção de deixá-la despender horas preciosas em frente a
um espelho, a preocupar-se com ninharias, como Isabelle sempre fizera.
Juntos, começaram a subir a escada, em direção à porta da frente.
Beauregard sentiu o pânico avolumar-se aos poucos. Depois de toda a pregação
que fizera contra as garotas bonitas, o que ele pretendia fazer?
CAPÍTULO IV
Atordoada, Mary Hellen contemplou a grande construção de tijolos. No meio da
escada, agarrou-se no corrimão.
Não podia continuar com aquilo. O homem a seu lado não se parecia nem de
longe com o que imaginara ter de casar-se. Por que não podia ser alguém como
George?
Entraram no edifício e subiram os degraus rangedores até o segundo pavimento.
Aquela altura, Mary Hellen já estava apavorada.
Andaram até uma sala no final do corredor. Beauregard apressou-a para que
entrasse. Mary Hellen aproximou-se do juiz, sentado atrás de uma mesa de mogno, e
deu-se conta de que dera mais alguns passos rumo à concretização daquela loucura.
Mary Hellen escutou os passos de Beauregard atrás de si e notou sua presença
avantajada, como se fosse uma rede prestes a ser jogada em cima dela.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Beauregard chegou até o lado da futura esposa, e Mary Hellen sentiu-se presa
dentro de uma armadilha, naquela sala abafada.
Ela não conseguia respirar! Tinha de parar com aquilo. Ainda havia tempo,
enquanto os papéis não fossem assinados.
Mary Hellen virou-se sobre o tapete oriental e tentou recuperar o fôlego.
Beauregard estava parado, e ela teve a impressão de que se tratava de um muro
enorme de pedra. Ele era ainda mais alto do que supusera.
Mary Hellen engoliu em seco e fitou o colar de garras de animais. O botão do
colarinho da camisa branca de Beauregard estava aberto. Ela viu o pescoço desnudo
dele e ficou com a boca seca.
Beauregard afastou os longos cabelos castanho-avermelhados para trás, e Mary
Hellen admirou-se com a largura daqueles ombros cobertos pelo casaco de pele de
gamo.
— Você está bem, Mary Hellen? Parece que precisa de um copo de água ou algo
assim.
Ela anuiu e baixou o olhar. Queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali.
— George, arranje alguma coisa para ela beber. Beauregard levou-a até o sofá
estofado, pôs as mãos nos ombros dela e a fez sentar-se. Ajoelhou-se a sua frente,
apanhou algumas folhas de papel de cima da escrivaninha e abanou-a com delicadeza.
Mary Hellen ergueu a cabeça e fitou-o.
Quem sabe se o dono daqueles olhos verdes não esconderia algum tipo de
bondade? Afinal, Mary Hellen achava que tomara uma decisão acertada. A toda hora,
mulheres atravessavam o país rumo ao Oeste, para casar-se com homens
desconhecidos.
Beauregard dissera no anúncio que precisava de uma que gostasse da vida
simples do campo, e isso era exatamente o que Mary Hellen queria. Apenas não
imaginara, em suas fantasias, que acabaria se casando com alguém tão rude quanto
aquela terra ainda indômita.
George voltou apressado e estendeu-lhe um copo com água. Mary Hellen bebeu
o líquido sem saber bem o que fazia. Apenas estava consciente dos homens que a
fitavam, preocupados e à espera.
— Quem sabe um pouco de ar fresco possa fazer bem — o juiz sugeriu, abrindo
uma janela.
O vento forte da pradaria entrou e derrubou alguns papéis de cima da mesa. As
folhas brancas voaram e se viraram no ar, na frente de Mary Hellen, que sentiu-se tão
tonta como se girasse junto com elas e caísse em um precipício escuro e desconhecido.
— Essa droga de vento nunca pára! — O juiz segurou os documentos restantes.
Ainda ajoelhado na frente dela, Beauregard esperou Mary Hellen terminar de
tomar a água e pôs o copo vazio em cima da escrivaninha.
Ela fitava a covinha do queixo quadrado e os cílios longos que pareciam um toldo
sobre os olhos verdes. Beauregard tinha lábios carnudos demais para um homem.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Mary Hellen imaginou, com uma estranha excitação interior, qual seria o gosto de
beijá-los.
Beauregard tocou-lhe a testa com as costas da mão, e Mary Hellen recuou com
brusquidão, num gesto instintivo. Ele hesitou e estreitou os olhos, questionando-a.
Mary Hellen surpreendeu-se com a própria reação, tentou relaxar e permitiu que
o futuro marido a examinasse. Beauregard tornou a encostar em sua testa, com
suavidade.
— Você está um pouco quente.
— Deve ser o calor — ela murmurou.
— Isso acontece sempre. — O juiz riu alto, caçoando dela. — Mas, em geral, com
o noivo. Algumas vezes eles desmaiam e caem de nariz neste tapete.
George uniu-se ao riso do juiz, mas Beauregard continuou encarando Mary
Hellen.
— Sente-se melhor? Ainda há tempo de mudar de idéia.
Mary Hellen arrepiou-se inteira. Sentiu-se cuidada, protegida mesmo. Era uma
sensação esquecida desde a morte dos pais.
Em decorrência dessa segurança, os batimentos cardíacos voltaram, aos poucos,
ao ritmo normal. Seu sexto sentido advertiu-a de que, sob a dura carapaça exterior,
poderia esconder-se um homem decente, bondoso, que poderia tornar-se um marido
adequado.
Era tudo de que Mary Hellen precisava para erguer-se do sofá.
— Estou bem — ouviu-se dizer. — Podemos prosseguir.
Beauregard estava em pé na frente do juiz Fraser e fitava as íris castanhas de
Mary Hellen. Estava surpreso com a própria falta de coragem. Ela permanecia sentada
no sofá e observava-o de modo tão inocente, como se precisasse sobremaneira dele.
Isabelle nunca o olhara daquela maneira. Nem ela, nem ninguém. Beauregard
sentiu uma necessidade imperiosa de tomá-la nos braços e dizer-lhe que tudo iria dar
certo.
Voltou-se para o magistrado e lembrou-se de sua intenção de evitar aquele tipo
de atração que sentira por Isabelle. Depois da terrível lição que aprendera, achava que
não seria mais atraído por ninguém daquele modo.
Sendo assim, por que seu corpo o traía com aquela onda de tensão poderosa?
O senhor idoso virou a página e tirou Beauregard da névoa dos pensamentos
íntimos e contraditórios. Recomendou-lhe para que não se esquecesse das palavras
importantes e perpétuas.
— Repita comigo: eu, Beauregard John Brigman, aceito Mary Hellen Jane
MacFarland...
Beauregard repetiu tudo, e terminou:
— ...amar e respeitar, até que a morte nos separe. Por Deus, o que dissera?
"Até que a morte nós separe!"
"Amar e respeitar!"
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Tentou lembrar-se da carta escrita por Mary Hellen algumas semanas atrás. Ela o
convencera de que seria a esposa ideal para ele. Mencionara a solidão depois da morte
recente dos pais. Mesmo antes de conhecê-la, Beauregard pensara que Mary Hellen
seria uma moça leal à família, coisa que Isabelle não era. Como é que confiava tanto
nela?
Escutou Mary Hellen dizer, com voz trêmula, as mesmas frases que ele dissera.
Sentiu-lhe a angústia, mas já não tinha como voltar atrás.
Enquanto deslizava a aliança no dedo esguio de Mary Hellen, Beauregard
prometeu a si mesmo que construiria uma casa de fazenda decente, assim que
vendesse a colheita. Com um pouco de sorte, eles se mudariam antes da primeira
neve. Poderia, enfim, vender o colar que comprara para Isabelle. Dali para a frente,
seus sonhos e esperanças pertenceriam a Mary Hellen.
O representante dá lei encerrou o evento, e Beauregard fitou a expressão de
Mary Hellen, admirado. Os grandes olhos dela eram impenetráveis, embora as faces
estivessem coradas como dois morangos.
Eram marido e mulher. Essa constatação fez o coração de Beauregard disparar, e
ele cambaleou.
Sentiu que George o cutucava por trás. Olhou para o juiz e entendeu que os dois
homens esperavam pelo beijo. Apavorou-se. Baixou a cabeça e fitou o semblante
assustado de Mary Hellen. Como é que faria aquilo?
Suspirou, rezou para encontrar coragem suficiente, inclinou-se e beijou-a de
leve.
Deus era testemunha de como teve de conter-se contra o desejo de investigar
com a língua o interior daquela boca formosa.
Pretendia demorar-se mais no beijo. Afastou-se, todavia, ao sentir a resposta
rápida de cada célula. Sabia que tais coisas deviam ser aproveitadas com privacidade.
Por sorte, o momento estava próximo. Imaginar a noite que os aguardava
deixou-o de pernas bambas.
CAPÍTULO V
Mary Hellen mal conseguia engolir. Espiou o novo marido por sobre a pequena
mesa redonda.
Queria que a noite de núpcias terminasse o mais rápido possível. Por outro lado,
almejava adiá-la para sempre.
Na certa, quando Beauregard a procurasse no escuro do quarto, entenderia que
não havia sido o primeiro. Garrison lhe dissera que os homens sempre sabiam desses
detalhes.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Tinha de ser forte, advertiu-se. Teria de passar por isso. Talvez sua experiência
anterior não fizesse diferença para Beauregard. Afinal, não havia amor entre eles. Ele
estava apenas à procura de uma ajudante para trabalhar na fazenda.
Ao redor, ouvia-se o tilintar dos talheres de prata de encontro aos pratos de
porcelana. Dos fundos, vinha o som de risadas e de murmúrios das conversas.
Mary Hellen mexeu-se na cadeira e relanceou outro olhar para Beauregard.
Será que ele notava o pouco que ela comia? Para sua surpresa, Mary Hellen
percebeu que a fitava por cima do vaso de petúnias.
Eles se entreolharam. Por um segundo, Mary Hellen perguntou-se, em nome dos
céus, no que Beauregard estaria pensando.
Depois, foi invadida por um súbito constrangimento. Baixou os cílios, pegou o
garfo e levou aos lábios um pouco de purê de batata com molho. Mastigou com
energia e teve consciência de que ficara vermelha como um tomate maduro.
Beauregard decerto imaginaria ser aquele o comportamento típico de uma noiva
ingênua em sua noite de núpcias.
Mas Mary Hellen sabia muito bem o que esperar de um marido. A agonia pela
expectativa da chegada do momento fez um frio percorrer-lhe a espinha.
Depois do jantar, ela bebericou o café, sem vontade, enquanto trocavam idéias
sobre assuntos tão interessantes quanto o tempo, a temperatura e sua longa viagem
até ali. Não demorou muito e a conversa chegou a um fim sem remédio.
O café estava frio, e Mary Hellen entendeu que havia chegado sua hora. Respirou
fundo, para acalmar o nervosismo que sentia.
Beauregard deslizou a cadeira no assoalho, para trás.
— Já terminou?
Mary Hellen engoliu o pânico crescente, deu um sorriso forçado e anuiu com um
gesto de cabeça.
— Podemos ir? — Ele estendeu-lhe a mão.
Ela a aceitou e se levantou. Caminharam de braço dado, subiram a escada e
foram até o quarto 21. Beauregard enfiou uma chave grande de metal na fechadura e
empurrou a porta, que rangeu.
Mary Hellen permaneceu em pé no corredor, incapaz de dar um passo à frente.
Só conseguiu estudar o interior do aposento.
A luz bruxuleante de uma lamparina a querosene deixava o ambiente semi-
escurecido. Em cima de uma cômoda alta em pau-rosa encostada na parede oposta,
via-se um conjunto de quarto azul e rosa. A cama de ferro forjado era a peça mais
notável do mobiliário.
Por que uma mulher tinha de passar por aquilo para sacramentar o matrimônio?,
refletiu, infeliz.
— Sinta-se em casa — Beauregard disse, com o braço estendido, e com certeza
perguntando-se por que ela hesitava.
Depois de alguns segundos, Mary Hellen deu um passo grande e passou pela
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
soleira. Uma vez dentro, virou-se, com as mãos unidas diante do peito.
O seu marido de aspecto rústico estava com um ombro encostado no marco da
porta e tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Observou-a de alto a baixo, com
olhar sedutor. Depois, encarou-a.
Por que aquele formigamento na boca do estômago?, Mary Hellen questionou-
se. Medo? Pavor? Ou alguma vibração indecente? Pareceu-lhe incompreensível que,
àquela altura dos acontecimentos, pudesse sentir alguma coisa diferente da
infelicidade.
— Você não vem? — Mary Hellen sentiu-se observada. Teve vontade de ver
passar logo aquela noite, junto com a miscelânea inexplicável de emoções que
experimentava.
Beauregard deu um passo atrás no corredor.
— Ainda não. Acho que gostará de ficar um pouco sozinha depois de viajar por
tantas horas. Reservei a banheira do hotel para você. — Esfregou o queixo. — Também
pensei em tomar um banho e fazer a barba. George está me esperando na casa dele,
que fica a poucas quadras daqui.
Será que a agonia dela não teria fim? Mary Hellen suspirou.
— Posso voltar daqui a uma hora, Mary Hellen?
Ela assentiu, sem pensar em opções, e viu-o fechar a porta. Ofegante e com os
joelhos trêmulos, escutou os passos fortes do marido sumirem pouco a pouco. Então,
o silêncio a aturdiu.
Mary Hellen deixou-se cair no leito e esfregou o rosto no acolchoado de flores
cor-de-rosa. Curioso notar que aquela cama não havia estalado... Mas disse a si mesma
que, afinal, não era de se estranhar fazer a comparação com o barulho embaraçoso
que a outra fizera. Havia sido sons que ela não esqueceria tão cedo.
Beauregard permaneceu por alguns momentos do lado de fora do hotel, fitando
o céu estrelado. Escutou o som do piano do saloon. A melodia metálica invadia a rua e
envolveu-o, deixando-o com saudade do sibilar noturno, tão manso, da relva da
pradaria.
Fizera tanta coisa para evitar mulheres belas, bem vestidas e com chapéus
emplumados! Inalou o aroma de outono do fim de agosto.
Durante o jantar, observara a inquietação da esposa, que não parava de mexer-
se no assento, como se fosse uma criança no banco da igreja. Mary Hellen não
conseguira esconder sua grande apreensão.
Pobrezinha, estava nervosa por causa do que iria acontecer... Na verdade, devia
estar apavorada, e não pudera controlar-se.
Beauregard admitiu que essa também era sua situação. Nunca estivera com uma
jovem virgem.
De repente, uma incrível ansiedade tomou conta de Beauregard. Esperava que
pudesse tornar tudo muito agradável para ela. Mesmo sabendo que provavelmente
não conseguiria, não deixaria de esforçar-se para isso.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
As mulheres, em geral, não gostavam da primeira vez. Pelo menos, era o que
escutava dizer.
Parou de olhar o manto de estrelas que cobria o céu e encaminhou-se em
direção à residência de George. Talvez um bom banho o descontraísse um pouco.
Rezou para que isso ocorresse.
CAPÍTULO VI
Mary Hellen sentou-se na cama. Vestia uma camisola de algodão cor-de-rosa
abotoada até o pescoço.
"Deus Todo-Poderoso!", invocou o nome santo, sentindo-se sufocar.
Lutou contra o temor gelado que inundava seu coração e esperou, naquele
silêncio vazio, à escuta de passos que viriam do final do corredor.
As imagens do casamento toldavam-lhe os sentidos, enquanto brincava com o
cetim da gola. O traje de dormir fora presente de Garrison naquela noite horrível, e
doía ter de vesti-la de novo. Mas o que poderia fazer? Esperar o marido, nua no leito?
Claro que não.
Quando ouviu o som das botas que se aproximavam, Mary Hellen estava quase
congelada. A chave estalou na fechadura, a maçaneta girou e a porta abriu-se devagar,
com um rangido preguiçoso.
Chegara a hora. Ficaria sozinha com o novo marido.
— Desculpe-me, eu me atrasei. — Beauregard olhou-a por um momento, virou-
se e tirou o casaco.
Mary Hellen nada disse. Nem poderia. Continuou encostada nos travesseiros,
mordendo a unha do polegar e observando os detalhes da aparência dele, sob o
reflexo da luz oscilante.
De costas para ela, Beauregard tirou o colar de garras pela cabeça e o pôs sobre
a cômoda. Depois, desabotoou e tirou a camisa branca e folgada.
Sensações de admiração explodiram dentro dela, ao ver as costas musculosas e
bronzeadas. Seu marido era grande e forte. Mais robusto que Garrison. Beauregard
devia ser pesado. Quando se deitasse sobre ela... ficaria presa...
Afastou o olhar e estremeceu, recordando o que sucedera depois de Garrison ter
tirado a camisa. Pelo menos dessa vez, sabia o que a esperava: desprazer. E quem sabe
mais o quê, quando Beauregard descobrisse o que escondia dele?
Beauregard deu três passos vagarosos e abafados, rumo ao leito.
— Não precisa ter receio. Você parece que vai direto para um cadafalso.
Mary Hellen procurou as palavras certas, desesperada.
— É que... nos mal... nos co... conhecemos — gaguejou.
Beauregard aproximou-se, coçando a cabeça. Ele parecia diferente de quando a
fitara pela primeira vez, com insensibilidade evidente nas íris verdes. Naquele
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
momento, a expressão dele era de comiseração, de alguém que procurava incutir
confiança.
Porém, nem uma montanha de compaixão poderia mudar o que Beauregard
estava para fazer com ela.
— Tentarei ser gentil — afirmou com voz incerta, de quem não tinha certeza do
sucesso.
Beauregard ergueu um joelho para alcançar o colchão e rastejou até deitar-se do
outro lado. Mary Hellen sentiu um leve perfume almiscarado.
— Espero que amanhã nós nos conheçamos um pouco melhor — ele
acrescentou, com suavidade. Acomodou-se melhor e acariciou-lhe o queixo com a mão
grande. — Mary Hellen, posso beijá-la?
Ela fez um gesto afirmativo e cerrou as pálpebras, preparando-se para sentir os
lábios dele sobre os seus. O coração disparou, sem controle, e Mary Hellen viu-se em
uma expectativa horrível.
Beauregard passou os dedos na face da esposa, com toda a sutileza, afagou-lhe
uma orelha e brincou com a uma mecha de cabelos ondulados que ela acabara de
escovar. Mary Hellen sentiu-se menos apavorada e mais aquecida.
Depois ele a beijou com grande suavidade. Mary Hellen estremeceu em virtude
da ternura, do sabor da boca de Beauregard e do inesperado desejo que sentia.
Beauregard afastou-lhe os lábios com os seus e perscrutou-lhe o interior com a
língua ansiosa. Mary Hellen não pôde reprimir uma resposta pronta e sensual.
Descontraiu-se, e seus músculos adquiriram vida própria.
Se ao menos as demais sensações fossem tão gratificantes como aquele beijo,
que atingia a alma... Se ao menos não tivessem de prosseguir!
Beauregard afastou-se um pouco, sem soltar-lhe os cachos.
— Isto foi bom, Mary Hellen. Gostaria que eu diminuísse a luminosidade? Ou
prefere ficar no claro?
— Não — respondeu sem hesitar. — Acho que será melhor no escuro.
Beauregard inclinou-se para o lado e baixou o pavio da lamparina. O quarto
escureceu, e Mary Hellen agradeceu aos céus porque seria poupada de ver a expressão
dele quando à verdade viesse à tona.
Sentiu quando o marido ergueu o acolchoado e deitou-se por baixo. Deduziu,
pelos movimentos, que Beauregard tirava a calça.
— Deite-se, Mary Hellen. Venha, ajeite-se debaixo das cobertas comigo.
Ela procurou enxergar e sentou-se para a frente, enquanto Beauregard tirava os
travesseiros excedentes e atirava-os ao chão.
Relutante, Mary Hellen deitou-se devagar. Durante um precioso momento, nada
aconteceu. Ela estava deitada de costas, e o marido, perto dela, sobre um cotovelo, e
apoiava o rosto na palma da mão.
— O que há de errado? —perguntou, preocupada com a possibilidade de o
marido descobrir o que ela escondia.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
— Nada. Apenas queria olhar para você. Beauregard moveu-se com elegância
para cima dela. Mary Hellen ficou ofegante de puro medo, mas relaxou quando
Beauregard permaneceu parado, apenas brincando com os cabelos dela espalhados no
travesseiro.
Após alguns segundos e depois de a pulsação dela voltar ao normal, Beauregard
tornou a beijá-la. Ah, o beijo! Como Mary Hellen gostou...
Ele traçou uma trilha de leves beijinhos pela face e queixo de Mary Hellen, e
depois mordiscou-lhe a pele sensível do pescoço. Ela arrepiou-se inteira, por fora e
também por dentro. O que queria dizer tudo aquilo? Por que o marido estava adiando
o inevitável?
Beauregard desamarrou as fitas da camisola e abriu os botões minúsculos de
cima. Tocou-lhe as clavículas com os lábios, enquanto ela fitava o teto, no escuro.
— Experimente relaxar — ele sussurrou, puxando-lhe a camisola para baixo dos
ombros. — Você está muito tensa.
Beauregard fitou-a, e Mary Hellen teve medo que ele pudesse ler sua alma e
descobrir tudo.
— Quer que eu pare? — indagou, gentil. — Se acha que ainda não está pronta...
— Não! Quer dizer, quero ser sua mulher. Não só no nome, como no corpo.
Beauregard baixou a cabeça e beijou-a outra vez, procurando-lhe, ávido, o
interior da boca com a língua.
Emoções contraditórias borbulhavam no interior de Mary Hellen, e seu sangue
circulou com incrível rapidez por suas veias.
Beauregard sentou-se nos calcanhares e tirou a roupa de Mary Hellen. Em
seguida, suspirou e deitou-se sobre ela com cuidado, para não sufocá-la com o excesso
de peso.
— Mary Hellen, estou contente que tenha vindo. De verdade, embora eu não
pudesse imaginar que me sentiria assim.
