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Chicos
N. 42
Abril 2015
e-zine de literatura e ideias
de Cataguases – MG
Capa
Altamir Soares
Editores
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Fotógrafo
Vicente Costa
Ilustrador
Altamir Soares
Colaboradores desta edição
Antônio Jaime Soares
Antônio Perin
Flauzina Márcia da Silva
José Tarcísio Lima
Ronaldo Cagiano
Ronaldo Werneck
Vanessa Barbosa
Fale conosco em:
cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
http://chicoscataletras.blogspot.com/
Um dedo de prosa
Esta é a edição número 42 de 01 de abril de 2015.
Aqui, iniciamos 2015 agora. Durante este ano, vamos permanecer com a foto do
Chico Cabral nesta página. É a nossa homenagem ao grande poeta.
Por sugestão e iniciativa do Rogério Torres criou-se em dezembro de 2014 o Clube de
Leitura Nossas Causas. Ao final desta edição vejam o que anda acontecendo por lá.
Apresentamos alguns poemas de Celina Ferreira, outra de nossas grandes poetas. Saudada
pelos grandes nomes da poesia brasileira. Seu primeiro livro foi publicado em 1954. Sua
obra precisa e merece ser reeditada.
A estreante da vez é Vanessa Barbosa, jovem poeta que já disse a que veio vencendo um
concurso de poesia no final do ano passado. Concurso promovido pelo Sebo Aluados.
O poeta português Herberto Helder faleceu no último 23 de março. Um dos grandes nomes
da poesia contemporânea da Europa, vale a pena conhecer a poesia dele.
Outros poetas que colaboram com a Chicos também marcam presença nesta edição.
Emerson Teixeira apresenta interessantes considerações sobre a poesia de Celina.
José Tarcísio é um amigo de longas datas, é sua primeira participação aqui. Primeira de
muitas é o que esperamos.
Em fevereiro alguns eventos não deixaram passar em branco os 70 anos da morte de Mário
de Andrade, o dínamo do Movimento modernista.
E muito mais vocês encontrarão por aqui. Divirtam-se!
Uma boa leitura para todos.
Os Chicos
18.11.1930 - 20.08.2014
Sumário
CELINA FERREIRA
A poesia de Celina.....................................................................................................................04
VANESSA BARBOSA
Facilis descensos Averni..........................................................................................................15
FLAUSINA MÁRCIA
Inventário de males ..................................................................................................................16
RONALDO CAGIANO
Ritmo das coisas - e outros poemas....................................................................................17
ANTÔNIO PERIN
A tecelã..........................................................................................................................................20
HERBERTO HELDER
Sobre um poema - e outros poemas.....................................................................................21
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO
Celina Seleta................................................................................................................................25
MARIANA IANELLI
Poema de Brecht sobre peregrinação de órfãos durante a guerra ganha livro ......28
RONALDO WERNECK
O som de Solha ao redor e.....................................................................................................30
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
Tinhorões e taiobas...................................................................................................................32
ANTÔNIO JAIME SOARES
Duas plásticas no Pitanguy....................................................................................................33
JOSÉ TARCÍSIO LIMA
Monarck 66..................................................................................................................................34
FLAUSINA MÁRCIA
A Lua não Existe ou Uma infecção científica..................................................................36
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
A Viúva.........................................................................................................................................37
MÁRIO DE ANDRADE
70 anos de sua morte................................................................................................................38
ALEXANDRE COSLEI
Os camelôs da literatura.........................................................................................................40
OUTROS PAPOS
Mas, todos afins........................................................................................................................41
Celina Ferreira
Celina Ferreira (Óleo s/madeira 1952) - Guignard
Celina Ferreira – Poeta, nasceu em 27 de
setembro de 1928 e faleceu em 05.08.2012. Nasceu em
Cataguases MG, numa época em que a grande
diversão era o circo, com seus palhaços, trapezistas e
malabaristas. Radicou-se, mais tarde, no Rio de
Janeiro. Jornalista, redatora (inclusive da Rádio
MEC) e poeta admirada por Carlos Drummond de
Andrade e Manuel Bandeira, a autora escreveu para
rádio e televisão e, como adora crianças, fez muita
literatura infantil, pela qual recebeu o Prêmio de
Literatura Infantil do Estado da Guanabara, em
1971, e o Prêmio Brasília de Literatura Infantil e
Juvenil, em 1978. "Poesia de Ninguém" e "Espelho
Convexo" são dois dos vários livros que lançou.
Efusivamente saudada por nomes como Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira,
Guimarães Rosa, Affonso Romano de SantAnna, a
poeta Celina Ferreira permanece ainda hoje pouco
divulgada e praticamente desconhecida do grande
público. Isso mais de 40 anos após seu primeiro
livro, Poesia de Ninguém, publicado em 1954.
“Não há malabarismos óticos dentro dos versos e muito
menos o espetáculo de palavras com picadeiro. Mas esta
estabilidade também procede do temperamento da autora,
e em Celina Ferreira, já pela própria temática, já pelo
seu modo de ser, há razão para esta cadência romântica
do verso.” Affonso Romano de Sant´Anna.
“A perspectiva da realidade da morte desponta na
atmosfera do sono de Celina Ferreira. Numa espécie de
coloração goyesca ela compara seu mundo de iluminação
a um “umbral de flores sombrias, que se desata e dorme e
adormece quando é dia”. Celina Ferreira renunciou à
inspiração diurna. Não teve direito ao ócio, ao
abandonar-se das horas. A vida colocou-a numa
intensidade de trabalho que tem sido o túmulo de muitos
bons poetas. Trabalho que, à margem da elaboração
poética, absorve as horas, o tempo, a distância, a
disponibilidade. Celina cumpre a tarefa de sua vida
comum e cotidiana, com amor e vocação. Reservou-se o
subterfúgio do sono como aparelho de fuga. Fuga não ao
sentido da alienação e da omissão. Fuga para poder
render melhor, espécie de solidão lucrativa.” Walmir
Ayala
“Nada apresenta de vacilante ou veleidade, de promessa
ou subordinação, de fingimento ou artifício na temática.
Celina Ferreira chega a um gabarito onde podia ficar.
Não precisa mais crescer para ser grande.” Mauro Mota
Após Poesia de Ninguém, sua estreia em
1954, vieram Nave Incorpórea (1955), Mundo
Encantado (Prêmio Júlia Lopes de Almeida, da
Prefeitura do Distrito Federal, 1957), Invenção do
Mundo, O Cavalo Encantado, A Princesa Flor-de-
Lótus, todos os três de 1958, Poesia Cúmplice (Prêmio
Olavo Bilac da Prefeitura do Distrito Federal, 1959)
e Espelho Convexo (1973).
Isso sem contar a coletânea Hoje Poemas, editada em
1966, com ilustrações de Guignard, de quem Celina foi
a eterna musa.
Profecia
Haveis de crescer, suavemente,
como a planta na pedra. Haveis de crescer
de manso, respirando humilde o hálito da pedra.
E sugareis na pedra a seiva e o vosso sangue.
E sofrereis na pedra aridez e solidão.
E o vento achará em vós o irmão perdido
e havendo mar, as ondas saber-vos-ão aquático
e vos reclamarão areia, musgo, concha.
Os pássaros achar-vos-ão propício para o ninho,
sereis fecundo, abrireis múltiplas asas
e aprendereis o canto das madrugadas.
Haveis de crescer amargamente,
como a sombra das nuvens pressagas.
E sereis fundo como a noite sem estrelas.
E estareis a sós como o primeiro sinal de tempestade.
Haveis de gritar, mas ninguém vos ouvirá.
Tôdas as consciências se fecham na tempestade.
Ficareis completamente a sós na noite densa,
tão tristemente só, que nem haverá prenúncio de eco.
A solidão será irremediável como a chuva pesada
em que vos mudareis. E será bom que haja longa chuva
porque renascereis em flores e ciprestes.
Haveis de crescer humildemente,
como as coisas que vegetam sem pretexto.
Haveis de crescer como a fumaça triste
que se nutre e se devora e se arrepende.
Ninguém, nem mesmo a vossa sombra vos impede,
antes subjuga-vos mais forte que o pensamento.
Haveis de crescer, tão doloroso
como a solidão em que vos iniciais.
Vós sois o muro; a solidão, a hera.
Negar-lhe-eis o apoio e a vossa aquiescência
mas estareis de todo possuído – até aos olhos.
Não busqueis fortaleza. Sereis fraco,
tão pobre que as abelhas vos darão do mel
e da humilhante cêra. Sereis fraco e pobre.
Haverá um dia em que cuspireis na vossa carne
Mais fraca do que vós. E negareis o corpo
tantas vezes, que infinitas vozes gritarão no fundo
e estareis decerto mais fiel em vosso negar.
Seria bom se não tivésseis corpo. Ficaríeis
mais só do que a única estrela no deserto.
Haveis de arrepender-vos, tão de manso,
Que a morte pensará vossa ferida.
Fuga
Meus olhos se perderam.
Foi chuva, bruma, vento, não me lembro.
Foi o menino que passou descalço...
Quem convidou meus olhos para a fuga?
Quero meus olhos fantásticos de noite!
Eu fico aflita! Quem roubou meus olhos?
O mar mostrou-me as ondas. Mar imenso.
A noite abriu-se ao meio. Noite Amarga.
Só sei de estrela e concha. Onde meus olhos?
A fuga foi prevista. Eu pressenti
quando as folhas voavam,
quando as aves fugiam
e tudo era convite.
A esquecida
Quando vim para êste mundo,
não por mim – eu vim mandada –
trouxe um destino comigo.
Mas passei por tantas nuvens,
me molhei de tanta chuva,
me perdi em muitos ventos,
virei poeira de estrada,
lírio, rosa, espinho, terra,
que esqueci minha mensagem.
Procuro me renovar:
pedra, sangue, cal, areia,
preciso me definir
e encontrar o meu perdido.
Choro sangue todo o sempre
quando estou entre oprimidos.
Sinto a fome dos famintos,
sofro a dor dos humilhados,
me consumo no momento.
Minha mensagem é dor.
Deito na areia que invento,
areia de um mar profundo:
Mar de mistério. Eu, enigma,
consigo descer ao fundo.
Meu corpo verde flutua,
minha alma sobe incolor.
E no fundo, outro infinito,
mais mergulho, mais atinjo
alturas desconhecidas.
Asas brancas me tocaram.
De fôlhas faço o meu ninho
pelo prazer de fugir.
Nesse vôo ilimitado,
humano não me corrompe.
