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Chicos
Edição Especial
80 anos Chico Cabral
e-zine de literatura e idéias
de Cataguases – MG
Capa
Capa de Gabriel Franco
sobre foto de Victor Giudice
Editores
José Antonio Pereira
Emerson Teixeira Cardoso
Colaboradores desta edição:
Antônio Jaime Soares
Antonio Olinto (in memoriam)
Fernando Abritta
Joaquim Branco
Ronaldo Werneck
Zeca Junqueira
Fale conosco em:
chicos.cataletras@hotmail.com
Visite-nos em:
http://chicoscataletras.blogspot.com/
Dedim de prosa
Neste novembro de 2010, logo depois do feriado da
proclamação da república, comemoramos os 80 anos do nosso poeta maior.
Foi na quinta, véspera do dia da bandeira e antevéspera do dia da
consciência negra. Isto mesmo no dia 18 de novembro.
Corta para Guimarães Rosa lá em 1954: “O livro é grande. Sincero o
digo, olha: até do “Poema da Identidade” estou gostando... Não é
engraçado? Poesia é coisa-causa, difícil e fácil; é uma espécie de contágio.”
Corta para Hildegard Angel em 2003 no JB (ainda circulava em papel):
“A cidade mineira de Cataguases viveu dias de glória, por ocasião do
lançamento do Livro de Poemas de Francisco Marcelo Cabral. A cidade ficou
cheia de intelectuais de todos os cantos do país. Estavam lá a diretora do
departamento de ensino da sub-reitoria de graduação da Uerj, Ira Maciel; a
crítica de arte Ledy Gonzales; o escritor Carlos Sussekind; o médico poeta
Octávio Mora; Vânia Chaves, titular de literatura brasileira da Universidade
de Lisboa; as poetas Lélia Coelho Frota, Maria do Carmo Campos, Lina
Tâmega Peixoto e o editor Léo Christiano...”
Corta para José Lino Grünewald em 1993: “Rigoroso, inventivo,
impecável.”
Corta para Manoel Bandeira em 1949:
Ao poeta de Cataguases,
Autor do belo Centauro,
O poeta Manuel Bandeira
Envia um ramo de lauro,
Saudando-o desta maneira
Ás futuro entre outros ases!
Corta para 18.11.2010: E o poeta faz 80 anos. Feliz Aniversário Chico
Cabral!
2010
Ano do Centenário de Rosário
Fusco
CHICO CABRAL
Francisco Marcelo Cabral
Por Chico Cabral
Sou cataguasense, safra 1930, aprendi
a ler sozinho, me ensinaram a escrever,
primeiro, minhas professoras D. Ruymar, D.
Sílvia e D. Lyra; depois o professor Gradim... e
muitos outros professores, cada qual muito
interessado em me afastar das "trevas" da
ignorância, porque certamente eu era mais
ignorante do que eles. E isso parece que os
incomodava, porque todos estiveram muito
envolvidos nesse processo de treinamento, pelo
qual, talvez sem o perceber, tentaram me passar
uma concepção de mundo, sacralizada por sua
expressão em palavras escritas, que eu deveria
reverenciar como definitivas marcas concretas
da realidade.
Acho que eu não aprendi bem essas sábias
lições e a primeira questão fundamental com
que me deparei (e quase parei) foi descobrir que
as palavras são portas de saída mas não de
entrada, e que a emoção ou conceito, presentes
num texto, são de quem o lê e não mais apenas
de quem o escreveu. Por isso, inclui neste livro
trechos de cartas pessoais que, a meu ver -
melhor do que críticas formais -, permitem
avaliar em que medida os textos propostos em
meus poemas deflagraram nos meus escassos-
mas-seletos leitores emoções ao menos
assemelhadas às que eu pretendi "passar".
O Humberto Ribeiro, que bateu a foto que
ilumina estas orelhas, me perguntou se este era
o meu primeiro livro. Brinquei, que sim. E vi
que estava sendo verdadeiro. Este "Livro dos
Poemas" é de fato meu primeiro livro, editado,
composto, impresso e lançado segundo todos os
ritos e costumes. Porque, vejam bem. "O
Centauro", com capa de Luciano Maurício, foi
uma edição (do pai) do Autor, distribuída à la
diable. "Inexílio", graficamente realizado pelo
trio Ronaldo Werneck, José Maria Dias da Cruz
e Adriana Monteiro, foi impresso na gráfica de
um amigo, para ser distribuído ao deus-dará na
festa de aniversário do Chico Peixoto, a quem é
dedicado. "Baile de Câmara" foi todo composto
e impresso por mim, em papel importado, que
só deu para 45 exemplares. O livro não era
assinado pelo Autor, que apenas se reservava o
copyright. Chamei a essa brincadeira editorial
de "Edição Sub Rosa".
Impresso por mim, o "Poema em 3 Cantos" foi
distribuído aos amigos presentes à festa de
meus 70 anos.
É isso! Espero que este meu primeiro livro
encontre os seus leitores: primeiro, entre as
pessoas de que já gosto e admiro; e depois
também entre aquelas de quem passarei a
gostar, por sermos da mesma tribo.
In “Livro de Poemas” (2003)
Antônio Jaime
Turbilhão de raciocínios simultâneos
Num sábado simpático, em 1999,
Joaquim Branco reuniu em sua casa um grupo de
amigos para uma “sabatina”, em torno de
Francisco Marcelo Cabral. Este, como sempre,
soltando criatividade pelas ventas, deixando-nos
de boca aberta, tantas revelações lhe saíam da
própria.
Ele sabe tudo de um tudo, e posso provar:
uma vez, uma jornalista me pediu para ajudá-la a
escrever matéria sobre um medicamento,
digamos, Vitamina C, para uma revista. “Valha-
me, Hipócrates” – pensei. E pus a moça ao
telefone, em contato imediato com o Super-
Homem, que lhe passou todas as coordenadas
sobre ácido ascórbico, efeitos e preceitos afins – e
ela faturou um dinheirinho. Fiquei feliz, por poder
socorrê-la, também, ao confirmar os super
poderes do nosso Cabral.
Para simplificar: na casa de Joaquim, o
mais jovem da turma, filho do médico e escritor
Fernando Cesário, ficou encantado ao saber que
João Guimarães Rosa, cuja obra estava
conhecendo na Faculdade, fora colega (sala a sala,
cara a cara) do nosso poeta. E mais: este leu,
simplesmente, os originais de Corpo de Baile e
Grande Sertão: Veredas. Aí, é demais para o meu
coração, também.
Seria uma entrevista, tudo devidamente
gravado em duas fitas cassete, não fosse Marcelo
um turbilhão de raciocínios simultâneos
(“organicamente criativo”, disse Paulo Francis,
sobre Glauber Rocha. Marcelo é por aí e, a
propósito, naquele dia falou também que, às
vezes, era confundido com Francis – ele próprio,
ao ver PF tomando um café, num balcão, pensou:
“O quê que eu tô fazendo ali?”. Nasceram no
Antônio Jaime
mesmo ano, por sinal, com algumas semelhanças
físicas). De forma que cortamos um dobrado, ao
tentar conduzir aquele papo ao papel. Debalde. O
jeito foi Joaquim pedir a Cabral para resumir seu
arrazoado, publicando-o, por fim, no número 1 do
“Caderno C”, do jornal Cataguases, em
25/02/2001.
Não preciso repetir o que foi publicado,
basta, portanto, lembrar certos momentos, como
quando “recitou” um poema então inédito, de sua
lavra. Ei-lo:
“Ars Poetica”
Para Lélia Coelho Frota
O leitor se assenta
o poeta puxa a cadeira
a poesia é o tombo.
O leitor se enleva
o poeta o empurra no abismo
a poesia é o voo.
O leitor se esquece
o poeta o sacode aos berros
a poesia é o susto.
O leitor é a ninfa
o poeta, o fauno no cio
a poesia é o gozo.
Como ele sabe tudo de um tudo, em outro
momento, falou que teve acesso a documentos da
Paranapanema de Metais e, lá, constatou que nos
aluviões dos rios Pomba e Muriaé há ouro na
proporção de 7/1.000.000. A exploração é viável,
dependendo de uma draga de grandes dimensões
e difícil transporte. Com ou sem draga, já que a
areia das construções locais provém daqueles rios,
concluiu que nossas casas contêm ouro na mesma
medida. Domus aurea. Só um poeta pensaria isso.
Fiquei algum tempo matutando/maturando
aquele assunto e lembrei-me que, por aquela
época, uns garimpeiros andaram revolvendo o
leito do Pomba (quiçá, o coração de algumas
fêmeas nativas, sedentas de aventuras). Não posso
aquilatar o que auferiram da aurífera féria; para
mim, foi benéfico: eles me inspiraram uns versos,
seguidos de outros, que o próprio FMC inspirou,
ao dizer que os ritmos poéticos o perseguem
(vide, em inexílio, as redondilhas produzidas pelo
movimento da correia do cilindro da padaria de
seu pai).
Não só aí, também, por exemplo, o ritmo
emitido por um simples abrir de torneira. Juntei
tudo num poemeto e Marcelo, gentilmente, o
publicou na contracapa de seu livro Cidade
Interior. Ei-lo:
Ao outro Cabral
Bem uns duzentos anos,
pós-corrida do ouro,
de novo, garimpouros
a exaurir o rio Pomba.
Não de todo sem lucro,
pode provar, no papel,
Francisco Marcelo Cabral,
o homem que sabe tudo.
Basta só um exemplo:
poeta, no seu entender,
é o que puxa a cadeira,
a poesia é o tombo.
Ouve troqueus no jorro
da torneira, anapestos
no ralo, pensa em verso
e, ao escrever, sai ouro.
Acho fraquinho o meu, perto do seu, de
qualquer forma, obrigado, poeta. Nascido em
novembro, você pode dizer que completa, agora,
ao pé da letra, oitenta primaveras. E a deste ano,
aqui na sua terra, está fértil, chuvosa, as
mangueiras, jaboticabeiras, pitangueiras,
carregadinhas de rebentos, do jeito que você as
conheceu, em suas primeiras incursões pelos
quintais dos vizinhos.
“Quando havia galos, noites e quintais” -
reza a canção de Belchior.
Emerson Teixeira Cardoso
O poeta da primeira página
Trecho de uma carta de um leitor de o
“Cataguases”: Na década de 50 todo número desse
semanário costumava trazer na primeira página,
um poema de Francisco Marcelo Cabral. Até aí
tudo bem... Acontece que um dos que li é genial:
nesse poema o poeta externava a sua dor pela
perda de uma irmã. Republiquem-no, por favor!
A. L. Soares
Reparem que é mais que um pedido:
é uma súplica. O poeta no caso é o autor de
Pedra de Sal, livro de poemas de sua lavra
original, além de outros que publicou desde a
década de 40, quando destacou-se por ser um dos
principais expoentes dessa geração que viria
culminar no concretismo. O poeta no caso é de
Cataguases e não por acaso, como já se
convencionou dizer (nada acontece por acaso,
nem mesmo a pura invenção dessas mal traçadas
linhas, que é mais fruto da admiração que tenho
por ele), o poeta da primeira página, da rua Dr.
Sobral, da Padaria Cabral, que aliás, produziu na
minha infância os mesmos biscoitos finos, tão
finos como os versos que compôs...
Dos outros livros que publicou entre 1950 e 1990
citarei, entre outros títulos, “O Centauro” (quem
tiver faça o favor de me emprestar) e “Inexílio”,
um caso mal resolvido (mal?)de amor com a
cidade que começa por dizer. “Nada me faz te amar
menos”. E a gente logo no início descobre o
porquê: de conteúdo essencialmente
autobiográfico, Marcelo faz desfilar toda uma
vivência Cataguases/Mineira que começa na
infância do poeta e que muito faz lembrar o
“Paulicéia Desvairada”, de Mário de Andrade,
falo da linguagem, ou processo de composição,
evidentemente, que usou e que bem poderia
comparar ao “Amacord” de Fellini ou “Roma”...
se é que não estou indo longe demais para situar
o bardo Cabral e suas múltiplas e sintéticas
descobertas.
Francisco Marcelo Cabral se escreve no
plural. O poeta também contista, e, aí com certo
esforço que busco no fundo da memória o título
do conto que li dele – acho que foi na revista
Água. O tema é de um nadador, um adolescente
numa competição, quando é observado pela
própria mãe que assiste a transição ou passagem
do “menino” para a idade adulta. Genial!
Chico Cabral poeta singular, símbolo de um
movimento literário local sui generis quando um
dos seus caciques a partir dele tudo se definiu
desde as primeiras criações da “Meia Pataca” o
incipiente escritor já prometia os novos cantos de
seus ideais mais concretos.
Mais do que o poema acima citado vale a pena
degustar outros sabores de seu fazer poético,
nem que seja consultando velhos jornais e pelo
menos por enquanto o caminho mais fácil é do
Arquivo Municipal. Se você não conhece o
poema então confira.