Por um breve instante, a realidade concentrou-se no corpo e nas palavras dele, e
ela compartilhou daquele sentimento.
Beauregard mudou de posição, e Mary Hellen pôde sentir a extremidade sedosa
de encontro ao lugar que lhe trouxera tanta dor da última vez. Por instinto, apertou as
pernas.
— Está tudo bem? — ele quis saber, e beijou-lhe os lábios.
Mary Hellen não teve o que responder. Seus temores haviam voltado, com a
iminência do que estava para acontecer.
— Estou apenas nervosa, é só isso.
Beauregard lhe beijou a ponta do nariz.
— Tudo certo, não se preocupe. Apenas procure descontrair-se.
Mas como poderia fazer isso?
Por fim, Beauregard penetrou-a, bem devagar.
Os movimentos cessaram.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Ele estava dentro dela.
Os segundos escoavam-se. Mary Hellen abriu os olhos, apavorada. Ele já sabia?
Ficaria irado?
Logo, Beauregard começou a mover-se de modo ritmado, e ela ficou mais
aliviada. Disse a si mesma que o pior já havia passado e que poderia acalmar-se.
Em seguida, Mary Hellen sentiu um prazer desconhecido. Os músculos já não
estavam mais retesados, e apenas formigavam. A pele de ambos pareceu fundir-se em
uma só, enquanto faziam amor no escuro. Não foi nada parecido com a primeira vez,
de jeito nenhum. Aliás, nunca sentira o prazer que experimentava naquele momento.
A cabeça de Mary Hellen parecia rodar. Fechou os olhos e começou a tremer,
pelas sensações que a acometiam. Surpresa e confusa, sentiu Beauregard tenso em
seus braços. Ele gemeu. Um som que ela inferiu ser de deleite. Beauregard vibrou no
interior de Mary Hellen, que concluiu que haviam completado o ato matrimonial.
Beauregard descansou por cima dela, então mais pesado. Permaneceram
deitados, quietos. Os corpos pareciam colados com o calor e a transpiração.
De repente, Mary Hellen sentiu-se desajeitada. Ela o abraçava, e seus dedos
sentiam a quentura das costas lisas de Beauregard.
Ele continuava dentro, e ela não sabia o que dizer ou o que fazer. Então, a
situação canhestra chegou ao fim. Beauregard ergueu-se, deixando-a exposta ao ar frio
do dormitório.
Beauregard permaneceu deitado no escuro, escutando a respiração irregular de
Mary Hellen, muito quieta ali a seu lado. Levou o punho aos olhos. E ele que pensara...
Nem saberia dizer no que tinha pensado. Afinal, por que estava tão surpreso?
Não sabia nada acerca da mulher que permanecia estendida em sua cama.
Por que esperara que Mary Hellen fosse uma donzela? Ela nem se referira a isso
na carta. Beauregard deduzira o fato por ter dito que freqüentava a igreja com
regularidade e que morara com os pais até a morte deles. Além do olhar dela, do
nervosismo que demonstrara ao ver o marido entrar no quarto um pouco antes...
Parecera tão inocente!
Como um homem poderia antecipar a verdade sobre uma garota?, perguntou-
se.
Não podia, e ponto final. Beauregard nunca deveria ter pressuposto nada sobre
Mary Hellen. Devia aceitar o fato de que não fora o primeiro. Ela tivera um amante.
Ou, talvez, até mais de um.
Sendo assim, por que todo aquele tremor? Teria sido fingimento? Ela pretendera
enganá-lo?
Oh, ele não queria pensar sobre isso!
Sentou-se no leito e sentiu o chão frio sob os pés. Agarrou as beiradas do
acolchoado. De onde viera aquela moça? Quem a tocara antes dele? Por que não
pudera apenas possuí-la, sem nenhuma outra expectativa?
Beauregard sentiu uma mão em seu ombro e ficou tenso.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
— O que foi? — Mary Hellen indagou, com um tremor na voz, agora bem
compreensível. — Por que não está dormindo?
Beauregard fixou o vazio, à procura do que dizer, sem, entretanto, encontrar. Só
tinha certeza de uma coisa: jamais deveria ter baixado suas defesas.
CAPÍTULO VII
Mary Hellen virou-se e afundou no centro do colchão macio. Esforçou-se para
enxergar Beauregard de maneira mais clara, apesar da falta de iluminação reinante.
Ele estava sentado na beira do leito, de costas para ela, com os cabelos
desalinhados. Mary Hellen debateu-se em uma confusão de perguntas sem resposta.
Beauregard teria descoberto? Isso fora importante para seu marido?
Cobriu-se com o acolchoado, puxando-o até o pescoço.
— Está tudo bem, Beauregard?
— Tudo — ele afirmou, com a entonação mais gelada que encontrou.
— Então, por que não se deita?
— Não quero.
Beauregard ergueu-se, e a perfeição daquele físico deixou-a atônita, mesmo em
meio a sua terrível ansiedade. Braços fortes, ombros largos e coxas firmes que
permitiram entrever os músculos que se contraíram quando ele apanhou a calça e
vestiu-a.
— Não consigo dormir — Beauregard completou.
Mary Hellen apoiou-se sobre o cotovelo, sabendo que era mentira. Recordou
como ele ficara imóvel no meio do ato de amor. Beauregard descobrira o segredo dela,
e não conseguira mais ficar deitado ao lado da esposa.
— Beauregard, eu...
— Por que não dorme? Você teve um longo dia.
A situação modificou-se por completo. Ele queria mostrar-lhe que sabia. As
palavras secas eram para dar-lhe a entender que nada deveria falar e nem explicar.
Beauregard não se mostrava disposto a ouvir. Nem naquele momento e, decerto, nem
nunca.
Vestiu a camisa pela cabeça.
— Vou dar uma volta — informou.
As lágrimas ameaçavam explodir, mas Mary Hellen piscou duro para afastá-las.
Chorar no travesseiro não lhe traria benefícios. Tinha de ser forte, se pretendia
solucionar o problema.
Deitada de costas, imaginou o que se seguiria. Beauregard movia-se como uma
sombra pelo quarto, e ela entendeu que o marido não só desejava como também
precisava ficar só.
Com um pouco de sorte, em algumas horas a raiva dele poderia ceder.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Quando conseguisse raciocinar direito, Beauregard se lembraria de que o
namoro deles não passara de uma curta missiva. Se ele queria uma virgem para
esposa, deveria ter mencionado isso, nem que fosse de maneira sutil, mas apenas
frisara que queria uma mulher com disposição para o trabalho; item, aliás, no qual ela
se enquadrava com perfeição.
Mary Hellen quis, do fundo do coração, que Beauregard passasse a ver a situação
a partir dessa perspectiva. Sentou-se e observou-o pôr o casaco. Notou, aliviada, que o
marido deixara o colar de garras sobre a cômoda. Pelo menos, planejava voltar.
— Tem certeza de que não quer que eu vá junto? — Mary Hellen agarrava-se ao
fio de esperança de que ele não estivesse irritado.
— Tenho. Vá dormir.
Beauregard saiu do quarto sem olhar para trás e fechou a porta.
Na manhã seguinte, Mary Hellen acordou com o sol forte que entrava pela
cortina branca de renda e deixava salpicos brilhantes no acolchoado cor-de-rosa
florido.
A exaustão dos dias sem fim dentro de um trem deixaram seus ossos e músculos
doloridos. Esticou os braços para cima e mexeu os dedos, tentando recordar como era
gostoso ver-se livre de dúvidas e receios.
Nisso alarmou-se ao ver que o lado da cama que deveria ser de seu marido
estava vazio.
Mary Hellen sentou-se de um salto. Teria a raiva dele sido tão grande a ponto de
tê-la abandonado?
Fitou de imediato a cômoda. O colar desaparecera.
Jogou os lençóis finos no chão, levantou-se e foi direto até sua valise. Abriu-a e
tirou o que estava por cima: o vestido púrpura que usara na véspera. Tinha de achar
Beauregard e reparar os erros. Queria que o casamento desse certo. Precisava disso!
Naquele exato momento, ouviu uma chave girar na fechadura de metal.
Bom Deus! E se Beauregard a houvesse abandonado e o gerente do hotel tivesse
vindo para jogá-la na rua? Ainda nem estava vestida!
Não daria tempo de enfiar o vestido, por mais que se apressasse.
Agarrou a roupa e prendeu-a com força de encontro a si. Conseguiu esconder
tudo, menos os ombros.
Escutou uma batida, mas o intruso empurrou a porta sem esperar por um
convite para entrar.
Mary Hellen exalou um longo suspiro ao ver o casaco marrom de franjas e os
cabelos longos e castanhos. Sem dúvida, era seu marido.
— A carroça está pronta. — Beauregard entrou e fechou a porta.
Só então olhou-a, e com frieza, dos pés à cabeça, sob a aba do chapéu de caubói
também marrom. Depois a encarou.
— Vista-se depressa. Quero estar logo na estrada.
Beauregard acabou de dar a ordem e saiu, deixando Mary Hellen estática no
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
mesmo lugar. O coração dela palpitava com força.
Olhou para si mesma, apertando sedas e rendas sobre o corpo. Só desejou voltar
no tempo e desfazer o que havia feito.
Beauregard, ao lado da carroça, estava com uma das mãos na cintura e, com a
outra, ajeitava os cabelos espessos.
Aborrecido, observou e zangou-se com um bando de cães no meio da rua, que
latiam e ganiam em disputa uns com os outros. Desejou que os animais ficassem
quietos por um minuto apenas. Assim, poderia refletir na maneira de continuar casado
com a estranha que tomara por esposa.
Mesmo depois de tudo, ainda desejava estar enganado sobre o que descobrira
na véspera. Adoraria ouvir uma explicação sobre o porquê daquele fingimento. Se não
gostasse do que iria escutar, pararia de preocupar-se com o assunto. Já fizera isso uma
vez, e poderia fazer de novo. Parar de importar-se. Aliás, para Beauregard, aquele
nunca fora um assunto relevante.
Depois de dez minutos irritantes, Mary Hellen saiu do hotel, fazendo sombra nos
olhos com a mão enluvada de branco e espiando a rua à procura do marido.
Beauregard ficou parado e deixou que ela o encontrasse. Por fim, Mary Hellen o
viu e pareceu ficar contente. Ele notou que usava o mesmo vestido púrpura de renda
do dia anterior. As anquinhas eram exageradas e, sem dúvida, se amassariam quando
fosse ordenhar Maddie.
Beauregard tomou uma decisão, aproximou-se e pegou a alça da bagagem dela.
— Deixe que eu levo isto. — Colocou o volume dentro da carroça e ajudou-a a
acomodar-se.
— Vim o mais rápido possível, pois imaginei que você estivesse impaciente. —
Mary Hellen arrumou as saias ao redor de si.
Beauregard fitou os olhos grandes e falsamente ingênuos. Sentiu uma
inexplicável punhalada de remorso. Por que tudo não transcorrera sem incidentes nem
surpresas?
Notou que o olhar castanho mantinha o mesmo brilho doce que o encantara pela
primeira vez que o vira. Odiou pensar que Mary Hellen apresentava aquele aspecto
adorável de propósito, para conseguir manipulá-lo de algum modo. Ah, mas isso
também era suspeitar demais!
— Tenho de devolver a chave — ele avisou. — Espere aqui.
Beauregard voltou para dentro do hotel e parou na recepção. Não havia ninguém
por ali. Esperou, impaciente, cutucando o balcão com a ponta da bota e girando a
chave de metal entre os dedos.
Observou o objeto com indiferença. Foi quando que uma idéia tomou vulto.
Talvez devesse dar uma olhada no quarto mais uma vez, apenas para ter certeza.
Tentou não ficar muito esperançoso, o que poderia levá-lo a aumentar o
desapontamento. Subiu a escada, caminhou pelo hall e enfiou a chave na fechadura.
Abriu a porta e hesitou, com a cabeça e o coração palpitantes. Como se fosse um
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
último recurso, fitou a cama e o acolchoado rosa que o intimidava, esticado sob os
travesseiros.
Era uma tolice, mas tinha de fazê-lo. Caminhou até o leito, respirou fundo e
levantou as cobertas. Deparou com um lençol branquíssimo, sem nenhuma mácula.
A tênue esperança que tentara acalentar desmoronou diante dele.
Mas o que esperava, no entanto? Estar enganado e encontrar a prova disso em
alguma mancha recente no lençol?
Na noite que se passara, Beauregard caminhara por Dodge inteira, imaginando
se seria possível que não houvesse entendido o verdadeiro sentido da virgindade.
Afinal, nunca estivera com nenhuma donzela antes. Quem sabe se não seria tão fácil
assim identificar se uma mulher havia ou não...
Beauregard sacudiu a cabeça e sentiu-se traído. Não se preocupava com o que
Mary Hellen pudesse ter feito antes. O passado dela não era de sua conta.
Porém, não podia entender, de jeito nenhum, por que fingira ser uma noiva
nervosa e virginal.
CAPÍTULO VIII
Beauregard parou a carroça em meio ao vento da pradaria, onde o relvado
sussurrava um milhão de contínuos segredos. Os arreios tilintaram um pouco quando
os cavalos pararam e afugentaram as moscas de seus traseiros.
Ele teria parado para inspecionar alguma roda ou quem sabe o casco dos
animais?, Mary Hellen imaginou, com o estômago revolto. Aquele mal-estar seria
provocado por sua necessidade de justificar-se perante o marido?
Beauregard tirou o chapéu, passou a mão nos cabelos e pôs a peça de couro de
novo sobre a cabeça. Estreitou os olhos mirando o leste e recostou-se no banco.
— Precisamos conversar.
Mary Hellen teve a impressão de que lhe apertavam a garganta.
— Acho que devemos conhecer-nos um pouco mais — ele continuou, com uma
inflexão acusatória na voz.
— O que é que você quer saber?
Beauregard fitou o zênite muito azul sem nuvens e franziu o cenho.
— Sei que não é muito conveniente falar sobre certos assuntos, mas não gosto
de ficar matutando sobre eles, ainda mais quando se trata de um mal-entendido. Sabe
como é, não consigo afastar um pensamento com facilidade.
— A que está se referindo?
Beauregard encarou-a com severidade.
— Quero saber por que parecia tão nervosa ontem à noite. Deixou-me achar que
você nunca... — Hesitou. — Não que isso tenha importância. O passado é problema
seu, não meu. Mas por que estava tão tensa como se nunca houvesse feito aquilo
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
antes? Por que tentou me enganar?
A entonação tranqüila e trivial teve o dom de acalmá-la.
— Eu não estava tentando enganá-lo, Beauregard.
— Se é assim, por que aquele nervosismo todo, quando fui para a cama?
— Eu estava com medo.
— Do quê?
— Você sabe.
— Por quê? A franqueza teria sido melhor do que iludir-me.
— Não menti, Beauregard. Apenas não contei. O que queria que eu dissesse?
Beauregard ponderou um instante, refletindo sobre a indagação.
— Nada. Não precisava dizer nada mesmo. Você veio para cá, casou-se comigo e
agora vamos para casa.
Antes que ele mexesse as rédeas, Mary Hellen pôs a mão sobre a manga do
casaco macio. Beauregard baixou as tiras e fitou-a.
— Sinto muito por tê-lo aborrecido, Beauregard.
Nunca pretendi fazê-lo de bobo.
— Não me aborreceu, Mary Hellen. Estou um pouco desapontado. Só isso.
Mary Hellen soltou-o e apertou o lenço branco que estava sobre seu colo.
Desapontado. Era bem pior...
— Diga-me uma coisa. — Beauregard bateu as rédeas, sem força, e soltou-as. —
Houve muitos?
Mary Hellen suspeitou que ele pretendera feri-la.
— Não, apenas um.
— Hum... — Ficou em silêncio por alguns segundos e depois fez a pergunta que
não queria calar: — Você o amava?
As palavras surpreenderam-na. Mary Hellen desejava que a situação entre os
dois melhorasse e que não tocassem mais no assunto. Acima de tudo, gostaria que
Beauregard a respeitasse. Engoliu em seco, nervosa.
— Bem? Amava ou não, Mary Hellen?
Qual seria a resposta certa? Não lhe parecia correto dizer a seu marido que
amara outro homem, mas também negar...
— Sim — Beauregard concluiu, num sussurro. — Amava.
Era verdade. Em toda sua inocência, Mary Hellen amara Garrison. Embora,
naquele momento, ela não estivesse muito certa sobre o significado daquele verbo.
Beauregard bateu as rédeas com energia, e a parelha cavalgou mais rápido sobre
a estrada cheia de buracos.
— Há quanto tempo não o vê?
Mary Hellen fixou-se nas crinas longas dos animais, que moviam a cabeça para
cima e para baixo.
— Acho que deve fazer umas duas semanas.
— Duas semanas! — Beauregard freou os animais com violência, amarrou as
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
rédeas na trava e pulou do veículo.
Parou a uns vinte passos, de costas para Mary Hellen, as mãos caídas ao longo do
corpo.
"Oh, não! Ele vai me mandar embora", Mary Hellen concluiu, apavorada. "Vai
deixar-me no meio das ruas de Dodge City com minha mala e minhas recordações
amargas..." Cerrou os olhos e tentou ser otimista.
Não haveria de ser de todo mau, decidiu, tentando consolar-se. Poderia
trabalhar em um restaurante, afinal tinha experiência. E começaria uma nova vida.
Sozinha. O sonho de casar-se e viver uma existência tranqüila em uma fazenda não
passara de... um sonho.
Ergueu as pálpebras e viu Beauregard sentado no solo, apoiado em um dos
braços esticado para trás.
Mary Hellen observou-o brincar com uma folha de grama. No mínimo, como ele
dissera, estava desapontado. Era um sentimento justificado. Mas vê-lo daquela
maneira, sentado sozinho no meio da imensidão da planície...
Ela desceu da carroça e alcançou o chão com um pulo. Tirou o alfinete do chapéu
e o próprio, deixando-os no estrado do veículo.
O vento singrava através da relva ondulante, sibilando como uma cobra e
soprando-lhe fios perdidos das mechas na face.
Mary Hellen entendeu que deveria dar a oportunidade de uma escolha para
Beauregard. Se ele quisesse, poderia terminar com o casamento. Ela sabia a razão por
que respondera tão rápido a um anúncio daqueles: precisava afastar-se de Garrison e
começar uma nova vida.
Naquele momento, talvez Beauregard estivesse arrependido de haver sido tão
apressado. Deveria dizer-lhe que a levasse de volta a Dodge e que concordaria com um
divórcio? Seria tão ruim assim? Afinal, já estivera em situações piores.
Mary Hellen chegou perto dele e sentou-se. Esperou um pouco, observando o
horizonte, na linha distante onde o céu se encontrava com a terra. Convicta, pigarreou,
antes de falar:
— Perdoe-me por não haver contado antes
Mary Hellen sentiu o coração partir-se em dois. Estava a ponto de terminar a
união que mal começara, e só queria chorar.
— Eu estava sozinha há quatro anos e...
Beauregard largou a folha.
— Você quer dizer quatro meses.
— Como assim?
— Quatro meses. Desde que seus pais morreram.
— Não, quatro anos. — Mary Hellen franziu o cenho.
— Você escreveu na carta que eram quatro meses. — Fuzilou-a com o olhar.
— Não pode ser. Talvez minha letra não fosse muito...
— Sua caligrafia é ótima.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
— Tem certeza de que...
— Sem a menor dúvida.
Pelo tom incisivo de Beauregard, Mary Hellen percebeu que ele não mentia. Ao
lembrar-se da pressa com que escrevera e mandara a missiva, imaginou se não
cometera mesmo um erro. Um erro horrível. Lamentável. Como pudera ser tão
descuidada?
Ou podia ser que não se tratasse de engano nenhum, pensou, infeliz. Talvez
sabendo que não seria correto casar-se com Beauregard, tivesse tentado solapar, de
forma inconsciente; suas atitudes desesperadas. É... vai ver que era isso mesmo.
— Você morou em Boston sozinha por quatro anos, Mary Hellen?
Ela anuiu, sem saber mais o que fazer.
Beauregard arrancou mais uma folha fina e segurou-a entre os lábios pela ponta.
O silêncio dele era mais enervante que qualquer reprimenda.
Mary Hellen não podia fazer nada mais além de ficar sentada no emaranhado
que cobria a terra e sofrer, sabendo o que o marido devia pensar a seu respeito: que
mentira de propósito acerca de tudo!
— O que mais me contou? — ele indagou, com ironia.
— Ah, sim! Que freqüentava a igreja. Suponho que irá dizer-me que a igreja da
vizinhança pegou fogo e que você não esteve presente aos trabalhos dominicais,
digamos... por uns quatro anos?
— Não — Mary Hellen replicou, com firmeza. — Eu vou à igreja. Não mentiria
sobre isso.
Beauregard continuou fitando as colinas distantes.
— Mas o restante não passou de um amontoado de mentiras.
Mary Hellen desviou o olhar, frustrada. Fora uma futilidade argumentar, como
também seria inútil querer que Beauregard acreditasse no que afirmava naquele
momento. Ele estava muito irritado. Se lhe dissesse por que tivera de fugir de
Garrison, Beauregard levá-la-ia até as autoridades, e ela poderia ser acusada pelo
crime de Garrison.
Por outro lado, Mary Hellen bem sabia o que Garrison seria capaz de fazer se
soubesse que ela confessara o delito para alguém. Garrison deixara esse ponto bem
claro. Mary Hellen não poderia deixar Beauregard, e nem ela mesma, correr esse risco.
Beauregard ergueu o joelho e apoiou nele o punho.
— Você ainda ama esse homem? A questão deixou-a muito aflita.
"Sim, eu o amei até duas semanas atrás, mas hoje não o amo mais."
Mary Hellen tinha certeza de que Beauregard jamais acreditaria nisso. Ninguém
no mundo conseguiria. Contudo, depois do que acontecera, poderia jurar com a mão
sobre a Bíblia.
Fechou os olhos, por causa do vento.
— Não o amo. Espero nunca mais encontrá-lo.
— O que espera para as duas próximas semanas? Ficar sozinha outra vez?