Quem me busca, não me atinge,
quem me atinge é perseguido,
vira irmão, foge comigo.
A chuva cai. Vai lavando
tanto pó acumulado
do tempo que me antecede.
As imagens vão gritar
E eu lembrada de mim mesma
Serei humana de novo.
Quero cumprir meu destino.
Não por mim. Eu vim mandada.
Desencanto
Eu me afogarei, acintosamente
que perdido é o sonho casto
e a habitual pureza das formas.
Meu suicídio é a morte convencional:
ocaso, esquecimento, sono.
Não o som. Não o desperdício
do tempo. Não as vozes.
Não o espaço limitando corpos.
Nem a acusação dos traços.
Eu me apegaria jamais a um ramo
ou escusa. Ao fundo
levarei comigo consciência e solidão,
E quando o flutuar trouxer-me às margens
podeis recolher meu corpo
e eu estarei possível de habitar-vos, mundo
convencional, escuso, diluído.
Balada da idéia fixa
Balada de idéia fixa
um dia vos cantarei.
Falarei dos meus amores
no meu canto, falarei.
Pois quando falo de amores
de mim mesma já falei.
Balada de idéia fixa
talvez me arrependerei.
Para tornar-vos mais triste
também me entristecerei.
Pois quando falo em tristeza
de mim mesma já falei.
Balada de idéia fixa
algum dia vos direi.
Para matar-vos de manso,
morrendo vos cantarei.
Pois quando falo de morte
De mesma já falei.
Poesia de ninguém (1954)
Natal
Cada dia nasce
um novo menino
na palha, na seda,
no feno, no linho.
Cada dia nasce
um novo destino
que sempre começa
no mesmo menino.
A estrela de cada
natal é a medida
palavra que escapa
em face da vida.
Na ficha, a palavra
festiva traduz:
Antônio, Isaías,
Ricardo ou Jesus.
Nave Incorpórea
Nave intocada e neutra, em mar de vidro,
indiferente aos símbolos se fixa.
No mastro o ôlho inclemente da pesquisa
e sem roteiro ou plano, o leme esquivo.
Na quilha, se existisse, de granito
ou de incenso talvez, em ondas místicas,
a minha solidão que o mar limita
por linhas intangíveis de infinito.
No mar apocalíptico do mundo
(vidro não seja, mas tormento) a nave
é minha alma esquecida em sangue e chumbo.
E tudo que me resta: mapas púnicos
da minha alma galera, inavegável
no tempo que é seu berço e foi seu túmulo.
Canção velada
Agora, a paz da noite
cobriu teu corpo calmo.
Ao lado, o anjo da espera
cruzou asas em luto.
A cêra ergueu um grito.
Deixemo-la cantar
o salmo dos que partem.
As sombras se recolhem
e em vão fabricam casas
que guardem teu silêncio.
Em vão tecem grinaldas
de flores monstruosas.
Ah! deixo-te sozinho
na terra que te entregam.
Teus dedos abrem coisas,
Conversas minerais.
Flor de granito e prata
serás, além de morto.
Romance por sôbre o rio
Entende a louca de rir
com seis olhos sobre a ponte.
Que ria no seu mistério,
ausente ou triste, que ria
no firmamento onde encontre
outras pontes já sem rio,
com seis olhos, com seis fontes.
Entende o rir não ter nexo
Rolando por sôbre o rio.
E o corpo plácido, erétil
entende não ser completo
no frio azul remissivo
de um total esquecimento,
ponte de um rio perdido.
Entende a louca viajar
no seu sorriso infinito.
Com seis olhos sobre as águas,
seis fontes vertendo absinto.
Fontes de águas ignoradas
nem fazem volume ao rio
que envolve em frias mortalhas
um corpo frágil, vazio.
Tão sem alma! Ai, tão sem alma
no seu sorriso de vidro,
duro cristal prêso em garras,
na prata antiga do rio.
Natal
Cada dia nasce
um novo menino
na palha, na seda,
no feno, no linho.
Cada dia nasce
um novo destino
que sempre começa
no mesmo menino.
A estrela de cada
natal é a medida
palavra que escapa
em face da vida.
Na ficha, a palavra
festiva traduz:
Antônio, Isaías,
Ricardo ou Jesus.
Dons
Na língua, o segredo
das coisas:
o travo da cica,
o favo de mel,
o gôsto sòzinho
do pão.
Nos olhos, o reino
de ver.
Na concha do ouvido,
um mar de mistério:
as vozes de casa,
o cravo, o soluço,
o grito, a cascata.
Olfato amoroso:
o cheiro suado
na roupa do filho.
A terra molhada de chuva.
E os dedos crivando de amor
o corpo do amado.
O tátil percurso
do abraço.
ESP
O tempo foi destruído
na fina face do espelho.
O ontem virou agora
o amanhã chegou mais cedo.
(Capto imagens
perdidas.
Brilho em pânico,
presa de um cristal
único.)
O tempo foi redimido,
distância não é segredo.
Mas o mistério profundo
é a pátima do espelho.
A maçã no espelho
sinto a impressão de vermelho,
compondo a densa maçã,
que, no espelho, é intocável
nesta severa manhã.
Mil espelhos reproduzem
a maçã iluminada.
São mil maçãs a que vejo
por mil faces cobiçada.
Retiro-a da fria côdea
de prata. Resta-me o espelho,
acusando a sua ausência,
no campo, outrora, vermelho.
Sonata em dó maior
para um flautim
Sozinha, uma fonte,
ao longe, um flautim.
Por que não morrer de amor?
Por que sofrer só de mim?
O espelho do lago
cansou-se de mim.
No estojo frio e sem alma
ficou dormindo um flautim.
Mas a noite desenrola
o seu novelo sem fim...
Espelho e Face
Procuro no espelho
a face remota.
Não aquela que é visível.
A que o vidro não comporta.
Retiro-a, sem medo,
descubro-a, ignota.
Não a face que percebo
em mim mesma, superposta.
Mas imagem lúcida,
clara e luminosa,
que cada dia enterrara
sob a face que está morta.
Espelho convexo
Que reino lúcido,
liso e perfeito,
que se aprofunda
na superfície
do meu segredo!
Vejo-me: o duplo
de mim, liberto
no mundo líquido,
água, azulejo.
Move-se o duplo
sou eu que o vejo?
Elfo, no estanho
azul do espelho.
Colo meu rosto
à face esquiva
que me repete,
grave e precisa,
na densa tela
de prata líquida.
Beijo meu beijo
que me hostiliza,
mergulho os olhos
nos olhos duros
que me fustigam.
Além, meu duplo
zomba de mim.
Ri do meu riso
se me duplico
no seu sorriso
cúmplice e afim.
Eros e Anteros,
eu e meu duplo
no mundo, espelho
no mundo, espelho
que não tem fim.
Salto Moral
Sondar a possibilidade do salto
e a profundidade do
abismo.
Formular o desenho preciso.
Vôo e queda, a mesma dimensão
e
altura.
Vôo e queda recortam no ar
a mesma figura.
Saltar de dentro
de si mesmo
Como quem pula o muro da infância,
A cerca que esconde os
pomares
do mundo e limita o corpo
e seu agreste crescimento. E
restringe
o homem e seu poder.
Saltar para o desconhecido
sem redes
sob o corpo.
O salto moral
Diante de mil trapézios oscilantes
e
luzes e o pavor dilacerante
da platéia. A comovente platéia
da
autopiedade
Saltar
para a verdade
Vanessa Barbosa
Vanessa S. Barbosa – Nascida em Cataguases em 1995.
Poeta vencedora do concurso promovido pelo Sebo Aluados
em dezembro de 2014. “Escrevo porque as palavras surgem,
como flashes, como pensamentos, por vezes soltas, mas sempre
presentes, o que faço é tentar emenda-las.”
“Facilis descensos Averni”
Sei que não vou por aí,
tal como sabia o poeta,
que sabia também
como deslizar palavras no papel.
Tal como dizia o profeta
que sabia também
compreender a causa das coisas.
Todavia
não sei aonde vou,
fico a andar por caminhos
que muito se assemelham aos crepúsculos.
Uma lástima, não saber onde ir
“Facilis descensos Averni”
Já que a porta lá de baixo
parece sempre,
ficar aberta...
O diabo facilitou deixando a porta aberta
Mas é preciso retornar para a luz,
fácil não é viver na claridade
quando cada um de nós
carrega a própria sombra.
Metade de Minh’alma é luz,
Deus quis assim.
A outra metade não sei
Quisera-me saber
sobre as noites e dias do profundo inferno
Assim voltar
e sempre ver a luz do dia
– Aí está a tarefa, o árduo.
“Facilis descensos Averni”
Pensa que eu não sei?
Flausina Márcia Flausina Márcia da Silva poeta nascida em Cataguases e
radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na Secretaria de
Cultura de Minas Gerais. Publicou entre outros: Vagalume
(2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives
(2014).
Inventário de Males
Arrolados, sem mais juízo
que, justa causa, os fizeram
eis, desmesurados, lisos
para cálculo do que puderam.
Injustiça, essa é de nascença,
classificam-se logo os bebês,
batizando-se as diferenças
com adjetivos e até sordidez.
Inconstância, ela é o abrigo
das sortes todas do azar.
Amo você por estar comigo.
Odeio você por não estar.
Ingratidão, desses descende
mas carece de visibilidade
é conversa de fadas e duendes
prospera na licenciosidade.
Dói mais no silêncio!
Kandinsky
Ronaldo Cagiano
Ronaldo Cagiano – Nascido em Cataguases, morou por vários
anos em Brasília e hoje encontra-se em São Paulo.
É autor, entre muitos títulos, de Dezembro Indigesto (2001)
poesia, O Dicionário de Pequenas Solidões (2006) e O sol nas
feridas(2011), de onde são os poemas aqui publicados.
O ritmo das coisas
O tempo
com sua máquina de esquadrinhar
esfarela o museu de ossos
escondido sob a pele fatigada.
O tempo
e seu evangelho de dissoluções
escultor insone
burilando o caminho rumo às Parcas.
O tempo
com sua vigília
sobre os escombro
em que nos transformamos a cada dia.
O tempo
arsenal de punhais
com a lógica taliônica
de uma rude cronologia.
O tempo
(belvedere ou abismo?)
no qual me lanço
para ser absorvido pelo insondável
na peregrinação movediça no vazio.
O tempo
animal invisível
que nos rouba todas idades
e nos devora
com seu ritual insensato
dentes afiados
como uma nuvem de gafanhotos
devorando nossas córneas
O tempo
Relógio insaciável
anoitecendo os meus olhos
O tempo
a moenda das horas
impondo o ritmo das coisas.