In O Cataguases (MG) (11/02/1996)
Rëquiem
No túmulo de minha irmã
Uma chama para sempre fria
Nos nossos olhos amantes
A lágrima imóvel e a poesia
Se desprendendo do monte
de terra
por sobre os mortos
Mil anjos, mil asas, soltos
Mantêm os homens despertos
Sobre as cabeças dos anjos
diademas, diademas
Luzes das luzes que brilham
Nas luzes dos meus poemas
e sobre todas as luzes
imarcescível, infrangível
A rosa e o cristal do meu sonho
O poder do impossível
E sobre a rosa e o cristal
Sobre as forças e energias
O poeta senhor das tristezas
A que contrapõe alegrias.
Joaquim Branco
Música da poesia
Mesmo depois de publicado Toda a
poesia, de Francisco Marcelo Cabral, gostaria de
comentar algo sobre seu livro há muito
(a)guardado, Pedra de sal. O título estava mesmo
destinado a não vir a lume, pois acabou alterado
para Baile de Câmara, e publicado em 1993 pelo
próprio autor, em tiragem mínima e semi-
artesanal.
Assim, apenas 40 privilegiados tiveram acesso a
sua leitura. Mas, o que levou Marcelo Cabral a
trocar a Pedra pelo Baile, o Sal pela Câmara ?
À primeira vista e por um solução simplista, se
poderia responder que esses nomes são também os
de dois poemas da coletânea, e que a escolha,
recaindo sobre um deles, simplificaria a questão.
Volta a insistente pergunta: mas o que realmente o
teria levado à troca?
O tempo passou – mais de quarenta anos – alguns
poemas sofreram mudanças, sempre para menos.
O primeiro, “Pedra de sal” é o de número 3:
Ai, Minas de antiga pedra,
velhice do chão, ai, Minas,
colhi nas tuas colinas
a flor do cristal, que medra,
mergulhando veios de ouro
na rocha macia e aberta,
e ei-la, uma aurora desperta
no diadema do touro.
(Cabral, 1993:3)
Em texto curto, evocativo, o poeta se dirige a
Minas na interjeição sofrida e pedregosa, colhe
a flor, procura o “veio de ouro” para, no final,
encontrar um recomeço – na aurora.
O segundo tem o número 13, intitula-se “Baile
de Câmara”:
Não me é fácil dizê-lo, mas imagina, uma noite,
o fundo silêncio que há no fundo
do vasilhame da cozinha,
agora em repouso nos armários,
guardando ainda o cheiro de tudo o que hoje
serviu
para abrandar o corpo, iludindo-lhe a fome;
e pensa no animal que se enrola
junto a teus pés, este morno segredo
que toda carne encerra, gravemente;
pensa na voz dos pássaros, de repente represa,
quando a aurora é ainda menos que uma
estrela
descorando no céu, junto à linha dos montes;
Joaquim Branco
e o raso silêncio que há no chão, povoado de
vermes,
não sentes que no chão, dentro dele, se formam
as delicadas vias de acesso?
Como esperar, pois, outros sinais
que os mudos acenos, gestos recolhidos
como pudor de ternura? às vezes, este pássaro
é tão-somente uma figura debuxada:
nem sequer lhe pertence para o vôo
a linha das asas, leves como os as das alturas.
Tudo é assim: suspenso. Tanques e piscinas,
naufraga a mancha verde de uma anêmona,
mas tu sabes dos pequeninos peixes que se
agitam,
e é claro que provaste o ácido prazer do limo,
ou seria impossível que eu te estivesse falando
como se fosses uma lagarta colorida
e eu, a muda vibração dos bordos de uma folha,
ao sopro desta brisa leve”.
(Cabral 1993 p. 15)
Também escrito em 2ª pessoa, porém bem mais
longo, o poema remete a alguém a quem se dirige
o eu-lírico do poeta. Vou ao dicionário: “Baile de
Câmara”. Não há registro. Lembro-me de
“Música de Câmara”. Sem necessitar consulto
novamente o dicionário:
Qualquer música vocal ou instrumental
destinada a um pequeno auditório, a um
solista, ou a pequenos agrupamentos de
solistas, como, por exemplo a sonata
para vários instrumentos (Ferreira,
s.d.,p.963)
O magro volume, com apenas 30 poemas e
preparado para um público reduzidíssimo (40
leitores), emite um solo apurado em rara melodia,
enfeixada em papel especial.
Quem sabe, matei a charada? “Baile de Câmara”,
um baile para poucos convidados. A fala em 2ª
pessoa prevê um duo, que desliza em passos pelo
salão ante um seleto auditório. O cerne da coisa é
conduzido pela mão da linguagem, não sem
mistério, segredo para chegar à poesia.
Complementam a noite, o ambiente:
silêncio. Ao fundo, a imaginação viaja. Do
vasilhame da cozinha, que serviu à fome
humana, ao animal e aos pássaros com suas
vozes, até o chão onde se arrastam os vermes, e
de volta às estrelas para encerrar com os
pequeninos peixes, o poeta mergulha nas coisas
e nos seres. Pergunta. Procura.
E – folha que é – só recebe como resposta uma
“brisa leve”. A conclusão, paradoxalmente, já
tinha vindo antes, no fragmento: “Tudo é assim:
suspenso”.
Os motivos agora se aclaram. O poeta, à
evocação da terra, preferiu o debuxo do pássaro,
sem o leque das asas, e o momento que passa, ou
o vento, que, leve, deixa apenas o sopro na
paisagem.
Notas bibliográficas
Cabral, Francisco Marcelo, Baile de Câmara –
poemas. Rio de Janeiro: Edição Sub Rosa, 1993.
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo
Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, s/d.
Joaquim Branco
In Janelas de Leitura (Livro-2010)
Ronaldo Werneck
centauro: aí tem coisa: baile de câmara:
inexílio aí: nessa pedra de sal:
sim: é Chico Marcelo: é xikin kabral.
Cataguases, 1963. “Meti-me dentro de uma
cápsula/ folheada a ouro e prata./ Como um fruto
em sua casca./ Como John Glenn em seu Atlas./ E
pássaro perpendicular,/ depois pássaro circular -/
movido a óxido de berilo,/ já não sabia quem era./
(Bicho, aragarça ou borboleta)/Dando três voltas
orbitais/ em torno do planeta.”. É sua voz, a
autenticar com rara precisão os linossignos do
Cassiano Ricardo e de sua “Viagem ex(orbita)nte”.
Sua voz, a do meu futuro compadre, padrinho do
Pablo, que me chega ainda agora como naquela
tarde de sábado na casa do Kincas Branco: lição,
dicção de poema-pois-é-poema para sempre
guardada.
Ano seguinte, na Bahia, “Jeremias Sem-Chorar”
na memória, eu ensaiava dizer o poema do
Cassiano na abertura de uma exposição de poesia
concreta que organizara. Dizer como ele, mas sem
sua precisa força: “Precisa-se de quem suba/ ao
céu./ Num cartaz, pintado a ouro,/ a lua, sem
nenhum véu/ (porque já sem oculta face)/ me
sorriu/ Como recusar um ‘precisa-se’/ quando a
precisão era minha?”. Perto dele, sempre foi
minha a precisão.
Copacabana, 1962. Rumo à casa de Alexandre
Eulálio. “Olha, o Alexandre é dos maiores
intelectuais do país”, ele me dizia enquanto
entravámos no elevador. “Hoje, é simplesmente o
Leitor Brasileiro junto à Universitá degli Studi di
Veneza, ele é quem indica as obras a serem
adquiridas!”. Pois é, o Alexandre, primo predileto
do meu futuro amigo e cineasta David Neves, e
mais tarde o autor de “A Aventura Brasileira de
Blaise Cendrars”. O poeta suíço Cendrars, que se
faria parceiro dos modernistas de 22 e com eles (“o
papa Mário de Andrade e Oswald seu profeta”)
viajaria a Minas: “Blaise, Braise, Brésil: Brésil
cendré”.
O Cendrars do controvertido poema “pros
rapazes da Verde” (“Aux jeunes gens de
Catacazes”), mesmo sendo Klaxon a revista
mencionada. Blaise entraria no imaginário dos
verdes apesar da desconfiança de Enrique de
Resende: “Falei pro Fusco: isto é trote. Trote do
Alcântara, do Mário, de todos. O Cendrars não está
no Rio, e, mesmo que estivesse, não nos mandaria
verso”. Mas, logo se confirmava a sua presença:
“No dia seguinte, veio o Rosário, com suas pernas
quilométricas, trazendo uma página do Correio da
Manhã, onde vermelhava um traço marcando a
notícia. Cendrars no Rio! Que alívio!”
O Cendrars, cuja complexa formação cultural,
no dizer de Alexandre Eulálio, “abrangia
desordenadamente Gourmont e Bérgson, a
‘Évolution Créatrice’ e o ‘Latin Mystique’,
espiritualismo russo e anarquismo internacional,
fetiches africanos e locomotivas a vapor, a palavra
de Nerval e a de Apollinaire, um cosmopolitismo
entusiasta e generoso e a obsessão por Paris – tudo
isso organizado numa espécie de simultaneidade
cubista que reconstitui para nós, de maneira muito
expressiva, o estilema 1920 da vida moderna”. E
tome de “estilemas” e erudição e redescobertas de
um momento de efervescência do caldo cultural
brasileiro, mexido pela pá dos paulistas sob o olhar
de atento entusiasmo do suíço.
Toda essa “blaiseriana” digressão só prá dizer
que eu e todo o eruditíssimo mundo de Alexandre
Eulálio passamos boa parte daquela noite de
Copacabana ouvindo atentamente nosso amigo
falar de tudo um muito e sempre com grande
propriedade. Acredito que até Cendrars, se lá
estivesse, ficaria a escutá-lo com o mesmo fascínio
Ronaldo Werneck
que o escutávamos. Acho mesmo que aquela
“complexa formação cultural” antevista por
Eulálio no poeta suíço seria também de bom
tamanho, com as devidas adaptações, para o nosso
mais que cultíssimo amigo.
Nós três nos encontraríamos anos mais tarde
numa Galeria da Gávea,lançamento do livro sobre
Cendrars (“Para Ronaldo Werneck, da raça boa
dos cataguás, com o abraço do Alexandre Eulálio.
Rio, 23 de outubro de 1978”). Acho que ele só não
retomou o papo anterior, com todo o seu brilho,
porque não teria sentido empanar a noite de glória
do amigo Alexandre. Ou retomou? Era meu
aniversário e saí mais cedo da Galeria e da Gávea,
pra me encontrar com não sei quem, não sei onde,
não sei porquê.
Quando para descrever um homem sob a chuva,
Você diz que ele vai “vestido de água corrente’ –
sinto que aí tem coisa dizia Carlos Drummond de
Andrade em carta de 19.12.1949, onde exaltava “O
Centauro”, livro de estréia de meu poeta-
compadre. E tinha mesmo: tanta coisa que, anos
mais tarde, Drummond usou (inadvertidamente?)
imagem semelhante no poema “Sob o Chuveiro
Amar”, do livro Amor Natural: “Sob o chuveiro
amar, sabão e beijos,/ ou na banheira amar, de
água vestido (...) Em 1954, diria Guimarães Rosa
sobre Pedra de Sal, depois intitulado Baile de
Câmara: “O livro é grande...Poesia é coisa-causo,
difícil e fácil; é uma espécie de contágio”.
Centro do Rio, 1967, Leone e Associados. “Eu à
poesia/ só permito uma forma:/ concisão,/
precisão das fórmulas/ matemáticas./ às parlengas
poéticas estou acostumado,/ eu ainda falo versos e
não fatos./ Porém/ se eu falo/ “A”/ este “a”/ é
uma trombeta-alarma para a Humanidade./ Se eu
falo/ “b”/ é uma nova bomba na batalha do
homem”. É de novo sua voz-Maiakóvski
interrompendo com precisão a tarde, o escritório e
seus projetos. Eu, que trouxera a tradução by
Augusto de Campos; e o Leone, que nunca ouvira
nada do poeta russo. Leone e eu, boquiabertos
com a força da poesia, sua voz, a voz do poema-
espanto parando a Avenida Rio Branco.
1979: Rua Fernando Ferrari 61, Rio – onde mais
tarde meu compadre iria morar. Ele e o poeta
Afonso Félix de Souza mergulham em litros de
larajanda enquanto eu e nosso anfitrião, o não
menos João Cabral de Melo Neto, derrubamos
discretamente uma garrafa de uísque, dores de
cabeça à parte. Laranjada & uísque não impedem
que Goiás-Félix, Pernambuco-Cabral e Minas-
Werneck se contagiem com sua vivacidade,
máquina de bom-humor. Rua Duvivier, 49,
Copacabana, 1996: idem, ibidem para Minas-
Werneck & Maranhão-Gullar. Até o gato do poeta
“Ribamar Ferreira” quedou extasiado enquanto o
ouvia: o passeio ao léu suspenso sobre a mesa
coberta de poemas objetos.