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Pretende deixar-me e pular no leito de outro homem, e assim conseguir arrancar do
coração de quem você realmente ama?
Aquilo a atingiu em cheio. Sabia que merecia tal desprezo, mas isso não tornava
mais fácil suportá-lo. Levantou-se e surpreendeu-se com a confiança que sentiu,
apesar de tudo.
— Entenderei se estiver arrependido de haver me trazido para cá, Beauregard.
Podemos voltar para a cidade e conseguir o divórcio. Não me oporei. Só lhe peço que
me arrume um lugar para ficar, até eu decidir para onde ir.
Virou-se, com raiva de haver se metido em tamanha confusão e por envolver
Beauregard em uma situação bastante delicada.
Tudo começara quando conhecera Garrison. Desejou ter dado ouvidos a seus
instintos, na ocasião. Desde o começo, alguma coisa nele não a agradara, mas seu
comportamento havia sido impecável. Irrepreensível demais.
Garrison dissera as coisas certas e tinha a aparência de um cavalheiro. Bonito e
rico, cortejara-a com probidade e, por isso, arruinara-lhe a vida. Àquela altura,
Beauregard supunha as piores coisas sobre ela e merecia livrar-se do embuste.
Mary Hellen voltou à carroça, certa de que Beauregard estava em pleno direito
de julgá-la daquela maneira. E que importância tinha isso? O casamento terminara
mesmo...
CAPÍTULO IX
Mary Hellen caminhou de volta para a carroça, segurando a barra da saia com as
mãos trêmulas. As anáguas vinham roçando as gramíneas altas e hirsutas. Era como se
o vento impelisse para longe de Beauregard, ao encontro de uma terra estranha. O céu
a seu redor não lhe parecia nada mais de que um enorme círculo sufocante.
Alcançou o veículo e subiu com facilidade surpreendente. Mordeu o lábio e
tentou não pensar sobre a vida que na véspera lhe parecera viável. Ela aceitaria seu
destino com confiança e pensamentos positivos. Estava segura, longe de Boston.
Talvez conseguisse viver com dignidade na cidade mais próxima.
Com o canto dos olhos, percebeu Beauregard aproximar-se, mas fingiu que não o
via. Sentada muito ereta, Mary Hellen não se voltou. Ele subiu até o assento sacudindo
a carroça, que rangeu e balançou.
"Beauregard vai levar-me de volta e tudo terá fim", ela refletiu, pesarosa.
Mary Hellen agarrou-se na ripa lateral, preparada para a saída brusca, mas nada
aconteceu. Beauregard olhava para a frente, imerso em suas conjecturas, as rédeas
entre as mãos largas e bronzeadas.
Mary Hellen esperou que ele estalasse a língua e virasse sua velha caixa de
madeira de volta à cidade. Mas o marido nada disse e nem fez.
Havia pouco, ela mostrara-se forte e cheia de valentia. Para onde teriam ido
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
esses sentimentos? Naquele exato instante, sentia-se incerta e um pouco intimidada.
Nada mais poderia fazer, além de esperar pela decisão dele.
Por fim, Beauregard chacoalhou as correias, e os cavalos se atiraram para
adiante com estardalhaço. Eles mexiam as orelhas para a frente e para trás, enquanto
Mary Hellen segurava-se no banco, à espera de que mudassem de direção e
retornassem para o caminho pelo qual vieram. Entretanto, não alteraram o percurso.
Seguiam pela estrada estreita, tinindo de leve os arreios.
— Nós fizemos um contrato, Mary Hellen. O que aconteceu em Boston é de sua
conta, e prefiro não tomar conhecimento disso. Você me assegurou que sabe trabalhar
e gosta de fazê-lo. Espero que pelo menos isto seja verídico. O resto não me diz
respeito. Como eu já disse, temos um contrato, e pretendo levá-lo até o fim.
Surpresa e esperançosa, Mary Hellen relanceou um olhar para Beauregard.
Desapontou-se ao não encontrar o mínimo traço de ternura naquele semblante. A
palavra "contrato" tinha um encanto bem menor do que o sonho dela em casar-se.
Mas já representava alguma coisa, mesmo que em proporções diminutas.
Era final de tarde, quando eles chegaram a uma propriedade rural. Mary Hellen
viu um celeiro feito de torrões de relva e coberto de forragem seca, um galinheiro
cheio de aves barulhentas, uma horta, uma grande extensão de terras com plantação
exuberante de milho para o oeste. A leste, o mesmo tanto coberto com trigo viçoso.
Mas não havia nenhuma casa.
Quem sabe, na próxima colina, imaginou, indagando-se por que alguém iria
construir uma residência tão longe dos animais.
Aproximaram-se, e de dentro do depósito vieram sons abafados de mugidos, que
se sobrepunham ao bramido do vento.
Mary Hellen inalou o cheiro de estrume fresco, e, para seu espanto, achou-o
agradável. Entendeu que devia ser porque só estava acostumada a sentir os odores de
esgoto e lixo decomposto da cidade grande.
Sentou-se na beira do banco, machucada e meio entrevada pelo longo trajeto
em cima de uma ripa de madeira. Queria muito saber se aquele era seu novo lar, mas
não ousou questionar, ao ver a carranca de Beauregard.
— Droga! — ele murmurou.
Beauregard pulou do veículo. Um galo cacarejou e saiu do caminho batendo as
asas.
— O que vocês estão fazendo aqui?! — perguntou a um porco.
O suíno mordia a bainha de uma calça de trabalho pendurada em um varal
estendido no terreiro.
— Como foi que isso aconteceu?!
Mary Hellen esperou, sentada, enquanto Beauregard caminhava a passos largos
em direção à porta da construção de barro.
— Droga de cachorro! — Beauregard abriu a tranca com um dedo. — Shadow!
Venha cá!
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
Mary Hellen ficou preocupada ao imaginar o que ele faria ao pobre cão que havia
deixado o porco sair do cercado. Nisso, uma massa de pêlos passou como um furacão
pela carroça e desembestou pelo pátio, em direção a Beauregard.
Ele se ajoelhou para receber os cumprimentos de um golden retriever, que se
lançou sobre ele e quase o derrubou. O cão gemia e lambia o rosto e as mãos de
Beauregard. Mary Hellen não pôde deixar de sorrir.
Então aquelas eram as terras de Beauregard.
Mas onde estaria a casa?
Mary Hellen desceu da "carruagem" e pisou em um monte de esterco fresco e
mole, que sujou a barra de sua anágua.
— Ah... — Gemeu, erguendo a saia e examinando a sola da bota.
— Por aqui, você terá de olhar por onde pisa — Beauregard comentou.
Ele desapareceu no interior do galpão e voltou alguns minutos depois, com uma
cabra branca a reboque.
— Pode esticar suas pernas, Gertrude, mas fique longe de minhas calças no
varal. — Largou-a no terreno.
Mary Hellen esfregava a bota na terra seca, observando Beauregard voltar para
dentro. Escutou-o desculpar-se com alguém.
— Perdoe-me, Maddie. Não achei que iria ficar fora a noite toda.
Beauregard demorou-se lá dentro, e Mary Hellen imaginou o que ela deveria
fazer. Pegar a valise e sair à procura da residência? Esperar até que o marido lhe
indicasse o caminho? Seria melhor. Não queria invadir o lar dele sem permissão.
Mas, afinal, era sua mulher. Assim, a casa também lhe pertencia.
Inquieta, Mary Hellen perambulou pelo pátio e ouviu um som persistente de um
esguicho que vinha de dentro do recinto coberto de feno. Teve de passar por uma
cerca para chegar à porta. Espiou o interior da construção de barro e viu Beauregard
sentado em um banco pequeno, ordenhando uma vaca. Ele havia tirado o casaco, que
estava jogado a um canto. A camisa branca e solta acompanhava os movimentos dos
ombros largos.
Inclinado para a frente, Beauregard espremia e puxava as infelizes tetas. O leite
espirrava em jatos finos e fortes.
Mary Hellen continuou olhando, encantada com os músculos das costas de
Beauregard. Ora tensos, ora relaxados, eles trabalhavam em harmonia perfeita com o
som forte do leite que enchia o balde de madeira. Surpresa, deu-se conta de que
nunca vira ninguém ordenhar uma vaca.
De repente, um clarão castanho irrompeu no galpão e colidiu com ela. Cansada e
menos alerta do que deveria estar, caiu sentada na lama. Sem reagir, sentiu as faces
ardentes queimadas de sol serem lambidas com um entusiasmo incontido. O cachorro
prosseguiu a "limpeza" em direção ao nariz dela.
— Não! — Mary Hellen gritou e tentou cobrir o rosto com as mãos ainda
enfiadas nas luvas brancas.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
— Shadow! — Beauregard chamou com energia, de dentro do estábulo. — Saia
daí!
O grande cão obedeceu, com as orelhas para trás e a cauda entre as pernas,
enquanto o porco via o espetáculo com interesse.
— Desculpe-me, Mary Hellen. — Beauregard se aproximou e segurou o cotovelo
de Mary Hellen com sua mão forte. — Veja o que ele fez.
Beauregard a ergueu depressa, mas ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre um
joelho, antes que o marido a levantasse de novo.
Mary Hellen lutou para conter a raiva. Tentou, em vão, retomar o fôlego. Todos
os problemas pareciam ter vindo à tona de uma vez. Apanhou a saia com os dedos
enlameados e trêmulos.
— O vestido que uso aos domingos... Todo coberto de lama! — Aquela era a
menor de suas preocupações, mas a, única sobre a qual podia falar.
— É só um pouco de terra...
— Um pouco de terra — ela repetiu, com ironia, sem querer aceitar o que mais
poderia estar misturado ao barro.
— Bem, você terá de ir até o regato.
— Regato? Não tem uma banheira?
— Banheira?
Será que Beauregard já ouvira essa palavra alguma vez?
—Aqui, não. — Ele afastou-se e apontou. — O riacho é logo ali. O sabão está em
cima da rocha grande.
Mary Hellen fitou o dedo estendido, desalentada, e desejou que o córrego
estivesse localizado depois da colina. Saiu do cercado, tentando não se desesperar por
ter de lavar-se ao ar livre, junto com animais e insetos. Pelo menos Shadow seguira
Beauregard para dentro, e não se constituía mais em uma ameaça.
Andou uns poucos metros pelo terreiro e, sem poupar resmungos e gemidos,
arrancou a valise da carroça. Carregou-a até a direção que imaginava ser o caminho
certo para a água.
Ao aproximar-se da pequena elevação, viu o riacho a distância. No mínimo, a uns
oitocentos metros à frente. Não conseguiria carregar a bagagem até lá.
Murmurando uma imprecação, colocou a mala no chão, abriu-a e tirou de dentro
uma saia e um corpete limpos. Fechou-a e deixou-a sobre o relvado. Com andar
cansado e vacilante, fez o restante do trajeto.
Mary Hellen desceu a ribanceira, tropeçando até chegar na água e encontrou
sabão dentro de uma gamela pequena e gasta.
Como é que faria aquilo?, se perguntou e virou-se para ter certeza de que
ninguém a veria.
Claro que não. Não havia vivalma a quilômetros.
Desamarrou as botas e descalçou-as. Tirou o vestido e a roupa de baixo. Sentiu
que se encontrava em um nível muito além da nudez. Estava ao ar livre e entraria em
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
um riacho com sabe-se lá quantas criaturas nadando dentro dele.
Esforçou-se para afastar aqueles pensamentos de sua mente e pôs os pés na
água. Abaixou-se e estremeceu com o choque do rio gelado na pele. Arrepiou-se
inteira e resolveu despejar água na cabeça com o pequeno balde, de uma só vez.
O corpo logo acostumou-se com a temperatura fria, e Mary Hellen nadou em
círculos, sentindo-se revigorada, mas sem pensar em como fazer para conseguir morar
ali. Decerto Beauregard não esperava que ela fosse quebrar o gelo no inverno, para
tomar banho. Deveria haver algum plano alternativo.
Mary Hellen batia as pernas para manter-se à tona e olhava em todas as
direções. Nunca poderia imaginar que seria daquela forma. Não era possível que não
houvesse fazendas vizinhas. Pensara em uma comunidade pequena com casas de
campo charmosas e pintadas de amarelo, uma igreja e uma escola bem perto. Crianças
rindo e brincando em grupos.
Sonhara com reuniões sociais de senhoras para fazer colchas para fins
beneficentes, concursos e criação de abelhas com mel de floradas diferentes. Não
tinha nada daquilo por ali, nem nas proximidades.
Apesar de tudo, e ela teve certeza de que muitos se surpreenderiam por isso,
sentiu-se feliz e abençoada. Talvez não houvesse nenhuma obra assistencial, mas
existia a esperança de um recomeço.
Encorajada, saiu do riacho, pegou o sabão e fez uma espuma fria entre as
palmas. Lavou a cabeça, o rosto e o corpo. Mergulhou e nadou sob a superfície para
enxaguar-se. Quando emergiu, deu uma olhada e gemeu. Sua roupa estava coberta de
esterco.
Beauregard deu a volta por trás do lugar onde Maddie passava as noites e entrou
em sua casa, carregando o balde com leite. Quando passou pela porta e desceu os
cinco degraus, pela primeira vez teve noção das condições precárias em que vivera
durante os últimos doze meses.
Uma mosca zuniu em sua orelha, ele afastou-a com a mão livre e pôs o
recipiente em cima da mesa.
O que Mary Hellen diria ao entrar ali com suas luvas brancas e seu chapéu
púrpura e extravagante? Beauregard espiou a cama estreita, arrepiou-se e voltou para
a porta.
Ela teria de aceitar, e pronto! Mary Hellen não tinha muita escolha. Beauregard
avisara que estava à procura de uma esposa para trabalhar em uma fazenda. Não
pretendera uma jovem da cidade, frívola e vaidosa, que não conhecia um arreio, um
arado ou um gafanhoto.
Se Mary Hellen não gostava daquele tipo de vida, a culpa era dela, por haver
respondido ao anúncio com tanta presteza. Com Isabelle fora a mesma coisa. Ela se
encontrara aflita para casar, não importando com quem, sem pensar nem um segundo
no que iria enfrentar. Quando acabou por compreender o que a esperava, encantou-se
com o primeiro indivíduo muito falante e bem-vestido que lhe prometera uma vida
34
CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
boa.
E Beauregard nem sonhara em impedi-la de ir embora.
Dessa vez não, decidiu, subindo os degraus.
Lembrou-se de Mary Hellen na pradaria, no meio daquela imensidão, sugerindo
um divórcio. Um divórcio! Do mesmo modo como acontecera com Isabelle, ela queria
fugir ao primeiro sinal de desentendimento. Bem, àquela altura dos acontecimentos,
não iria embora com tanta facilidade.
Beauregard parou do lado de fora.
Como Mary Hellen encararia os desafios que a esperavam? Esfregou a nuca
tensa pela longa viagem. Será que sua mulher pensaria na casa dele como um grande
buraco escuro e úmido na terra? Como ele reagiria se Mary Hellen quisesse ir embora
e exigisse que a levasse de volta a Dodge para divorciar-se?
Era só o que lhe faltava! Um outro escândalo daria origens a mais falatórios
inconseqüentes, que se espalhariam com a rapidez do vento. A cidade inteira pensaria
que ele era um amaldiçoado.
Aliás, era no que Beauregard começava a acreditar.
Tratou de esquecer essas bobagens e achou que era hora de mostrar a
residência para a esposa. Quanto mais tempo passasse matutando, mais horas
preciosas do dia ele perderia do preparo da colheita.
Com passadas largas, dirigiu-se até o regato e desceu o barranco. Ficou pasmo
com o que viu. Mary Hellen estava de costas, abotoando uma saia floral azul-pálido. Os
cabelos molhados e brilhantes caíam nas costas como uma cascata de cachos escuros,
cujas pontas marejavam pingos na cintura estreita.
A admiração que sentiu pela mulher que trouxera para aquele local remoto e
selvagem deixou-o atordoado. Ela não combinava com nada daquilo. Mary Hellen se
destacava como uma rosa em um campo de neve.
Nisso, Mary Hellen virou-se, levantou a cabeça e estreitou os olhos. Cruzou
rápido os braços ao redor de si.
— Beauregard, você tem o hábito inconveniente de surpreender-me quando não
estou totalmente vestida.
Beauregard apoiou-se num pé, depois no outro.
— Vim apenas lembrá-la de que há muito trabalho a ser feito. E, para mim, você
está muito mais do que vestida.
Mary Hellen baixou os braços.
— Que tipos de trabalho?
— Tarefas cotidianas de uma fazenda. Não espera que irá banhar-se, enfeitar-se
e escovar os cabelos durante horas, enquanto fico aqui fazendo todo o serviço, não é?
— E por que acha que eu faria isso?
Beauregard hesitou, consciente de que não fora razoável. Tarde demais para
voltar atrás. Parecia que ele viera até ali para balbuciar uma porção de represálias.
Mary Hellen empinou o queixo.
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
— Eu li seu anúncio. Sei que o serviço pesado me espera, embora por algum
motivo você pense que não.
Beauregard sentiu-se um pouco culpado por ter sido rude com ela. Aproximou-se
de Mary Hellen e sentiu o cheiro do sabão de lixívia.
— Depois que você terminar de lavar o vestido, eu lhe mostrarei onde vamos
morar.
— Obrigada.
Beauregard cerrou os maxilares ao refletir, de novo, sobre o que Mary Hellen
pensaria ao ver a nova moradia. Em seguida, admoestou-se por estar preocupado,
como se tivesse vergonha de sua própria casa.
Beauregard parou, antes de subir a pequena rampa, e apontou os trajes.
— Eles são mais práticos fora daqui.
Mary Hellen fitou a saia e o corpete simples de chita.
— Se eu fosse você, Mary Hellen, guardaria mesmo aquela coisa púrpura para os
domingos.
Ela jogou a cabeleira para um lado e torceu-a como se fosse uma toalha.
— Muito bem, Beauregard. Agora, se me der licença, tenho de lavar roupa.
Beauregard sentiu-se dispensado e resistiu à vontade de dar a última palavra. Ao
ver Mary Hellen apanhar o vestido e esfregá-lo com força suficiente para fazer nele um
buraco, convenceu-se de que sua mulher não gostaria de ouvir nada do que ele teria a
dizer.
CAPÍTULO X
Mary Hellen dobrou o vestido molhado, que pesava muito, sobre um braço e
agarrou a barra da saia com a mão livre. Subiu a ribanceira quase correndo. Enfim, iria
ver sua nova casa, o lugar que poderia limpar e arrumar a seu gosto.
Se o marido permitisse, é claro. Assim que ela pusesse mãos à obra, Beauregard
Brigman não teria mais motivos de queixas.
Mary Hellen teve até pena dele. Lamuriar-se parecia ser a atividade favorita de
Beauregard.
A volta, contudo, foi um pouco mais demorada. Mary Hellen não se lembrava de
onde havia deixado a valise. Nem pensara em marcar o lugar. Deu várias voltas, até
alcançar um local onde o capim amassado deu-lhe a impressão de ser onde colocara a
mala.
Confusa, olhou ao redor, em direção ao estábulo. Talvez Beauregard a houvesse
levado para casa. Pelo menos, era o que Mary Hellen esperava que tivesse acontecido.
Senão, teria de voltar por ali mais tarde, o que daria mais um motivo para ele criticá-la.
Cruzou o terreno em direção ao galpão coberto, que pelo jeito servia de celeiro e
estábulo. Beauregard estava em pé, com um ombro encostado no marco da soleira e
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
os braços cruzados.
Mary Hellen sentiu-se nervosa. Relanceou um olhar para os pés dele. A valise
estava no chão, a seu lado. Ainda bem. Assim mesmo, tomou a resolução de não se
deixar intimidar por aquele homem. Estava pronta para assumir seu papel de esposa
de fazendeiro, com todos os desafios e trabalhos pesados a que tivesse direito.
Beauregard não iria abater-lhe o ânimo.
— Já não era sem tempo — Beauregard criticou-a, apanhou a mala e saiu da
entrada sombria. — Achei que estava esperando suas roupas secarem.
— Por certo que não. — Mary Hellen sorriu com frieza. — E não se esqueça de
que o responsável por esse transtorno foi aquele seu cachorro estabanado.
Beauregard ignorou-a e passou por ela.
— A residência é por aqui.
Por ali? Mary Hellen estudou todos os lados. Não viu nada além dos campos
forrados de gramíneas amarelas. Sem dar muita atenção a seu ceticismo, contudo,
seguiu o marido.
— É aqui. — Beauregard subiu em um cômoro e desapareceu do outro lado.
Quando Mary Hellen alcançou o topo, entendeu, horrorizada, que estava sobre
uma cobertura.
Não era uma casa. Era um monte de barro.
Estacou, estarrecida, sem fala, olhando para o marido, mais abaixo.
— É o chamado abrigo subterrâneo porque... — Beauregard começou a explicar.
— ...foi cavado na encosta de uma colina — Mary Hellen concluiu. Engoliu como
pôde seu espanto, andou com cautela sobre o telhado e desceu pelo lado. — Muitas
pessoas moram em abrigos?
— A princípio, sim. Até ganharem dinheiro suficiente para comprar a madeira
necessária para a construção de uma moradia definitiva. Como você mesma pode ver,
aqui não há nenhum outro material de construção que não seja a terra.
— É verdade. Dá para notar, sem muito esforço.
— A porta é aqui. — Ele pegou-a pelo cotovelo, pronto para conduzi-la até o
"lar".
Mary Hellen observou com mais atenção as paredes externas. Admirou-se pela
construção e pela engenhosidade de um homem determinado a edificar uma casa em
uma região onde não havia madeira.
Chegaram até a entrada e tiveram de descer cinco degraus entalhados no barro
seco. O interior, a cerca de um metro e vinte centímetros do nível do chão, mostrou-se
escuro até a visão acomodar-se.
Mary Hellen sentiu frio, ao inalar o cheiro úmido de terra e gramíneas. Esforçou-
se ao máximo para não perder a calma, nem a compostura, e conseguiu sorrir para o
marido. Beauregard deu alguns passos pelo ambiente de um só cômodo, deixou a
bagagem dela ao lado da mesa e abriu os braços.