Ilustração de Marcos Garuti
Flamboyants
Para Eltânia André
Nas avenidas de Cataguases
os flamboyants florescem
como numa pintura de Van Gogh,
enquanto a cidade jaz
num silencio sepulcral.
Corolas e pistilos denunciam
que no asfalto distante rompe uma flor:
é a roas destemida
que vinga contra o tédio
e a dissimulação
que o tempo decreta
nesses homens tão urgentes.
Os passos enviesados
da entourage ensimesmada
não colhem dos pássaros
a melodia mozartiana
que insiste em meio
à indiferença total.
Mas essas árvores solenes
(como os discretos oitis das alamedas)
explodem altivas nas cercanias solitárias
e guardam segredos das gentes
sob o beiral do riacho exausto
que, sonolento, beija suas raízes.
Mas vivo do que nós,
celebram o que em mim
já não vive.
S(o)bras
Para Leo Barbosa
Vejo o rio que corre
em Cataguases
– é o mesmo vário rio
que (es)corre em mim:
educando-me pelas encostas
com lições de cheias
e úmida cartilha de enfados.
O exemplo da água que f(l)ui,
com sua impessoalidade e inconcretude
crava-me um sertão nas entranhas.
E um acúmulo de pedra nas vísceras
Embrenha na alma tantos eus.
Essa sombra, essas sobras
boiam indigentes, como um feto
em placentária
clandestinidade.
Antônio Perin
Existência -1985 - Manabu Mabe
Antônio Perin Baiano, nasceu em Itaobim MG, cresceu nas
franjas do Meia Pataca ouvindo sapateiros, costureiras,
roceiros, tecelões contarem seus casos e suas histórias de
trabalho. Se encantava com folias de reis e embriagados
calangueiros em seus desafios pelos becos da infância. Em
casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó
negra cantando benditos em latim enquanto costurava,
estranhava a emoção materna entre novelas radiofônicas e os
afazeres domésticos.
A tecelã
No manicômio,
observo a tecelã.
Cabelos negros
mecheados de algodão,
mãos inábeis e tremulas
tecem algo de novo,
tramam um tecido.
Obra urdida na dor.
Poema grotesco e trágico
brotando entre os dedos,
que pinçam como teares
outros ritmos indóceis.
Lentamente vêm acercando-a
ritmos mecânicos, ritmos doentes
ritmos graves, ritmos fortes...
Juntando-se nas sombras
gemendo e buscando-a,
uns, qual choques de ferros,
outros, qual grito de loucos,
trançam fios coloridos,
baixam rendas frágeis,
cruzando as tramas
como ágeis tizius.
Ela contou a um canto
que crescera servil.
Isto dito com um rosto
trágico numa voz sútil.
Era a história triste
desprotegida e torta
de uma mulher apagada
cinzenta e morta.
Sua boca, agora, emite sons abafados
como uma música estranha.
Dedos espuladeiras não param,
ainda, trançam fios imaginário.
Mostra-me tecidos finos.
Só vejo a impaciência vazia
da lavrada mão e ásperos dedos.
Triste penitente beijo-lhe a mão.
Herberto Helder
Herberto Helder – Nasceu em 23.11.1930 no Funchal Ilha da
Madeira, em 1948 matriculou-se em Direito mas cedo
abandonou esse curso para se inscrever em Filologia
Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros
trabalhos e colaborou em vários periódicos como A Briosa,
Re-nhau-nhau, Búzio, Folhas de Poesia, Graal, Cadernos do
Meio-dia, Pirâmide, Távola Redonda, Jornal de Letras e
Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial
Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em
1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens
para a revista Notícias. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prémio
Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais a 23 de março de
2015, tinha 84 anos. É considerado como um dos maiores
poetas europeus contemporâneos
"Poeta que reescreve sem cessar, é criador/destruidor de uma
gramática peculiaríssima. A transgressão regula a pontuação,
os padrões são sujeitos à sua consciente desorganização, o
fluxo verbal se alastra animalizando o poema."
"Herberto Helder impulsiona a viva encantação das palavras,
o abalo que a sua poesia provoca é um dos mais profundos que
a literatura de língua portuguesa já sofreu." – Trecho retirado
do comentário do livro: O Corpo O Luxo A Obra, Editora
Iluminuras, 2000. Seleção e apresentação de Jorge Henrique
Bastos.
Sobre um Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
e outros poemas
“A uma devagarosa mulher com a boca
do corpo cheia de sangue e a boca
do rosto cheia
de respiração, por cinco dedos meus
esquerdos, na curta duração de tudo,
a curta canção que pulsa
do fundo de si mesma:
a uma devagarosa mulher no mundo.
*
do corpo cheia de sangue e a boca
do rosto cheia
de respiração, por cinco dedos meus
esquerdos, na curta duração de tudo,
a curta canção que pulsa
do fundo de si mesma:
a uma devagarosa mulher no mundo.
*
Nas mãos um ramo de lâminas.
Cada palavra tem mais à frente o lado escuro,
Mais noutra posição armada, as suas zonas últimas
--- ofertas do amor: a morte
e a homenagem”.
.........................
“Quero um erro de gramática que refaça
na metade luminosa o poema do mundo,
e que Deus mantenha oculto na metade nocturna
o erro do erro:
alta voltagem do ouro,
bafo no rosto.
*
Um espelho em frente de um espelho: imagem
que arranca da imagem, oh
maravilha do profundo de si, fonte fechada
na sua obra, luz que se faz
para se ver a luz”.
de Do Mundo
Não percas a cabeça - Sá Nogueira
“Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som das mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredoras magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muitos vivos nas patas
pela noite dentro.
Lenços vivos com suas patas abertas
como magnólias
correndo, lembradas, patas pela noite
Levando, lembrando, correndo.”
de A Máquina Lírica
“Em quartos abalados trabalho na massa tremenda
dos poemas.
Que me olham de tão perto que eu ardo.
Um dia hei-de ficar todo límpido
ou calcinado nervo a nervo. Ou por me ver
Deus
de um canto das palavras, com sistinos
dedos pintados em torno à voragem
diuturna, tocando na matéria.
Alguém poderia dar um grito.
Quase morro de medo ao sentir o meu nome.
Penso que apenas numa hora o sangue encharcaria
a roupa de alto a baixo, enquanto brilha o rosto.”
de Flash
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndia violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
rios, a grande paz exterior das coisas,
folhas dormindo o silêncio
---a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
Invade as casas deitadas nas noites
e as luzes em volta da mesa
e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
--- Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
--- E o poema faz-se contra a carne e o tempo.
de A Colher na Boca
“ Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
de silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.
E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em azul,
ou estrela eletrocutada, ou em homem
noturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, raios límpidos.
Até à manhã orçando
pendúculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta – dizem em mim – até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.
de Lugar II
Fragmentos - Sá Nogueira
Emerson Teixeira
Cardoso
Celina Seleta
Dizem que o poeta não escreve por
vontade própria. Tal fenômeno só é possível se
considerarmos que ele não procede de um sentido
mental mas da natureza do imponderável, esse
misterioso e indefinível estado d’alma essa
indefinível sugestão.
Esses conceitos me vieram à cabeça assim que
comecei a ler o livro Hoje poemas de Celina
Ferreira encontrado pelo meu amigo Zé Antonio,
como por milagre em um sebo aqui em
Cataguases, como atesta estes versos de um poema
seu Rondó da chuva caindo:
“A chuva chovendo chora
minhas gotas de alegria.
Que é de meu livro de estórias,
a bruxa de cartolina,
meu pilãozinho de vidro?
Que é do arraial na memória,
e apito rouco de usina
noite e noite, dia e dia?
A chuva chove que chove
lembrança tanta haveria?
Santana será que existe?
As ruas da meninice,
o doido correndo alegre
mais doido que alguém de nós
o lago sem muita história,
uma igreja e a Santa rindo,
rindo rindo sobre nós.
Com os olhos chorando o tempo
que a chuva mansa escorria
A infância lavada em chuva,
o corpo crescente agreste,
as mãos tocando o infinito.
Lá longe o medo e o silêncio,
a solidão incorpórea,
as coisas do desengano,
lá longe o tempo de agora.
E a chuva chovendo chora
minhas gotas de alegria.
O meu interesse pela obra da poeta é antigo,
mas nunca pude encontrá-la. Não fosse por
alguns versos avulsos garimpados em antigas
edições do O Cataguases. Recentemente o
Ronaldo publicou aqui mesmo, na Chicos um
artigo intitulado: “Celina Ferreira, uma palestra
que não houve” dando notícia de seu falecimento
mais precisamente em 5 de agosto de 2012.
Portanto não cheguei a conhece-la pessoalmente
mas graças ao meu Pomba poeta tomei
conhecimento de mais um bom lote de sua poesia
que ilustrava o excelente artigo. O texto do
Ronaldo, prestava-se a homenagear Celina
colocando-a entre as maiores vozes da poesia
cataguasense. Saudada entusiasticamente por
nomes como Manoel Bandeira, Guimaraes Rosa
segundo Ronaldo permanece, ainda hoje pouco
divulgada, daí o desconhecimento do grande
público. O evento que inauguraria o Café do
Museu e ainda oficialmente o Anfiteatro Ivan
Muller Botelho acabou não ocorrendo por questão
de tempo e a palestra estivera então desconhecida
até por Celina, a Chicos, publicou-o no seu número
36 e o subtítulo era, “uma poeta de voz maior”.
Não sei porque passou-me despercebido o
referido evento e em consequência disso perdi a
oportunidade de conhecer uma das maiores
poetas de uma geração que já nos havia dado
Francisco Marcelo Cabral e Lina Tâmega Peixoto.
Lamento que um contato mais possível com a
poeta (na realidade um tanto hipotético) é uma
visita ao campo santo da cidade onde está
sepultada.
Hoje Poemas contem: Poesia de ninguém, Nave
incorpórea, Poesia Cúmplice e Rio do Sono.
Reúne um vasto lote de poemas que constitui o
melhor de sua produção. Utiliza-se Celina no seu
fazer poético dos processos clássicos que inclui
rondós, sextilhas, sonetos, cantares e baladas,
modelos adotados por aquele seguimento que nos
anos 40 resolveu afastar-se dos ideais do
modernismo provando que na literatura os
modismos como em outras esferas são
pendulares.
Outro aspecto interessante deste Hoje Poemas
são as ilustrações de Guignard que caem nos
poemas como música incidental em um filme.