Cataguases-Rio, julho/agosto de 1968: “O poeta
do Centauro, após rápido galope, iniciou um
processo de autocrítica que ao mesmo tempo
reduziu a sua produção publicada e, acredito,
enriqueceu a sua visão do mundo, num processo
de tomada de consciência existencial e artística
que só interessa mesmo ao seu diário íntimo”, me
dizia ele, em entrevista publicada pelo SLD. “De
repente, vocês passaram a existir. E de repente eu
descobri que fazia parte da memória de vocês, que
eu vinha antes, que no entender de vocês eu fazia
parte de uma série histórica em que vocês
buscavam se integrar, que eu tinha de responder
por uma imagem que vocês a todo o momento
estavam conferindo (num processo que até hoje,
aliás, eu pratico para cima do Francisco Inácio
Peixoto e do Fusco, para sublime aporrinhação dos
dois), até então eu não me dava conta de ter uma
dimensão histórica, pequeno burguês preocupado
com a minha aut-elaboração, com os retoques no
meu universo pessoal e otras frescuras do mesmo
quilate”.
“Não há poetas/ há poemas” – afirma ele num
sólido insight de seu atualíssimo “Livro de
Poemas” (Instituto Francisca de Souza Peixoto,
2003). E ainda do alto de sua merecida cátedra,
nesta “Ars Poetica” para Lélia Coelho Frota: “O
leitor se assenta/ o poeta puxa a cadeira/ a poesia
é o tombo.// O leitor se enleva/ o poeta o empurra
no abismo/ a poesia é o vôo.// O leitor se
esquece/ o poeta sacode aos berros/ a poesia é o
susto.// O leitor é a ninfa/ o poeta, o fauno no
cio/ a poesia é o gozo”. O tombo, o vôo, o susto, o
gozo. A poesia é Francisco Marcelo Cabral, meu
guru de todo o sempre.
Naquela noite de autógrafos de 1978, Alexandre
Eulálio “honrou” o poeta cataguasense (segundo o
próprio) com a seguinte dedicatória: “Para
Francisco Marcelo, santo da minha devoção e
personagem decisiva de minha aventura particular,
com a teoria e a práxis da amizade que começou às
margens do Meia Pataca, com o abraço fraterno do
Alexandre Eulálio. Rio 23 de outubro de 1978”.
Também assino em baixo.
Cataguases 11 de agosto de 2003.
Gal Art nº 31 (MG) (Agosto/2003)
Antonio Olinto
O tamanho do verso
Quando passou o homem a escrever
em versos? Ou a pensar em verso? Ou a
engenhar uma frase mais longa e parar no meio?
Houve talvez, nele, a necessidade urgente de
respirar antes de ir em frente com o que desejava
dizer? A explicação grega, para o fenômeno do
verso, é simples e clara. Foram os autores de
teatro que impuseram uma pausa, depois de eles
atravessarem o proscênio do palco de uma
extremidade a outra - ou então os próprios
atores hajam resolvido fazer uma pausa a cada
travessia do palco, ao mesmo tempo em que
diziam o texto, de modo que o resto desse texto
ficasse para o retorno à extremidade anterior.
A verdade seria então que o uso de compor uma
série de palavras com determinadas sílabas e,
logo depois, outra série com melodia parecida,
teria criado também o verso normal do poema.
No caso de Francisco Marcelo Cabral, até o
tamanho de seu verso parece que ele equilibra as
palavras de cada um, pois é nas palavras que
repousa o cântico, o tamanho determinando o
alcance que elas vão atingir.
Estas considerações sobre o verso antigo e sua
função surgiram-me agora por causa da
excelente poesia de Francisco Marcelo Cabral,
cujos versos se postam com a força de sua
presença nos proscênio do poema, fazendo-nos
ao mesmo tempo lembrar de Cataguases de
Ascânio Lopes e de Rosário Fusco.
Um milagre surgiu no Brasil naqueles anos 20,
quando uma cidade da Zona da Mata Mineira
inovou em tudo, inclusive num então setor
quase virgem entre nós que era o cinema. Os
poemas de agora têm e nada têm a ver com isto,
mas vêm de um mesmo palco e de uma mesmo
proscênio.
Leiam-se estes versos do poema "Ai, de nós":
"Oh, um carvalho crescendo é tão sério/ (e vem
um lenhador com seu machado e fere-o) // A
carne é mesmo triste? Um barco é triste?/ Que
nos cabe de tudo quando existe?// Eu em
trânsito estou, vida é viagem/ e não deflagrei
auroras nem miragens. // Aquele que chegou, a
terra quere-o/ (ai de nós se não fosse o
mistério)".
O livro de Francisco Marcelo Cabral é também
de viagem, e que livro não o é? Só que neste as
viagens são verdadeiras, a lugares definidos,
mas nem sempre a lugares, mas visitas a
prédios, a estátuas como neste "Pietá": "Esta
mulher mais jovem/ que o homem sobre seus
joelhos,/ tota pulchra est/ nave sagrada/
empuxada pelo sopro enamorado do Arcanjo/
No rosto, nenhuma dor,/ mas a pura devoção e
piedade/ com que aceitou gerar, parir, nutrir,
amparar/ virgem de alma e de corpo/ o corpo
do filho de seu Deus."
De repente, um encontro diante da Maison de
Victor Hugo, mas, na surpresa, uma alegria
diante do reconhecimento. É o poema "Place
des Vosges": "Metido em lãs me esgueiro pelas
arcadas. / Pouco sol, uma névoa de outono. /
Em frente à Maison de Victor Hugo/ alguém
grita o meu nome /- em francês! - /surpresa e
mistério /logo desfeito em riso. // O turismo
tem disso: / colega de colégio/ louca para ser
vista ali.//"
O modo como Francisco Marcelo de Cabral faz
poesia é o de que ele domina o palco invisível
que ele e todos os poetas atravessam e, com isto,
consegue dar a cada som, a cada sílaba, uma
participação adequada na imagem que faz com
as palavras e no modo como as transforma em
poesia.
"Cidade interior", de Francisco Marcelo Cabral,
é edição do autor, capa de José Maria Dias da
Cruz, Design gráfico de Ronaldo Werneck,
revisão de Antônio Jaime Soares. Orelha de P. J.
Ribeiro e prefácio de André Seffrin.
Tribuna da Imprensa (RJ) (30/10/2007)
José Antonio Pereira
Um poeta e tanto
Apesar do rio Pomba de tantos poetas,
cantadores e versejadores, é o rio Meia Pataca, à
moda de Fernando Pessoa, o meu maior rio do
mundo. O pobre ribeirão nasce e morre em
Cataguases. Morre mesmo! Em todas as
possibilidades e impossibilidades que a morte
encerra. Dei uma olhada no dicionário lá consta:
“pataca – Substantivo feminino - significa
pequena quantidade, insignificante. Palavra de
origem controversa. Se de origem italiana
(patacca), se provençal (patac), ambas também de
origem duvidosa.” Não tenho mais duvida, o
meu Meia Pataca é de origem provençal. Tudo
isto para dizer que Chico Cabral, começou lá na
revista Meia Pataca, a qual editou juntamente com
Lina Tâmega Peixoto também poeta, esta uma
verdadeira tecelã das palavras. A Meia Pataca,
feito o ribeirão, acabou por aqui mesmo, mas nós
e a língua portuguesa ganhamos dois magníficos
poetas.
Conheci sua poesia através do meu amigo
Emerson Teixeira, que vivia falando do Centauro
e Inexílio. Ele sabia vários poemas de cor e
salteado (coisa de aluno do Newton Rossi e do
Gradim). Um dia, me apareceu com nada mais
nada menos do que “O Centauro” em sua
primeira edição, presente do próprio autor.
Confesso que tentei de todas as formas por as
mãos sobre a obra. Cansei de pedi-la por
empréstimo com o firme propósito de surrupiá-la.
Tudo em vão. Tinha que me contentar em ouvi-
los do amigo e ler poemas esparsos aqui e ali.
Tempos depois conheço Chico Cabral, quando do
lançamento do “Livro dos Poemas” - Um livraço!
Ali estão de Centauro a Pedra de Sal – foi na
véspera do sete de setembro de 2003 em noite
calorenta e calorosa lá no Chica, com direito a
filme & escambau sobre a batuta do Ronaldo
Werneck. No dia seguinte em uma turnê pela
cidade, organizada pelo Cairu, conheci
intelectuais de vários cantos e cantares deste país.
Todos aportaram às margens do Meia Pataca para
prestigiar o poeta. Em passagem pelo Colégio
Cataguases, ele nos descreveu em detalhes o
mural do Portinari, apontando vários membros da
velha guarda comunista retratada no famoso
painel. Ainda ali, na antiga casa do diretor, espaço
hoje dedicado ao professor Gradim, rimos muito
de um aviso na biblioteca do local: “Favor não
tocar nos livros”.
Depois que li Inexílio, senti uma forte necessidade
de reler Mensagem do Pessoa. E daí? Você pode
me perguntar. Na minha cabeça doida de leitor
este é meu método de ir e vir entre os meus poetas
favoritos. Acho que aquela melancolia da solidão
do navegar dos portugueses que sinto em Pessoa.
Sinto um tanto dela, na melancolia das montanhas
mineiras que é a ausência do nosso Cabral de sua
cidade. O fato é que Mensagem e Inexílio têm o
mesmo número de letras e Pessoa e Cabral são
sobrenomes bem portugueses. O pá! É melhor
parar, minhas releituras estão indo longe demais.
Voltei a vê-lo por aqui em 2007 no lançamento de
Cidade Interior, em evento onde também foi
lançado Água polida de Lina Tâmega.
Mas foi neste ano de 2010, que tive oportunidade,
ao lado de Emerson, de ouvi-lo por um bom
tempo durante o lançamento de Prefácio de vida
de Lina Tâmega, entre papos sobre livros e poesia
lembro-me de um bom assunto para os
historiadores da cidade. A significância dos
imigrantes italianos no início da produção cultural
de Cataguases, citando variadas áreas e muitos
sobrenomes, indo da música ao cinema. É óbvio
que minha incompetente memória e minha
terceira paixão – o cinema - só me faz lembrar do
Comello. E agora em dezembro, com
José Antonio Pereira
imensa alegria, o reencontrei no lançamento
de Campo Marcado.
Desde a primeira vez que o vi, sempre em
Cataguases, noto sempre a presença de Lina
Tâmega. Parece-me que desde a revista Meia
Pataca eles são irmãos siameses na poesia.
Para mim, um Zé, a melhor homenagem que
se faz a um poeta do tamanho do Chico, é ler
um poema seu. Leiam abaixo um que se tornou
nos últimos dias o meu favorito de Campo
Marcado.
Unicórnio
Para Cláudio Murilo Leal
O poema é uma forma de delicadeza
de um suicida que corta os pulsos na pia
com a torneira aberta.
Podes tocá-lo, seu sangue
não coagula
nem tinge com sua rubra vazante
tuas mãos curiosas.
Apenas injeta-se
transpondo para dentro de ti
seu sumo de rubis esfacelados
a púrpura de seus crepúsculos
seus topázios hibernais.
Não se escapa do poema.
Ele te envolve
com o diamante da cegueira
e te estrangula
com suas garras de pedra
ave-leão de face aguda e fuzilante
nunca decifrada.
Tenta conquistá-lo
e será teu como o unicórnio
atado com cordéis de linho e seda
submisso ao jugo amoroso da donzela
em seu jardim de gozos e surpresas.
Fernando Abritta
Diluindo em sonhos o Inexílio 1
do poeta Francisco Marcelo Cabral
O
POEMA PARTE
PÁGINAS EM DUAS
2
: um centauro
3
cabeça no alto
patas ao chão
4
- Terrestres telúricas terrais
patas cavam aos pés das páginas
subterrâneos da cidadememória
fagulham sentidos
5
.
- Brilhando sóis,
cerebral,
culto corta
o real local
com lógicadaga
parte alta das páginas.
6
fernando abritta
7
1
Inexílio foi publicado no jornal “Cataguases” em 1979. Um murro em minhas convicções colonizadas por Edgar Alan Poe,
Salvador Dali e pela teologia de Michel Quoist e foi a primeira visão de uma cidade múltipla, a oficial e outras subterrâneas muitas
outras de todas as formas e todas ocultas. E agora reencontro Inexílio (Cabral, Francisco Marcelo. Livro dos poemas de Francisco
Marcelo Cabral contendo O Centauro, Inexílio, Baile da Câmara, Poema em 3 Cantos e Pedra de Sal. Editora-empresa Instituto
Francisca de Souza Peixoto. Cataguases - MG, 2003. Pg. 57 a 74)
2
Inexílio inaugura um Processo novo onde o verso continua como notas de rodapé marcando as divisões da cidadememória.
3
Constante no Poeta essa dicotomia humano-animal que lembra a angústia de civilizados desligados da natura mãe pela coerção
social. “O Centauro” foi o livro de estréia do poeta em 1949 onde o poema “Homem, cavalo, centauro” funda a obra de Francisco
Marcelo Cabral.