— É isso aí — afirmou com um orgulho que Mary Hellen suspeitou que não fosse
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
tão sincero.
Com toda a certeza, seu marido esperava a desaprovação dela!
— É bastante... sólida. — Mary Hellen bateu três vezes com o pé no solo,
disposta a não dar o braço a torcer.
— Quando comecei a escavação, a terra parecia uma massa de betume.
Contudo, veja como secou bem. Não acha?
— Ah, sim! Bastante. Muito bom.
Permaneceram em silêncio por uns instantes, enquanto Mary Hellen espiava a
mobília. Um barrilete e uma caixa de sabão estavam encostados em uma das paredes.
Duas cadeiras, uma diferente da outra, acompanhavam uma prancha velha que servia
de mesa. Em um dos cantos, uma cama rústica que tinha como pés troncos de árvores
descascados.
Mary Hellen caminhou até a mesa e deixou seu vestido perto do balde de leite.
Notou, aliviada, que havia um fogão de ferro e uma chaminé de metal no teto.
Examinou a parede de trás, escavada na lateral do cômoro. As da frente e as do lado
eram feitas com torrões montados como se fossem tijolos, sendo que os blocos
ficavam com o lado da grama para baixo.
Beauregard se pôs em frente a Mary Hellen, como se esperasse pela reação dela,
talvez na expectativa de uma torrente de lágrimas.
— A ventania constante pode sacudir a porta ou a janela, mas não estas paredes
— ele afirmou. — Elas têm uns noventa centímetros de espessura.
— Nossa! Noventa centímetros! — Mary Hellen repetiu e fitou o teto,
imaginando se haveria perigo de ele ruir. — Do que é feito o forro?
— Com estacas de salgueiro entrelaçadas. Depois há mato, grama longa, uma
camada de argila do barranco do riacho e um acabamento final com torrões de relva. E
forte o suficiente para andar-se em cima.
— Que ótimo... — Mary Hellen chegava ao limite de sua calma aparente.
Mas não o deixaria saber disso. Jamais! Voltou-se e olhou o leito.
— E esta...
— É a cama. Sei que é pequena. Eu tinha planejado montar outra antes de você
chegar, mas houve problemas com a fenação, que atrasou, e não tive chance de fazer
isso.
Mary Hellen tornou a engolir seu desalento e sua preocupação.
Quando o marido encontraria tempo, e o que eles iriam fazer enquanto isso não
se concretizasse?
— Não se preocupe. Quase não há percevejos.
— Como!? — Mary Hellen sentiu a pele coçar.
Beauregard caminhou até a saída.
— Agora que você está acomodada, vou trabalhar. Encontrará comida naquela
caixa ali e na horta. Voltarei ao entardecer.
Ele subiu os degraus de terra batida sem olhar para trás e sumiu na claridade do
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
dia.
Mary Hellen continuou em pé, derrotada, imaginando se Beauregard tinha
consciência de que a moradia dele era um verdadeiro calabouço escuro.
Ao sentir coçar o pescoço, deu um tapa e fitou a palma à procura de alguma
criatura estranha. Mas, como nada encontrou, assegurou a si mesma que devia tratar-
se de imaginação. Com certeza era um fio perdido de cabelo. Relanceou um olhar ao
redor, sem saber por onde começar. Beauregard não lhe dissera o que fazer, embora
houvesse afirmado que as tarefas eram inúmeras. Para o momento, o óbvio seria
desfazer a mala e preparar o jantar, antes que ele retornasse do campo. Isso não seria
muito difícil de executar.
Carregou a valise até o leito. Porém, não viu nada parecido com uma cômoda.
Não teria outra solução a não ser deixar tudo empacotado como estava.
Chegou perto do armário de cozinha, uma caixa aberta, ao lado do fogão, e
ajoelhou-se para examinar o conteúdo. Encontrou um saco de fubá, uma pequena
jarra de melado, um pote com gordura, outro com café, um com farinha de trigo e um
pacote de carne de porco salgada. Havia um saco com batatas perto da caixa e ao lado,
um barrica com sal pelo meio.
Como é que Beauregard sobrevivera até ela chegar? Não era para se admirar que
tivesse procurado uma esposa por meio de um anúncio de jornal.
Daquele momento em diante, haveria comida de verdade por ali, ela propôs-se,
mais animada. À noite, o marido provaria os melhores biscoitos que já comera em sua
vida. Com a carne de porco, Mary Hellen faria um prato de dar água na boca. E seu
marido teimoso e mal-humorado não deixaria de admirar as guloseimas.
A primeira coisa a fazer era acender o fogo e começar a trabalhar nos biscoitos.
Abriu a portinhola do fogão. Cheio de cinzas. Suspirou e indagou-se qual teria sido a
última vez que Beauregard o limpara.
Procurou uma pá. Não achou. Teve de tirar tudo com uma concha, e encheu um
vasilhame. Quando esvaziou a fornalha, limpou a palma das mãos uma na outra, com
orgulho. Pesquisou o ambiente à procura de gravetos.
Um inventário cuidadoso da chamada "cozinha" deu-lhe a certeza de que nada
havia ali capaz de pegar fogo. Saiu e procurou em volta e no estábulo. Nada. Como é
que Beauregard fazia? Gramíneas, talvez? Parecia que o marido as usara para outra
coisa, mas como é que alguém podia acender o fogo só com elas?
Aquela altura, Mary Hellen já não se achava tão esperta. A tarefa simples de
fazer um jantar se transformava em uma atribuição desalentadora.
A frustração tomou conta dela. Beauregard, na certa, estaria agachado, cuidando
de suas terras, mas à espreita, convencido de que sua mulher falharia. Mesmo que isso
significasse voltar com a fome de um leão e encontrar a esposa em lágrimas,
debruçada sobre uma mesa vazia.
O que fazer? Não poderia enfrentá-lo com um pedaço frio de carne salgada,
quando Beauregard retornasse. Mas ela também não estava com disposição de perder
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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean
tempo em cima da arte de queimar grama.
Que Deus a livrasse de o marido voltar e descobrir que fizera alguma coisa
errada. Beauregard jamais pararia de falar naquilo.
Mary Hellen subiu no telhado, fez sombra nos olhos com a mão e procurou pelo
marido. Estranhou seu entusiasmo ao constatar que ele estava longe.
Pelo menos, Beauregard não a estava espionando, concluiu, com um pinguinho
de bom humor inadequado.
Beauregard espetava o feno com um forcado e atirava os tufos na carroça. A
relva alta deixava-o visível só da cintura para cima. Sem camisa, o corpo e os cabelos
dourados pelo sol mesclavam-se à pradaria.
Mary Hellen recordou-se de como achara aquelas terras promissoras, quando as
vira pela janela do trem, na véspera.
Pareceu-lhe que isso decorrera fazia um século.
Deixou-se cair de cima da cobertura herbosa.
Por que Beauregard a deixara sem ao menos explicar como tudo deveria ser
feito?, refletia, entre brava e desanimada.
Mary Hellen já podia sentir de novo seu conhecido nó na garganta, mas não
choraria. Daria um jeito de sobreviver àquele dia em um lugar tão longínquo. E por
quantos dias se fizessem necessários. Só precisava aventurar-se a andar um pouco e
fazer algumas perguntas.
Mas seu bendito orgulho tornava tudo mais difícil.
CAPÍTULO XI
Mary Hellen caminhava na trilha deixada pela carroça, carregando um balde com
água fria e uma caneca. Vinha pensando em como elaboraria as questões. Teria de
enunciá-las de maneira tranqüila e confiante. Desconfiou que, para sentir-se
realmente daquele jeito, seria preciso aprender "as cento e uma novas maneiras de ser
uma boa esposa". E rápido.
O recipiente tornava-se mais pesado à medida que enfrentava, passo a passo, o
vento quente do verão. Até chegar ao limite, quando lhe pareceu que o braço seria
arrancado do corpo.
A água balançava-se de um lado para o outro e molhava a grama. Melhor, assim
a carga ficaria mais leve. Tinha de ignorar a própria sede e esquecer a vontade de
beber um gole, antes de alcançar o marido rabugento. Bufando e com uma confiança
forçada, Mary Hellen palmilhou a distância, que lhe parecia infinita.
Por fim, Beauregard ergueu a cabeça. Um tremor inconveniente de alegria
pulsou dentro de Mary Hellen. Tentou desviar os olhos do peito musculoso iluminado
pelo sol, que nele se derramava. A luminosidade se refletia nas gotículas de suor, como
minúsculos diamantes.
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Julianne mac lean marcada pelo passado

  • 1. Marcada pelo Passado (Prairie Bride) Julianne MacLean Kansas, 1882 UM SEGREDO DO PASSADO AMEAÇAVA O AMOR DE MADELLEINE Jedidiah sabia que sobreviver naquela região inóspita era tarefa difícil, principalmente para uma mulher. Esperava, porém, que sua esposa fosse tão forte quanto ele. Mas o que o levava a acreditar que uma jovem que ele acabara de conhecer pudesse ajudá-lo a salvar um sonho? O casamento por correspondência com Sr. Brigman caíra do céu para Madelleine MacFarland. Ela apenas esperava que aquele fazendeiro calado fosse tão honesto
  • 2. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean quanto aparentava ser, pois seu passado já ocultava mentiras e escândalos suficientes para o resto da vida! Digitalização: Poly Revisão: Edna Fiquer Copyright © 2000 by Julianne MacLean Publicado originalmente em 2000 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá. Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob qualquer forma. Esta edição é publicada por acordo com a Harlequin Enterprises B.V. Todos os personagens desta obra, salvo os históricos, são fictícios. Qualquer outra semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. Título original: Prairie Bride Tradução: Sulamita Pen Editor: Janice Florido Chefe de Arte: Ana Suely S. Dobón Paginador: Nair Fernandes da Silva EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Rua Paes Leme, 524 - 10e andar CEP 05424-010 - São Paulo - Brasil Copyright para a língua portuguesa: 2001 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Fotocomposição: Editora Nova Cultural Ltda. Impressão e acabamento: Gráfica Círculo. CAPÍTULO I 2
  • 3. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Kansas, 1882 Mary Hellen MacFarland estava exausta e tinha certeza de que não dormiria durante as próximas horas. Inclinou-se para a frente e espiou pela janela do trem. A fumaça soprava, incômoda e sibilante. As rodas de ferro chiavam, fazendo ruídos abruptos e explosivos de descarga sob a sola de seus pés, com a mesma velocidade das batidas de seu coração. Naquela noite ela iria perder a virgindade. Pela segunda vez. Mary Hellen afundou na poltrona e massageou as têmporas. Rezou em silêncio, para que tudo desse certo e para haver tomado a atitude correta, vindo para o Oeste. Inquieta, procurou assegurar-se do acerto de sua decisão. Puxou o cordão de sua bolsa preta para abri-la e tirou o anúncio de jornal. Leu: "Beauregard Brigman, fazendeiro, procura esposa calma e gentil para compartilhar uma vida simples nas pradarias do Kansas. Que não se importe em trabalhar arduamente todos os dias nas tarefas do campo, além de cuidar da casa." Casamento e uma existência tranqüila. Isso era tudo o que sempre desejara, Mary Hellen lembrou a si mesma, observando duas crianças alegres que corriam uma atrás da outra no corredor, gritando e gargalhando. Um remorso perturbador a fez estremecer. Nem em sonhos imaginara algum dia ter de recorrer a uma fraude para casar-se. Mas, na realidade, não tivera alternativa. Dobrou o pedaço de papel amassado e passou os dedos pelo vinco. Se ao menos soubesse o que esperar do futuro marido... Se ao menos tivesse idéia de como era a aparência dele... Enfiou a folha de novo na bolsa e, sem querer, encostou o cotovelo na mulher que dormia a seu lado. Decidida, refletiu que o aspecto físico de um homem não tinha a menor importância. Já aprendera sua lição em Boston. Dessa vez, estava convicta de que agira com a razão. Pela janela descortinava-se um verdadeiro oceano de campos dourados. A imensidão de terras ondulantes estendia-se a perder de vista e colidia com o céu sem nuvens. Uma pessoa poderia, com toda a facilidade, desaparecer no meio daquela pradaria. Encostou a cabeça para trás, no espaldar do assento, fechou os olhos cansados e imaginou como seria seu novo companheiro. Quem sabe se Beauregard a esperaria com uma daquelas carruagens pretas e leves de quatro rodas, puxada por um belo cavalo também negro... Assim que se encontrassem, ele tocaria a aba do chapéu para cumprimentá-la. Mary Hellen anteviu-o usando um traje novo de casamento combinado com um chapéu de feltro, tudo em cor cinza, parecido com o que o pai dela usava para ir à 3
  • 4. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean igreja aos domingos. Será que Beauregard estaria com o rosto barbeado? Ou usaria barba? Seu pai sempre ostentara um largo bigode de pêlos eriçados, que terminava em pontas recurvadas. E óculos de aros dourados. Sorriu ao lembrar-se de como ele costumava fumar um cachimbo aos sábados, depois do jantar. Talvez Beauregard tivesse o mesmo costume. De novo a sensação de culpa invadiu Mary Hellen e interrompeu seus devaneios. Não fora muito honesta com Beauregard, o futuro marido. Escondera dele muitos fatos. Viera até ali à procura de algo bem mais importante que um simples lar. Mary Hellen tinha por objetivo conseguir segurança física e emocional. Precisava de um refúgio. Queria que a esquecessem. Na parte de trás do trem, um bebê começou a chorar. Mary Hellen ergueu as pálpebras. Esperava que Beauregard nunca soubesse como sua noiva estava longe do pedestal de virtudes, tão acalentado por seu pai. Rezava para que o futuro cônjuge a perdoasse por enganá-lo no dia do matrimônio. — Ainda acho que está cometendo um grande erro! — George Brigman afirmou, perscrutando a parte interna escura e úmida da casa feita de torrões de barro ainda com relva, construção comum nas grandes planícies do Oeste central norte-americano. Beauregard Brigman, muitíssimo irritado, fitou o irmão, que limpava a superfície de uma caixa de madeira antes de sentar-se. Que Deus o perdoasse, George refletiu, se viesse a estragar a roupa nova durante o tempo em que ficava ali, conversando com Beauregard e externando suas opiniões. Beauregard tentou ignorar os conselhos de George e olhou para dentro da habitação de um cômodo. A chuva do dia anterior infiltrara-se nas paredes e chegava ao interior. A lama pingava do teto em um enfadonho taque-taque. O cheiro de terra molhada vinha de todas as fendas, e a umidade penetrava por debaixo da roupa. Uma grande desordem aguardava a chegada de sua nova esposa. — Você ainda não esqueceu Isabelle. — George esmagou um gafanhoto com o pé, afundando-o no chão de barro. Limpou as botas brilhantes com o dorso da mão. Beauregard encolheu os ombros dentro do casaco franjado de pele de veado e estremeceu ao ouvir o nome de Isabelle. Esperava que, a partir daquele dia, não ter de ouvi-lo mais. Procurou com o olhar o "esconderijo" de suas luvas gastas de couro. Deu três passos e apanhou-as de cima do barrilete, que ficava ao lado da porta. Bateu-as de encontro às coxas. Pensou se não deveria ter feito a barba. Paciência... Não dava mais tempo. Estivera trabalhando nos campos de milho desde o alvorecer, e não recordara aquele detalhe. — Você não está me escutando, Beauregard. Faz apenas três meses, e ainda nem 4
  • 5. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean está em condições para assumir uma nova mulher. — Claro que estou! Tenho terras e uma casa. — Abriu os braços, e as franjas das mangas balançaram. — O que mais eu poderia querer? — E chama isto de casa?! — George foi até a parede feita de blocos de terra e arrancou um pouco da grama murcha e marrom. — Você pôs anúncio em jornal que circula na cidade e espera que ela viva aqui? Beauregard cerrou os maxilares diante do que considerou um insulto. Estava muito orgulhoso do que conseguira amealhar durante o ano que passara. Comprara aquele rancho e havia plantado milho, trigo e outros grãos. Assim que a ceifeira chegasse, obteria um belo lucro proveniente do trigo e do centeio. — Fui bastante direto ao declarar que procurava por alguém que se dispusesse a trabalhar na lavoura, George. Já que esse alguém respondeu, não há o que falar sobre o assunto. Necessito de ajuda, assim como de uma esposa. Tenho sido tão solitário quanto o ermitão que dizem que me tornei, na tentativa de esquecer... Sem coragem de pronunciar o nome, Beauregard coçou a nuca, debaixo do manto espesso de cabelos que lhe iam até os ombros. — Você nunca se incomodou com a opinião de quem quer que fosse. — Com isso, George só fez aumentar a irritação de Beauregard. Ele respirou fundo, tentando se acalmar. Só teve sucesso ao inteirar-se mais uma vez do cheiro sempre presente de relva e barro. Tudo estava terrivelmente úmido. — Não me importo mais com Isabelle, George. Fiquei furioso por ela ter me tomado por um idiota e rompido nosso compromisso. Beauregard virou-se de costas para o irmão. Não queria pensar no assunto. Tinham uma longa jornada pela frente, e devia se concentrar no juramento matrimonial que estava para fazer. Afinal, e mesmo que George o criticasse, sabia muito bem da seriedade da atitude que iria assumir. — Olhe para você — George ironizou. — Todo coberto de poeira. Parece mesmo que acabou de chegar do campo. Por que, pelo menos, não se lembrou de pedir emprestado um de meus ternos? Beauregard espiou a calça bege desbotada e as botas de couro já gastas. — Mas eu acabei de chegar da plantação de milho! É desse jeito que me visto, e você também sabe que seus ternos não me servem. — Poderíamos fazer uma parada no armarinho... Beauregard ergueu uma sobrancelha e desejou que George parasse de fazer sugestões sobre seu traje de núpcias. Não pretendia fazer da cerimônia um acontecimento mais importante do que era. Uma mera formalidade legal. Beauregard atirou uma manta cinzenta e velha sobre a cama estreita e afofou o único travesseiro. De repente, sentiu um frio no estômago. Estava habituado a morar sozinho. Logo mais estaria dormindo naquele leito com uma... estranha! — Beauregard, acho que não precisa casar-se com ela hoje. Você nem sabe como a moça é. 5
  • 6. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean — Não me importa nem um pouco o aspecto físico, George. Na verdade, um rosto bonito empana o raciocínio de um homem. Preciso de uma jovem capaz, que não esteja preocupada com chapéus, roupas bonitas e tudo o mais que elas usam. Beauregard afastou alguns fios de cabelo da testa. — Ela vai morar aqui, muito longe da cidade, e acenderá o fogo com estrume seco de vaca. George lançou um olhar depreciativo ao recinto e empurrou os óculos de aro dourado para cima do nariz. — Ainda há tempo de mudar de idéia, Beauregard. Poderia até conhecê-la primeiro e cortejá-la um pouco, antes de dar o passo definitivo. — Não tenho tempo a perder. Estou com trinta anos. Por outro lado, se eu gostasse de namorar, o faria com uma garota aqui do Kansas. Não precisaria trazê-la lá de... — Beauregard franziu o cenho, sem se lembrar de onde era o jornal ao qual ela respondera. — Boston! — George terminou por ele. — Você mandou-a vir de Boston! — Isso mesmo. De Boston. — Beauregard esfregou o queixo com a barba por fazer. — Agora, vamos tratar de pegar a estrada. Se chegarmos tarde, minha noiva ficará perdida na estação, pensando haver desembarcado em lugar errado. — Tenho certeza de que ela ficará perdida de qualquer maneira, ao ver onde terá de morar. George passou primeiro pela porta estreita e baixou a cabeça para o chapéu de feltro não esbarrar no marco. Beauregard seguiu o irmão, e os dois saíram ao vento, em direção à carroça sem pintura e tão escura como uma nuvem negra de trovoada. Beauregard subiu e sentou-se no assento duro. Pegou as rédeas, deu uma guinada para o outro lado e pôs o veículo em movimento rumo à cidade, levando o cavalo de George a reboque. Suspirou. George estava certo. Talvez ele devesse ter esperado pelo menos até depois da colheita. Mas o que estava feito, estava feito. Havia assumido um compromisso, e não voltaria atrás com sua palavra. A jovem insistira em viajar logo. Ela atravessara o país, e Beauregard lhe prometera uma certidão de casamento no mesmo dia de sua chegada. Beauregard estreitou os olhos, espiou o céu azul, tirou o chapéu velho de aba larga e enxugou a testa com a manga do paletó. Casamento... Nunca supusera que seria daquela forma. Todavia, ao recordar-se da primeira proposta que fizera, decidira que seria a melhor maneira. Cometera um erro ao escolher Isabelle. Ela era inadequada para o tipo de vida que ele pretendia levar. Mas Beauregard ficara ofuscado com sua beleza e seu charme. Isabelle jamais poderia ser a esposa de um fazendeiro. Ele deveria ter notado e entendido isso desde o princípio. Com certeza, fora para seu bem, Beauregard pensou, distraído, enquanto dirigia a carroça através de um vale profundo. 6