Doce, tátil, fortuna, as palavras, não fosse uma
sequência de poemas, perfeita definição de sua
poesia harmônica, saborosa inteira sinestesia.
Como em “Doce”:
A cidra no açúcar
a brasa na cidra
a cidra e o açúcar
na exata medida.
O fogo apagado,
a mesa estendida,
o queijo no prato
e o doce na cidra.
Vai-se degustando, querendo-se, queimando-se
guloso o leitor na fogueira dos versos:
Tátil
No dorso da noite
meu amor campeia
tão perto que as mãos
o fogo incendeia
Tão fácil que o corpo
querendo se abeira
Tão certo que é meu
pela vida inteira
O amor eu conheço
no peso do corpo
o amor eu acendo
com macio sopro
o amor eu percebo
pelo seu contorno.
Requintes cabralinos em dísticos, desmembran-
do: olhos, braços, mãos e rosto. Na enumeração da
vida, jogo, morte.
Excelências
Uma excelência por um corpo
que hoje agora já está morto
Duas excelências por sua alma
que procura um lugar novo.
Três excelências pelas mãos
que trabalharam no fogo.
Cinco excelências pelos braços
cobertos de trapos rotos.
Seis excelências pelos pés
que só conhecem malogro.
Sete excelências pelo sangue
enfraquecido e sem rosto.
Oito excelências pelo homem
seu viver tão custoso.
Nove excelências pela vida
que não deseja retorno.
Doze excelências pela sorte
que recolheu o seu jogo.
Começando pelo fim, portanto, saio deste
Inventário. Volto ao começo visitando outros
temas do seu livro de estreia: Poesia de Ninguém.
Compõe-se de 12 poemas escritos entre 1950 e
1954 cujos subtítulos Viola de Amor e O Vivo e suas
perdas (22 poemas) formam um conjunto
compreendendo poemas mais longos: sextilhas,
quadras ou dísticos de um lirismo que mescla às
vezes elementos da poesia provençal, passando
pelo Barroco propriamente dito nos seus
conflitos: o homem dividido entre o terreno e o
divino na busca simultânea de uma possível
comunhão entre o êxtase da alma e o desejo do
corpo. Como em:
O jogo da Rosa
Preciso de arrepender-me
preciso de proteção
preciso de comover-me
e fazer uma oração
preciso de muita rosa
e talvez de solidão.
Mas o arrepender é frio
e a proteção foi perdida
o meu céu está vazio
minha boca emudecida
sei que preciso de rosa
e talvez de solidão.
A flor perdeu-se no relento
talvez rolasse no chão
como a flor desfaz-se ao vento
também se pede a ilusão
eu não quero mais rosa
quero a minha solidão.
Do vivo e suas perdas
Canção Clara
Canção muito clara, o bastante
para o verso condenar.
Condeno o que passou breve
sem desejo de ficar.
Aquele que bem devia
dar-se a mim vivo de amor.
Condeno o que me viu frágil
e não foi o meu protetor.
Esse que me cativou
e não quis me conservar.
Ah! Canção clara, o bastante
Para o nosso condenar!
Obra singular, ainda que não esteja ainda ao
alcance do grande público ledor (Poesia de
ninguém é de 1954) mereceu o apreço de notáveis
como Carlos Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira, sendo que este último a homenageou no
Mafuá de Malungo o que chamou de jogos
onomásticos, versos de circunstâncias dotados de
uma singela beleza:
“Celina Ferreira
não me tocou levemente
Tocou-me fundo,
Celina, a tua poesia,
que me tornou para sempre,
seu cúmplice.”
Pelos livros que deixou e prêmios que
conquistou em sua trajetória literária, acho que
Celina não teve ainda o reconhecimento que
merece nem de público nem suficientemente de
crítica. Lacuna que uma republicação de sua obra
poderia quem sabe, reparar?
Mariana Ianelli
Poema de Brecht
sobre peregrinação de
órfãos durante a
guerra ganha livro
ilustrado
Em 'A Cruzada das Crianças', desconhecidos se unem
durante a Segunda Guerra na busca por um lugar
seguro, comida e paz
Onde quer que haja guerra, há uma cruzada de
crianças. Essa é a máxima que Bertolt Brecht
(18981956) formula, em outros termos, ao transpor
para a realidade da Segunda Guerra o drama da
lendária narrativa medieval. A Cruzada das Crianças
aparece pela primeira vez em Histórias de
Almanaque, coletânea de parábolas, poemas e
contos, incluindo as famosas Histórias do Sr. Keuner,
que o autor publica no final dos anos 1940 na
Alemanha.
O poema pertence a um extenso conjunto de textos
que Brecht escreveu durante seus anos de exílio.
Hannah Arendt chegou a considerar que este seria “o
único poema alemão da última guerra” que
perduraria. Sua contundência permanece, por isso a
oportunidade da recente edição brasileira, na
tradução de Tercio Redondo, com ilustrações da
artista catalã Carme Solé Vendrell. Seguindo o
formato da versão espanhola de 2011, com o traço de
Solé Vendrell sangrado nas páginas, é uma edição que
valoriza a dimensão épica dessa história de pequenos
peregrinos, filhos da guerra, que se unem para buscar
a paz sem saber onde.
No inverno de 1939, numa Polônia recém tomada
pelos alemães, tropas de crianças famintas se juntam,
conduzidas por um “pequeno chefe / que animá-los
bem queria, / porém algo o preocupava: o caminho
não sabia”. O filho de um nazista, um judeu, um
pequeno músico, um menino socialista que discursa,
todos têm uma fome comum, de pão. Ao todo são 55.
Abstêm-se de lutar entre eles, “pois com fome não há
luta”. O nome da terra prometida que procuram, que
um soldado moribundo lhes indica, é Bilgoray, nome
de uma paz tão inacessível quanto o pão. Ao final do
poema, o poeta narrador fala em primeira pessoa:
“Quando fecho os meus olhos, / vejo-os perambular,
vagando de sítio em sítio, / (...) / Buscando a terra da
paz, / (...) / vai crescendo assim o bando. / Ao mirá-
lo no crepúsculo, / não lhe vejo a mesma tez: / outras
caras eu contemplo, / de espanhol, francês, chinês!”.
É interessante pensar na figura do cão que serve de
mensageiro às crianças, levando uma placa de
socorro no pescoço. O animal, no poema, é
encontrado por camponeses, mas em vão, ao
contrário daquele que salva o mendigo na peça O
Mendigo ou o Cachorro Morto, escrita por Brecht
logo após a Primeira Guerra, em 1919. Curiosamente,
esse socorro que não vem para os órfãos da Segunda
Guerra; de certo modo, é traído pela própria
realidade, pela influência que Brecht exerceu,
indiretamente, na ópera infantil Brundibár para as
crianças do campo de Theresienstadt. Criada como
um “estudo brechtiano”, em 1938, em Praga, por
Hans Krása e Adolf Hoffmeister, Brundibár estreou
no orfanato de um abrigo em 1942 e a partir do ano
seguinte passou a ser apresentada semanalmente em
Theresienstadt. Eram 55 meninos e meninas no palco.
Eva Landová, que sobreviveu à guerra, fala sobre a
importância da ópera como fonte de esperança e
resistência dentro do campo: “Nós, as crianças,
derrotamos todos aqueles que nos subestimaram: os
adultos e Brundibár (personagem associado a
Hitler). E, nos momentos em que assistíamos à
ópera, acreditávamos firmemente em nossa vitória”.
Nessa aderência da vida à ópera, o poema de Brecht,
lacônico sobre o destino das crianças, ganha uma
nova leitura.
Outro aspecto interessante de mencionar é a tese de
Georges Duby e Philippe Ariès de que,
historicamente, a cruzada das crianças teria sido uma
cruzada de camponeses afetados pelas
transformações econômicas do século 13, já que o
termo latino “pueri”, além de designar “crianças”,
remete a pessoas em situação miserável.
O escritor francês Marcel Schwob, que criou sua
versão da história em várias vozes, num livro de
mesmo título, de 1896, também merece ser citado.
Um acrescento à linguagem seca e direta de Brecht, o
poema tem em comum com o livro de Schwob uma
triste ternura, uma pungência, que é realçada na
nesta edição pelas ilustrações de Carme Solé
Vendrell.
Trecho inicial do poema:
"No ano de trinta e nove
a Polônia verteu sangue;
suas vilas pereceram
sob o fogo de falanges.
A criança ficou órfã,
faleceu o irmão querido,
a cidade era só chamas,
a mulher perdeu o marido.
Do país nada chegava,
só rumores sem valia,
mas em terras lá no leste
estranha história se ouvia. (...)"
A CRUZADA DAS CRIANÇAS
Autor: Bertolt Brecht
Trad.: Tercio Redondo
Editora: Pulo do Gato (36 págs.; R$ 38)
Mariana Ianelli é poeta e autora de O Amor e Depois, entre
outras obras
Ronaldo Werneck
O som de Solha
ao redor
No verão de 2013, de passagem pelo Recife,
assisti por acaso, sem qualquer indicação, ao filme “O
Som ao Redor”, de Kléber
Mendonça Filho. Não sabia nada do
filme nem do diretor, mas como a
trama acontecia no Recife acabei
“arriscando”, já que ali estava.
Grata surpresa: “O Som ao Redor” é
um dos melhores filmes que vi nos últimos anos, e aí
entram também os estrangeiros. De volta ao hotel, na
Praia da Boa Viagem, me vi subitamente dentro do
cenário de “O Som ao Redor” e lembrei-me do
personagem Francisco (chefe de uma família que
domina alguns quarteirões da Zona Sul do Recife)
entrando no mar à noite, bem ali onde eu me
encontrava.
Nos créditos do filme, lembrava-me de ter notado o
nome de um dos atores, W.J. Solha, mas não sabia
qual o seu papel. Pensei já ter visto o nome, talvez até
em meus contatos de email, já ter lido alguma coisa
dele, mas não ligava o nome à pessoa, ou vice-versa.
Qual não foi minha surpresa quando há pouco tempo,
por ocasião da morte de um amigo em comum, o
escritor cearense Nilto Maciel, vi novamente o nome
W.J. Solha assinando um texto sobre o Nilto na web.
Havia uma foto dele e identifiquei de imediato o
“Senhor Francisco” do Som ao Redor.