4
30 vezes nada aparece: como verbo nadar uma só vez, muitas outras como substantivo sem substância e outras como indefinido
pronome. E Nada vai, austeramente, marcando a leitura em Inexílio.
5
Um “invejado herói versado nas ciências do corpo” (pg. 63) e “um ah! núncio de amor(te)” (pg. 64) trazem o leitor pelo pé da
página a sentir e aspirar “da terra um cheiro de poeira molhada e de folhas aromáticas” (pg. 68).
6
Na cabeça lógica do Centauro “nem o piso de pedra” (pg. 61) ou “as correias que estalavam em ritmo de redondilha” (pg. 65)
nem quando registra “uma cidade com valores não reversíveis à moeda” (pg. 66) ainda que seja rodeada “pelo ser vegetal e
múltiplo [...] raros agora, breve inexistentes” (pg. 71), nada reduz a conclusão de que “AMAR MENOS é morrer” (pg. 73) ou “que
nada é o que fica” (pg. 74).
7
Não é verdade, Poeta, ficaram em mim, em nós, essas marcas.
Zeca Junqueira
Algozes
(Inspirado no poema Inexílio,
de Francisco Marcelo Cabral)
Eu também decido que nada,
Cataguases
nem a traiçoeira fala nem a fala estudada
a falsa hospitalidade
o desprezo pelos seus poetas de tanta doçura e
nenhum centavo
nada, Cataguases
nem as costas a mim dada pelo irmão na
permuta da fraternidade pelo dinheiro
pela cupidez que cerra o punho, ameaça e não reparte
nada
nem a troca da vida de coragem e para sempre celebrada
pela vida calada e triste que range os dentes e os ossos e
paga o preço da rendição
vida fedendo a cinzas e a velório
eu também decido que nada,
nem o meu longo exílio, meu perpétuo exílio
nem o medo de que a poesia não sustente a luta
de que o poema não triunfe e não acenda a noite e
eu morra louco e mudo no
escuro das suas ruas de tempo
nada, Cataguases
nem a ameaça de que um dia o amigo enjoe e
no meio do caminho o verso engasgue
o encanto quebre e ele se vá
eu decido que nada
nem a perda da única esmeralda que tirei de ti
nem as suas ruas agora sujas, as suas praças sujas,
a sua oculta gente suja, tudo podre, tudo passado,
tudo vendido e comprado
tudo estragado, tudo fodido
eu decido que nada,
Cataguases
eu decido que nada
nem o pior dos vermes
nem a pior loucura
nada do que se oculta e me assombra nesse lodo fedorento
que corre nas veias de seus algozes
vai me fazer
te amar menos.
Entre Amigos
Com Lina Tâmega Peixoto
Ivo Barroso
“Embora hoje residindo no Rio de Janeiro, Francisco
Marcelo Cabral sempre permaneceu um
representante do que havia de melhor na literatura
que vinha de Minas.
Lembro-me bem de que, já nos inícios de ‘50, no
Suplemento Literário do Jornal do Povo, de Ponte
Nova, Marcelo era o poeta preferido do scholar Tony
Brant Ribeiro – o diretor da folha, crítico literário de
visão telescópica, que lhe dava os maiores espaços e
lhe augurava uma cintilante carreira merecida.
Marcelo começou em 1949 com O Centauro e se
entronizou definitivamente em 2003 com Pedra de
sal e Livro de poemas, para se confirmar em Cidade
interior, de 2007. Pela Book Link, do Rio, dá-nos
agora, em 2010, este Campo Marcado, com poemas
“fluviais” (como as águas de seu rio Pomba),
dotados daquele “momento de espanto” que
caracteriza a poesia de Gullar. Não podemos deixar
de transcrever, embora linearmente, seu Cada dia,
tema de tão difícil feitura: “Pedro meu pai artesão
padeiro/ forneava manhã cedo/ belos pães de puro
trigo/ fermentados “au levain”.// Confeiteiro
também, fazia, /com sutilezas de açúcar/ e sápidos
toques de essências,/ biscoitos, doces, suspiros.//
Mestre de oficio, bom homem, /saciava alheia
fome/ com alimento concreto. //Padeiro artesão,
meu pai, Pedro,/ nas artes duras da vida/ com as
mãos que espantavam medos /cozia sossego e sono.
//Sonhos, não.”
Com Reynaldo Valinho Alvarez
Com Cláudio Murilo Leal no Pen Clube
Astrid Cabral
Descobri que dias de chuva podem ser prazerosos!
Passei o domingo e a segunda entregue ao sal de
sua palavra. Reli Centauro e Inexílio e li os
magníficos últimos livros.
Sua poesia é concisa, exorcizada de retórica, mesmo
nos versos longos (Acho Inexílio muito essencial e
adoro o contraponto das intercalações em prosa
poética). Além disso, há sempre extrema sutileza,
aguda percepção do não óbvio. Subjaz em seus
versos um silêncio eloqüente, pois você não se
esgota ao dizer, avança com a sugestão (como é
imenso o aparentemente pequeno poema “Pedra”!).
Achei os sonetos magistrais, inventivos, livres.
Não entendo o preconceito que considera a forma
“instrumento enferrujado”. A idolatria à vanguarda
é guarda vã... O soneto voltou à voga. Diga-se, criar
dentro da tradição é desafio bem maior.
O espaço não me permite descer a pormenores
apreciativos. Requereria muito papel e muita tinta,
mas reafirmo aqui minha grande admiração que
vem de longe. Creia, sua poesia me eleva. Para mim
ela consegue:
“Acender o céu, ascender ao céu
desde aqui, desde agora”
crítica em cartão postal de 9/8/2004
Com Ronaldo Werneck e Lina Tâmega Peixoto
A Poesia de CHICO CABRAL
Instabilidade
Pêndulo indeterminado,
inextinguível e liberto,
vacilo entre o duplo fim.
Anseio por horizontes
do começado caminho:
vejo a luz e quero ir.
Que me rouba o ser estável?
Abro os olhos, nada vejo,
sinto a ausência do meu corpo,
rubro poente de mim.
As idas de longe acenam.
Ai, me perco nas veredas,
Quero as vindas, dai-me as vindas.
Quê me perturba a beleza?
Oh, não cantará as musas
o que a si próprio se oculta
nas dobras do não-dizer.
Minhas vestes já rasgadas
minhas mãos desencarnadas
minha presença ocultaram.
Quê me liberta o inefável?
Anjo de asas caídas,
os olhos não volverei
para contemplar os despojos.
Meu vôo cortei bem rente.
Não satisfeito, amputei-me
e apenas amanheci.
Quê me detém na pureza?
A Poesia de CHICO CABRAL
Sonetino
Não eu, que a tenho em pedaços
e apenas procuro recompô-la
como a um arlequim desfeito, exposto
a só se perder, malbaratado.
Eu não! Outros que a vão buscar, úmidos
do próprio suor reminerado.
A mim me cabe mais: a vida é um
Respirar esperançado.
Sou o pássaro e me lanço
a toda a liberdade, o olho contra o sol
e contra o vento as penas, como
quem se afasta só sem mais ruído
que um ligeiro adejar de asa acesa
e vai, lá em Minas, repousar.
Pedra
Escrevemos
Porque sabemos
que vamos morrer.
Escrevemos
porque não sabemos
por quê.
A Poesia de CHICO CABRAL
Doca
Para Alberto da Costa e Silva
Necessário dar ao poema
endereço e compromisso
e não o deixar à solta
— nave de papel e tinta
que a água do tempo dissolve.
A uma inspeção de minúcias
deve ser submetido
para que em cada atracagem
uma laboriosa estiva
libere a apreciada carga.
Necessário armar o poema
com rigorosa treliça:
que não pareça destroços
de naufrágios reunidos.
O poeta habite o poema
ou dele se distancie
que o que segue transportado
no convés e nos porões
como o ar em nossos foles
se esvazia e se repõe.
Se não lhe dá uma rota
ao poema, largado à sorte
das coisas que só flutuam
sem a nitidez das naus,
o poeta voga à matroca,
e o poema atraca no caos.
A Poesia de CHICO CABRAL
Cidade interior
É onde à noite os medos
convocam as fantasias das sombras
cortam as luzes das ruas
e ao fraco luar se tropeça
em cães ressoando
e mal se ouve a suave respiração dos sonhos
as pisadas no tambor dos pesadelos
e os silvos remordidos do gozo
(e onde mortos rumorejam pelas grotas)
uma cidade para sempre estacionada
no poema
- falsa e inesquecível.
Vitamors
Para Ascendino Leite
O passado mal se equilibra, nos derruídos blocos
desunidos
da extinta harmonia.
O futuro demole todo o cristal
e dura como o barro — a perspectiva do pó.
Sonhos, amores, juventude
— o presente é o tempo que morre em você.
A Poesia de CHICO CABRAL
A carne da palavra
Há no teu nome tanto
de animal e alvorada, tanta vida,
que o amo também.
Pronunciá-lo é gozar,
sentir tua presença,
palpável cristal.
És insondável, és,
embora em superfície toda brilhe
tua estrela, tua fonte.
Tens derramado em tuas letras
um sangue algum, que te define e forma
e se comunica e vem
ou sou eu quem o extrai
e do aparente friúme da palavra
reacende a chama essencial.
Pode muito Eros:
de seu reino de asas cortadas
nunca escaparás.
Que a palavra em ti
pertence-me, e eu condeno-te a sofrer
a límpida maldade
do verso que te despe.
Confia, pois vai nisto, bem que rude,
um amargo travo de amor.
A Poesia de CHICO CABRAL
Ai de nós
Oh, um carvalho crescendo é tão sério
(e vem o lenhador com seu machado e fere-o).
A carne é mesmo triste? Um barco é triste?
Que nos cabe de tudo quanto existe?
Eu em trânsito estou, vida é viagem
E não deflagrei auroras nem miragens.
Aquele que chegou, a terra quere-o
(ai de nós, se não fosse o mistério).
Inexílio II
Todo poema é celebração
mesmo não lido.
Todo poema é de amor
mesmo perdido.
Todo poema fica por aí
mesmo esquecido
A Poesia de CHICO CABRAL
Poema
A palavra nasce de onde morre
breve fulguração da fala
na voz e na página.
Necessário atá-la a outra palavra
igualmente fugaz
— corrente de brilhos longos e curtos
nave passando iluminada.
O silêncio gera a palavra e consome
sua espessa matriz
No universo sem som e sem tempo
haver a palavra é inútil
rede para a luz e o vento.
O visgo e o ferrão da palavra
impõem cuidados ao toque:
faca afiada ,
empunhada pela lâmina.
A agulha da palavra crava
na mão e na boca que arrisca
comunhão impossível
do visível
e do imaginado.
A Poesia de CHICO CABRAL
Hora nenhuma
Pelas frestas do soalho,
coam-se as crinas oblíquas
do cavalo do vento.
Tremem as velas e as roupas finas
ao sopro dessa luz sem sombra
que tanto medo me dá
A mãe sussurra não olhes
o piso nem as telhas.
Nas paredes nuas o sono os aguarda
entre as manchas de mofo
e seus desenhos de limo verde.
Aqui mora a noite
e seu bafo de roupa guardada
suas lãs descoradas e ásperas
como peles selvagens mal curtidas.
Essas coisas velhas recendem a calor suado.
Debaixo da cama arfa um cachorro cego
e um jarro de miosótis tinge
com sua morte azul
a penumbra e o silêncio.
O medo não abre os olhos do menino
que apenas pressente o abismo do universo
e embarca no bote de flanela.
O sono se abate sobre o peito
como um par de asas sem ave
uma rajada de brisa adocicada e morna,
uma persiana que desce nos fios.
A mãe já não diz mais nada que se ouça,
apenas nela vibra
a delicada respiração do menino
—fonte e sinal da vida que prossegue.
A Poesia de CHICO CABRAL
Ainda mais
Escrevo a língua do meu avô
e tenho a sua cara
no espelho fugidio onde busco
as marcas do que sou.
Vejo o rio passar
Os peixes das palavras boquejam
espuma e água suja
no sulcado perau dos versos
o poema flui arrastando em sua calda
a mudez dos afogados e os gritos
dos pescadores de areia.
Um passo atrás, que eu possa ver
essa procissão que se arrasta
desde muito antes do ano de mil
novecentos e trinta, quando eu mesmo
vazei num jato de sangue e soro
e gritei pela primeira vez: eu
— e não, e nunca na verdade, fui ouvido.
Um passo atrás
que o sol está secando as chuvas do poente
um corpo vai-se atirar na direção do naufrágio
e a chama de uma vela
será enviada a procurá-lo
Escrevo a língua do meu avô
sem sua permissão,
por isso apenas busco seduzir
os fantasmas que me visitam
por isso venho até o rio
para olhá-lo nos olhos
e numa canção inaudível
berçar os seres amáveis que o habitam
e se coçam nas facas dos peixes
Vejo o rio passar e mal me vejo
enquanto envelheço à sua beira
A luz e o silêncio em mim sabem a vida
e enquanto respiro
tudo o que não entendo faz sentido
A Poesia de CHICO CABRAL
Água serpente
Singrar o rio nos barcos de areia
abrindo a veia canal
do seu fluxo barrento.