  • 7. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Não podia negar que sofrerá quando Isabelle o deixara. A cólera não o abandonara durante muitos dias. Porém, a raiva era mais de si mesmo, por ter sido tão idiota. Na certa, perdera a capacidade de raciocinar, quando fizera a proposta a Isabelle. Dessa vez não, refletiu, satisfeito, observando um dos cavalos abanar a cauda para afastar uma abelha. Beauregard fora bem claro no anúncio, e um rosto bonito não estava entre os requisitos necessários. Nessas circunstâncias, o enlace seria alicerçado no respeito e no desejo mútuo de companheirismo, sentimentos que haviam se perdido ao longo dos anos. A voz de George arrancou Beauregard de seus pensamentos: — Comprou um presente para sua noiva? — Presente? O fato de eu ter pago a passagem dela de Boston até aqui já não é suficiente? George meneou a cabeça devagar, como era seu costume. — Uma mulher gosta de algo palpável. Alguma coisa que terá significado durante uns vinte anos, pelo menos, toda vez que ela o tirar do armário. Por que não lhe dá o colar? — Ficou louco, George?! E o que eu faria com a gravação do verso? Riscaria "Isabelle" e gravaria o outro nome na frente? — Mary Hellen. — Eu sei o nome dela! — Seria interessante se o usasse no momento do primeiro encontro. — Pode ficar sossegado, eu não me esquecerei. — Também não quero vê-lo se queixar se a garota não for a coisinha mais linda que você já viu. Sei que tem um fraco pelas moças bonitas, e por isso se apaixonou por Isabelle, apesar de ela não... Beauregard fuzilou o irmão com o olhar. — Espero que minha esposa tenha quadris tão grandes como um celeiro e braços mais fortes que os de um lutador. Ela precisará deles para trazer água do ribeirão, enquanto eu estiver fazendo meu trabalho nas plantações. — E quando planeja fazer aquilo! Beauregard estalou a língua para os cavalos. — Quando houver condições. George não retrucou, e Beauregard sentiu a desaprovação dele. George era advogado e acostumado com a cidade. Nunca poderia entender o quanto se trabalhava em uma fazenda. Ou como isso poderia ser gratificante. — Espero que seja amável com ela hoje. — Serei — Beauregard assentiu, na defensiva. — E não quero mais ouvir falar a respeito. A carroça inclinou-se, ao passar por uma saliência na estrada. 7
  • 8. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean — Eia! — ele gritou para os cavalos, que lutavam para equilibrar-se, dando-lhes uma pancada leve com as rédeas. Entendeu que, ao anoitecer, seria um homem casado. Pensou na estranha que se preparava para encontrá-lo e sentiu um aperto no coração. Apesar de tudo, gostaria de saber o que o aguardava. CAPÍTULO II — Próxima parada: Dodge City! — o inspetor do trem anunciou, apoiando-se no encosto das poltronas, enquanto caminhava pelo corredor. Mary Hellen arrepiou-se, com o medo que a invadia. Sentada na beira do assento, estava ansiosa para ver pela primeira vez o lugar que se tornaria seu lar. Naquele momento, era uma realidade, e não mais uma fantasia. Passou as mãos nos cabelos castanhos, para ver se estavam arrumados e sem mechas soltas fora do lugar. Verificou se os botões não haviam escapado das casas e beliscou as faces, para dar-lhes cor. — Você é linda — a mulher ao lado comentou. — Tenho certeza de que ele se apaixonará assim que a encontrar. — Como é que sabe? — Mary Hellen forçou um sorriso. — Eu a vi lendo o anúncio, e não foi difícil adivinhar que estava nervosa. Não se preocupe. Você é uma jovem muito atraente, e o rapaz ficará satisfeito. Pode acreditar. Mary Hellen observou pela janela as construções de madeira cobertas de poeira. A locomotiva diminuiu a marcha ao aproximar-se de Dodge City e deixou escapar os ruídos fortes de descarga. O passeio de tábuas envergadas rangia sob o torvelinho dos caubóis e dos cidadãos. A larga rua principal, enlameada em virtude da chuva recente, mostrava marcas profundas dos cascos de cavalos e rastros das carroças. A locomotiva deixou escapar um grito estridente e parou na estação, chiando seu cansaço. Uma multidão estava reunida na plataforma. A maioria dos homens soltava bafos de fumaça de cachimbo sob a aba dos chapéus. Mary Hellen deu uma última e rápida mirada, engoliu a apreensão e pegou a valise. Moveu-se pela passagem entre as poltronas, carregando a mala. Chegou aos degraus e semicerrou os olhos por causa da luz forte do sol, e ergueu uma das mãos em pala, para fazer sombra. Procurou entre os rostos desconhecidos que a fitavam. Qual seria o homem que prometera vir a seu encontro, aquele que logo se tornaria seu marido? Deu um passo incerto para baixo. Naquele exato momento, uma rajada de vento bateu-lhe no rosto e tirou-lhe o chapéu da cabeça. Ele deu um salto mortal, aterrissou 8
  • 9. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean no pátio enlameado da estação e virou-se para todos os lados, impelido pelo ar em movimento. — Oh, Deus! — Mary Hellen gritou, tentando segurar os cabelos amarrados no lugar. Nisso, ela o viu. Seu noivo perseguia o chapéu dela. Mary Hellen animou-se. Tinha de ser ele. Adivinhava que seria. Usava óculos de aro dourado, terno cinza e chapéu de feltro, igualzinho ao que imaginara! Parecia-se muito com seu pai. O rapaz apanhou o fugitivo e limpou-o com todo o cuidado com um lenço branco imaculado. Quando pareceu satisfeito com a limpeza, virou-se e caminhou direto para ela. — Mary Hellen MacFarland? — perguntou, ao aproximar-se, tomando-lhe a valise pesada das mãos, ao mesmo tempo que lhe entregava o chapéu rebelde. — Sim, sou. — Ela ajeitou-o de novo na cabeça e prendeu-o com o alfinete. — Por favor, por aqui. — Conduziu-se pela frente de um grupo de cavalheiros. — Permita-me que me apresente. Sou George Brigman. Mary Hellen fitou-o, confusa. — George? Achei que o senhor fosse... Beauregard é o segundo nome? Ele parou, riu e estendeu-lhe a mão. — Receio que tenha se enganado. Sou George, irmão de Beauregard. Mary Hellen estava muito apreensiva. — Por favor, senhorita, a carroça está logo ali. George guiou-a até os fundos da estação ferroviária. Ao se ver caminhando com ele de braço dado, Mary Hellen perguntava-se por que Beauregard não viera buscá-la. Talvez fosse um homem tímido. É, devia ser isso, procurou convencer-se, lutando contra os maus pressentimentos. Por esse motivo procurara uma esposa por meio de um anúncio, em vez de cortejar alguma. Bem, a vergonha seria bem apropriada para Mary Hellen. De fato, até preferia que assim fosse. Um marido simpático, gentil e reservado. Sim, seria agradabilíssimo. — Ali está meu irmão. — George apontou a carroça, com um gesto de cabeça. Mary Hellen estacou. Viu apenas uma grande caixa velha sobre rodas, puxada por dois cavalos com ares pré-históricos e cascos peludos. — Onde? Nisso, um rapaz de cabelos compridos saiu de detrás da parelha. Mary Hellen não conseguiu respirar por uns dois ou três segundos. A primeira impressão foi de que ele precisava barbear-se e de um banho urgente. Será que Beauregard se esquecera de que era o dia de seu casamento? Usava um casaco marrom de pele de gamo, com mangas franjadas e balançantes e um colar feito de garras de animais. Não se parecia em nada com George. Mary Hellen lutou contra a náusea súbita que a invadiu e deu um passo incerto à 9
  • 10. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean frente. Beauregard abaixou-se e examinou a pata de um dos animais. — Acho que meu irmão ainda não nos viu — George afirmou, à guisa de desculpas. Na opinião dela, Beauregard estava mais preocupado com o cavalo do que com a chegada da futura esposa. Mas aquele momento deu tempo para Mary Hellen controlar as emoções e reconsiderar a situação. Não era certo julgá-lo pela aparência. Nem ainda lhe fora apresentada. Beauregard poderia ser um camarada muito educado. Seu noivo largou a pata e olhou para cima. Mary Hellen fitou-lhe os olhos verdes da cor do mar e estremeceu. Beauregard pareceu desapontado, como se ela não correspondesse às expectativas. O sol escondeu-se atrás de uma nuvem, e Beauregard aproximou-se, envolvido pela sombra. Alto e musculoso, movia-se com graça surpreendente. — A senhorita é Mary Hellen MacFarland? Ela engoliu em seco, nervosa, e esforçou-se para manter a voz natural: — Sou, sim. — Mary Hellen — George interveio —, este é meu irmão, Beauregard. Beauregard, esta é Mary Hellen. O fazendeiro de porte avantajado fitou-lhe o corpo e depois o chapéu grande, emplumado e de cor púrpura. — Não posso imaginá-la carregando água — comentou, num murmúrio, com George. — Eu posso fazer isso — Mary Hellen afirmou, embora sem muita ênfase, mas nenhum dos dois pareceu escutá-la. George deu de ombros e fitou o irmão. Mary Hellen teve certeza de que ele pretendia dizer: "Viu? Eu não lhe disse?". — Ponha a bagagem dela dentro da carroça e entre, George — Beauregard ordenou. George entrou por trás, e Mary Hellen perguntou-se por que aquele rapaz um tanto primitivo parecia tão aborrecido com ela, que tentara parecer agradável. Havia se arrumado com o maior cuidado e bom gosto, só para ficar bonita para ele. — Vamos. — Beauregard subiu no veículo e sentou-se no banco alto. — As repartições municipais fecham às cinco. Mary Hellen hesitou, e ele franziu o cenho. Ela sentiu-se corar até a raiz dos cabelos. — A senhorita não vem? Algo lhe dizia para não ir e voltar correndo em direção às colinas. Que ridículo! As montanhas estavam muito distantes dali. Mary Hellen permaneceu imóvel, observando a cidade plana e acariciada pelo vento. O sol saiu de trás da nuvem. Mary Hellen teve de voltar a proteger a vista para 10
  • 11. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean olhar a silhueta avantajada de Beauregard. Ele era bem menos gentil do que ela gostaria que fosse, mas não estava em condições de mudar nada. Seria melhor aproveitar a oportunidade de ficar ali a voltar para Boston e ter Garrison em seu encalço a qualquer momento. Se se casasse com Beauregard, tudo seria legalizado,.e Mary Hellen mudaria de nome. Mesmo que o casamento não desse certo, sua pista se perderia com o passar do tempo. Garrison não poderia encontrá-la. Era evidente que Mary Hellen esperava que tudo saísse conforme seus sonhos. Ela e Beauregard acabariam se conhecendo, no sentido bíblico do termo. E, juntos, desfrutariam uma existência agradável. Depois de ganhar sua confiança... poderia contar a verdade ao marido. Mary Hellen ergueu a barra da saia e subiu, desajeitada, para acomodar-se no banco, ao lado dele. — Eia! — Beauregard gritou e bateu as rédeas no dorso dos animais. Sem aviso, a carroça movimentou-se para a frente com um movimento súbito e brusco. Mary Hellen não controlou a cabeça, que foi para trás, com um estalo, e teve de usar todo seu vigor para não acabar sentada no colo de Beauregard, quando ele virou a carroça em uma curva fechada, para entrar na rua larga. Ele não disse uma única sílaba durante o trajeto. Mary Hellen refletiu, infeliz, se não havia escapado de uma situação horrível para entrar, por vontade própria, no meio de outra. CAPÍTULO III Sentado ereto no banco deformado da carroça, Beauregard agarrava-se às rédeas gastas de couro, determinado a não tirar os olhos do caminho a sua frente. A tensão que não sentia havia meses fazia agora sua cabeça latejar. Que grande confusão! Como pudera se meter com uma mulher tão linda? Precisava de alguém para apanhar do chão o combustível, limpar os estábulos e ordenhar as vacas! Isso sem falar em ajuda na época da colheita e na da matança dos porcos. Fora todo o resto! Teria Mary Hellen entendido o anúncio? E quando visse a casa de terra onde teria de morar? E o pior: Mary Hellen era do exato tipo de moça que Beauregard sempre achara atraente. Os cabelos escuros estavam presos em um coque frouxo no alto da cabeça. Seus olhos grandes e castanhos poderiam ser a perdição de qualquer um. A pele era clara, e os lábios, da cor das framboesas. Não adiantava notar tudo isso, porém, pois, assim que ela visse a casa, pediria para voltar para Boston. Seria uma tolice imaginar o contrário. 11
  • 12. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Quando subiam a Railroad Avenue, a carroça bateu em uma pedra e desequilibrou-se. De novo, Mary Hellen foi sacudida e quase sentou-se no colo dele. — Desculpe-me — ela falou e endireitou-se. Beauregard enrijeceu por inteiro. Não era tarefa fácil ignorar a presença que o fazia perder a razão, e a tensão que o invadia. Mary Hellen parecia uma borboleta delicada em meio a um vendaval. George deslizou no estrado, do fundo para a frente, até ficar bem atrás deles. — Está cansada da viagem, srta. MacFarland? — o advogado perguntou. — Um pouco... A perna de Mary Hellen, em algum lugar debaixo daquelas saias de cor púrpura, colidiu com a de Beauregard. Ela se afastou depressa e manteve-se a uma distância apropriada, para alívio dele. — Bem, pode alegrar-se. — George sorriu. — Poderá descansar até amanhã. Depois, teremos um trajeto de seis horas até chegar ao nosso destino. Beauregard virou-se. — Amanhã por quê? Será uma noite de lua cheia. Poderemos voltar esta tarde, assim que o juiz conceder-nos a certidão. George tirou um lenço branco e assoou o nariz. — Bem, tomei a liberdade de reservar um quarto no Dodge House para hoje. É o melhor da cidade. Pensei que seria um bom presente de casamento, após o longo caminho que a srta. MacFarland teve de enfrentar. Beauregard não escondeu a irritação. Não era sua intenção fazer daquela cerimônia um evento romântico. Planejava estar no campo já ao amanhecer da manhã seguinte. Por causa da intervenção inoportuna de George, teria de desperdiçar as melhores horas do dia. — Agradeço muito, sr. Brigman. — A alegria de Mary Hellen atingiu Beauregard como uma pedrada. Ele voltou-se para ela e notou, pela primeira vez, como era maravilhoso seu sorriso. As pupilas dela cintilavam para George, e os dentes eram perfeitos e imaculados. Não haveria nada de feio naquela mulher?! — Não há... por que, srta. MacFarland — o irmão de Beauregard gaguejou, como um colegial. — Por favor, me chame de George. Beauregard balançou a cabeça, ao ouvir o tom meloso do irmão. Depois de rodar por alguns minutos, chegaram até uma construção de tijolos. Beauregard parou a carroça, amarrou as rédeas e apeou. Deu a volta na frente dos dois cavalos e observou Mary Hellen mexer-se, desajeitada, para descer. Ela se agarrou na lateral lascada do veículo e, com a outra mão, segurou o chapéu, para que não voasse. Ao tentar apanhar as saias, tudo ao mesmo tempo, franziu o nariz delicado. Beauregard não se conformou com o espetáculo ridículo que Mary Hellen 12
  • 13. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean oferecia, até notar que George pulara da carroça para ajudá-la. Muito bem, o irmão estava muito enganado se pensava que Beauregard o deixaria suplantá-lo! Beauregard apressou-se para alcançar a recém-chegada e estacou bem atrás do traseiro oscilante. Fitou-a por um segundo. Um pé pequeno encostava no chão, e a outra perna estava dobrada em um ângulo impossível, com o outro pé ainda no piso do veículo. — Pode vir para trás — ele instruiu. Beauregard pegou-a pela cintura estreita, ergueu o corpo delgado e colocou-a a salvo, sobre o solo. Pôde comprovar o aroma de limpeza dos cabelos dela e o perfume de água de rosas de sua pele. Teve de lutar contra a inclinação de apreciar ambos. — Obrigada, sr. Brigman. — Corada, Mary Hellen alisou a saia. Uma das coisas que o encantava era uma mulher fazendo aquele gesto, mas Beauregard recusou-se a aceitar o fato. — Bem, não espere uma assistência como rotina. A senhorita terá de acostumar- se com coisas bem difíceis. Mary Hellen o encarou boquiaberta, e Beauregard desejou ter guardado as palavras para si. De qualquer forma, sua esposa teria de esquecer as tendências à vaidade, se pretendesse sobreviver nas planícies, com incêndios nas pradarias, tempestades de vento e gafanhotos. Não tinha a mínima intenção de deixá-la despender horas preciosas em frente a um espelho, a preocupar-se com ninharias, como Isabelle sempre fizera. Juntos, começaram a subir a escada, em direção à porta da frente. Beauregard sentiu o pânico avolumar-se aos poucos. Depois de toda a pregação que fizera contra as garotas bonitas, o que ele pretendia fazer? CAPÍTULO IV Atordoada, Mary Hellen contemplou a grande construção de tijolos. No meio da escada, agarrou-se no corrimão. Não podia continuar com aquilo. O homem a seu lado não se parecia nem de longe com o que imaginara ter de casar-se. Por que não podia ser alguém como George? Entraram no edifício e subiram os degraus rangedores até o segundo pavimento. Aquela altura, Mary Hellen já estava apavorada. Andaram até uma sala no final do corredor. Beauregard apressou-a para que entrasse. Mary Hellen aproximou-se do juiz, sentado atrás de uma mesa de mogno, e deu-se conta de que dera mais alguns passos rumo à concretização daquela loucura. Mary Hellen escutou os passos de Beauregard atrás de si e notou sua presença avantajada, como se fosse uma rede prestes a ser jogada em cima dela. 13
  • 14. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Beauregard chegou até o lado da futura esposa, e Mary Hellen sentiu-se presa dentro de uma armadilha, naquela sala abafada. Ela não conseguia respirar! Tinha de parar com aquilo. Ainda havia tempo, enquanto os papéis não fossem assinados. Mary Hellen virou-se sobre o tapete oriental e tentou recuperar o fôlego. Beauregard estava parado, e ela teve a impressão de que se tratava de um muro enorme de pedra. Ele era ainda mais alto do que supusera. Mary Hellen engoliu em seco e fitou o colar de garras de animais. O botão do colarinho da camisa branca de Beauregard estava aberto. Ela viu o pescoço desnudo dele e ficou com a boca seca. Beauregard afastou os longos cabelos castanho-avermelhados para trás, e Mary Hellen admirou-se com a largura daqueles ombros cobertos pelo casaco de pele de gamo. — Você está bem, Mary Hellen? Parece que precisa de um copo de água ou algo assim. Ela anuiu e baixou o olhar. Queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali. — George, arranje alguma coisa para ela beber. Beauregard levou-a até o sofá estofado, pôs as mãos nos ombros dela e a fez sentar-se. Ajoelhou-se a sua frente, apanhou algumas folhas de papel de cima da escrivaninha e abanou-a com delicadeza. Mary Hellen ergueu a cabeça e fitou-o. Quem sabe se o dono daqueles olhos verdes não esconderia algum tipo de bondade? Afinal, Mary Hellen achava que tomara uma decisão acertada. A toda hora, mulheres atravessavam o país rumo ao Oeste, para casar-se com homens desconhecidos. Beauregard dissera no anúncio que precisava de uma que gostasse da vida simples do campo, e isso era exatamente o que Mary Hellen queria. Apenas não imaginara, em suas fantasias, que acabaria se casando com alguém tão rude quanto aquela terra ainda indômita. George voltou apressado e estendeu-lhe um copo com água. Mary Hellen bebeu o líquido sem saber bem o que fazia. Apenas estava consciente dos homens que a fitavam, preocupados e à espera. — Quem sabe um pouco de ar fresco possa fazer bem — o juiz sugeriu, abrindo uma janela. O vento forte da pradaria entrou e derrubou alguns papéis de cima da mesa. As folhas brancas voaram e se viraram no ar, na frente de Mary Hellen, que sentiu-se tão tonta como se girasse junto com elas e caísse em um precipício escuro e desconhecido. — Essa droga de vento nunca pára! — O juiz segurou os documentos restantes. Ainda ajoelhado na frente dela, Beauregard esperou Mary Hellen terminar de tomar a água e pôs o copo vazio em cima da escrivaninha. Ela fitava a covinha do queixo quadrado e os cílios longos que pareciam um toldo sobre os olhos verdes. Beauregard tinha lábios carnudos demais para um homem. 14
  • 15. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Mary Hellen imaginou, com uma estranha excitação interior, qual seria o gosto de beijá-los. Beauregard tocou-lhe a testa com as costas da mão, e Mary Hellen recuou com brusquidão, num gesto instintivo. Ele hesitou e estreitou os olhos, questionando-a. Mary Hellen surpreendeu-se com a própria reação, tentou relaxar e permitiu que o futuro marido a examinasse. Beauregard tornou a encostar em sua testa, com suavidade. — Você está um pouco quente. — Deve ser o calor — ela murmurou. — Isso acontece sempre. — O juiz riu alto, caçoando dela. — Mas, em geral, com o noivo. Algumas vezes eles desmaiam e caem de nariz neste tapete. George uniu-se ao riso do juiz, mas Beauregard continuou encarando Mary Hellen. — Sente-se melhor? Ainda há tempo de mudar de idéia. Mary Hellen arrepiou-se inteira. Sentiu-se cuidada, protegida mesmo. Era uma sensação esquecida desde a morte dos pais. Em decorrência dessa segurança, os batimentos cardíacos voltaram, aos poucos, ao ritmo normal. Seu sexto sentido advertiu-a de que, sob a dura carapaça exterior, poderia esconder-se um homem decente, bondoso, que poderia tornar-se um marido adequado. Era tudo de que Mary Hellen precisava para erguer-se do sofá. — Estou bem — ouviu-se dizer. — Podemos prosseguir. Beauregard estava em pé na frente do juiz Fraser e fitava as íris castanhas de Mary Hellen. Estava surpreso com a própria falta de coragem. Ela permanecia sentada no sofá e observava-o de modo tão inocente, como se precisasse sobremaneira dele. Isabelle nunca o olhara daquela maneira. Nem ela, nem ninguém. Beauregard sentiu uma necessidade imperiosa de tomá-la nos braços e dizer-lhe que tudo iria dar certo. Voltou-se para o magistrado e lembrou-se de sua intenção de evitar aquele tipo de atração que sentira por Isabelle. Depois da terrível lição que aprendera, achava que não seria mais atraído por ninguém daquele modo. Sendo assim, por que seu corpo o traía com aquela onda de tensão poderosa? O senhor idoso virou a página e tirou Beauregard da névoa dos pensamentos íntimos e contraditórios. Recomendou-lhe para que não se esquecesse das palavras importantes e perpétuas. — Repita comigo: eu, Beauregard John Brigman, aceito Mary Hellen Jane MacFarland... Beauregard repetiu tudo, e terminou: — ...amar e respeitar, até que a morte nos separe. Por Deus, o que dissera? "Até que a morte nós separe!" "Amar e respeitar!" 15
