Este documento homenageia o poeta Ascânio Lopes no centenário de seu nascimento, resumindo sua vida e obra. Ascânio nasceu em Ubá (MG) mas cresceu em Cataguases, onde faleceu prematuramente em 1929. Ele co-fundou a revista modernista Verde em Cataguases e publicou um único livro de poemas em vida.
2. PEQUENA NOTA
Cataguases faz aniversário esta semana, resolvemos homenagear um dos ubaenses
que a gente tanto admira por aqui. Um é o Ari Barroso, que além de todas as belas
canções, compôs aquele hino que éramos obrigados a decorar lá no Colégio Cataguases,
o outro é o poeta Ascânio Lopes que fixou residência ad infinitum no Cemitério daqui.
Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá (MG), em 1906, mas foi criado em
Cataguases, onde faleceu, em 1929. O poeta transferiu-se para Belo Horizonte em 1925, onde cursou
direito. Em 1928, já doente, retornou a Cataguases.
Em Belo Horizonte freqüentou o Café Estrela e a Livraria Alves na rua da Bahia.
Do grupo do Estrela faziam parte os escritores Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Abgar
Renault, Emílio Moura, Aníbal Machado, João Alphonsus, bem como os políticos Milton Campos,
João Pinheiro Filho, Gabriel Passos, Pedro Aleixo.
Na mesma rua localizava-se o Cine Odeon onde em frente se encontravam após o jantar. Dali
partiam os passeios e as aventuras, boemias ou não.
Último número da Verde
Uma atividade marcante na curta vida de Ascânio foi sua participação no grupo que fundou a
revista Verde, publicada em Cataguases de 1927 a 1929. Publicação modernista, a Verde reunia
entre outros Rosário Fusco, Guilhermino César, Enrique de Resende e o Chico Peixoto.
Cataguases, torna-se assim pequeno centro de criação artística. Na mesma época, Humberto
Mauro, pioneiro do cinema brasileiro, havia montado na cidade sua produtora, a Phebo Sul
America Film. Com a morte do poeta, a revista Verde se dissolveu. Os remanescentes publicaram
ainda um último número, exatamente para homenagear o amigo morto. Sobre Ascânio escreveram
nomes como Mário de Andrade, Antonio de Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade.
Único livro
Em vida, Ascânio Lopes publicou apenas um livro, com Enrique de Resende e Rosário
Fusco, chamado Poemas Cronológicos (1928). Ao todo, sua obra resume-se a 48 poemas, um
fragmento de novela, três ensaios e quatro resenhas. Todo esse material, mais outros documentos
sobre o autor, está reunido no volume Ascânio Lopes – Todos os Possíveis Caminhos, do escritor
cataguasense Luiz Ruffato.
3. Em nota da edição brasileira, da coletânea de estudos críticos sobre o surrealismo - Estrela da
manhã, de Michael Löwy, Sergio Lima afirma : “Benjamin Péret morou no Brasil de fevereiro de
1929 à dezembro de 1931, tem contactos com a Revista de Antropofagia e desenvolve pesquisas sobre
nossas artes e raízes afro-índias. Mas, mesmo antes desta visita, artistas e escritores como Ismael
Nery, Aníbal M. Machado, Murilo Mendes e Mário Pedrosa se interessam pelo Surrealismo, além
dos prematuramente falecidos J.A Ferreira Prestes e Ascânio Lopes; como, na década de ’30, Cícero
Dias, Fernando Mendes de Almeida, Wagner Castro, Jamil Almansur Haddad, Adalgisa Nery e
Jorge de Lima.”
CATAGUASES
para Carlos Drummond de Andrade
Nem Belo Horizonte, colcha de retalhos iguais,
cidade européia de ruas retas, árvores certas,
casas simétricas,
crepúsculos bonitos, sempre bonitos;
Nem Juiz de Fora. Ruído. Rumor.
Apitos. Klaxons.
Cidade inglêsa* de céu esfumaçado, cheio de chaminés negras;
Nem Ouro Prêto, cidade morta,
Bruges sem Rodenbach,
onde estudantes passadistas continuam a tradição das coisas
[ que já esquecemos;
Nem Sabará, cidade relíquia,
onde não se pode tocar, para não desmanchar o passado
[ arrumadinho;
Nem Estrêla do Sul, a sonhar com tesouros,
tesouros nos cascalhos extintos de seu rio barrento;
Nem Uberaba, nem, nem, cidades arrivistas de gente que não
[ pretende ficar.
Nã-o ! Cataguazes... Há coisa mais bela e serena oculta
[ nos teus flancos.
Nas tuas ruas brinca a inconsciência das cidades
que nunca foram, que não cuidam de ser.
Não sabes, não sei, ninguém compreenderá jamais o que
[ desejas, o que serás.
Não és do passado, não és do futuro; não tens idade...
Só sei que és
a mais mineira cidade de Minas Gerais...
Nem geometria, nem estilo europeu, nem invasão americana
[ de bangalôs derniecri.
Tuas casas são largas casas mineiras feitas na previsão de
muitos hóspedes.
4. Não há em ti o terror das cidades plantadas na mata virgem.
Nem ramerrão dos bondes atrasados, cheios de gente apressada.