Sangrar o Pomba para deter seu voo
de palavra quimera confinado às margens.
Despojar o rio das roupas de vapor
para que vaze o visgo de seu clima,
Esgotar o rio Pomba para que revele
o ouro fino do leito, os saibros dos poemas.
Cataguases
A cidade exporta
tecidos de algodão que não planta
e poemas que não lê.
No varejo de algumas lojas
se pode até comprar livros.
O jeito é agarrar com todo cuidado
a primeira palavra vazia
que esvoace gratuita na brisa do
Pomba,
e devolvê-la intacta
aos ventos, insanos e surdos
A Poesia de CHICO CABRAL
Inéxilio
(.......)
MENOS
que nada
é o pó do poema
que aqui sobrenada
sobre tudo
(que nada!)
sobretudo
sobre nada (24)
que nada é o que resta
do rosto e da festa
do rasto e da gesta
que nada é o que sobra
do sabre e da sombra
da cãibra e da cobra
que nada é o que fica
da faca e da treva
da trave e da chama
(24)
Nada me faz te amar menos
Chicos especial   80 anos de Chico cabral

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Chicos especial 80 anos de Chico cabral

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  • 2. Chicos Edição Especial 80 anos Chico Cabral e-zine de literatura e idéias de Cataguases – MG Capa Capa de Gabriel Franco sobre foto de Victor Giudice Editores José Antonio Pereira Emerson Teixeira Cardoso Colaboradores desta edição: Antônio Jaime Soares Antonio Olinto (in memoriam) Fernando Abritta Joaquim Branco Ronaldo Werneck Zeca Junqueira Fale conosco em: chicos.cataletras@hotmail.com Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ Dedim de prosa Neste novembro de 2010, logo depois do feriado da proclamação da república, comemoramos os 80 anos do nosso poeta maior. Foi na quinta, véspera do dia da bandeira e antevéspera do dia da consciência negra. Isto mesmo no dia 18 de novembro. Corta para Guimarães Rosa lá em 1954: “O livro é grande. Sincero o digo, olha: até do “Poema da Identidade” estou gostando... Não é engraçado? Poesia é coisa-causa, difícil e fácil; é uma espécie de contágio.” Corta para Hildegard Angel em 2003 no JB (ainda circulava em papel): “A cidade mineira de Cataguases viveu dias de glória, por ocasião do lançamento do Livro de Poemas de Francisco Marcelo Cabral. A cidade ficou cheia de intelectuais de todos os cantos do país. Estavam lá a diretora do departamento de ensino da sub-reitoria de graduação da Uerj, Ira Maciel; a crítica de arte Ledy Gonzales; o escritor Carlos Sussekind; o médico poeta Octávio Mora; Vânia Chaves, titular de literatura brasileira da Universidade de Lisboa; as poetas Lélia Coelho Frota, Maria do Carmo Campos, Lina Tâmega Peixoto e o editor Léo Christiano...” Corta para José Lino Grünewald em 1993: “Rigoroso, inventivo, impecável.” Corta para Manoel Bandeira em 1949: Ao poeta de Cataguases, Autor do belo Centauro, O poeta Manuel Bandeira Envia um ramo de lauro, Saudando-o desta maneira Ás futuro entre outros ases! Corta para 18.11.2010: E o poeta faz 80 anos. Feliz Aniversário Chico Cabral! 2010 Ano do Centenário de Rosário Fusco
  • 3. CHICO CABRAL Francisco Marcelo Cabral Por Chico Cabral Sou cataguasense, safra 1930, aprendi a ler sozinho, me ensinaram a escrever, primeiro, minhas professoras D. Ruymar, D. Sílvia e D. Lyra; depois o professor Gradim... e muitos outros professores, cada qual muito interessado em me afastar das "trevas" da ignorância, porque certamente eu era mais ignorante do que eles. E isso parece que os incomodava, porque todos estiveram muito envolvidos nesse processo de treinamento, pelo qual, talvez sem o perceber, tentaram me passar uma concepção de mundo, sacralizada por sua expressão em palavras escritas, que eu deveria reverenciar como definitivas marcas concretas da realidade. Acho que eu não aprendi bem essas sábias lições e a primeira questão fundamental com que me deparei (e quase parei) foi descobrir que as palavras são portas de saída mas não de entrada, e que a emoção ou conceito, presentes num texto, são de quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu. Por isso, inclui neste livro trechos de cartas pessoais que, a meu ver - melhor do que críticas formais -, permitem avaliar em que medida os textos propostos em meus poemas deflagraram nos meus escassos- mas-seletos leitores emoções ao menos assemelhadas às que eu pretendi "passar". O Humberto Ribeiro, que bateu a foto que ilumina estas orelhas, me perguntou se este era o meu primeiro livro. Brinquei, que sim. E vi que estava sendo verdadeiro. Este "Livro dos Poemas" é de fato meu primeiro livro, editado, composto, impresso e lançado segundo todos os ritos e costumes. Porque, vejam bem. "O Centauro", com capa de Luciano Maurício, foi uma edição (do pai) do Autor, distribuída à la diable. "Inexílio", graficamente realizado pelo trio Ronaldo Werneck, José Maria Dias da Cruz e Adriana Monteiro, foi impresso na gráfica de um amigo, para ser distribuído ao deus-dará na festa de aniversário do Chico Peixoto, a quem é dedicado. "Baile de Câmara" foi todo composto e impresso por mim, em papel importado, que só deu para 45 exemplares. O livro não era assinado pelo Autor, que apenas se reservava o copyright. Chamei a essa brincadeira editorial de "Edição Sub Rosa". Impresso por mim, o "Poema em 3 Cantos" foi distribuído aos amigos presentes à festa de meus 70 anos. É isso! Espero que este meu primeiro livro encontre os seus leitores: primeiro, entre as pessoas de que já gosto e admiro; e depois também entre aquelas de quem passarei a gostar, por sermos da mesma tribo. In “Livro de Poemas” (2003)
  • 4. Antônio Jaime Turbilhão de raciocínios simultâneos Num sábado simpático, em 1999, Joaquim Branco reuniu em sua casa um grupo de amigos para uma “sabatina”, em torno de Francisco Marcelo Cabral. Este, como sempre, soltando criatividade pelas ventas, deixando-nos de boca aberta, tantas revelações lhe saíam da própria. Ele sabe tudo de um tudo, e posso provar: uma vez, uma jornalista me pediu para ajudá-la a escrever matéria sobre um medicamento, digamos, Vitamina C, para uma revista. “Valha- me, Hipócrates” – pensei. E pus a moça ao telefone, em contato imediato com o Super- Homem, que lhe passou todas as coordenadas sobre ácido ascórbico, efeitos e preceitos afins – e ela faturou um dinheirinho. Fiquei feliz, por poder socorrê-la, também, ao confirmar os super poderes do nosso Cabral. Para simplificar: na casa de Joaquim, o mais jovem da turma, filho do médico e escritor Fernando Cesário, ficou encantado ao saber que João Guimarães Rosa, cuja obra estava conhecendo na Faculdade, fora colega (sala a sala, cara a cara) do nosso poeta. E mais: este leu, simplesmente, os originais de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Aí, é demais para o meu coração, também. Seria uma entrevista, tudo devidamente gravado em duas fitas cassete, não fosse Marcelo um turbilhão de raciocínios simultâneos (“organicamente criativo”, disse Paulo Francis, sobre Glauber Rocha. Marcelo é por aí e, a propósito, naquele dia falou também que, às vezes, era confundido com Francis – ele próprio, ao ver PF tomando um café, num balcão, pensou: “O quê que eu tô fazendo ali?”. Nasceram no
  • 5. Antônio Jaime mesmo ano, por sinal, com algumas semelhanças físicas). De forma que cortamos um dobrado, ao tentar conduzir aquele papo ao papel. Debalde. O jeito foi Joaquim pedir a Cabral para resumir seu arrazoado, publicando-o, por fim, no número 1 do “Caderno C”, do jornal Cataguases, em 25/02/2001. Não preciso repetir o que foi publicado, basta, portanto, lembrar certos momentos, como quando “recitou” um poema então inédito, de sua lavra. Ei-lo: “Ars Poetica” Para Lélia Coelho Frota O leitor se assenta o poeta puxa a cadeira a poesia é o tombo. O leitor se enleva o poeta o empurra no abismo a poesia é o voo. O leitor se esquece o poeta o sacode aos berros a poesia é o susto. O leitor é a ninfa o poeta, o fauno no cio a poesia é o gozo. Como ele sabe tudo de um tudo, em outro momento, falou que teve acesso a documentos da Paranapanema de Metais e, lá, constatou que nos aluviões dos rios Pomba e Muriaé há ouro na proporção de 7/1.000.000. A exploração é viável, dependendo de uma draga de grandes dimensões e difícil transporte. Com ou sem draga, já que a areia das construções locais provém daqueles rios, concluiu que nossas casas contêm ouro na mesma medida. Domus aurea. Só um poeta pensaria isso. Fiquei algum tempo matutando/maturando aquele assunto e lembrei-me que, por aquela época, uns garimpeiros andaram revolvendo o leito do Pomba (quiçá, o coração de algumas fêmeas nativas, sedentas de aventuras). Não posso aquilatar o que auferiram da aurífera féria; para mim, foi benéfico: eles me inspiraram uns versos, seguidos de outros, que o próprio FMC inspirou, ao dizer que os ritmos poéticos o perseguem (vide, em inexílio, as redondilhas produzidas pelo movimento da correia do cilindro da padaria de seu pai). Não só aí, também, por exemplo, o ritmo emitido por um simples abrir de torneira. Juntei tudo num poemeto e Marcelo, gentilmente, o publicou na contracapa de seu livro Cidade Interior. Ei-lo: Ao outro Cabral Bem uns duzentos anos, pós-corrida do ouro, de novo, garimpouros a exaurir o rio Pomba. Não de todo sem lucro, pode provar, no papel, Francisco Marcelo Cabral, o homem que sabe tudo. Basta só um exemplo: poeta, no seu entender, é o que puxa a cadeira, a poesia é o tombo. Ouve troqueus no jorro da torneira, anapestos no ralo, pensa em verso e, ao escrever, sai ouro. Acho fraquinho o meu, perto do seu, de qualquer forma, obrigado, poeta. Nascido em novembro, você pode dizer que completa, agora, ao pé da letra, oitenta primaveras. E a deste ano, aqui na sua terra, está fértil, chuvosa, as mangueiras, jaboticabeiras, pitangueiras, carregadinhas de rebentos, do jeito que você as conheceu, em suas primeiras incursões pelos quintais dos vizinhos. “Quando havia galos, noites e quintais” - reza a canção de Belchior.
  • 6. Emerson Teixeira Cardoso O poeta da primeira página Trecho de uma carta de um leitor de o “Cataguases”: Na década de 50 todo número desse semanário costumava trazer na primeira página, um poema de Francisco Marcelo Cabral. Até aí tudo bem... Acontece que um dos que li é genial: nesse poema o poeta externava a sua dor pela perda de uma irmã. Republiquem-no, por favor! A. L. Soares Reparem que é mais que um pedido: é uma súplica. O poeta no caso é o autor de Pedra de Sal, livro de poemas de sua lavra original, além de outros que publicou desde a década de 40, quando destacou-se por ser um dos principais expoentes dessa geração que viria culminar no concretismo. O poeta no caso é de Cataguases e não por acaso, como já se convencionou dizer (nada acontece por acaso, nem mesmo a pura invenção dessas mal traçadas linhas, que é mais fruto da admiração que tenho por ele), o poeta da primeira página, da rua Dr. Sobral, da Padaria Cabral, que aliás, produziu na minha infância os mesmos biscoitos finos, tão finos como os versos que compôs... Dos outros livros que publicou entre 1950 e 1990 citarei, entre outros títulos, “O Centauro” (quem tiver faça o favor de me emprestar) e “Inexílio”, um caso mal resolvido (mal?)de amor com a cidade que começa por dizer. “Nada me faz te amar menos”. E a gente logo no início descobre o porquê: de conteúdo essencialmente autobiográfico, Marcelo faz desfilar toda uma vivência Cataguases/Mineira que começa na infância do poeta e que muito faz lembrar o “Paulicéia Desvairada”, de Mário de Andrade, falo da linguagem, ou processo de composição, evidentemente, que usou e que bem poderia comparar ao “Amacord” de Fellini ou “Roma”... se é que não estou indo longe demais para situar o bardo Cabral e suas múltiplas e sintéticas descobertas. Francisco Marcelo Cabral se escreve no plural. O poeta também contista, e, aí com certo esforço que busco no fundo da memória o título do conto que li dele – acho que foi na revista Água. O tema é de um nadador, um adolescente numa competição, quando é observado pela própria mãe que assiste a transição ou passagem do “menino” para a idade adulta. Genial! Chico Cabral poeta singular, símbolo de um movimento literário local sui generis quando um dos seus caciques a partir dele tudo se definiu desde as primeiras criações da “Meia Pataca” o incipiente escritor já prometia os novos cantos de seus ideais mais concretos. Mais do que o poema acima citado vale a pena degustar outros sabores de seu fazer poético, nem que seja consultando velhos jornais e pelo menos por enquanto o caminho mais fácil é do Arquivo Municipal. Se você não conhece o poema então confira. In O Cataguases (MG) (11/02/1996) Rëquiem No túmulo de minha irmã Uma chama para sempre fria Nos nossos olhos amantes A lágrima imóvel e a poesia Se desprendendo do monte de terra por sobre os mortos Mil anjos, mil asas, soltos Mantêm os homens despertos Sobre as cabeças dos anjos diademas, diademas Luzes das luzes que brilham Nas luzes dos meus poemas e sobre todas as luzes imarcescível, infrangível A rosa e o cristal do meu sonho O poder do impossível E sobre a rosa e o cristal Sobre as forças e energias O poeta senhor das tristezas A que contrapõe alegrias.