Logo depois, li um excelente texto do Solha na Revista
Eletrônica Rio Total, onde falava en passant do
Guernica de Picasso visto no Museo Reina Sofia, em
Madri, mas voltava os olhos com maior atenção para
a mostra de um fotógrafo canadense, Jeff Wall, que
ali se encontrava. Também eu vira por duas vezes o
Guernica no Reina Sofia, inclusive quando de uma
grande exposição sobre Picasso, em 2010. E me
detivera, e me detivera, e me detivera e vou me deter
sempre ante o quadro trágico e monumental.
Mas a atenção de Solha naquele dia – Guernica à
parte – fixou-se nas fotos de Jeff Wall – em
transparência, de grande porte e retroiluminadas –,
principalmente uma intitulada “Um brusco golpe de
vento (a partir de Hokusai, de 1993”). Fora a
dinâmica, o que mais deslumbrou Solha foi saber que
a foto remetia a uma imagem que o japonês Hokusai
(Katsushika Hokusai, 1760-1849) flagrara 200 anos
antes. Daí, mostrando grande erudição, Solha parte
para a influência da arte oriental na Europa,
marcando trabalhos de Manet, Van Gogh, Cèzanne e
outros mais. Seu texto, acuradíssimo, estava eivado
de tal argúcia e propriedade que não me contive:
acabei enviando ao Solha longo email elogiando o
primor de suas palavras.
Logo, seguiram-se outros e-mails de cá pra lá, de lá
pra cá, e descobrimos vários e vários amigos em
comum. Enviei também alguns de meus livros,
enquanto aguardava/aguardo o envio de seus livros
(o Solha poeta ganhou o prêmio João Cabral de Melo
Neto e foi finalista no Jabuti), que ainda não
chegaram. Qual não foi o meu espanto há algumas
semanas, quando estava em Nova York – e pensara
nele naquele mesmo dia, ao ver um quadro de Van
Gogh no MoMa (o título de um dos livros de poemas
de Solha, “Trigal com Corvos”, remete ao quadro de
Van Gogh) –, qual não meu espanto, repito ainda
espantado, ao ler no meu facebook dois textos do
Solha sobre meus livros. Sou um analfabeto nos
mistérios do facebook e não consegui enviar
mensagem pra ele de meu i-phone, instrumento que
manejo com total deficiência, com a imperícia de um
matuto manobrando nave espacial.
Agora sim, “acá y ahora”, direto da base/Cataguases,
prestidigito essas linhas de agradecimento.
“Paraibano” desde 1982, embora nascido em
Sorocaba, o escritor, poeta, dramaturgo, roteirista,
ator e artista plástico W.J. Solha é desses seres
multifários que fazem de tudo um muito e um muito
de tudo, com argúcia e grande competência. Mais que
agradecido, sinto-me honrado com suas palavras.
Parece cabotinismo (e é), mas não resisto a divulgar
aqui os seus textos sobre meus livros. Gracias, Solha!
Ronaldo Werneck em
cataminas pomba &
outros rios
W. J. Solha
A obra tem substancial fortuna crítica. Fábio Lucas
define-a como um suave percurso pela estória, pela
História, pelas partes do Ser. Articulando
confidências da memória e da memória coletiva. Mas
Délson Gonçalves parece alertar, em versos, que se
trata disso tudo, mas também de poesia, ao
acrescentar a essa definição algo essencial, quando
diz que “o rio caminha fora de mim/ e o mesmo
Pomba me navega por dentro”. Não é à toa a citação
que o próprio Werneck faz de Neruda: “– Sé lo que
dicen / todos los rios. (...) Hay secretos míos/ que el
rio se há llevado. (...) Reconocí en la voz del Arno
entonces/ viejas palabras que buscaban mi boca”.
Recapitulando: “Confidências da memória e da
memória coletiva”. “Secretos míos”.
Tem a ver, que numa reedição futura, por isso
mesmo, talvez o livro venha a se encher de notas de
rodapé, como o “The Waste Land” do Eliot,
desnecessárias para os de Cataguases e – em alguns
casos – somente para o autor, pois a obra acaba tendo
alguma coisa muito pessoal, claro que não hermética
como no “Finnegans Wake”, mas tendo. Exemplo:
“como numa fotografia/ como num stop no tempo/
como num apanhado do landóes”. Felizmente o
volume é fartamente ilustrado e se vê, no verso de
uma foto de 1911, reproduzida justamente nesse
ponto: “Atelier Photográphico Alberto Landóes”.
Como diz o Manoel de Barros, numa das inúmeras
epígrafes do livro: “Imagens são palavras que nos
faltaram”.
Mas isso fez com que eu só fosse conquistado
totalmente pela obra quando – no final dela –
Werneck fala de rios com que não tem a mesma
intimidade, como o Tajo, o Tâmisa, o Sena, que me
fizeram voltar ao Cataminas e ao Pomba com outros
olhos. E por falar em fotos, realmente cataminas
pomba & outros rios tem a beleza extra de muita,
muita fotografia de Cataguases e de sua gente, o que,
com o que afirma Fábio Lucas – seu ritmo é
cinemático – mais o fato de que o poeta é apaixonado
pelo cinema, me fazem ver, nele, por um momento,
um belo roteiro devidamente ilustrado com todas as
suas locações no tempo e no espaço.
Por que, então, se não lhe faltavam engenho & arte,
Werneck não fez um filme? Porque, parafraseando
Manoel de Barros, palavras são imagens que nos
faltaram. Como quando o mesmo Werneck,
genialmente, diz: “Pressinto/ cabreiro/ com horror/
que estou/ numa cidade/ do exterior/ mineiro”. Uau!
Mais adiante, ele descreve o Tibre como “fio presente
ausente/ nas glórias de outrora/ não se vê não se
sente”. Mas “não se vê, não se sente” o quê? “faces
flashes de outrora/ estilhaços de fausto/ tênues
fragmentos/ sombras sobre a história”. Claro.
História!
Ele é novamente genial quando diz, em El
tajo/tejo:toledo: “Miúdo /em toledo el tajo é tudo/ el
cid el greco”. Exato. Senti isso ao parar na pista, fora
da cidadela fortificada pelo rio franzino que a rodeia
no fundo do vale, eu exatamente onde o pintor
excepcional fincara o cavalete para pintar a bela Vista
de Toledo, cheia do espírito místico da cidade e dele
mesmo. Werneck me faz pensar novamente nela,
quando descreve Ouro Preto: “chove sobre a cidade
encarcerada em sabão e pedra”, finalizando assim:
“chove água que escorre sobre o ouro dos pretos e
leva sua memória”. Não “lava”, como seria de se
esperar. “Leva”. É impressionante como ele venera
sua terra, como ama a História.
Ele diz, em L´arno a firenze: “Como antes/ la luna / a
mesma/ de dante/ & petrarca/ a mesma se via/ sobre
a água/ refluxos de poesia”. E vai fundo, em El
manzanares en madri: “Um rio/ fechado em si/ um
rio/ lago/ um rio/ del cante-jondo/ pardo-tardo-
redondo”. Fluem, assim, os versos de Werneck, sobre
o rio que cruza Cataguases “correndo corroendo/ um
século em cada minuto”. “Correndo corroendo”. “A
preta prata madrugada”. “Gretas grutas”. Nesses
desdobramentos de palavras – que me lembram o
glauberiano poeta recifense Jomard Muniz de Brito –
, ele mostra o quanto cuida de cada detalhe do que
compõe, quase como um outro grande mineiro,
Guimarães Rosa, mas empenhado na multiplicação
dos enfoques, como os cubistas faziam, trabalhando
sempre com vários ângulos simultâneos, como numa
quarta dimensão.
“O bafo da railway bufando com bazófia/ entre
nostálgicas indústrias/ se acendendo se ascendendo
se/ movendo-se movendo se/ como loucas se
locomovendo se”. Cinema? Quase. Veja a decupação
que ele faz desta cena: “O rio envolve/ esse tropel de
burros/ bicicletas/ meninos soltos/ no pó/ no pé
descalço/ nos galhos/ pendurada no ar/ nas árvores”.
Mas aí se segue o pulo do gato: “a poesia / se
desmanchando/ se amarelando/ se dissolvendo”.
alço-as e me vou, ou sou levado
voando, me vou.
José Antonio Pereira
Taioba e taiobas
Algumas imagens que mais habitam os
descaminhos de minha memória são as de taiobas. Um pé
em especial, plantado num bem cuidado gramado na casa
do Zé Tarcísio, me ocorreu. Ele reinava imperiosamente
tal qual uma palmeira naquele chão verde. Eu, ainda
morava em São Paulo, fôramos, eu e Roseli, visitar o
amigo em Lavras num carnaval. Zô carregava no ventre
sua primogênita, eu nem imaginava que ia ali o nome de
uma das minhas canções favoritas do Caymmi. Numa das
divertidas conversas com o dono da casa, senhor de um
humor ligeiro e contundente, torna-se sério, com um
dedo professoralmente aponta para a pequena planta, e
diz: – Aquela taioba tá ali, para eu não esquecer quem
matou minha fome nos tempos bicudos de estudante em
Viçosa. Até hoje não conheci gratidão tão singela como
esta. Já eu...
Eu nunca fui fã de taioba, pra ser honesto, sempre nutri
um grande desprezo pela plantinha. Na minha infância,
morávamos de aluguel numa casa com quintal, entre a
linha férrea e o Meia Pataca; quintal com jabuticabeira,
cercas forradas de bertalhas. Estas, sombreavam moitas
de teimosas e renitentes tiriricas, apesar dos esforços
diuturnos de mãe e Vó Maria. Num lado umas ararutas,
doutro uns inhames, ao fundo uns velhos pés de couves
cercados por um taiobal que crescia e teimava, como a
tiririca, dominar o canteiro.
A bertalha, já adulto, serviram-me num restaurante
vegetariano de duvidoso requinte, com o nome de
espinafre indiano; até hoje me pego rindo com a
galhardia do garçom tecendo loas a plantinha tão
insonsa. O mundo realmente dá suas voltas e como tudo
gira e roda. Na frente da casa uma romãzeira cercada
por uma touceira de tinhorão. O tinhorão todos da casa
viviam dizendo que era planta venenosa. Parecia uma
taioba, em que algum pintor jogara restos de vermelhão
diluído. Se era veneno o que fazia ali? Pensava toda vez
que tomava uma bronca quando punha a mão na tal
planta. Minha ojeriza pela plantinha aumentou quando
já adolescente um certo crítico musical irascível chamado
Tinhorão, detonava todos os roquinhos que eu gostava de
ouvir. Já adulto, lendo Cruz e Souza, dei de cara com os
versos Cróton selvagem, tinhorão lascivo, / Planta
mortal, carnívora, sangrenta, / Da tua carne báquica
rebenta / A vermelha explosão de um sangue vivo. Não
teve jeito passei a desprezar definitivamente qualquer
coisa que tivesse a menor semelhança com tinhorão.