  • 16. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Tentou lembrar-se da carta escrita por Mary Hellen algumas semanas atrás. Ela o convencera de que seria a esposa ideal para ele. Mencionara a solidão depois da morte recente dos pais. Mesmo antes de conhecê-la, Beauregard pensara que Mary Hellen seria uma moça leal à família, coisa que Isabelle não era. Como é que confiava tanto nela? Escutou Mary Hellen dizer, com voz trêmula, as mesmas frases que ele dissera. Sentiu-lhe a angústia, mas já não tinha como voltar atrás. Enquanto deslizava a aliança no dedo esguio de Mary Hellen, Beauregard prometeu a si mesmo que construiria uma casa de fazenda decente, assim que vendesse a colheita. Com um pouco de sorte, eles se mudariam antes da primeira neve. Poderia, enfim, vender o colar que comprara para Isabelle. Dali para a frente, seus sonhos e esperanças pertenceriam a Mary Hellen. O representante dá lei encerrou o evento, e Beauregard fitou a expressão de Mary Hellen, admirado. Os grandes olhos dela eram impenetráveis, embora as faces estivessem coradas como dois morangos. Eram marido e mulher. Essa constatação fez o coração de Beauregard disparar, e ele cambaleou. Sentiu que George o cutucava por trás. Olhou para o juiz e entendeu que os dois homens esperavam pelo beijo. Apavorou-se. Baixou a cabeça e fitou o semblante assustado de Mary Hellen. Como é que faria aquilo? Suspirou, rezou para encontrar coragem suficiente, inclinou-se e beijou-a de leve. Deus era testemunha de como teve de conter-se contra o desejo de investigar com a língua o interior daquela boca formosa. Pretendia demorar-se mais no beijo. Afastou-se, todavia, ao sentir a resposta rápida de cada célula. Sabia que tais coisas deviam ser aproveitadas com privacidade. Por sorte, o momento estava próximo. Imaginar a noite que os aguardava deixou-o de pernas bambas. CAPÍTULO V Mary Hellen mal conseguia engolir. Espiou o novo marido por sobre a pequena mesa redonda. Queria que a noite de núpcias terminasse o mais rápido possível. Por outro lado, almejava adiá-la para sempre. Na certa, quando Beauregard a procurasse no escuro do quarto, entenderia que não havia sido o primeiro. Garrison lhe dissera que os homens sempre sabiam desses detalhes. 16
  • 17. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Tinha de ser forte, advertiu-se. Teria de passar por isso. Talvez sua experiência anterior não fizesse diferença para Beauregard. Afinal, não havia amor entre eles. Ele estava apenas à procura de uma ajudante para trabalhar na fazenda. Ao redor, ouvia-se o tilintar dos talheres de prata de encontro aos pratos de porcelana. Dos fundos, vinha o som de risadas e de murmúrios das conversas. Mary Hellen mexeu-se na cadeira e relanceou outro olhar para Beauregard. Será que ele notava o pouco que ela comia? Para sua surpresa, Mary Hellen percebeu que a fitava por cima do vaso de petúnias. Eles se entreolharam. Por um segundo, Mary Hellen perguntou-se, em nome dos céus, no que Beauregard estaria pensando. Depois, foi invadida por um súbito constrangimento. Baixou os cílios, pegou o garfo e levou aos lábios um pouco de purê de batata com molho. Mastigou com energia e teve consciência de que ficara vermelha como um tomate maduro. Beauregard decerto imaginaria ser aquele o comportamento típico de uma noiva ingênua em sua noite de núpcias. Mas Mary Hellen sabia muito bem o que esperar de um marido. A agonia pela expectativa da chegada do momento fez um frio percorrer-lhe a espinha. Depois do jantar, ela bebericou o café, sem vontade, enquanto trocavam idéias sobre assuntos tão interessantes quanto o tempo, a temperatura e sua longa viagem até ali. Não demorou muito e a conversa chegou a um fim sem remédio. O café estava frio, e Mary Hellen entendeu que havia chegado sua hora. Respirou fundo, para acalmar o nervosismo que sentia. Beauregard deslizou a cadeira no assoalho, para trás. — Já terminou? Mary Hellen engoliu o pânico crescente, deu um sorriso forçado e anuiu com um gesto de cabeça. — Podemos ir? — Ele estendeu-lhe a mão. Ela a aceitou e se levantou. Caminharam de braço dado, subiram a escada e foram até o quarto 21. Beauregard enfiou uma chave grande de metal na fechadura e empurrou a porta, que rangeu. Mary Hellen permaneceu em pé no corredor, incapaz de dar um passo à frente. Só conseguiu estudar o interior do aposento. A luz bruxuleante de uma lamparina a querosene deixava o ambiente semi- escurecido. Em cima de uma cômoda alta em pau-rosa encostada na parede oposta, via-se um conjunto de quarto azul e rosa. A cama de ferro forjado era a peça mais notável do mobiliário. Por que uma mulher tinha de passar por aquilo para sacramentar o matrimônio?, refletiu, infeliz. — Sinta-se em casa — Beauregard disse, com o braço estendido, e com certeza perguntando-se por que ela hesitava. Depois de alguns segundos, Mary Hellen deu um passo grande e passou pela 17
  • 18. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean soleira. Uma vez dentro, virou-se, com as mãos unidas diante do peito. O seu marido de aspecto rústico estava com um ombro encostado no marco da porta e tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Observou-a de alto a baixo, com olhar sedutor. Depois, encarou-a. Por que aquele formigamento na boca do estômago?, Mary Hellen questionou- se. Medo? Pavor? Ou alguma vibração indecente? Pareceu-lhe incompreensível que, àquela altura dos acontecimentos, pudesse sentir alguma coisa diferente da infelicidade. — Você não vem? — Mary Hellen sentiu-se observada. Teve vontade de ver passar logo aquela noite, junto com a miscelânea inexplicável de emoções que experimentava. Beauregard deu um passo atrás no corredor. — Ainda não. Acho que gostará de ficar um pouco sozinha depois de viajar por tantas horas. Reservei a banheira do hotel para você. — Esfregou o queixo. — Também pensei em tomar um banho e fazer a barba. George está me esperando na casa dele, que fica a poucas quadras daqui. Será que a agonia dela não teria fim? Mary Hellen suspirou. — Posso voltar daqui a uma hora, Mary Hellen? Ela assentiu, sem pensar em opções, e viu-o fechar a porta. Ofegante e com os joelhos trêmulos, escutou os passos fortes do marido sumirem pouco a pouco. Então, o silêncio a aturdiu. Mary Hellen deixou-se cair no leito e esfregou o rosto no acolchoado de flores cor-de-rosa. Curioso notar que aquela cama não havia estalado... Mas disse a si mesma que, afinal, não era de se estranhar fazer a comparação com o barulho embaraçoso que a outra fizera. Havia sido sons que ela não esqueceria tão cedo. Beauregard permaneceu por alguns momentos do lado de fora do hotel, fitando o céu estrelado. Escutou o som do piano do saloon. A melodia metálica invadia a rua e envolveu-o, deixando-o com saudade do sibilar noturno, tão manso, da relva da pradaria. Fizera tanta coisa para evitar mulheres belas, bem vestidas e com chapéus emplumados! Inalou o aroma de outono do fim de agosto. Durante o jantar, observara a inquietação da esposa, que não parava de mexer- se no assento, como se fosse uma criança no banco da igreja. Mary Hellen não conseguira esconder sua grande apreensão. Pobrezinha, estava nervosa por causa do que iria acontecer... Na verdade, devia estar apavorada, e não pudera controlar-se. Beauregard admitiu que essa também era sua situação. Nunca estivera com uma jovem virgem. De repente, uma incrível ansiedade tomou conta de Beauregard. Esperava que pudesse tornar tudo muito agradável para ela. Mesmo sabendo que provavelmente não conseguiria, não deixaria de esforçar-se para isso. 18
  • 19. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean As mulheres, em geral, não gostavam da primeira vez. Pelo menos, era o que escutava dizer. Parou de olhar o manto de estrelas que cobria o céu e encaminhou-se em direção à residência de George. Talvez um bom banho o descontraísse um pouco. Rezou para que isso ocorresse. CAPÍTULO VI Mary Hellen sentou-se na cama. Vestia uma camisola de algodão cor-de-rosa abotoada até o pescoço. "Deus Todo-Poderoso!", invocou o nome santo, sentindo-se sufocar. Lutou contra o temor gelado que inundava seu coração e esperou, naquele silêncio vazio, à escuta de passos que viriam do final do corredor. As imagens do casamento toldavam-lhe os sentidos, enquanto brincava com o cetim da gola. O traje de dormir fora presente de Garrison naquela noite horrível, e doía ter de vesti-la de novo. Mas o que poderia fazer? Esperar o marido, nua no leito? Claro que não. Quando ouviu o som das botas que se aproximavam, Mary Hellen estava quase congelada. A chave estalou na fechadura, a maçaneta girou e a porta abriu-se devagar, com um rangido preguiçoso. Chegara a hora. Ficaria sozinha com o novo marido. — Desculpe-me, eu me atrasei. — Beauregard olhou-a por um momento, virou- se e tirou o casaco. Mary Hellen nada disse. Nem poderia. Continuou encostada nos travesseiros, mordendo a unha do polegar e observando os detalhes da aparência dele, sob o reflexo da luz oscilante. De costas para ela, Beauregard tirou o colar de garras pela cabeça e o pôs sobre a cômoda. Depois, desabotoou e tirou a camisa branca e folgada. Sensações de admiração explodiram dentro dela, ao ver as costas musculosas e bronzeadas. Seu marido era grande e forte. Mais robusto que Garrison. Beauregard devia ser pesado. Quando se deitasse sobre ela... ficaria presa... Afastou o olhar e estremeceu, recordando o que sucedera depois de Garrison ter tirado a camisa. Pelo menos dessa vez, sabia o que a esperava: desprazer. E quem sabe mais o quê, quando Beauregard descobrisse o que escondia dele? Beauregard deu três passos vagarosos e abafados, rumo ao leito. — Não precisa ter receio. Você parece que vai direto para um cadafalso. Mary Hellen procurou as palavras certas, desesperada. — É que... nos mal... nos co... conhecemos — gaguejou. Beauregard aproximou-se, coçando a cabeça. Ele parecia diferente de quando a fitara pela primeira vez, com insensibilidade evidente nas íris verdes. Naquele 19
  • 20. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean momento, a expressão dele era de comiseração, de alguém que procurava incutir confiança. Porém, nem uma montanha de compaixão poderia mudar o que Beauregard estava para fazer com ela. — Tentarei ser gentil — afirmou com voz incerta, de quem não tinha certeza do sucesso. Beauregard ergueu um joelho para alcançar o colchão e rastejou até deitar-se do outro lado. Mary Hellen sentiu um leve perfume almiscarado. — Espero que amanhã nós nos conheçamos um pouco melhor — ele acrescentou, com suavidade. Acomodou-se melhor e acariciou-lhe o queixo com a mão grande. — Mary Hellen, posso beijá-la? Ela fez um gesto afirmativo e cerrou as pálpebras, preparando-se para sentir os lábios dele sobre os seus. O coração disparou, sem controle, e Mary Hellen viu-se em uma expectativa horrível. Beauregard passou os dedos na face da esposa, com toda a sutileza, afagou-lhe uma orelha e brincou com a uma mecha de cabelos ondulados que ela acabara de escovar. Mary Hellen sentiu-se menos apavorada e mais aquecida. Depois ele a beijou com grande suavidade. Mary Hellen estremeceu em virtude da ternura, do sabor da boca de Beauregard e do inesperado desejo que sentia. Beauregard afastou-lhe os lábios com os seus e perscrutou-lhe o interior com a língua ansiosa. Mary Hellen não pôde reprimir uma resposta pronta e sensual. Descontraiu-se, e seus músculos adquiriram vida própria. Se ao menos as demais sensações fossem tão gratificantes como aquele beijo, que atingia a alma... Se ao menos não tivessem de prosseguir! Beauregard afastou-se um pouco, sem soltar-lhe os cachos. — Isto foi bom, Mary Hellen. Gostaria que eu diminuísse a luminosidade? Ou prefere ficar no claro? — Não — respondeu sem hesitar. — Acho que será melhor no escuro. Beauregard inclinou-se para o lado e baixou o pavio da lamparina. O quarto escureceu, e Mary Hellen agradeceu aos céus porque seria poupada de ver a expressão dele quando à verdade viesse à tona. Sentiu quando o marido ergueu o acolchoado e deitou-se por baixo. Deduziu, pelos movimentos, que Beauregard tirava a calça. — Deite-se, Mary Hellen. Venha, ajeite-se debaixo das cobertas comigo. Ela procurou enxergar e sentou-se para a frente, enquanto Beauregard tirava os travesseiros excedentes e atirava-os ao chão. Relutante, Mary Hellen deitou-se devagar. Durante um precioso momento, nada aconteceu. Ela estava deitada de costas, e o marido, perto dela, sobre um cotovelo, e apoiava o rosto na palma da mão. — O que há de errado? —perguntou, preocupada com a possibilidade de o marido descobrir o que ela escondia. 20
  • 21. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean — Nada. Apenas queria olhar para você. Beauregard moveu-se com elegância para cima dela. Mary Hellen ficou ofegante de puro medo, mas relaxou quando Beauregard permaneceu parado, apenas brincando com os cabelos dela espalhados no travesseiro. Após alguns segundos e depois de a pulsação dela voltar ao normal, Beauregard tornou a beijá-la. Ah, o beijo! Como Mary Hellen gostou... Ele traçou uma trilha de leves beijinhos pela face e queixo de Mary Hellen, e depois mordiscou-lhe a pele sensível do pescoço. Ela arrepiou-se inteira, por fora e também por dentro. O que queria dizer tudo aquilo? Por que o marido estava adiando o inevitável? Beauregard desamarrou as fitas da camisola e abriu os botões minúsculos de cima. Tocou-lhe as clavículas com os lábios, enquanto ela fitava o teto, no escuro. — Experimente relaxar — ele sussurrou, puxando-lhe a camisola para baixo dos ombros. — Você está muito tensa. Beauregard fitou-a, e Mary Hellen teve medo que ele pudesse ler sua alma e descobrir tudo. — Quer que eu pare? — indagou, gentil. — Se acha que ainda não está pronta... — Não! Quer dizer, quero ser sua mulher. Não só no nome, como no corpo. Beauregard baixou a cabeça e beijou-a outra vez, procurando-lhe, ávido, o interior da boca com a língua. Emoções contraditórias borbulhavam no interior de Mary Hellen, e seu sangue circulou com incrível rapidez por suas veias. Beauregard sentou-se nos calcanhares e tirou a roupa de Mary Hellen. Em seguida, suspirou e deitou-se sobre ela com cuidado, para não sufocá-la com o excesso de peso. — Mary Hellen, estou contente que tenha vindo. De verdade, embora eu não pudesse imaginar que me sentiria assim. Por um breve instante, a realidade concentrou-se no corpo e nas palavras dele, e ela compartilhou daquele sentimento. Beauregard mudou de posição, e Mary Hellen pôde sentir a extremidade sedosa de encontro ao lugar que lhe trouxera tanta dor da última vez. Por instinto, apertou as pernas. — Está tudo bem? — ele quis saber, e beijou-lhe os lábios. Mary Hellen não teve o que responder. Seus temores haviam voltado, com a iminência do que estava para acontecer. — Estou apenas nervosa, é só isso. Beauregard lhe beijou a ponta do nariz. — Tudo certo, não se preocupe. Apenas procure descontrair-se. Mas como poderia fazer isso? Por fim, Beauregard penetrou-a, bem devagar. Os movimentos cessaram. 21
  • 22. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Ele estava dentro dela. Os segundos escoavam-se. Mary Hellen abriu os olhos, apavorada. Ele já sabia? Ficaria irado? Logo, Beauregard começou a mover-se de modo ritmado, e ela ficou mais aliviada. Disse a si mesma que o pior já havia passado e que poderia acalmar-se. Em seguida, Mary Hellen sentiu um prazer desconhecido. Os músculos já não estavam mais retesados, e apenas formigavam. A pele de ambos pareceu fundir-se em uma só, enquanto faziam amor no escuro. Não foi nada parecido com a primeira vez, de jeito nenhum. Aliás, nunca sentira o prazer que experimentava naquele momento. A cabeça de Mary Hellen parecia rodar. Fechou os olhos e começou a tremer, pelas sensações que a acometiam. Surpresa e confusa, sentiu Beauregard tenso em seus braços. Ele gemeu. Um som que ela inferiu ser de deleite. Beauregard vibrou no interior de Mary Hellen, que concluiu que haviam completado o ato matrimonial. Beauregard descansou por cima dela, então mais pesado. Permaneceram deitados, quietos. Os corpos pareciam colados com o calor e a transpiração. De repente, Mary Hellen sentiu-se desajeitada. Ela o abraçava, e seus dedos sentiam a quentura das costas lisas de Beauregard. Ele continuava dentro, e ela não sabia o que dizer ou o que fazer. Então, a situação canhestra chegou ao fim. Beauregard ergueu-se, deixando-a exposta ao ar frio do dormitório. Beauregard permaneceu deitado no escuro, escutando a respiração irregular de Mary Hellen, muito quieta ali a seu lado. Levou o punho aos olhos. E ele que pensara... Nem saberia dizer no que tinha pensado. Afinal, por que estava tão surpreso? Não sabia nada acerca da mulher que permanecia estendida em sua cama. Por que esperara que Mary Hellen fosse uma donzela? Ela nem se referira a isso na carta. Beauregard deduzira o fato por ter dito que freqüentava a igreja com regularidade e que morara com os pais até a morte deles. Além do olhar dela, do nervosismo que demonstrara ao ver o marido entrar no quarto um pouco antes... Parecera tão inocente! Como um homem poderia antecipar a verdade sobre uma garota?, perguntou- se. Não podia, e ponto final. Beauregard nunca deveria ter pressuposto nada sobre Mary Hellen. Devia aceitar o fato de que não fora o primeiro. Ela tivera um amante. Ou, talvez, até mais de um. Sendo assim, por que todo aquele tremor? Teria sido fingimento? Ela pretendera enganá-lo? Oh, ele não queria pensar sobre isso! Sentou-se no leito e sentiu o chão frio sob os pés. Agarrou as beiradas do acolchoado. De onde viera aquela moça? Quem a tocara antes dele? Por que não pudera apenas possuí-la, sem nenhuma outra expectativa? Beauregard sentiu uma mão em seu ombro e ficou tenso. 22
  • 23. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean — O que foi? — Mary Hellen indagou, com um tremor na voz, agora bem compreensível. — Por que não está dormindo? Beauregard fixou o vazio, à procura do que dizer, sem, entretanto, encontrar. Só tinha certeza de uma coisa: jamais deveria ter baixado suas defesas. CAPÍTULO VII Mary Hellen virou-se e afundou no centro do colchão macio. Esforçou-se para enxergar Beauregard de maneira mais clara, apesar da falta de iluminação reinante. Ele estava sentado na beira do leito, de costas para ela, com os cabelos desalinhados. Mary Hellen debateu-se em uma confusão de perguntas sem resposta. Beauregard teria descoberto? Isso fora importante para seu marido? Cobriu-se com o acolchoado, puxando-o até o pescoço. — Está tudo bem, Beauregard? — Tudo — ele afirmou, com a entonação mais gelada que encontrou. — Então, por que não se deita? — Não quero. Beauregard ergueu-se, e a perfeição daquele físico deixou-a atônita, mesmo em meio a sua terrível ansiedade. Braços fortes, ombros largos e coxas firmes que permitiram entrever os músculos que se contraíram quando ele apanhou a calça e vestiu-a. — Não consigo dormir — Beauregard completou. Mary Hellen apoiou-se sobre o cotovelo, sabendo que era mentira. Recordou como ele ficara imóvel no meio do ato de amor. Beauregard descobrira o segredo dela, e não conseguira mais ficar deitado ao lado da esposa. — Beauregard, eu... — Por que não dorme? Você teve um longo dia. A situação modificou-se por completo. Ele queria mostrar-lhe que sabia. As palavras secas eram para dar-lhe a entender que nada deveria falar e nem explicar. Beauregard não se mostrava disposto a ouvir. Nem naquele momento e, decerto, nem nunca. Vestiu a camisa pela cabeça. — Vou dar uma volta — informou. As lágrimas ameaçavam explodir, mas Mary Hellen piscou duro para afastá-las. Chorar no travesseiro não lhe traria benefícios. Tinha de ser forte, se pretendia solucionar o problema. Deitada de costas, imaginou o que se seguiria. Beauregard movia-se como uma sombra pelo quarto, e ela entendeu que o marido não só desejava como também precisava ficar só. Com um pouco de sorte, em algumas horas a raiva dele poderia ceder. 23