  • 7. Joaquim Branco Música da poesia Mesmo depois de publicado Toda a poesia, de Francisco Marcelo Cabral, gostaria de comentar algo sobre seu livro há muito (a)guardado, Pedra de sal. O título estava mesmo destinado a não vir a lume, pois acabou alterado para Baile de Câmara, e publicado em 1993 pelo próprio autor, em tiragem mínima e semi- artesanal. Assim, apenas 40 privilegiados tiveram acesso a sua leitura. Mas, o que levou Marcelo Cabral a trocar a Pedra pelo Baile, o Sal pela Câmara ? À primeira vista e por um solução simplista, se poderia responder que esses nomes são também os de dois poemas da coletânea, e que a escolha, recaindo sobre um deles, simplificaria a questão. Volta a insistente pergunta: mas o que realmente o teria levado à troca? O tempo passou – mais de quarenta anos – alguns poemas sofreram mudanças, sempre para menos. O primeiro, “Pedra de sal” é o de número 3: Ai, Minas de antiga pedra, velhice do chão, ai, Minas, colhi nas tuas colinas a flor do cristal, que medra, mergulhando veios de ouro na rocha macia e aberta, e ei-la, uma aurora desperta no diadema do touro. (Cabral, 1993:3) Em texto curto, evocativo, o poeta se dirige a Minas na interjeição sofrida e pedregosa, colhe a flor, procura o “veio de ouro” para, no final, encontrar um recomeço – na aurora. O segundo tem o número 13, intitula-se “Baile de Câmara”: Não me é fácil dizê-lo, mas imagina, uma noite, o fundo silêncio que há no fundo do vasilhame da cozinha, agora em repouso nos armários, guardando ainda o cheiro de tudo o que hoje serviu para abrandar o corpo, iludindo-lhe a fome; e pensa no animal que se enrola junto a teus pés, este morno segredo que toda carne encerra, gravemente; pensa na voz dos pássaros, de repente represa, quando a aurora é ainda menos que uma estrela descorando no céu, junto à linha dos montes;
  • 8. Joaquim Branco e o raso silêncio que há no chão, povoado de vermes, não sentes que no chão, dentro dele, se formam as delicadas vias de acesso? Como esperar, pois, outros sinais que os mudos acenos, gestos recolhidos como pudor de ternura? às vezes, este pássaro é tão-somente uma figura debuxada: nem sequer lhe pertence para o vôo a linha das asas, leves como os as das alturas. Tudo é assim: suspenso. Tanques e piscinas, naufraga a mancha verde de uma anêmona, mas tu sabes dos pequeninos peixes que se agitam, e é claro que provaste o ácido prazer do limo, ou seria impossível que eu te estivesse falando como se fosses uma lagarta colorida e eu, a muda vibração dos bordos de uma folha, ao sopro desta brisa leve”. (Cabral 1993 p. 15) Também escrito em 2ª pessoa, porém bem mais longo, o poema remete a alguém a quem se dirige o eu-lírico do poeta. Vou ao dicionário: “Baile de Câmara”. Não há registro. Lembro-me de “Música de Câmara”. Sem necessitar consulto novamente o dicionário: Qualquer música vocal ou instrumental destinada a um pequeno auditório, a um solista, ou a pequenos agrupamentos de solistas, como, por exemplo a sonata para vários instrumentos (Ferreira, s.d.,p.963) O magro volume, com apenas 30 poemas e preparado para um público reduzidíssimo (40 leitores), emite um solo apurado em rara melodia, enfeixada em papel especial. Quem sabe, matei a charada? “Baile de Câmara”, um baile para poucos convidados. A fala em 2ª pessoa prevê um duo, que desliza em passos pelo salão ante um seleto auditório. O cerne da coisa é conduzido pela mão da linguagem, não sem mistério, segredo para chegar à poesia. Complementam a noite, o ambiente: silêncio. Ao fundo, a imaginação viaja. Do vasilhame da cozinha, que serviu à fome humana, ao animal e aos pássaros com suas vozes, até o chão onde se arrastam os vermes, e de volta às estrelas para encerrar com os pequeninos peixes, o poeta mergulha nas coisas e nos seres. Pergunta. Procura. E – folha que é – só recebe como resposta uma “brisa leve”. A conclusão, paradoxalmente, já tinha vindo antes, no fragmento: “Tudo é assim: suspenso”. Os motivos agora se aclaram. O poeta, à evocação da terra, preferiu o debuxo do pássaro, sem o leque das asas, e o momento que passa, ou o vento, que, leve, deixa apenas o sopro na paisagem. Notas bibliográficas Cabral, Francisco Marcelo, Baile de Câmara – poemas. Rio de Janeiro: Edição Sub Rosa, 1993. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. Joaquim Branco In Janelas de Leitura (Livro-2010)
  • 9. Ronaldo Werneck centauro: aí tem coisa: baile de câmara: inexílio aí: nessa pedra de sal: sim: é Chico Marcelo: é xikin kabral. Cataguases, 1963. “Meti-me dentro de uma cápsula/ folheada a ouro e prata./ Como um fruto em sua casca./ Como John Glenn em seu Atlas./ E pássaro perpendicular,/ depois pássaro circular -/ movido a óxido de berilo,/ já não sabia quem era./ (Bicho, aragarça ou borboleta)/Dando três voltas orbitais/ em torno do planeta.”. É sua voz, a autenticar com rara precisão os linossignos do Cassiano Ricardo e de sua “Viagem ex(orbita)nte”. Sua voz, a do meu futuro compadre, padrinho do Pablo, que me chega ainda agora como naquela tarde de sábado na casa do Kincas Branco: lição, dicção de poema-pois-é-poema para sempre guardada. Ano seguinte, na Bahia, “Jeremias Sem-Chorar” na memória, eu ensaiava dizer o poema do Cassiano na abertura de uma exposição de poesia concreta que organizara. Dizer como ele, mas sem sua precisa força: “Precisa-se de quem suba/ ao céu./ Num cartaz, pintado a ouro,/ a lua, sem nenhum véu/ (porque já sem oculta face)/ me sorriu/ Como recusar um ‘precisa-se’/ quando a precisão era minha?”. Perto dele, sempre foi minha a precisão. Copacabana, 1962. Rumo à casa de Alexandre Eulálio. “Olha, o Alexandre é dos maiores intelectuais do país”, ele me dizia enquanto entravámos no elevador. “Hoje, é simplesmente o Leitor Brasileiro junto à Universitá degli Studi di Veneza, ele é quem indica as obras a serem adquiridas!”. Pois é, o Alexandre, primo predileto do meu futuro amigo e cineasta David Neves, e mais tarde o autor de “A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars”. O poeta suíço Cendrars, que se faria parceiro dos modernistas de 22 e com eles (“o papa Mário de Andrade e Oswald seu profeta”) viajaria a Minas: “Blaise, Braise, Brésil: Brésil cendré”. O Cendrars do controvertido poema “pros rapazes da Verde” (“Aux jeunes gens de Catacazes”), mesmo sendo Klaxon a revista mencionada. Blaise entraria no imaginário dos verdes apesar da desconfiança de Enrique de Resende: “Falei pro Fusco: isto é trote. Trote do Alcântara, do Mário, de todos. O Cendrars não está no Rio, e, mesmo que estivesse, não nos mandaria verso”. Mas, logo se confirmava a sua presença: “No dia seguinte, veio o Rosário, com suas pernas quilométricas, trazendo uma página do Correio da Manhã, onde vermelhava um traço marcando a notícia. Cendrars no Rio! Que alívio!” O Cendrars, cuja complexa formação cultural, no dizer de Alexandre Eulálio, “abrangia desordenadamente Gourmont e Bérgson, a ‘Évolution Créatrice’ e o ‘Latin Mystique’, espiritualismo russo e anarquismo internacional, fetiches africanos e locomotivas a vapor, a palavra de Nerval e a de Apollinaire, um cosmopolitismo entusiasta e generoso e a obsessão por Paris – tudo isso organizado numa espécie de simultaneidade cubista que reconstitui para nós, de maneira muito expressiva, o estilema 1920 da vida moderna”. E tome de “estilemas” e erudição e redescobertas de um momento de efervescência do caldo cultural brasileiro, mexido pela pá dos paulistas sob o olhar de atento entusiasmo do suíço. Toda essa “blaiseriana” digressão só prá dizer que eu e todo o eruditíssimo mundo de Alexandre Eulálio passamos boa parte daquela noite de Copacabana ouvindo atentamente nosso amigo falar de tudo um muito e sempre com grande propriedade. Acredito que até Cendrars, se lá estivesse, ficaria a escutá-lo com o mesmo fascínio
  • 10. Ronaldo Werneck que o escutávamos. Acho mesmo que aquela “complexa formação cultural” antevista por Eulálio no poeta suíço seria também de bom tamanho, com as devidas adaptações, para o nosso mais que cultíssimo amigo. Nós três nos encontraríamos anos mais tarde numa Galeria da Gávea,lançamento do livro sobre Cendrars (“Para Ronaldo Werneck, da raça boa dos cataguás, com o abraço do Alexandre Eulálio. Rio, 23 de outubro de 1978”). Acho que ele só não retomou o papo anterior, com todo o seu brilho, porque não teria sentido empanar a noite de glória do amigo Alexandre. Ou retomou? Era meu aniversário e saí mais cedo da Galeria e da Gávea, pra me encontrar com não sei quem, não sei onde, não sei porquê. Quando para descrever um homem sob a chuva, Você diz que ele vai “vestido de água corrente’ – sinto que aí tem coisa dizia Carlos Drummond de Andrade em carta de 19.12.1949, onde exaltava “O Centauro”, livro de estréia de meu poeta- compadre. E tinha mesmo: tanta coisa que, anos mais tarde, Drummond usou (inadvertidamente?) imagem semelhante no poema “Sob o Chuveiro Amar”, do livro Amor Natural: “Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,/ ou na banheira amar, de água vestido (...) Em 1954, diria Guimarães Rosa sobre Pedra de Sal, depois intitulado Baile de Câmara: “O livro é grande...Poesia é coisa-causo, difícil e fácil; é uma espécie de contágio”. Centro do Rio, 1967, Leone e Associados. “Eu à poesia/ só permito uma forma:/ concisão,/ precisão das fórmulas/ matemáticas./ às parlengas poéticas estou acostumado,/ eu ainda falo versos e não fatos./ Porém/ se eu falo/ “A”/ este “a”/ é uma trombeta-alarma para a Humanidade./ Se eu falo/ “b”/ é uma nova bomba na batalha do homem”. É de novo sua voz-Maiakóvski interrompendo com precisão a tarde, o escritório e seus projetos. Eu, que trouxera a tradução by Augusto de Campos; e o Leone, que nunca ouvira nada do poeta russo. Leone e eu, boquiabertos com a força da poesia, sua voz, a voz do poema- espanto parando a Avenida Rio Branco. 1979: Rua Fernando Ferrari 61, Rio – onde mais tarde meu compadre iria morar. Ele e o poeta Afonso Félix de Souza mergulham em litros de larajanda enquanto eu e nosso anfitrião, o não menos João Cabral de Melo Neto, derrubamos discretamente uma garrafa de uísque, dores de cabeça à parte. Laranjada & uísque não impedem que Goiás-Félix, Pernambuco-Cabral e Minas- Werneck se contagiem com sua vivacidade, máquina de bom-humor. Rua Duvivier, 49, Copacabana, 1996: idem, ibidem para Minas- Werneck & Maranhão-Gullar. Até o gato do poeta “Ribamar Ferreira” quedou extasiado enquanto o ouvia: o passeio ao léu suspenso sobre a mesa coberta de poemas objetos. Cataguases-Rio, julho/agosto de 1968: “O poeta do Centauro, após rápido galope, iniciou um processo de autocrítica que ao mesmo tempo reduziu a sua produção publicada e, acredito, enriqueceu a sua visão do mundo, num processo de tomada de consciência existencial e artística que só interessa mesmo ao seu diário íntimo”, me dizia ele, em entrevista publicada pelo SLD. “De repente, vocês passaram a existir. E de repente eu descobri que fazia parte da memória de vocês, que eu vinha antes, que no entender de vocês eu fazia parte de uma série histórica em que vocês buscavam se integrar, que eu tinha de responder por uma imagem que vocês a todo o momento estavam conferindo (num processo que até hoje, aliás, eu pratico para cima do Francisco Inácio Peixoto e do Fusco, para sublime aporrinhação dos dois), até então eu não me dava conta de ter uma dimensão histórica, pequeno burguês preocupado com a minha aut-elaboração, com os retoques no meu universo pessoal e otras frescuras do mesmo quilate”. “Não há poetas/ há poemas” – afirma ele num sólido insight de seu atualíssimo “Livro de Poemas” (Instituto Francisca de Souza Peixoto, 2003). E ainda do alto de sua merecida cátedra, nesta “Ars Poetica” para Lélia Coelho Frota: “O leitor se assenta/ o poeta puxa a cadeira/ a poesia é o tombo.// O leitor se enleva/ o poeta o empurra no abismo/ a poesia é o vôo.// O leitor se esquece/ o poeta sacode aos berros/ a poesia é o susto.// O leitor é a ninfa/ o poeta, o fauno no cio/ a poesia é o gozo”. O tombo, o vôo, o susto, o gozo. A poesia é Francisco Marcelo Cabral, meu guru de todo o sempre. Naquela noite de autógrafos de 1978, Alexandre Eulálio “honrou” o poeta cataguasense (segundo o próprio) com a seguinte dedicatória: “Para Francisco Marcelo, santo da minha devoção e personagem decisiva de minha aventura particular, com a teoria e a práxis da amizade que começou às margens do Meia Pataca, com o abraço fraterno do Alexandre Eulálio. Rio 23 de outubro de 1978”. Também assino em baixo. Cataguases 11 de agosto de 2003. Gal Art nº 31 (MG) (Agosto/2003)