Confesso aqui que meu problema com a taioba é caso
psicanalítico não resolvido. Deriva, e eu sei disto, de
pesadelos que me perseguiram a adolescência inteira.
Sonhava que minha mãe, coitada dela, espumando de
raiva por mais uma das minhas traquinagens; servia meu
prato com um arroz branquinho, um feijão cheirando a
alho frito, um angu molinho, um ovo estrelado e um farto
punhado de taioba rasgada refogada, uma delícia para
quem chegava da escola morto de fome. Só que na última
garfada eu via no meio do verde alguns tons de vermelho.
A garganta apertando e sufocando, o ar faltando, a língua
queimando, os beiços engrossando, babando feito um
cachorro, uma baba verde com traços de espuma
vermelha. Acordava banhado de suor e o coração
disparado. Dia claro, ia para o quintal e me punha a
chutar toda planta que aparecia na minha frente. Vó
Maria da varanda gritava – Ficou
doido menino! O que continha
meu ímpeto, era o pé descalço
doendo por ter chutado alguma
pedra ou toco que brotava do
chão encoberto por alguma
moita verde. E a ameaça de uma
surra encomendada pela minha
mãe. Até hoje, não tem jeito,
taioba não entra no meu prato.
Antônio Jaime Soares
Duas plásticas no
Pitanguy
Porto Alegre deixou de ser um sonho distante
quando fui lá para a campanha de lançamento de um filme
de Teixeirinha. Com uns colegas e, naturalmente,
exibiram-nos os cartões-postais locais e o filme, intitulado
A filha de Iemanjá. Jamais imaginei que no Sul também
cultuam aquela entidade. Sim, e com muito fervor,
segundo o filme. Enredo sem pé nem cabeça, puro
pretexto para Teixeirinha e sua musa, Mary Terezinha,
manterem seu mito.
Na primeira noite, levaram-nos a uma boate em que
mulheres semi-nuas se mostravam em trajes e cenários,
por assim dizer, da Roma antiga, além dos indefectíveis
números de danças, bombachas e prendas minhas.
Tropicalismo brabo. Tudo caríssimo, mas o uísque, o
vinho, tudo por conta do contribuinte, sendo a
Embrafilme uma estatal. Eu queria mesmo é um ambiente
enfumaçado, clima de fossa anos 50, ao som de Lupicínio
Rodrigues.
Dia seguinte, encaramos a fera. Baixinho, botas de
salto alto, cabelo ralo tinto de castanho, e vaidoso.
Levamos um pré-cartaz do filme, baseado em fotos de
cena, que ele viu e sentenciou: “Está muito bom, mas eu
apareço com rugas. Não quero rugas, paguei duas
plásticas ao Pitanguy para não tê-las” (esse tê-las faz
sentido, o português deles, gramaticalmente, é
caprichado, como no Nordeste). Mas ao vivo e nas fotos,
as rugas apareciam. Sem problema, o ilustrador da
Embrafilme daria os devidos retoques. “E Mary não está
parecida com ela, mas com Edith Veiga”. Também
problema contornável.
Mary, pois é, sua parceira artística e sentimental,
sem que dispensasse a mãe dos seus filhos. Um assistente
dele contou que elas até se socorriam, quando havia festa
na estância de uma ou de outra, emprestando empregados
e vasilhame. Uma bigamia consentida. A seguir, fomos
conhecer as instalações da TV Gaúcha, uma Globo em
miniatura, situada num bairro bucólico, casas sem muros,
pois é. E, lá de cima, vimos o famoso pôr-do-sol sobre o
Guaíba, orgulho maior deles, realmente muito bonito.
Eu editava um jornalzinho para gerentes de cinemas,
por isso entrevistei o da maior sala de exibição de lá. Disse
que Teixeirinha era realmente um fenômeno. Quando
estreava “fita” com ele, chegavam ônibus até de Estados e
países vizinhos. Contudo, eu nunca ouvira falar de filmes
dele e aquele, no Rio, passou apenas no Cine São
Cristóvão, mais freqüentado por nordestinos. Essa
diversidade cultural do Brasil é positiva, prima della
televisione.
José Tarcísio Lima
José Tarcísio Lima – Nascido em Cataguases, reside atualmente
em Lavras – MG, onde é professor na UFLA. Estreou
literariamente no Lodo publicação que circulou em Cataguases
nos anos 80.
Monark 66
Escrever sobre autores cubanos atuais é
penetrar num lindo mundo enevoado, cheio de
perspicácia e adivinhação. Desde tentar a
comunicação, estando em Cuba, com Leonardo Padura
(1955 – Havana), até tentar localizá-lo através de sua
editora brasileira, a Companhia das Letras, a viagem é
longa e algo arriscada. Mas vamos a isso. O que se
deseja não é ver o autor – aliás, um cinquentão
simpático –, mas estudá-lo, escrever sobre ele e sobre
a sua criação principal, o detetive da polícia cubana
Mario Conde.
As bicicletas foram promovidas a bikes e levam
ciclistas. Incorporaram tecnologia avançada em
design, materiais, mecânica e acessórios que, além dos
tradicionais, ostentam velocímetros, ciclocomputado-
res e gps. São mais leves, velozes e ergonômicas. Têm
amortecedores e contam com mais de vinte marchas!
Os ciclistas usam roupas especiais, capacetes, luvas,
mochilas, garrafinhas de água e protetor solar com
fator de proteção para lá de 30. O mais importante, no
entanto, é que agora as bikes são instrumentos para
acondicionamento físico,
montanhismo, promoção da qualidade ambiental e de
trânsito. Os ciclistas reivindicam ciclovias e direitos
em relação aos motoristas. É um comportamento que
se alinha ao dos europeus, que há muito tempo
"descobriram" as benesses de um modo de vida
saudável montados nas magrelas. A propósito, um
amigo alemão me disse certa vez que na Alemanha os
ciclistas têm tantos direitos que se um motorista
atropelar um ciclista, é melhor dar ré e esmagá-lo para
ter certeza de que ele está mesmo morto, pois se
sobreviver, te incomodará para o resto da vida. Humor
negro alemão, é claro.
Desde a infância até os 25 anos pedalei para me
transportar sobre paralelepípedos tórridos. Minha
primeira magrela, dividida com meu irmão, era uma
japonesa, pequena, aro 20; depois veio uma Philips,
uma Bluebird, mas duas foram mais dedicadas a me
carregar: uma Monark 66 e uma Caloi 80. Depois que
comprei um Chevette GLS - GLS!, me libertei quase que
definitivamente daquele meio de transporte, mas me
criou um problema que em outro momento conto.
Naquele tempo, bicicletas eram meios de locomoção da
classe trabalhadora, mas ostentavam adereços como
fitinhas no guidão, capa almofadada no selim com o
escudo do time de futebol, espelho retrovisor, bomba
de ar, garupeira, cadeirinha para criança, campainha e
algumas até farol a dínamo! Não representavam um
estilo de vida como as de hoje, mas uma necessidade.
Em Cataguases, então uma cidade operária, nos
momentos de troca de turno das fábricas de tecido
acontecia um frenético trânsito de bicicletas. Era
bonito de ver aquele rush.
"Herdei" a Monark aro 26, branca com paralamas
marrons, de minha irmã e, anos mais tarde, comprei
uma Caloi 10 - de marcha! Não eram para uso eventual
nos finais de semana, mas permanente. Eram
essenciais para me levar ao colégio, pescar, passear,
fazer compras para minha mãe; anos mais tarde para
ir ao trabalho na fábrica de macarrão, onde fui office
boy. Hoje seria bikeboy! Também usei a Monark para,
junto com amigos, viajar para localidades ao redor de
Cataguases como Leopoldina, Miraí, Astolfo Dutra,
Dona Euzébia, Santana, Itamaraty de Minas, além de
prainhas do rio Pomba, zonas e fazendas. Anos mais
tarde, compreendi quando o Airton Senna disse sua
interação com a máquina era tão intensa que chegava a
sentir o carro como parte integrante de seu corpo.
Cada um de nós com seu brinquedo. Sofri alguns
tombos, mas, diferentemente de nosso herói, ainda
tenho sobrevivido.
Quando fui estudar em Viçosa, em 1975, mandei a
Monark para lá. Fui de ônibus e ela de trem. Com medo
de perdê-la por extravio corri para a Estação
Ferroviária de Viçosa para resgatá-la. Tudo bem!
Durante todo o período na universidade andei de
bicicleta para lá e para cá. Para cima e para baixo,
assim como fizera em Cataguases. Tempos depois,
mandei-a de volta para casa de meus pais, pois investi
na Caloi 10 prateada, mais estilosa, é claro. Assim,
passei a dispor de uma bicicleta em Viçosa e outra em
Cataguases, que me servia quando viajava para lá nas
férias. Com o tempo e minhas andanças por esse
mundo, perdi contato com a Monark. Não sei se foi
vendida, se repousa como sucata em algum porão, ou
se reciclada por um ferro-velho tem seus átomos
diluídos por aí, mas tenho lembranças dela como se
fosse o meu trenó Rosedud.
Fiquei com a Caloi até 1995, mas já não a usava mais.
Por muitos anos a mantive esquecida em um canto na
garagem. Ela se tornou empoeirada, os pneus e
câmaras de ar deterioraram. Até que em um período de
férias resolvi recuperá-la. Nesta época eu já vivia em
Lavras e asseguro que entendia, relativamente bem, da
manutenção mecânica da bicicleta. Comprei algumas
ferramentas, alguns raios, graxa, óleo, pneus, câmaras
e uma corrente nova. Fiz um checkup na magrela e
deixei-a limpinha com água, sabão e bombril.
No sábado, montei nela e me dirigi ao nosso Clube de
Campo, distante seis quilômetros de minha casa.
Embora Lavras seja uma cidade de topografia bem
íngreme, o percurso a cumprir tinha apenas algumas
subidas e descidas leves. Pela primeira vez em minha
vida usava uma bicicleta como bike, pois a finalidade
era exercitar. A sensação do vento na cara era deliciosa
e resgatava um sentimento de controle, liberdade e
singeleza que há muito não experimentava. Fiz mais da
metade do percurso relativamente bem, mas na parte
final comecei a me cansar. Num momento, ao olhar
para trás, já fora do perímetro urbano, vi que vinha um
velho de chapéu, pedalando para me passar, a uns
duzentos metros, em uma bicicleta simples. Faltavam
cerca de dois quilômetros para chegar ao clube.