  • 24. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Quando conseguisse raciocinar direito, Beauregard se lembraria de que o namoro deles não passara de uma curta missiva. Se ele queria uma virgem para esposa, deveria ter mencionado isso, nem que fosse de maneira sutil, mas apenas frisara que queria uma mulher com disposição para o trabalho; item, aliás, no qual ela se enquadrava com perfeição. Mary Hellen quis, do fundo do coração, que Beauregard passasse a ver a situação a partir dessa perspectiva. Sentou-se e observou-o pôr o casaco. Notou, aliviada, que o marido deixara o colar de garras sobre a cômoda. Pelo menos, planejava voltar. — Tem certeza de que não quer que eu vá junto? — Mary Hellen agarrava-se ao fio de esperança de que ele não estivesse irritado. — Tenho. Vá dormir. Beauregard saiu do quarto sem olhar para trás e fechou a porta. Na manhã seguinte, Mary Hellen acordou com o sol forte que entrava pela cortina branca de renda e deixava salpicos brilhantes no acolchoado cor-de-rosa florido. A exaustão dos dias sem fim dentro de um trem deixaram seus ossos e músculos doloridos. Esticou os braços para cima e mexeu os dedos, tentando recordar como era gostoso ver-se livre de dúvidas e receios. Nisso alarmou-se ao ver que o lado da cama que deveria ser de seu marido estava vazio. Mary Hellen sentou-se de um salto. Teria a raiva dele sido tão grande a ponto de tê-la abandonado? Fitou de imediato a cômoda. O colar desaparecera. Jogou os lençóis finos no chão, levantou-se e foi direto até sua valise. Abriu-a e tirou o que estava por cima: o vestido púrpura que usara na véspera. Tinha de achar Beauregard e reparar os erros. Queria que o casamento desse certo. Precisava disso! Naquele exato momento, ouviu uma chave girar na fechadura de metal. Bom Deus! E se Beauregard a houvesse abandonado e o gerente do hotel tivesse vindo para jogá-la na rua? Ainda nem estava vestida! Não daria tempo de enfiar o vestido, por mais que se apressasse. Agarrou a roupa e prendeu-a com força de encontro a si. Conseguiu esconder tudo, menos os ombros. Escutou uma batida, mas o intruso empurrou a porta sem esperar por um convite para entrar. Mary Hellen exalou um longo suspiro ao ver o casaco marrom de franjas e os cabelos longos e castanhos. Sem dúvida, era seu marido. — A carroça está pronta. — Beauregard entrou e fechou a porta. Só então olhou-a, e com frieza, dos pés à cabeça, sob a aba do chapéu de caubói também marrom. Depois a encarou. — Vista-se depressa. Quero estar logo na estrada. Beauregard acabou de dar a ordem e saiu, deixando Mary Hellen estática no 24
  • 25. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean mesmo lugar. O coração dela palpitava com força. Olhou para si mesma, apertando sedas e rendas sobre o corpo. Só desejou voltar no tempo e desfazer o que havia feito. Beauregard, ao lado da carroça, estava com uma das mãos na cintura e, com a outra, ajeitava os cabelos espessos. Aborrecido, observou e zangou-se com um bando de cães no meio da rua, que latiam e ganiam em disputa uns com os outros. Desejou que os animais ficassem quietos por um minuto apenas. Assim, poderia refletir na maneira de continuar casado com a estranha que tomara por esposa. Mesmo depois de tudo, ainda desejava estar enganado sobre o que descobrira na véspera. Adoraria ouvir uma explicação sobre o porquê daquele fingimento. Se não gostasse do que iria escutar, pararia de preocupar-se com o assunto. Já fizera isso uma vez, e poderia fazer de novo. Parar de importar-se. Aliás, para Beauregard, aquele nunca fora um assunto relevante. Depois de dez minutos irritantes, Mary Hellen saiu do hotel, fazendo sombra nos olhos com a mão enluvada de branco e espiando a rua à procura do marido. Beauregard ficou parado e deixou que ela o encontrasse. Por fim, Mary Hellen o viu e pareceu ficar contente. Ele notou que usava o mesmo vestido púrpura de renda do dia anterior. As anquinhas eram exageradas e, sem dúvida, se amassariam quando fosse ordenhar Maddie. Beauregard tomou uma decisão, aproximou-se e pegou a alça da bagagem dela. — Deixe que eu levo isto. — Colocou o volume dentro da carroça e ajudou-a a acomodar-se. — Vim o mais rápido possível, pois imaginei que você estivesse impaciente. — Mary Hellen arrumou as saias ao redor de si. Beauregard fitou os olhos grandes e falsamente ingênuos. Sentiu uma inexplicável punhalada de remorso. Por que tudo não transcorrera sem incidentes nem surpresas? Notou que o olhar castanho mantinha o mesmo brilho doce que o encantara pela primeira vez que o vira. Odiou pensar que Mary Hellen apresentava aquele aspecto adorável de propósito, para conseguir manipulá-lo de algum modo. Ah, mas isso também era suspeitar demais! — Tenho de devolver a chave — ele avisou. — Espere aqui. Beauregard voltou para dentro do hotel e parou na recepção. Não havia ninguém por ali. Esperou, impaciente, cutucando o balcão com a ponta da bota e girando a chave de metal entre os dedos. Observou o objeto com indiferença. Foi quando que uma idéia tomou vulto. Talvez devesse dar uma olhada no quarto mais uma vez, apenas para ter certeza. Tentou não ficar muito esperançoso, o que poderia levá-lo a aumentar o desapontamento. Subiu a escada, caminhou pelo hall e enfiou a chave na fechadura. Abriu a porta e hesitou, com a cabeça e o coração palpitantes. Como se fosse um 25
  • 26. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean último recurso, fitou a cama e o acolchoado rosa que o intimidava, esticado sob os travesseiros. Era uma tolice, mas tinha de fazê-lo. Caminhou até o leito, respirou fundo e levantou as cobertas. Deparou com um lençol branquíssimo, sem nenhuma mácula. A tênue esperança que tentara acalentar desmoronou diante dele. Mas o que esperava, no entanto? Estar enganado e encontrar a prova disso em alguma mancha recente no lençol? Na noite que se passara, Beauregard caminhara por Dodge inteira, imaginando se seria possível que não houvesse entendido o verdadeiro sentido da virgindade. Afinal, nunca estivera com nenhuma donzela antes. Quem sabe se não seria tão fácil assim identificar se uma mulher havia ou não... Beauregard sacudiu a cabeça e sentiu-se traído. Não se preocupava com o que Mary Hellen pudesse ter feito antes. O passado dela não era de sua conta. Porém, não podia entender, de jeito nenhum, por que fingira ser uma noiva nervosa e virginal. CAPÍTULO VIII Beauregard parou a carroça em meio ao vento da pradaria, onde o relvado sussurrava um milhão de contínuos segredos. Os arreios tilintaram um pouco quando os cavalos pararam e afugentaram as moscas de seus traseiros. Ele teria parado para inspecionar alguma roda ou quem sabe o casco dos animais?, Mary Hellen imaginou, com o estômago revolto. Aquele mal-estar seria provocado por sua necessidade de justificar-se perante o marido? Beauregard tirou o chapéu, passou a mão nos cabelos e pôs a peça de couro de novo sobre a cabeça. Estreitou os olhos mirando o leste e recostou-se no banco. — Precisamos conversar. Mary Hellen teve a impressão de que lhe apertavam a garganta. — Acho que devemos conhecer-nos um pouco mais — ele continuou, com uma inflexão acusatória na voz. — O que é que você quer saber? Beauregard fitou o zênite muito azul sem nuvens e franziu o cenho. — Sei que não é muito conveniente falar sobre certos assuntos, mas não gosto de ficar matutando sobre eles, ainda mais quando se trata de um mal-entendido. Sabe como é, não consigo afastar um pensamento com facilidade. — A que está se referindo? Beauregard encarou-a com severidade. — Quero saber por que parecia tão nervosa ontem à noite. Deixou-me achar que você nunca... — Hesitou. — Não que isso tenha importância. O passado é problema seu, não meu. Mas por que estava tão tensa como se nunca houvesse feito aquilo 26
  • 27. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean antes? Por que tentou me enganar? A entonação tranqüila e trivial teve o dom de acalmá-la. — Eu não estava tentando enganá-lo, Beauregard. — Se é assim, por que aquele nervosismo todo, quando fui para a cama? — Eu estava com medo. — Do quê? — Você sabe. — Por quê? A franqueza teria sido melhor do que iludir-me. — Não menti, Beauregard. Apenas não contei. O que queria que eu dissesse? Beauregard ponderou um instante, refletindo sobre a indagação. — Nada. Não precisava dizer nada mesmo. Você veio para cá, casou-se comigo e agora vamos para casa. Antes que ele mexesse as rédeas, Mary Hellen pôs a mão sobre a manga do casaco macio. Beauregard baixou as tiras e fitou-a. — Sinto muito por tê-lo aborrecido, Beauregard. Nunca pretendi fazê-lo de bobo. — Não me aborreceu, Mary Hellen. Estou um pouco desapontado. Só isso. Mary Hellen soltou-o e apertou o lenço branco que estava sobre seu colo. Desapontado. Era bem pior... — Diga-me uma coisa. — Beauregard bateu as rédeas, sem força, e soltou-as. — Houve muitos? Mary Hellen suspeitou que ele pretendera feri-la. — Não, apenas um. — Hum... — Ficou em silêncio por alguns segundos e depois fez a pergunta que não queria calar: — Você o amava? As palavras surpreenderam-na. Mary Hellen desejava que a situação entre os dois melhorasse e que não tocassem mais no assunto. Acima de tudo, gostaria que Beauregard a respeitasse. Engoliu em seco, nervosa. — Bem? Amava ou não, Mary Hellen? Qual seria a resposta certa? Não lhe parecia correto dizer a seu marido que amara outro homem, mas também negar... — Sim — Beauregard concluiu, num sussurro. — Amava. Era verdade. Em toda sua inocência, Mary Hellen amara Garrison. Embora, naquele momento, ela não estivesse muito certa sobre o significado daquele verbo. Beauregard bateu as rédeas com energia, e a parelha cavalgou mais rápido sobre a estrada cheia de buracos. — Há quanto tempo não o vê? Mary Hellen fixou-se nas crinas longas dos animais, que moviam a cabeça para cima e para baixo. — Acho que deve fazer umas duas semanas. — Duas semanas! — Beauregard freou os animais com violência, amarrou as 27
  • 28. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean rédeas na trava e pulou do veículo. Parou a uns vinte passos, de costas para Mary Hellen, as mãos caídas ao longo do corpo. "Oh, não! Ele vai me mandar embora", Mary Hellen concluiu, apavorada. "Vai deixar-me no meio das ruas de Dodge City com minha mala e minhas recordações amargas..." Cerrou os olhos e tentou ser otimista. Não haveria de ser de todo mau, decidiu, tentando consolar-se. Poderia trabalhar em um restaurante, afinal tinha experiência. E começaria uma nova vida. Sozinha. O sonho de casar-se e viver uma existência tranqüila em uma fazenda não passara de... um sonho. Ergueu as pálpebras e viu Beauregard sentado no solo, apoiado em um dos braços esticado para trás. Mary Hellen observou-o brincar com uma folha de grama. No mínimo, como ele dissera, estava desapontado. Era um sentimento justificado. Mas vê-lo daquela maneira, sentado sozinho no meio da imensidão da planície... Ela desceu da carroça e alcançou o chão com um pulo. Tirou o alfinete do chapéu e o próprio, deixando-os no estrado do veículo. O vento singrava através da relva ondulante, sibilando como uma cobra e soprando-lhe fios perdidos das mechas na face. Mary Hellen entendeu que deveria dar a oportunidade de uma escolha para Beauregard. Se ele quisesse, poderia terminar com o casamento. Ela sabia a razão por que respondera tão rápido a um anúncio daqueles: precisava afastar-se de Garrison e começar uma nova vida. Naquele momento, talvez Beauregard estivesse arrependido de haver sido tão apressado. Deveria dizer-lhe que a levasse de volta a Dodge e que concordaria com um divórcio? Seria tão ruim assim? Afinal, já estivera em situações piores. Mary Hellen chegou perto dele e sentou-se. Esperou um pouco, observando o horizonte, na linha distante onde o céu se encontrava com a terra. Convicta, pigarreou, antes de falar: — Perdoe-me por não haver contado antes Mary Hellen sentiu o coração partir-se em dois. Estava a ponto de terminar a união que mal começara, e só queria chorar. — Eu estava sozinha há quatro anos e... Beauregard largou a folha. — Você quer dizer quatro meses. — Como assim? — Quatro meses. Desde que seus pais morreram. — Não, quatro anos. — Mary Hellen franziu o cenho. — Você escreveu na carta que eram quatro meses. — Fuzilou-a com o olhar. — Não pode ser. Talvez minha letra não fosse muito... — Sua caligrafia é ótima. 28
  • 29. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean — Tem certeza de que... — Sem a menor dúvida. Pelo tom incisivo de Beauregard, Mary Hellen percebeu que ele não mentia. Ao lembrar-se da pressa com que escrevera e mandara a missiva, imaginou se não cometera mesmo um erro. Um erro horrível. Lamentável. Como pudera ser tão descuidada? Ou podia ser que não se tratasse de engano nenhum, pensou, infeliz. Talvez sabendo que não seria correto casar-se com Beauregard, tivesse tentado solapar, de forma inconsciente; suas atitudes desesperadas. É... vai ver que era isso mesmo. — Você morou em Boston sozinha por quatro anos, Mary Hellen? Ela anuiu, sem saber mais o que fazer. Beauregard arrancou mais uma folha fina e segurou-a entre os lábios pela ponta. O silêncio dele era mais enervante que qualquer reprimenda. Mary Hellen não podia fazer nada mais além de ficar sentada no emaranhado que cobria a terra e sofrer, sabendo o que o marido devia pensar a seu respeito: que mentira de propósito acerca de tudo! — O que mais me contou? — ele indagou, com ironia. — Ah, sim! Que freqüentava a igreja. Suponho que irá dizer-me que a igreja da vizinhança pegou fogo e que você não esteve presente aos trabalhos dominicais, digamos... por uns quatro anos? — Não — Mary Hellen replicou, com firmeza. — Eu vou à igreja. Não mentiria sobre isso. Beauregard continuou fitando as colinas distantes. — Mas o restante não passou de um amontoado de mentiras. Mary Hellen desviou o olhar, frustrada. Fora uma futilidade argumentar, como também seria inútil querer que Beauregard acreditasse no que afirmava naquele momento. Ele estava muito irritado. Se lhe dissesse por que tivera de fugir de Garrison, Beauregard levá-la-ia até as autoridades, e ela poderia ser acusada pelo crime de Garrison. Por outro lado, Mary Hellen bem sabia o que Garrison seria capaz de fazer se soubesse que ela confessara o delito para alguém. Garrison deixara esse ponto bem claro. Mary Hellen não poderia deixar Beauregard, e nem ela mesma, correr esse risco. Beauregard ergueu o joelho e apoiou nele o punho. — Você ainda ama esse homem? A questão deixou-a muito aflita. "Sim, eu o amei até duas semanas atrás, mas hoje não o amo mais." Mary Hellen tinha certeza de que Beauregard jamais acreditaria nisso. Ninguém no mundo conseguiria. Contudo, depois do que acontecera, poderia jurar com a mão sobre a Bíblia. Fechou os olhos, por causa do vento. — Não o amo. Espero nunca mais encontrá-lo. — O que espera para as duas próximas semanas? Ficar sozinha outra vez? 29
  • 30. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Pretende deixar-me e pular no leito de outro homem, e assim conseguir arrancar do coração de quem você realmente ama? Aquilo a atingiu em cheio. Sabia que merecia tal desprezo, mas isso não tornava mais fácil suportá-lo. Levantou-se e surpreendeu-se com a confiança que sentiu, apesar de tudo. — Entenderei se estiver arrependido de haver me trazido para cá, Beauregard. Podemos voltar para a cidade e conseguir o divórcio. Não me oporei. Só lhe peço que me arrume um lugar para ficar, até eu decidir para onde ir. Virou-se, com raiva de haver se metido em tamanha confusão e por envolver Beauregard em uma situação bastante delicada. Tudo começara quando conhecera Garrison. Desejou ter dado ouvidos a seus instintos, na ocasião. Desde o começo, alguma coisa nele não a agradara, mas seu comportamento havia sido impecável. Irrepreensível demais. Garrison dissera as coisas certas e tinha a aparência de um cavalheiro. Bonito e rico, cortejara-a com probidade e, por isso, arruinara-lhe a vida. Àquela altura, Beauregard supunha as piores coisas sobre ela e merecia livrar-se do embuste. Mary Hellen voltou à carroça, certa de que Beauregard estava em pleno direito de julgá-la daquela maneira. E que importância tinha isso? O casamento terminara mesmo... CAPÍTULO IX Mary Hellen caminhou de volta para a carroça, segurando a barra da saia com as mãos trêmulas. As anáguas vinham roçando as gramíneas altas e hirsutas. Era como se o vento impelisse para longe de Beauregard, ao encontro de uma terra estranha. O céu a seu redor não lhe parecia nada mais de que um enorme círculo sufocante. Alcançou o veículo e subiu com facilidade surpreendente. Mordeu o lábio e tentou não pensar sobre a vida que na véspera lhe parecera viável. Ela aceitaria seu destino com confiança e pensamentos positivos. Estava segura, longe de Boston. Talvez conseguisse viver com dignidade na cidade mais próxima. Com o canto dos olhos, percebeu Beauregard aproximar-se, mas fingiu que não o via. Sentada muito ereta, Mary Hellen não se voltou. Ele subiu até o assento sacudindo a carroça, que rangeu e balançou. "Beauregard vai levar-me de volta e tudo terá fim", ela refletiu, pesarosa. Mary Hellen agarrou-se na ripa lateral, preparada para a saída brusca, mas nada aconteceu. Beauregard olhava para a frente, imerso em suas conjecturas, as rédeas entre as mãos largas e bronzeadas. Mary Hellen esperou que ele estalasse a língua e virasse sua velha caixa de madeira de volta à cidade. Mas o marido nada disse e nem fez. Havia pouco, ela mostrara-se forte e cheia de valentia. Para onde teriam ido 30
  • 31. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean esses sentimentos? Naquele exato instante, sentia-se incerta e um pouco intimidada. Nada mais poderia fazer, além de esperar pela decisão dele. Por fim, Beauregard chacoalhou as correias, e os cavalos se atiraram para adiante com estardalhaço. Eles mexiam as orelhas para a frente e para trás, enquanto Mary Hellen segurava-se no banco, à espera de que mudassem de direção e retornassem para o caminho pelo qual vieram. Entretanto, não alteraram o percurso. Seguiam pela estrada estreita, tinindo de leve os arreios. — Nós fizemos um contrato, Mary Hellen. O que aconteceu em Boston é de sua conta, e prefiro não tomar conhecimento disso. Você me assegurou que sabe trabalhar e gosta de fazê-lo. Espero que pelo menos isto seja verídico. O resto não me diz respeito. Como eu já disse, temos um contrato, e pretendo levá-lo até o fim. Surpresa e esperançosa, Mary Hellen relanceou um olhar para Beauregard. Desapontou-se ao não encontrar o mínimo traço de ternura naquele semblante. A palavra "contrato" tinha um encanto bem menor do que o sonho dela em casar-se. Mas já representava alguma coisa, mesmo que em proporções diminutas. Era final de tarde, quando eles chegaram a uma propriedade rural. Mary Hellen viu um celeiro feito de torrões de relva e coberto de forragem seca, um galinheiro cheio de aves barulhentas, uma horta, uma grande extensão de terras com plantação exuberante de milho para o oeste. A leste, o mesmo tanto coberto com trigo viçoso. Mas não havia nenhuma casa. Quem sabe, na próxima colina, imaginou, indagando-se por que alguém iria construir uma residência tão longe dos animais. Aproximaram-se, e de dentro do depósito vieram sons abafados de mugidos, que se sobrepunham ao bramido do vento. Mary Hellen inalou o cheiro de estrume fresco, e, para seu espanto, achou-o agradável. Entendeu que devia ser porque só estava acostumada a sentir os odores de esgoto e lixo decomposto da cidade grande. Sentou-se na beira do banco, machucada e meio entrevada pelo longo trajeto em cima de uma ripa de madeira. Queria muito saber se aquele era seu novo lar, mas não ousou questionar, ao ver a carranca de Beauregard. — Droga! — ele murmurou. Beauregard pulou do veículo. Um galo cacarejou e saiu do caminho batendo as asas. — O que vocês estão fazendo aqui?! — perguntou a um porco. O suíno mordia a bainha de uma calça de trabalho pendurada em um varal estendido no terreiro. — Como foi que isso aconteceu?! Mary Hellen esperou, sentada, enquanto Beauregard caminhava a passos largos em direção à porta da construção de barro. — Droga de cachorro! — Beauregard abriu a tranca com um dedo. — Shadow! Venha cá! 31
  • 32. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean Mary Hellen ficou preocupada ao imaginar o que ele faria ao pobre cão que havia deixado o porco sair do cercado. Nisso, uma massa de pêlos passou como um furacão pela carroça e desembestou pelo pátio, em direção a Beauregard. Ele se ajoelhou para receber os cumprimentos de um golden retriever, que se lançou sobre ele e quase o derrubou. O cão gemia e lambia o rosto e as mãos de Beauregard. Mary Hellen não pôde deixar de sorrir. Então aquelas eram as terras de Beauregard. Mas onde estaria a casa? Mary Hellen desceu da "carruagem" e pisou em um monte de esterco fresco e mole, que sujou a barra de sua anágua. — Ah... — Gemeu, erguendo a saia e examinando a sola da bota. — Por aqui, você terá de olhar por onde pisa — Beauregard comentou. Ele desapareceu no interior do galpão e voltou alguns minutos depois, com uma cabra branca a reboque. — Pode esticar suas pernas, Gertrude, mas fique longe de minhas calças no varal. — Largou-a no terreno. Mary Hellen esfregava a bota na terra seca, observando Beauregard voltar para dentro. Escutou-o desculpar-se com alguém. — Perdoe-me, Maddie. Não achei que iria ficar fora a noite toda. Beauregard demorou-se lá dentro, e Mary Hellen imaginou o que ela deveria fazer. Pegar a valise e sair à procura da residência? Esperar até que o marido lhe indicasse o caminho? Seria melhor. Não queria invadir o lar dele sem permissão. Mas, afinal, era sua mulher. Assim, a casa também lhe pertencia. Inquieta, Mary Hellen perambulou pelo pátio e ouviu um som persistente de um esguicho que vinha de dentro do recinto coberto de feno. Teve de passar por uma cerca para chegar à porta. Espiou o interior da construção de barro e viu Beauregard sentado em um banco pequeno, ordenhando uma vaca. Ele havia tirado o casaco, que estava jogado a um canto. A camisa branca e solta acompanhava os movimentos dos ombros largos. Inclinado para a frente, Beauregard espremia e puxava as infelizes tetas. O leite espirrava em jatos finos e fortes. Mary Hellen continuou olhando, encantada com os músculos das costas de Beauregard. Ora tensos, ora relaxados, eles trabalhavam em harmonia perfeita com o som forte do leite que enchia o balde de madeira. Surpresa, deu-se conta de que nunca vira ninguém ordenhar uma vaca. De repente, um clarão castanho irrompeu no galpão e colidiu com ela. Cansada e menos alerta do que deveria estar, caiu sentada na lama. Sem reagir, sentiu as faces ardentes queimadas de sol serem lambidas com um entusiasmo incontido. O cachorro prosseguiu a "limpeza" em direção ao nariz dela. — Não! — Mary Hellen gritou e tentou cobrir o rosto com as mãos ainda enfiadas nas luvas brancas. 32