  • 11. Antonio Olinto O tamanho do verso Quando passou o homem a escrever em versos? Ou a pensar em verso? Ou a engenhar uma frase mais longa e parar no meio? Houve talvez, nele, a necessidade urgente de respirar antes de ir em frente com o que desejava dizer? A explicação grega, para o fenômeno do verso, é simples e clara. Foram os autores de teatro que impuseram uma pausa, depois de eles atravessarem o proscênio do palco de uma extremidade a outra - ou então os próprios atores hajam resolvido fazer uma pausa a cada travessia do palco, ao mesmo tempo em que diziam o texto, de modo que o resto desse texto ficasse para o retorno à extremidade anterior. A verdade seria então que o uso de compor uma série de palavras com determinadas sílabas e, logo depois, outra série com melodia parecida, teria criado também o verso normal do poema. No caso de Francisco Marcelo Cabral, até o tamanho de seu verso parece que ele equilibra as palavras de cada um, pois é nas palavras que repousa o cântico, o tamanho determinando o alcance que elas vão atingir. Estas considerações sobre o verso antigo e sua função surgiram-me agora por causa da excelente poesia de Francisco Marcelo Cabral, cujos versos se postam com a força de sua presença nos proscênio do poema, fazendo-nos ao mesmo tempo lembrar de Cataguases de Ascânio Lopes e de Rosário Fusco. Um milagre surgiu no Brasil naqueles anos 20, quando uma cidade da Zona da Mata Mineira inovou em tudo, inclusive num então setor quase virgem entre nós que era o cinema. Os poemas de agora têm e nada têm a ver com isto, mas vêm de um mesmo palco e de uma mesmo proscênio. Leiam-se estes versos do poema "Ai, de nós": "Oh, um carvalho crescendo é tão sério/ (e vem um lenhador com seu machado e fere-o) // A carne é mesmo triste? Um barco é triste?/ Que nos cabe de tudo quando existe?// Eu em trânsito estou, vida é viagem/ e não deflagrei auroras nem miragens. // Aquele que chegou, a terra quere-o/ (ai de nós se não fosse o mistério)". O livro de Francisco Marcelo Cabral é também de viagem, e que livro não o é? Só que neste as viagens são verdadeiras, a lugares definidos, mas nem sempre a lugares, mas visitas a prédios, a estátuas como neste "Pietá": "Esta mulher mais jovem/ que o homem sobre seus joelhos,/ tota pulchra est/ nave sagrada/ empuxada pelo sopro enamorado do Arcanjo/ No rosto, nenhuma dor,/ mas a pura devoção e piedade/ com que aceitou gerar, parir, nutrir, amparar/ virgem de alma e de corpo/ o corpo do filho de seu Deus." De repente, um encontro diante da Maison de Victor Hugo, mas, na surpresa, uma alegria diante do reconhecimento. É o poema "Place des Vosges": "Metido em lãs me esgueiro pelas arcadas. / Pouco sol, uma névoa de outono. / Em frente à Maison de Victor Hugo/ alguém grita o meu nome /- em francês! - /surpresa e mistério /logo desfeito em riso. // O turismo tem disso: / colega de colégio/ louca para ser vista ali.//" O modo como Francisco Marcelo de Cabral faz poesia é o de que ele domina o palco invisível que ele e todos os poetas atravessam e, com isto, consegue dar a cada som, a cada sílaba, uma participação adequada na imagem que faz com as palavras e no modo como as transforma em poesia. "Cidade interior", de Francisco Marcelo Cabral, é edição do autor, capa de José Maria Dias da Cruz, Design gráfico de Ronaldo Werneck, revisão de Antônio Jaime Soares. Orelha de P. J. Ribeiro e prefácio de André Seffrin. Tribuna da Imprensa (RJ) (30/10/2007)
  • 12. José Antonio Pereira Um poeta e tanto Apesar do rio Pomba de tantos poetas, cantadores e versejadores, é o rio Meia Pataca, à moda de Fernando Pessoa, o meu maior rio do mundo. O pobre ribeirão nasce e morre em Cataguases. Morre mesmo! Em todas as possibilidades e impossibilidades que a morte encerra. Dei uma olhada no dicionário lá consta: “pataca – Substantivo feminino - significa pequena quantidade, insignificante. Palavra de origem controversa. Se de origem italiana (patacca), se provençal (patac), ambas também de origem duvidosa.” Não tenho mais duvida, o meu Meia Pataca é de origem provençal. Tudo isto para dizer que Chico Cabral, começou lá na revista Meia Pataca, a qual editou juntamente com Lina Tâmega Peixoto também poeta, esta uma verdadeira tecelã das palavras. A Meia Pataca, feito o ribeirão, acabou por aqui mesmo, mas nós e a língua portuguesa ganhamos dois magníficos poetas. Conheci sua poesia através do meu amigo Emerson Teixeira, que vivia falando do Centauro e Inexílio. Ele sabia vários poemas de cor e salteado (coisa de aluno do Newton Rossi e do Gradim). Um dia, me apareceu com nada mais nada menos do que “O Centauro” em sua primeira edição, presente do próprio autor. Confesso que tentei de todas as formas por as mãos sobre a obra. Cansei de pedi-la por empréstimo com o firme propósito de surrupiá-la. Tudo em vão. Tinha que me contentar em ouvi- los do amigo e ler poemas esparsos aqui e ali. Tempos depois conheço Chico Cabral, quando do lançamento do “Livro dos Poemas” - Um livraço! Ali estão de Centauro a Pedra de Sal – foi na véspera do sete de setembro de 2003 em noite calorenta e calorosa lá no Chica, com direito a filme & escambau sobre a batuta do Ronaldo Werneck. No dia seguinte em uma turnê pela cidade, organizada pelo Cairu, conheci intelectuais de vários cantos e cantares deste país. Todos aportaram às margens do Meia Pataca para prestigiar o poeta. Em passagem pelo Colégio Cataguases, ele nos descreveu em detalhes o mural do Portinari, apontando vários membros da velha guarda comunista retratada no famoso painel. Ainda ali, na antiga casa do diretor, espaço hoje dedicado ao professor Gradim, rimos muito de um aviso na biblioteca do local: “Favor não tocar nos livros”. Depois que li Inexílio, senti uma forte necessidade de reler Mensagem do Pessoa. E daí? Você pode me perguntar. Na minha cabeça doida de leitor este é meu método de ir e vir entre os meus poetas favoritos. Acho que aquela melancolia da solidão do navegar dos portugueses que sinto em Pessoa. Sinto um tanto dela, na melancolia das montanhas mineiras que é a ausência do nosso Cabral de sua cidade. O fato é que Mensagem e Inexílio têm o mesmo número de letras e Pessoa e Cabral são sobrenomes bem portugueses. O pá! É melhor parar, minhas releituras estão indo longe demais. Voltei a vê-lo por aqui em 2007 no lançamento de Cidade Interior, em evento onde também foi lançado Água polida de Lina Tâmega. Mas foi neste ano de 2010, que tive oportunidade, ao lado de Emerson, de ouvi-lo por um bom tempo durante o lançamento de Prefácio de vida de Lina Tâmega, entre papos sobre livros e poesia lembro-me de um bom assunto para os historiadores da cidade. A significância dos imigrantes italianos no início da produção cultural de Cataguases, citando variadas áreas e muitos sobrenomes, indo da música ao cinema. É óbvio que minha incompetente memória e minha terceira paixão – o cinema - só me faz lembrar do Comello. E agora em dezembro, com
  • 13. José Antonio Pereira imensa alegria, o reencontrei no lançamento de Campo Marcado. Desde a primeira vez que o vi, sempre em Cataguases, noto sempre a presença de Lina Tâmega. Parece-me que desde a revista Meia Pataca eles são irmãos siameses na poesia. Para mim, um Zé, a melhor homenagem que se faz a um poeta do tamanho do Chico, é ler um poema seu. Leiam abaixo um que se tornou nos últimos dias o meu favorito de Campo Marcado. Unicórnio Para Cláudio Murilo Leal O poema é uma forma de delicadeza de um suicida que corta os pulsos na pia com a torneira aberta. Podes tocá-lo, seu sangue não coagula nem tinge com sua rubra vazante tuas mãos curiosas. Apenas injeta-se transpondo para dentro de ti seu sumo de rubis esfacelados a púrpura de seus crepúsculos seus topázios hibernais. Não se escapa do poema. Ele te envolve com o diamante da cegueira e te estrangula com suas garras de pedra ave-leão de face aguda e fuzilante nunca decifrada. Tenta conquistá-lo e será teu como o unicórnio atado com cordéis de linho e seda submisso ao jugo amoroso da donzela em seu jardim de gozos e surpresas.
  • 14. Fernando Abritta Diluindo em sonhos o Inexílio 1 do poeta Francisco Marcelo Cabral O POEMA PARTE PÁGINAS EM DUAS 2 : um centauro 3 cabeça no alto patas ao chão 4 - Terrestres telúricas terrais patas cavam aos pés das páginas subterrâneos da cidadememória fagulham sentidos 5 . - Brilhando sóis, cerebral, culto corta o real local com lógicadaga parte alta das páginas. 6 fernando abritta 7 1 Inexílio foi publicado no jornal “Cataguases” em 1979. Um murro em minhas convicções colonizadas por Edgar Alan Poe, Salvador Dali e pela teologia de Michel Quoist e foi a primeira visão de uma cidade múltipla, a oficial e outras subterrâneas muitas outras de todas as formas e todas ocultas. E agora reencontro Inexílio (Cabral, Francisco Marcelo. Livro dos poemas de Francisco Marcelo Cabral contendo O Centauro, Inexílio, Baile da Câmara, Poema em 3 Cantos e Pedra de Sal. Editora-empresa Instituto Francisca de Souza Peixoto. Cataguases - MG, 2003. Pg. 57 a 74) 2 Inexílio inaugura um Processo novo onde o verso continua como notas de rodapé marcando as divisões da cidadememória. 3 Constante no Poeta essa dicotomia humano-animal que lembra a angústia de civilizados desligados da natura mãe pela coerção social. “O Centauro” foi o livro de estréia do poeta em 1949 onde o poema “Homem, cavalo, centauro” funda a obra de Francisco Marcelo Cabral. 4 30 vezes nada aparece: como verbo nadar uma só vez, muitas outras como substantivo sem substância e outras como indefinido pronome. E Nada vai, austeramente, marcando a leitura em Inexílio. 5 Um “invejado herói versado nas ciências do corpo” (pg. 63) e “um ah! núncio de amor(te)” (pg. 64) trazem o leitor pelo pé da página a sentir e aspirar “da terra um cheiro de poeira molhada e de folhas aromáticas” (pg. 68). 6 Na cabeça lógica do Centauro “nem o piso de pedra” (pg. 61) ou “as correias que estalavam em ritmo de redondilha” (pg. 65) nem quando registra “uma cidade com valores não reversíveis à moeda” (pg. 66) ainda que seja rodeada “pelo ser vegetal e múltiplo [...] raros agora, breve inexistentes” (pg. 71), nada reduz a conclusão de que “AMAR MENOS é morrer” (pg. 73) ou “que nada é o que fica” (pg. 74). 7 Não é verdade, Poeta, ficaram em mim, em nós, essas marcas.