Não vou deixar esse homem me passar, decidi. E ele
estava mais veloz. Apertei a pedalada, mas não
adiantou muito, ele se aproximando. Sou capaz de
apostar que ele tinha decidido me ultrapassar. Eu com
a tecnologia e a juventude, ele com o controle da
situação e domínio da máquina. Apertei mais a
pedalada e ele cada vez mais se aproximando. Nós dois
dissimulando uma disputa. 50 metros, 25 metros, 10
metros, eu ofegante, buscando ar e músculos. Pouco
antes da portaria do clube foi possível, numa visada
rápida para trás, identificar sua feição impassível.
Enquanto ele também deve ter visto em mim o
desgaste, o cansaço e a língua de fora. Cruzei a linha de
chegada, entrando no clube sem parar para me
identificar e comemorando silenciosamente como se
fosse a maior vitória de minha vida. Um amigo me disse
que venci por beiço de pulga. Mas venci! O homem
continuou pela rodovia, sei lá para onde, como se nada
tivesse acontecido.
A Caloi ficou no clube por seis meses, até que um colega
a levou de volta em uma caminhonete para o
ostracismo do fundo da garagem, de onde somente
saiu, quando um pedreiro que fazia uma reforma em
casa me convenceu a vendê-la. Esta foi minha última
relação com uma bicicleta.
Se bem que ...
Flausina Márcia
Flausina Márcia da Silva poeta nascida em Cataguases e
radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na Secretaria de
Cultura de Minas Gerais. Publicou: Vagalume (2002), Sua
Casa Minha Cruz (2003), Teófilo Benedito Ottoni (2009) e
Poemas Declives (2014).
A Lua não Existe
ou
Uma infecção
científica
Eles apareceram, com variadas formas e tamanhos,
revestidos de coisas indestrutíveis como espadas,
mobilidade de fantasmas, truques de mágicos e pedras
verdes fosforescentes. Ninguém havia sido, como ele, tão
super.
Veio do céu.
Trouxe a guerra das estrelas para um planeta descontente
com o seu status na galáxia.
Queria estrelar, no seu “malvado favorito”, papel de
campeão do universo, para ensinar-lhe a causar muitas
inimizades com marcianos e alienígenas, sofrer com
invasões de tudo, corporais e cerebrais.
Venceu todas com brilho e preparativos de fuga,
supostamente salvadora dos tesouros terráqueos.
As inúmeras superioridades, suas contemporâneas ou
descendentes, salvadoras da humanidade, quase
convencem o planeta de que morrer é bom para mudar de
status.
Não se sabe como reagem os planetas, quando percebem
seu próprio engano, talvez fiquem loucos, deixem de
proteger interruptores e, pronto, lá se vai embora, a lua,
num curto circuito.
O super, coitado aliena-se também. Nunca mais ouve
estrelas, ama um rio, reverencia uma árvore.
Para de ser lunático.
Cadavre Exquis... - Mário Cesariny
José Antonio Pereira
A viúva
Abstrato - Viktor Sheleg
Rangia os dentes. Engolir mais uma estopa que o
mundo enterrava goela abaixo. Olhos vagos, tateavam
imagens sem foco. Tudo corria rapidamente, sem
destino algum. Misturavam-se todas as dores e
sofrimentos de uma vida inteira, uma desarrumação
mental total. Assim, Lia percorre seu passado e seu
presente. Chora, tendo como virgulas o soluço, e vagueia
por toda sua existência. Desesperada procura um lapso
temporal, um segundo sequer onde tenha errado. Nada
justifica aquela trombada que a vida perpetrara-lhe.
Desmoronara tudo, como terra arenosa sob chuva de
verão. Acreditara piamente em tudo que lhe fora dito. A
carreira de Quim, o casamento, achava que eram
siameses de tão igual no pensar. Cuidara de tudo, casa,
contas, dele e a carreira dele. Respira fundo, só sentia
ciúmes de Marilyn Monroe, uma das paixões dele; era
obcecado pelo filme O pecado mora ao lado. A outra
paixão era o vermelho. E agora era solicitada a deixar o
dito pelo não dito. – Como? Construíra laboriosamente
aquela aracnídea teia onde vida, trabalho e amores se
interpenetravam. Sempre acreditara que havia
honestidade entre eles. Metódica, via desabar o
ordenamento em que sempre organizara o mundo dos
dois. Onde foi que eu errei? Nega-se a pensar nesta
clássica indagação, isto, sempre a leva assumir o erro
que não cometeu. Erros? Com certeza, os dois
cometeram. A lágrima brilha, mas não desce, a garganta
aperta, mas não seca. Todos os órgãos e vísceras
parecem querer explodir como um balão de gás. – Quem
era aquela chorosa mulher de vermelho? O corpo oscila
febril nunca sentira nada igual. É o ódio. Ódio à única
atitude que Quim tomara na vida. Desata o nó na
garganta e solta... – Quim. Vai prá putaquiopariu!
Mário de Andrade
Mário de Andrade por Lasar Segall
Em 25 de fevereiro de 2015, algumas
efemeridades não deixaram passar em branco os 70
anos da morte de Mário de Andrade, aqui na Chicos
ninguém nem era nascido quando do falecimento dele,
mas é figura de extrema importância para nós. Foi ele
um dos interlocutores fundamentais para os escritores
da Revista Verde, os pioneiros da literatura de
Cataguases. No ano que vem, a obra de Mário de
Andrade entra em domínio público. De repente a
Cataletras, se empolga e publica Macunaíma e Amar:
Verbo Intransitivo.
Para aproveitar os últimos momentos de uma obra
protegida pela lei de direitos autorais, a Nova
Fronteira, responsável, com o Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB), pelos volumes disponíveis hoje, lança
o romance inédito Café, uma coletânea de contos e
crônicas e a graphic novel Macunaíma em São Paulo: O
Nascimento de um Brasil, com roteiro de Izabel Aleixo
e ilustrações de Kris Zullo. Os três ficam prontos para a
homenagem que o autor recebe na Festa Literária
Internacional de Paraty, entre 1.º e 5 de julho. Antes
disso, serão lançados três ebooks com estudos de Mário
de Andrade: Música de Feitiçaria, As Melodias do Boi
e Pequena História da Música.
O primeiro lançamento, porém, foi o da Edições de
Janeiro e da Fundação Biblioteca Nacional. Numa
quarta-feira, no dia do aniversário de morte do
escritor, elas apresentaram, no Rio, Eu Sou Trezentos:
Mário de Andrade Vida e Obra, do pesquisador
Eduardo Jardim. Repleto de imagens, o volume tem,
como diz o autor na apresentação, “o propósito de
reconstituir a trajetória do poeta e pensador até o
momento da sua morte, no ponto em que os impasses
com que se deparou se mostraram insuperáveis”.
Autor de Segredo de Estado O Desaparecimento de
Rubens Paiva, entre outros, Jason Tércio está
mergulhado há 10 anos no universo de Mário de
Andrade. No momento, ele finaliza a escrita de As Vidas
de Mário de Andrade que, imagina, terá 500 páginas.
Para facilitar o trabalho, ele chegou a se mudar do Rio
para São Paulo. “O diferencial de minha pesquisa é que
estou abrangendo nessa biografia a complexa
personalidade de Mário e todos os aspectos da sua vida:
poeta, ficcionista, crítico literário e de artes,
musicólogo, cronista, etnógrafo, fotógrafo, professor
de música, colecionador de arte, viajante,
epistológrafo, agitador cultural, bibliófilo, diretor do
Departamento de Cultura de São Paulo, católico e
boêmio”, adianta Tércio.
A empreitada é grande. “Mário foi um oceano, por isso
a maior dificuldade ao reconstituir sua vida é
enveredar por diversas áreas e ao mesmo tempo
pesquisar a vida de inúmeras personalidades que
conviveram com ele e evitar repetir erros de narrativas
existentes”, diz.
“Outra dificuldade é elucidar as contradições de Mário.
Por exemplo, surgiu uma tese de que ele era
antissemita. Não é verdade. Também essa história de
que ele era homossexual. Não é verdade”, completa.
Ainda não há previsão de lançamento ou contrato
assinado com editora.
Ainda neste ano, a Edusp e o IEB lançam, pela coleção
Correspondência de Mário de Andrade, as cartas
trocadas com Lasar Segall, Romance inédito de Mário
de Andrade, HQ, biografias, crônicas e cartas serão
lançados organizadas por Vera Dorta, e com Alceu
Amoroso Lima, por Leandro Garcia Rodrigues e
coedição da PUC-Rio.
Navegando pela internet, achamos este artigo do
João Marcos Coelho publicado em fevereiro último no
Estadão, jornalão paulista: A “tempestuosa
proximidade”, feliz expressão usada por Jorge Coli
para caracterizar as relações entre Heitor VillaLobos
e Mário de Andrade, esconde segredos até hoje. Mário
reconheceu a genialidade e indicou caminhos ao Villa,
como Flávia Toni mostrou em livro editado pelo
Centro Cultural São Paulo (1987). As Cirandas, por
exemplo, seu ciclo pianístico mais celebrado,
nasceram em 1926 como um pedido “fictício” de Mário.
Isso já era conhecido. Recentemente, Flávia e Manoel
Aranha descobriram cartas e bilhetes de Villa a Mário,
incluindo uma, inédita, na qual o compositor lhe fala
das Cirandas.
O lado musical de Mário tem sido pouco estudado.
Flávia considera distorcida a imagem que o mundo
musical ainda faz dele. “O mais comum é associar a
campanha dele entre os compositores como sendo de
índole nacionalista. Mário era um pesquisador da
música e da literatura brasileiras. Sendo fluente nos
dois ‘idiomas’, mas poeta e romancista, não
compositor, é possível entender a atitude dele pelas
conquistas no campo literário. Da pesquisa
sistemática lendo os relatos dos viajantes, os nossos
historiadores dos costumes, das práticas da sociedade
e da formação do vernáculo, resultam obras como O
Clã do Jabuti e Macunaíma, poesia e prosa que
transpiram o programa que ele apregoa a seus
interlocutores. O empenho, na criação musical,
espelha a mesma natureza: estudar a criação
espontânea e a performance do canto improvisado;
conhecer as fontes europeias trazidas para o Brasil;
analisar a contribuição dos compositores do século 19.