  • 33. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean — Shadow! — Beauregard chamou com energia, de dentro do estábulo. — Saia daí! O grande cão obedeceu, com as orelhas para trás e a cauda entre as pernas, enquanto o porco via o espetáculo com interesse. — Desculpe-me, Mary Hellen. — Beauregard se aproximou e segurou o cotovelo de Mary Hellen com sua mão forte. — Veja o que ele fez. Beauregard a ergueu depressa, mas ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre um joelho, antes que o marido a levantasse de novo. Mary Hellen lutou para conter a raiva. Tentou, em vão, retomar o fôlego. Todos os problemas pareciam ter vindo à tona de uma vez. Apanhou a saia com os dedos enlameados e trêmulos. — O vestido que uso aos domingos... Todo coberto de lama! — Aquela era a menor de suas preocupações, mas a, única sobre a qual podia falar. — É só um pouco de terra... — Um pouco de terra — ela repetiu, com ironia, sem querer aceitar o que mais poderia estar misturado ao barro. — Bem, você terá de ir até o regato. — Regato? Não tem uma banheira? — Banheira? Será que Beauregard já ouvira essa palavra alguma vez? —Aqui, não. — Ele afastou-se e apontou. — O riacho é logo ali. O sabão está em cima da rocha grande. Mary Hellen fitou o dedo estendido, desalentada, e desejou que o córrego estivesse localizado depois da colina. Saiu do cercado, tentando não se desesperar por ter de lavar-se ao ar livre, junto com animais e insetos. Pelo menos Shadow seguira Beauregard para dentro, e não se constituía mais em uma ameaça. Andou uns poucos metros pelo terreiro e, sem poupar resmungos e gemidos, arrancou a valise da carroça. Carregou-a até a direção que imaginava ser o caminho certo para a água. Ao aproximar-se da pequena elevação, viu o riacho a distância. No mínimo, a uns oitocentos metros à frente. Não conseguiria carregar a bagagem até lá. Murmurando uma imprecação, colocou a mala no chão, abriu-a e tirou de dentro uma saia e um corpete limpos. Fechou-a e deixou-a sobre o relvado. Com andar cansado e vacilante, fez o restante do trajeto. Mary Hellen desceu a ribanceira, tropeçando até chegar na água e encontrou sabão dentro de uma gamela pequena e gasta. Como é que faria aquilo?, se perguntou e virou-se para ter certeza de que ninguém a veria. Claro que não. Não havia vivalma a quilômetros. Desamarrou as botas e descalçou-as. Tirou o vestido e a roupa de baixo. Sentiu que se encontrava em um nível muito além da nudez. Estava ao ar livre e entraria em 33
  • 34. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean um riacho com sabe-se lá quantas criaturas nadando dentro dele. Esforçou-se para afastar aqueles pensamentos de sua mente e pôs os pés na água. Abaixou-se e estremeceu com o choque do rio gelado na pele. Arrepiou-se inteira e resolveu despejar água na cabeça com o pequeno balde, de uma só vez. O corpo logo acostumou-se com a temperatura fria, e Mary Hellen nadou em círculos, sentindo-se revigorada, mas sem pensar em como fazer para conseguir morar ali. Decerto Beauregard não esperava que ela fosse quebrar o gelo no inverno, para tomar banho. Deveria haver algum plano alternativo. Mary Hellen batia as pernas para manter-se à tona e olhava em todas as direções. Nunca poderia imaginar que seria daquela forma. Não era possível que não houvesse fazendas vizinhas. Pensara em uma comunidade pequena com casas de campo charmosas e pintadas de amarelo, uma igreja e uma escola bem perto. Crianças rindo e brincando em grupos. Sonhara com reuniões sociais de senhoras para fazer colchas para fins beneficentes, concursos e criação de abelhas com mel de floradas diferentes. Não tinha nada daquilo por ali, nem nas proximidades. Apesar de tudo, e ela teve certeza de que muitos se surpreenderiam por isso, sentiu-se feliz e abençoada. Talvez não houvesse nenhuma obra assistencial, mas existia a esperança de um recomeço. Encorajada, saiu do riacho, pegou o sabão e fez uma espuma fria entre as palmas. Lavou a cabeça, o rosto e o corpo. Mergulhou e nadou sob a superfície para enxaguar-se. Quando emergiu, deu uma olhada e gemeu. Sua roupa estava coberta de esterco. Beauregard deu a volta por trás do lugar onde Maddie passava as noites e entrou em sua casa, carregando o balde com leite. Quando passou pela porta e desceu os cinco degraus, pela primeira vez teve noção das condições precárias em que vivera durante os últimos doze meses. Uma mosca zuniu em sua orelha, ele afastou-a com a mão livre e pôs o recipiente em cima da mesa. O que Mary Hellen diria ao entrar ali com suas luvas brancas e seu chapéu púrpura e extravagante? Beauregard espiou a cama estreita, arrepiou-se e voltou para a porta. Ela teria de aceitar, e pronto! Mary Hellen não tinha muita escolha. Beauregard avisara que estava à procura de uma esposa para trabalhar em uma fazenda. Não pretendera uma jovem da cidade, frívola e vaidosa, que não conhecia um arreio, um arado ou um gafanhoto. Se Mary Hellen não gostava daquele tipo de vida, a culpa era dela, por haver respondido ao anúncio com tanta presteza. Com Isabelle fora a mesma coisa. Ela se encontrara aflita para casar, não importando com quem, sem pensar nem um segundo no que iria enfrentar. Quando acabou por compreender o que a esperava, encantou-se com o primeiro indivíduo muito falante e bem-vestido que lhe prometera uma vida 34
  • 35. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean boa. E Beauregard nem sonhara em impedi-la de ir embora. Dessa vez não, decidiu, subindo os degraus. Lembrou-se de Mary Hellen na pradaria, no meio daquela imensidão, sugerindo um divórcio. Um divórcio! Do mesmo modo como acontecera com Isabelle, ela queria fugir ao primeiro sinal de desentendimento. Bem, àquela altura dos acontecimentos, não iria embora com tanta facilidade. Beauregard parou do lado de fora. Como Mary Hellen encararia os desafios que a esperavam? Esfregou a nuca tensa pela longa viagem. Será que sua mulher pensaria na casa dele como um grande buraco escuro e úmido na terra? Como ele reagiria se Mary Hellen quisesse ir embora e exigisse que a levasse de volta a Dodge para divorciar-se? Era só o que lhe faltava! Um outro escândalo daria origens a mais falatórios inconseqüentes, que se espalhariam com a rapidez do vento. A cidade inteira pensaria que ele era um amaldiçoado. Aliás, era no que Beauregard começava a acreditar. Tratou de esquecer essas bobagens e achou que era hora de mostrar a residência para a esposa. Quanto mais tempo passasse matutando, mais horas preciosas do dia ele perderia do preparo da colheita. Com passadas largas, dirigiu-se até o regato e desceu o barranco. Ficou pasmo com o que viu. Mary Hellen estava de costas, abotoando uma saia floral azul-pálido. Os cabelos molhados e brilhantes caíam nas costas como uma cascata de cachos escuros, cujas pontas marejavam pingos na cintura estreita. A admiração que sentiu pela mulher que trouxera para aquele local remoto e selvagem deixou-o atordoado. Ela não combinava com nada daquilo. Mary Hellen se destacava como uma rosa em um campo de neve. Nisso, Mary Hellen virou-se, levantou a cabeça e estreitou os olhos. Cruzou rápido os braços ao redor de si. — Beauregard, você tem o hábito inconveniente de surpreender-me quando não estou totalmente vestida. Beauregard apoiou-se num pé, depois no outro. — Vim apenas lembrá-la de que há muito trabalho a ser feito. E, para mim, você está muito mais do que vestida. Mary Hellen baixou os braços. — Que tipos de trabalho? — Tarefas cotidianas de uma fazenda. Não espera que irá banhar-se, enfeitar-se e escovar os cabelos durante horas, enquanto fico aqui fazendo todo o serviço, não é? — E por que acha que eu faria isso? Beauregard hesitou, consciente de que não fora razoável. Tarde demais para voltar atrás. Parecia que ele viera até ali para balbuciar uma porção de represálias. Mary Hellen empinou o queixo. 35
  • 36. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean — Eu li seu anúncio. Sei que o serviço pesado me espera, embora por algum motivo você pense que não. Beauregard sentiu-se um pouco culpado por ter sido rude com ela. Aproximou-se de Mary Hellen e sentiu o cheiro do sabão de lixívia. — Depois que você terminar de lavar o vestido, eu lhe mostrarei onde vamos morar. — Obrigada. Beauregard cerrou os maxilares ao refletir, de novo, sobre o que Mary Hellen pensaria ao ver a nova moradia. Em seguida, admoestou-se por estar preocupado, como se tivesse vergonha de sua própria casa. Beauregard parou, antes de subir a pequena rampa, e apontou os trajes. — Eles são mais práticos fora daqui. Mary Hellen fitou a saia e o corpete simples de chita. — Se eu fosse você, Mary Hellen, guardaria mesmo aquela coisa púrpura para os domingos. Ela jogou a cabeleira para um lado e torceu-a como se fosse uma toalha. — Muito bem, Beauregard. Agora, se me der licença, tenho de lavar roupa. Beauregard sentiu-se dispensado e resistiu à vontade de dar a última palavra. Ao ver Mary Hellen apanhar o vestido e esfregá-lo com força suficiente para fazer nele um buraco, convenceu-se de que sua mulher não gostaria de ouvir nada do que ele teria a dizer. CAPÍTULO X Mary Hellen dobrou o vestido molhado, que pesava muito, sobre um braço e agarrou a barra da saia com a mão livre. Subiu a ribanceira quase correndo. Enfim, iria ver sua nova casa, o lugar que poderia limpar e arrumar a seu gosto. Se o marido permitisse, é claro. Assim que ela pusesse mãos à obra, Beauregard Brigman não teria mais motivos de queixas. Mary Hellen teve até pena dele. Lamuriar-se parecia ser a atividade favorita de Beauregard. A volta, contudo, foi um pouco mais demorada. Mary Hellen não se lembrava de onde havia deixado a valise. Nem pensara em marcar o lugar. Deu várias voltas, até alcançar um local onde o capim amassado deu-lhe a impressão de ser onde colocara a mala. Confusa, olhou ao redor, em direção ao estábulo. Talvez Beauregard a houvesse levado para casa. Pelo menos, era o que Mary Hellen esperava que tivesse acontecido. Senão, teria de voltar por ali mais tarde, o que daria mais um motivo para ele criticá-la. Cruzou o terreno em direção ao galpão coberto, que pelo jeito servia de celeiro e estábulo. Beauregard estava em pé, com um ombro encostado no marco da soleira e 36
  • 37. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean os braços cruzados. Mary Hellen sentiu-se nervosa. Relanceou um olhar para os pés dele. A valise estava no chão, a seu lado. Ainda bem. Assim mesmo, tomou a resolução de não se deixar intimidar por aquele homem. Estava pronta para assumir seu papel de esposa de fazendeiro, com todos os desafios e trabalhos pesados a que tivesse direito. Beauregard não iria abater-lhe o ânimo. — Já não era sem tempo — Beauregard criticou-a, apanhou a mala e saiu da entrada sombria. — Achei que estava esperando suas roupas secarem. — Por certo que não. — Mary Hellen sorriu com frieza. — E não se esqueça de que o responsável por esse transtorno foi aquele seu cachorro estabanado. Beauregard ignorou-a e passou por ela. — A residência é por aqui. Por ali? Mary Hellen estudou todos os lados. Não viu nada além dos campos forrados de gramíneas amarelas. Sem dar muita atenção a seu ceticismo, contudo, seguiu o marido. — É aqui. — Beauregard subiu em um cômoro e desapareceu do outro lado. Quando Mary Hellen alcançou o topo, entendeu, horrorizada, que estava sobre uma cobertura. Não era uma casa. Era um monte de barro. Estacou, estarrecida, sem fala, olhando para o marido, mais abaixo. — É o chamado abrigo subterrâneo porque... — Beauregard começou a explicar. — ...foi cavado na encosta de uma colina — Mary Hellen concluiu. Engoliu como pôde seu espanto, andou com cautela sobre o telhado e desceu pelo lado. — Muitas pessoas moram em abrigos? — A princípio, sim. Até ganharem dinheiro suficiente para comprar a madeira necessária para a construção de uma moradia definitiva. Como você mesma pode ver, aqui não há nenhum outro material de construção que não seja a terra. — É verdade. Dá para notar, sem muito esforço. — A porta é aqui. — Ele pegou-a pelo cotovelo, pronto para conduzi-la até o "lar". Mary Hellen observou com mais atenção as paredes externas. Admirou-se pela construção e pela engenhosidade de um homem determinado a edificar uma casa em uma região onde não havia madeira. Chegaram até a entrada e tiveram de descer cinco degraus entalhados no barro seco. O interior, a cerca de um metro e vinte centímetros do nível do chão, mostrou-se escuro até a visão acomodar-se. Mary Hellen sentiu frio, ao inalar o cheiro úmido de terra e gramíneas. Esforçou- se ao máximo para não perder a calma, nem a compostura, e conseguiu sorrir para o marido. Beauregard deu alguns passos pelo ambiente de um só cômodo, deixou a bagagem dela ao lado da mesa e abriu os braços. — É isso aí — afirmou com um orgulho que Mary Hellen suspeitou que não fosse 37
  • 38. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean tão sincero. Com toda a certeza, seu marido esperava a desaprovação dela! — É bastante... sólida. — Mary Hellen bateu três vezes com o pé no solo, disposta a não dar o braço a torcer. — Quando comecei a escavação, a terra parecia uma massa de betume. Contudo, veja como secou bem. Não acha? — Ah, sim! Bastante. Muito bom. Permaneceram em silêncio por uns instantes, enquanto Mary Hellen espiava a mobília. Um barrilete e uma caixa de sabão estavam encostados em uma das paredes. Duas cadeiras, uma diferente da outra, acompanhavam uma prancha velha que servia de mesa. Em um dos cantos, uma cama rústica que tinha como pés troncos de árvores descascados. Mary Hellen caminhou até a mesa e deixou seu vestido perto do balde de leite. Notou, aliviada, que havia um fogão de ferro e uma chaminé de metal no teto. Examinou a parede de trás, escavada na lateral do cômoro. As da frente e as do lado eram feitas com torrões montados como se fossem tijolos, sendo que os blocos ficavam com o lado da grama para baixo. Beauregard se pôs em frente a Mary Hellen, como se esperasse pela reação dela, talvez na expectativa de uma torrente de lágrimas. — A ventania constante pode sacudir a porta ou a janela, mas não estas paredes — ele afirmou. — Elas têm uns noventa centímetros de espessura. — Nossa! Noventa centímetros! — Mary Hellen repetiu e fitou o teto, imaginando se haveria perigo de ele ruir. — Do que é feito o forro? — Com estacas de salgueiro entrelaçadas. Depois há mato, grama longa, uma camada de argila do barranco do riacho e um acabamento final com torrões de relva. E forte o suficiente para andar-se em cima. — Que ótimo... — Mary Hellen chegava ao limite de sua calma aparente. Mas não o deixaria saber disso. Jamais! Voltou-se e olhou o leito. — E esta... — É a cama. Sei que é pequena. Eu tinha planejado montar outra antes de você chegar, mas houve problemas com a fenação, que atrasou, e não tive chance de fazer isso. Mary Hellen tornou a engolir seu desalento e sua preocupação. Quando o marido encontraria tempo, e o que eles iriam fazer enquanto isso não se concretizasse? — Não se preocupe. Quase não há percevejos. — Como!? — Mary Hellen sentiu a pele coçar. Beauregard caminhou até a saída. — Agora que você está acomodada, vou trabalhar. Encontrará comida naquela caixa ali e na horta. Voltarei ao entardecer. Ele subiu os degraus de terra batida sem olhar para trás e sumiu na claridade do 38
  • 39. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean dia. Mary Hellen continuou em pé, derrotada, imaginando se Beauregard tinha consciência de que a moradia dele era um verdadeiro calabouço escuro. Ao sentir coçar o pescoço, deu um tapa e fitou a palma à procura de alguma criatura estranha. Mas, como nada encontrou, assegurou a si mesma que devia tratar- se de imaginação. Com certeza era um fio perdido de cabelo. Relanceou um olhar ao redor, sem saber por onde começar. Beauregard não lhe dissera o que fazer, embora houvesse afirmado que as tarefas eram inúmeras. Para o momento, o óbvio seria desfazer a mala e preparar o jantar, antes que ele retornasse do campo. Isso não seria muito difícil de executar. Carregou a valise até o leito. Porém, não viu nada parecido com uma cômoda. Não teria outra solução a não ser deixar tudo empacotado como estava. Chegou perto do armário de cozinha, uma caixa aberta, ao lado do fogão, e ajoelhou-se para examinar o conteúdo. Encontrou um saco de fubá, uma pequena jarra de melado, um pote com gordura, outro com café, um com farinha de trigo e um pacote de carne de porco salgada. Havia um saco com batatas perto da caixa e ao lado, um barrica com sal pelo meio. Como é que Beauregard sobrevivera até ela chegar? Não era para se admirar que tivesse procurado uma esposa por meio de um anúncio de jornal. Daquele momento em diante, haveria comida de verdade por ali, ela propôs-se, mais animada. À noite, o marido provaria os melhores biscoitos que já comera em sua vida. Com a carne de porco, Mary Hellen faria um prato de dar água na boca. E seu marido teimoso e mal-humorado não deixaria de admirar as guloseimas. A primeira coisa a fazer era acender o fogo e começar a trabalhar nos biscoitos. Abriu a portinhola do fogão. Cheio de cinzas. Suspirou e indagou-se qual teria sido a última vez que Beauregard o limpara. Procurou uma pá. Não achou. Teve de tirar tudo com uma concha, e encheu um vasilhame. Quando esvaziou a fornalha, limpou a palma das mãos uma na outra, com orgulho. Pesquisou o ambiente à procura de gravetos. Um inventário cuidadoso da chamada "cozinha" deu-lhe a certeza de que nada havia ali capaz de pegar fogo. Saiu e procurou em volta e no estábulo. Nada. Como é que Beauregard fazia? Gramíneas, talvez? Parecia que o marido as usara para outra coisa, mas como é que alguém podia acender o fogo só com elas? Aquela altura, Mary Hellen já não se achava tão esperta. A tarefa simples de fazer um jantar se transformava em uma atribuição desalentadora. A frustração tomou conta dela. Beauregard, na certa, estaria agachado, cuidando de suas terras, mas à espreita, convencido de que sua mulher falharia. Mesmo que isso significasse voltar com a fome de um leão e encontrar a esposa em lágrimas, debruçada sobre uma mesa vazia. O que fazer? Não poderia enfrentá-lo com um pedaço frio de carne salgada, quando Beauregard retornasse. Mas ela também não estava com disposição de perder 39
  • 40. CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean tempo em cima da arte de queimar grama. Que Deus a livrasse de o marido voltar e descobrir que fizera alguma coisa errada. Beauregard jamais pararia de falar naquilo. Mary Hellen subiu no telhado, fez sombra nos olhos com a mão e procurou pelo marido. Estranhou seu entusiasmo ao constatar que ele estava longe. Pelo menos, Beauregard não a estava espionando, concluiu, com um pinguinho de bom humor inadequado. Beauregard espetava o feno com um forcado e atirava os tufos na carroça. A relva alta deixava-o visível só da cintura para cima. Sem camisa, o corpo e os cabelos dourados pelo sol mesclavam-se à pradaria. Mary Hellen recordou-se de como achara aquelas terras promissoras, quando as vira pela janela do trem, na véspera. Pareceu-lhe que isso decorrera fazia um século. Deixou-se cair de cima da cobertura herbosa. Por que Beauregard a deixara sem ao menos explicar como tudo deveria ser feito?, refletia, entre brava e desanimada. Mary Hellen já podia sentir de novo seu conhecido nó na garganta, mas não choraria. Daria um jeito de sobreviver àquele dia em um lugar tão longínquo. E por quantos dias se fizessem necessários. Só precisava aventurar-se a andar um pouco e fazer algumas perguntas. Mas seu bendito orgulho tornava tudo mais difícil. CAPÍTULO XI Mary Hellen caminhava na trilha deixada pela carroça, carregando um balde com água fria e uma caneca. Vinha pensando em como elaboraria as questões. Teria de enunciá-las de maneira tranqüila e confiante. Desconfiou que, para sentir-se realmente daquele jeito, seria preciso aprender "as cento e uma novas maneiras de ser uma boa esposa". E rápido. O recipiente tornava-se mais pesado à medida que enfrentava, passo a passo, o vento quente do verão. Até chegar ao limite, quando lhe pareceu que o braço seria arrancado do corpo. A água balançava-se de um lado para o outro e molhava a grama. Melhor, assim a carga ficaria mais leve. Tinha de ignorar a própria sede e esquecer a vontade de beber um gole, antes de alcançar o marido rabugento. Bufando e com uma confiança forçada, Mary Hellen palmilhou a distância, que lhe parecia infinita. Por fim, Beauregard ergueu a cabeça. Um tremor inconveniente de alegria pulsou dentro de Mary Hellen. Tentou desviar os olhos do peito musculoso iluminado pelo sol, que nele se derramava. A luminosidade se refletia nas gotículas de suor, como minúsculos diamantes. 40