Nem os dísticos de aqui estêve aqui aconteceu.
Nem o tintim áspero dos padeiros.
Nem a buzina incômoda dos tintureiros.
Teus leiteiros ainda levam o leite em burricos,
os padeiros deixam o pão à janela (cidade mineira).
Teu amanhecer é suave.
Que alegria de ter só gente conhecida faz teu habitante voltar-se
[ para cumprimentar todos que passam.
Delícia de não encontrar estrangeiros de olhar agudo, esperto
[ mau, a suspeitar riquezas nas terras.
Alegria dos Fordes brincando (são dois) na praça.
(Depois vão dormir juntinhos numa só garagem).
Jacaré !
João Arara!
João Gostoso !
teus tipos populares.
A criançada atira-lhe pedras e êles se voltam imprecando.
Rondas alegres de meninas nas ruas, às tardes, sem perigo
[ de veículos,
papagaios que se embaraçam nos fios de luz, balões que sobem,
foguetes obrigatórios nas festas de chegada do chefe político.
Jardins onde meninas ariscas passeiam meia hora só antes
[ no cinema.
Ar môrno e sensual de voluptuosidade gostosa que vibra
nas tuas tardes chuvosas, quando as goteiras pingam nos
[ passantes
e batem isócronas nos passeios furados.
Há em ti a delícia da vida que passa porque vale a apena passar,
que passa sem dar por isso, sem supor que se vai transformando.
Em ti se dorme tranquilo sem guardas-noturnos.
Mas com o cricri dos grilos,
o ranram dos sapos,
o sono é tranquilo como o de uma criança de colo.
Vale a pena viver em ti.
Nem inquietude,
nem pêso inútil de recordações
Mas confiança que nasce das coisas que não mudam bruscas,
nem ficam eternas.
5. SERÃO DO MENINO POBRE
Na sala pobre da casa da roça
papai lia os jornais atrasados.
Mamãe cerzia minhas meias rasgadas.
A luz frouxa do lampião iluminava a mesa
e deixava nas paredes um bordado de sombras.
Eu ficava a ler um livro de histórias impossíveis
— desde criança fascinou-me o maravilhoso.
Às vezes, Mamãe parava de costurar
— a vista estava cansada, a luz era fraca,
e passava de leve a mão pelos meus cabelos,
numa carícia muda e silenciosa.
Quando Mamãe morreu
o serão ficou triste, a sala vazia.
Papai já não lia os jornais
e ficava a olhar-nos silencioso.
A luz do lampião ficou mais fraca
e havia muito mais sombra pelas paredes...
E, dentro em nós, uma sombra infinitamente
[ maior.
CENA DE UMA RUA AFASTADA
Para Martins de Almeida
A solteirona fechou as janelas com estrépito.
Uma mocinha da escola normal passou firme,
[ sem olhar.
6. Um senhor gordo disse que era uma pouca
[ vergonha
e que nossa polícia não vigiava os costumes.
Mas, indiferentes aos gritos dos carroceiros,
às pedradas dos garotos,
a lulu de D. Mariquinhas e o fox-terriê
[ (meio sangue) do sr. Fagundes
continuaram impudicos no meio da rua.
MINHA NAMORADA
Seu nome era besta e ela também
mas quase não falava e só sabia olhar.
Gostei dela
fiz versos puxados
gastei tempo nas rimas raras
e na colocação de pronomes
porque ela era normalista
e gostava de gramática e não perdoava
[ galicismos.
Mas um dia ela descobriu meus versos modernos
e percebeu que fingia
e gostava de errar nos pronomes
e que meus sonetos eram só pra ela.
Então me deu o fora e arranjou um poeta sincero
que a comparava a Marília
e que sabia de cor a "Ceia dos Cardeais"
e que sapecava todos os ritmos novos
e as poesias sem geometria e compasso.
E ficavam cinicamente amando no portão
7. quando não iam ao cinema delirar com as fitas
[ dramáticas italianas 12 atos.
Ela me deu o fora.
Também nunca mais fiz sonetos.
O CHEFE
O valentão brigou com o chefe político
e então todo mundo se lembrou que ele era
[ criminoso
e veio ordem da Capital para prendê-lo.
Os soldados se prepararam foram 30 jagunços
[ para acompanhá-los.
O escrivão lavrou de véspera o auto de
[ resistência à prisão.
Mas o bandido não resistiu abobado diante dos
[ soldados da Capital.
e entregou-se docilmente.
Mas o chefe disse que era preciso matá-lo
pois o auto já estava lavrado e assinado.
Era impossível voltar atrás.
8. SANATÓRIO
Logo, quando os corredores ficarem vazios,
e todo o Sanatório adormecer,
a febre dos tísicos entrará no meu quarto
trazida de manso pela mão da noite.
Então minha testa começará a arder,
todo meu corpo magro sofrerá.
E eu rolarei ansiado no leito
com o peito opresso e de garganta seca.
Lá fora haverá um vento mau
e as árvores sacudidas darão medo.
Ah! os meus olhos brilharão procurando
a Morte que quer entrar no meu quarto.
Os meus olhos brilharão como os da fera
que defende a entrada do seu fojo.
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