  • 15. Zeca Junqueira Algozes (Inspirado no poema Inexílio, de Francisco Marcelo Cabral) Eu também decido que nada, Cataguases nem a traiçoeira fala nem a fala estudada a falsa hospitalidade o desprezo pelos seus poetas de tanta doçura e nenhum centavo nada, Cataguases nem as costas a mim dada pelo irmão na permuta da fraternidade pelo dinheiro pela cupidez que cerra o punho, ameaça e não reparte nada nem a troca da vida de coragem e para sempre celebrada pela vida calada e triste que range os dentes e os ossos e paga o preço da rendição vida fedendo a cinzas e a velório eu também decido que nada, nem o meu longo exílio, meu perpétuo exílio nem o medo de que a poesia não sustente a luta de que o poema não triunfe e não acenda a noite e eu morra louco e mudo no escuro das suas ruas de tempo nada, Cataguases nem a ameaça de que um dia o amigo enjoe e no meio do caminho o verso engasgue o encanto quebre e ele se vá eu decido que nada nem a perda da única esmeralda que tirei de ti nem as suas ruas agora sujas, as suas praças sujas, a sua oculta gente suja, tudo podre, tudo passado, tudo vendido e comprado tudo estragado, tudo fodido eu decido que nada, Cataguases eu decido que nada nem o pior dos vermes nem a pior loucura nada do que se oculta e me assombra nesse lodo fedorento que corre nas veias de seus algozes vai me fazer te amar menos.
  • 16. Entre Amigos Com Lina Tâmega Peixoto Ivo Barroso “Embora hoje residindo no Rio de Janeiro, Francisco Marcelo Cabral sempre permaneceu um representante do que havia de melhor na literatura que vinha de Minas. Lembro-me bem de que, já nos inícios de ‘50, no Suplemento Literário do Jornal do Povo, de Ponte Nova, Marcelo era o poeta preferido do scholar Tony Brant Ribeiro – o diretor da folha, crítico literário de visão telescópica, que lhe dava os maiores espaços e lhe augurava uma cintilante carreira merecida. Marcelo começou em 1949 com O Centauro e se entronizou definitivamente em 2003 com Pedra de sal e Livro de poemas, para se confirmar em Cidade interior, de 2007. Pela Book Link, do Rio, dá-nos agora, em 2010, este Campo Marcado, com poemas “fluviais” (como as águas de seu rio Pomba), dotados daquele “momento de espanto” que caracteriza a poesia de Gullar. Não podemos deixar de transcrever, embora linearmente, seu Cada dia, tema de tão difícil feitura: “Pedro meu pai artesão padeiro/ forneava manhã cedo/ belos pães de puro trigo/ fermentados “au levain”.// Confeiteiro também, fazia, /com sutilezas de açúcar/ e sápidos toques de essências,/ biscoitos, doces, suspiros.// Mestre de oficio, bom homem, /saciava alheia fome/ com alimento concreto. //Padeiro artesão, meu pai, Pedro,/ nas artes duras da vida/ com as mãos que espantavam medos /cozia sossego e sono. //Sonhos, não.” Com Reynaldo Valinho Alvarez Com Cláudio Murilo Leal no Pen Clube Astrid Cabral Descobri que dias de chuva podem ser prazerosos! Passei o domingo e a segunda entregue ao sal de sua palavra. Reli Centauro e Inexílio e li os magníficos últimos livros. Sua poesia é concisa, exorcizada de retórica, mesmo nos versos longos (Acho Inexílio muito essencial e adoro o contraponto das intercalações em prosa poética). Além disso, há sempre extrema sutileza, aguda percepção do não óbvio. Subjaz em seus versos um silêncio eloqüente, pois você não se esgota ao dizer, avança com a sugestão (como é imenso o aparentemente pequeno poema “Pedra”!). Achei os sonetos magistrais, inventivos, livres. Não entendo o preconceito que considera a forma “instrumento enferrujado”. A idolatria à vanguarda é guarda vã... O soneto voltou à voga. Diga-se, criar dentro da tradição é desafio bem maior. O espaço não me permite descer a pormenores apreciativos. Requereria muito papel e muita tinta, mas reafirmo aqui minha grande admiração que vem de longe. Creia, sua poesia me eleva. Para mim ela consegue: “Acender o céu, ascender ao céu desde aqui, desde agora” crítica em cartão postal de 9/8/2004 Com Ronaldo Werneck e Lina Tâmega Peixoto
  • 17. A Poesia de CHICO CABRAL Instabilidade Pêndulo indeterminado, inextinguível e liberto, vacilo entre o duplo fim. Anseio por horizontes do começado caminho: vejo a luz e quero ir. Que me rouba o ser estável? Abro os olhos, nada vejo, sinto a ausência do meu corpo, rubro poente de mim. As idas de longe acenam. Ai, me perco nas veredas, Quero as vindas, dai-me as vindas. Quê me perturba a beleza? Oh, não cantará as musas o que a si próprio se oculta nas dobras do não-dizer. Minhas vestes já rasgadas minhas mãos desencarnadas minha presença ocultaram. Quê me liberta o inefável? Anjo de asas caídas, os olhos não volverei para contemplar os despojos. Meu vôo cortei bem rente. Não satisfeito, amputei-me e apenas amanheci. Quê me detém na pureza?
  • 18. A Poesia de CHICO CABRAL Sonetino Não eu, que a tenho em pedaços e apenas procuro recompô-la como a um arlequim desfeito, exposto a só se perder, malbaratado. Eu não! Outros que a vão buscar, úmidos do próprio suor reminerado. A mim me cabe mais: a vida é um Respirar esperançado. Sou o pássaro e me lanço a toda a liberdade, o olho contra o sol e contra o vento as penas, como quem se afasta só sem mais ruído que um ligeiro adejar de asa acesa e vai, lá em Minas, repousar. Pedra Escrevemos Porque sabemos que vamos morrer. Escrevemos porque não sabemos por quê.
  • 19. A Poesia de CHICO CABRAL Doca Para Alberto da Costa e Silva Necessário dar ao poema endereço e compromisso e não o deixar à solta — nave de papel e tinta que a água do tempo dissolve. A uma inspeção de minúcias deve ser submetido para que em cada atracagem uma laboriosa estiva libere a apreciada carga. Necessário armar o poema com rigorosa treliça: que não pareça destroços de naufrágios reunidos. O poeta habite o poema ou dele se distancie que o que segue transportado no convés e nos porões como o ar em nossos foles se esvazia e se repõe. Se não lhe dá uma rota ao poema, largado à sorte das coisas que só flutuam sem a nitidez das naus, o poeta voga à matroca, e o poema atraca no caos.
  • 20. A Poesia de CHICO CABRAL Cidade interior É onde à noite os medos convocam as fantasias das sombras cortam as luzes das ruas e ao fraco luar se tropeça em cães ressoando e mal se ouve a suave respiração dos sonhos as pisadas no tambor dos pesadelos e os silvos remordidos do gozo (e onde mortos rumorejam pelas grotas) uma cidade para sempre estacionada no poema - falsa e inesquecível. Vitamors Para Ascendino Leite O passado mal se equilibra, nos derruídos blocos desunidos da extinta harmonia. O futuro demole todo o cristal e dura como o barro — a perspectiva do pó. Sonhos, amores, juventude — o presente é o tempo que morre em você.
  • 21. A Poesia de CHICO CABRAL A carne da palavra Há no teu nome tanto de animal e alvorada, tanta vida, que o amo também. Pronunciá-lo é gozar, sentir tua presença, palpável cristal. És insondável, és, embora em superfície toda brilhe tua estrela, tua fonte. Tens derramado em tuas letras um sangue algum, que te define e forma e se comunica e vem ou sou eu quem o extrai e do aparente friúme da palavra reacende a chama essencial. Pode muito Eros: de seu reino de asas cortadas nunca escaparás. Que a palavra em ti pertence-me, e eu condeno-te a sofrer a límpida maldade do verso que te despe. Confia, pois vai nisto, bem que rude, um amargo travo de amor.
  • 22. A Poesia de CHICO CABRAL Ai de nós Oh, um carvalho crescendo é tão sério (e vem o lenhador com seu machado e fere-o). A carne é mesmo triste? Um barco é triste? Que nos cabe de tudo quanto existe? Eu em trânsito estou, vida é viagem E não deflagrei auroras nem miragens. Aquele que chegou, a terra quere-o (ai de nós, se não fosse o mistério). Inexílio II Todo poema é celebração mesmo não lido. Todo poema é de amor mesmo perdido. Todo poema fica por aí mesmo esquecido
  • 23. A Poesia de CHICO CABRAL Poema A palavra nasce de onde morre breve fulguração da fala na voz e na página. Necessário atá-la a outra palavra igualmente fugaz — corrente de brilhos longos e curtos nave passando iluminada. O silêncio gera a palavra e consome sua espessa matriz No universo sem som e sem tempo haver a palavra é inútil rede para a luz e o vento. O visgo e o ferrão da palavra impõem cuidados ao toque: faca afiada , empunhada pela lâmina. A agulha da palavra crava na mão e na boca que arrisca comunhão impossível do visível e do imaginado.
  • 24. A Poesia de CHICO CABRAL Hora nenhuma Pelas frestas do soalho, coam-se as crinas oblíquas do cavalo do vento. Tremem as velas e as roupas finas ao sopro dessa luz sem sombra que tanto medo me dá A mãe sussurra não olhes o piso nem as telhas. Nas paredes nuas o sono os aguarda entre as manchas de mofo e seus desenhos de limo verde. Aqui mora a noite e seu bafo de roupa guardada suas lãs descoradas e ásperas como peles selvagens mal curtidas. Essas coisas velhas recendem a calor suado. Debaixo da cama arfa um cachorro cego e um jarro de miosótis tinge com sua morte azul a penumbra e o silêncio. O medo não abre os olhos do menino que apenas pressente o abismo do universo e embarca no bote de flanela. O sono se abate sobre o peito como um par de asas sem ave uma rajada de brisa adocicada e morna, uma persiana que desce nos fios. A mãe já não diz mais nada que se ouça, apenas nela vibra a delicada respiração do menino —fonte e sinal da vida que prossegue.
  • 25. A Poesia de CHICO CABRAL Ainda mais Escrevo a língua do meu avô e tenho a sua cara no espelho fugidio onde busco as marcas do que sou. Vejo o rio passar Os peixes das palavras boquejam espuma e água suja no sulcado perau dos versos o poema flui arrastando em sua calda a mudez dos afogados e os gritos dos pescadores de areia. Um passo atrás, que eu possa ver essa procissão que se arrasta desde muito antes do ano de mil novecentos e trinta, quando eu mesmo vazei num jato de sangue e soro e gritei pela primeira vez: eu — e não, e nunca na verdade, fui ouvido. Um passo atrás que o sol está secando as chuvas do poente um corpo vai-se atirar na direção do naufrágio e a chama de uma vela será enviada a procurá-lo Escrevo a língua do meu avô sem sua permissão, por isso apenas busco seduzir os fantasmas que me visitam por isso venho até o rio para olhá-lo nos olhos e numa canção inaudível berçar os seres amáveis que o habitam e se coçam nas facas dos peixes Vejo o rio passar e mal me vejo enquanto envelheço à sua beira A luz e o silêncio em mim sabem a vida e enquanto respiro tudo o que não entendo faz sentido
  • 26. A Poesia de CHICO CABRAL Água serpente Singrar o rio nos barcos de areia abrindo a veia canal do seu fluxo barrento. Sangrar o Pomba para deter seu voo de palavra quimera confinado às margens. Despojar o rio das roupas de vapor para que vaze o visgo de seu clima, Esgotar o rio Pomba para que revele o ouro fino do leito, os saibros dos poemas. Cataguases A cidade exporta tecidos de algodão que não planta e poemas que não lê. No varejo de algumas lojas se pode até comprar livros. O jeito é agarrar com todo cuidado a primeira palavra vazia que esvoace gratuita na brisa do Pomba, e devolvê-la intacta aos ventos, insanos e surdos
  • 27. A Poesia de CHICO CABRAL Inéxilio (.......) MENOS que nada é o pó do poema que aqui sobrenada sobre tudo (que nada!) sobretudo sobre nada (24) que nada é o que resta do rosto e da festa do rasto e da gesta que nada é o que sobra do sabre e da sombra da cãibra e da cobra que nada é o que fica da faca e da treva da trave e da chama (24) Nada me faz te amar menos