Este é o programa do Ensaio Sobre a Música
Brasileira, texto urdido com a análise do repertório de
vários compositores VillaLobos, H. Oswald, os irmãos
Levy, L. Fernandez e das 126 melodias que colecionara
até 1928.”
Em um de seus artigos fundamentais para o Estado,
onde escreveu entre 1934 e 1942, Mário clareia bem a
questão do nacional e do nacionalismo. Publicado em
30 de outubro de 1934, A Música Popular e a Música
Erudita reproduz conferência feita uma semana antes
no Teatro Municipal, no 321º. sarau da Sociedade de
Cultura Artística. "O nacionalismo é uma das
invenções específicas das classes cultas. O povo nunca
jamais é nacionalista. Poderá quando muito ser
nacional (...) Essa fragilidade nacionalista, ou antes,
essa força internacionalista do povo, se manifesta
prodigiosamente clara na música popular. (...) A
nacionalidade inconsciente da música popular,
representante do povo, está sendo aproveitada pelo
nacionalismo consciente dos compositores
representantes das classes cultas. (...) É pois por causa
deste nacionalismo novo que a canção popular
lavadinha e vestida de roupagens aristocráticas,
perdida a sua verdadeira função utilitária, se
pavoneia agora nos salões e salas de concerto",
completa em sua prosa deliciosa.
Se começa falando da luta de classes no mundo da
música, termina se perguntando "em que classe
estaremos nós aqui". E responde: "Em nenhuma delas.
Nós estamos na classe das Belas Artes. Este é o
verdadeiro terreno de ninguém" (...) onde "tudo e
todos nós nos fundimos na fraternidade piedosíssima
da Beleza".
Leia abaixo trechos da resposta do compositor, só
agora trazida a público por Flávia Toni e Manoel
Aranha:
"Rio de Janeiro, 12 de abril de 1926
Caro Mário
Atualmente estou escrevendo coisas que te vão interessar
muito (...). "Escrevi uma longa série de 20 peças cujas formas
e processos novos dei o nome de Cirandas. São todas para
piano ou pequena orquestra; e por fim, uma outra série para
canto e piano, intitulada Serestas.
(...)
Em tudo isso, venho completando o meu velhíssimo
programa de escrever música regional, ou melhor, de
escrever a música deste grande país, sem estiliza-la, nem
harmonizá-la, nem tão pouco adaptá-la, no ambiente da
técnica musical européia, tão diferente da nossa, que é vivida
há séculos nos nossos choros. (...)
"É verdade que até a minha Prole do Bebê nº 1 – (1918) –
escrevi dentro da técnica européia, vários temas
inteiramente brasileiros, porém, sempre estudando a forma
que pudesse ver-me livre desta influência cascuda. Já no meu
Quarteto Simbólico comecei a me ver livre desta terrível peia,
aonde no meu Sexteto Misto – 1921 – sacudo por completo as
asas, e realizo as minhas duas (queridas) Sinfonias Indígenas
ou Selvagens (1922) – das quais nasceram os meus Mafuás
Dançantes, Nonetto, Malazarte, os Choros, Cinemas,
Cirandas, Serestas e não sei o que será mais do teu
VillaLobos"
Mário de Andrade por Tarsila Amaral
Descobrimento
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu
Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
Moça linda bem tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.
Alexandre Coslei
Alexandre Coslei – Jornalista e escritor, formado em Letras
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carioca é
escritor premiado no Concurso de Contos promovido pelo
Intituto Cultural Cidade Viva em parceria com a Secretaria
de Cultura do Estado do RJ e com a Secretaria de Educação
de Rio Claro. Como resultado do concurso, foi publicada em
18/10/2014 a coletânea Contos de São João Marcos.
Os camelôs da
literatura
Pintores são objetos de vernissages ou exposições;
músicos fazem concertos, recitais, cantatas, shows;
cineastas fazem pré-estreias, festivais; já os escritores
participam de feiras literárias. Tratando-se de uma atividade
ligada à criação, o vocábulo “feira” vem carregado de um
peso pejorativo que define a atividade mais vulgar do
mercantilismo. Esse sutil aspecto nos revela que a literatura
é a arte mais seviciada pela banalidade do consumo que
impera no século 21.
A maioria dos ditos novos autores não mais escreve
almejando um sentimento estético que possa refletir o seu
tempo e o seu ambiente. Não, os escritores neófitos agora
caçam temas que possam inserir com êxito no comércio dos
livros. De preferência, assuntos que atendam aos modismos
ou aos nichos considerados prósperos pelo mercado.
Vivemos um momento em que autores se prostituem na
intenção de conquistarem o sucesso imediato. Não há dúvida
que os best sellers são a grande inspiração dos amadores.
Num cenário onde o valor da arte, antes imensurável, agora
é medido por diversas estatísticas, o marketing se instala e
traz a reboque vários itens indispensáveis aos camelôs
literários. A imagem do escritor precisou ganhar ares de
uma figura bem-sucedida, com currículo admirável, dotado
de referências numéricas que atestem o seu prestígio e
justifiquem a compra do livro pelo leitor. O tapete vermelho
da publicidade sempre se veste com o exagero, mas qualquer
mentira se legitima por uma boa causa. É a autoexaltação
como virtude.
Cafetão da criatividade
No crepitar das vaidades da nova literatura, o anônimo
escritor também perde território para as celebridades que
decidiram se aventurar pela escrita. São atores, músicos
decadentes, atletas, empresários e até bandidos
intelectualizados. Levando-se em conta que escrever, para
muitos, se resume à arte de se sentar numa cadeira, a fama
se mostra como a maior credencial disponível para lançar
um livro que seja bem recebido. E há sempre um séquito de
bajuladores para abraçá-los.
A princípio, a literatura realmente não parece exigir
nenhuma qualificação técnica, como a música pede a um
instrumentista, a um cantor de ópera ou para um
compositor. No teatro, só é ator quem faz algum tipo de
curso que ofereça o registro profissional, foi a regra
elaborada para barrar a horda de modelos e aventureiros
que anseiam aparecer na TV. Na pintura se faz necessário
dominar a orquestração das cores e os traços de um desenho,
obstáculos para os leigos. Na literatura, infelizmente,
qualquer um pode sentar e escrever. E é na falta de
compromisso com a qualificação, com a técnica, com a
leitura e com o domínio da língua que nós observamos o
opressor avanço da literatice sobre a literatura.
No incomensurável camelódromo das letras, a arte é
hostilizada diante da imposição do entretenimento, um
território onde qualquer bizarrice pode ser perdoada em
nome dos resultados comerciais. O que mais vemos hoje?
Novos autores anunciando números, rankings, tabelas,
resenhas e cifras. A obra é coadjuvante, o comércio é o
protagonista. A explicação para tudo isso é óbvia, camelôs
precisam passar suas bugigangas. Apavora-nos saber que os
autores que dobram seus joelhos ao mercado são os mesmos
que ministram cursos de redação, editoração e escrita
criativa. Que trágica ironia, aquele que se assumiu cafetão da
própria criatividade para embarcar no trem das cores é
também o que irá catequizar novos zumbis.
Grito de repulsa
Como se não bastassem tantas nuvens negras numa
paisagem desolada, as editoras estão tomando a aparência
de cartórios. No passado, um autor encaminhava
entusiasmado o original do seu livro para avaliação e
aguardava a resposta. Atualmente, exigem que ele preencha
um book proposal para que o editor julgue se vale a pena ler
o original, mas não garantem retorno. É possível que num
futuro próximo solicitem firma reconhecida, cópias
autenticadas e biometria. Compartilhem a revolta, pois é
uma afronta que usem um procedimento com nome
estrangeiro para que um autor nacional submeta sua obra a
julgamento. Os colonizadores são implacáveis.
Qual a saída para este beco cultural que quer infligir rédeas
à criatividade? Falam da autopublicação, um remédio que
pode custar milhares de reais aos escritores desavisados, um
campo que está dominado pela ganância dos exploradores de
sonhos. Contam-nos sobre pequenas editoras, mas ainda são
poucas as que possuem qualidade e elas se mostram
limitadas nos gêneros que acolhem. Por enquanto, a melhor
saída é a Internet, são os passinhos de formiga dos que
escrevem nos grupos e sites que permitem a divulgação da
literatura, é ganhar visibilidade pelo talento, pelo mérito do
reconhecimento, abrindo mão de buscar uma fama
instantânea sem a base de uma relação inovadora e íntima
com as palavras. O verdadeiro artista é um abnegado que
cultiva na arte um ato de fé. Uma escrita pueril, subordinada
a fórmulas pré-estabelecidas, não contém a fé que constrói
as grandes obras.
O que nos resta para também lutar contra a desproporção
abissal no modo como as livrarias promovem o livro
descartável e o produto importado? Resta o grito. Um grito
milenar que soa mais forte quando é repetido. Um grito que
se une a outros gritos. O grito dos que não curvaram o
espírito. Grito de repulsa. Grito de quem não será
colonizado. Grito de independência. Grito que,
invariavelmente, traz a mudança.
Na rendição do escritor às frivolidades do Mercado Editorial
é que se dá o encontro entre Fausto e Mefistófeles, é quando
a literatura perde a alma.
Publicado originalmente em 16/09/2014 na edição 816, Observatório da Imprensa
Outros papos...
....mas afins
E os 20 poemas inéditos do
Pablo Neruda?
A Fundação Pablo Neruda anunciou em junho de
2014 o encontro de 20 poemas inéditos do prêmio Nobel
de Literatura chileno em caixas com manuscritos de obras
do poeta, que os mesmos seriam publicados em um livro
no fim do ano. Parece-nos que no Brasil nada foi publicado
até hoje.
São seis poemas sobre amor e mais 14 de outros temas
escritos a partir de 1956. Os textos foram cuidadosamente
recolhidos e verificados em um trabalho que se estendeu
por mais de dois anos.
A fundação explicou que a descoberta ocorreu depois de
um estudo rigoroso de uma coleção de manuscritos da
obra de Neruda, papel por papel, com o objetivo de fazer
um catálogo mais completo do que existia na biblioteca da
entidade.
Foi durante estes trabalhos que a fundação constatou que
havia cadernos nos quais Neruda escreveu poemas que,
posteriormente, destinou a diferentes livros. Mas também
foram encontrados poemas que não apareciam em
nenhuma das publicações, nem em compilações
posteriores.
Em seguida, o material foi submetido a novas revisões
para ter a segurança de que eram realmente inéditos.
"Não foi possível determinar a data de todos esses
poemas, porque nem todos têm a indicação da data em que
foram escritos, pois o poeta colocava a data só às vezes",
disse o diretor da biblioteca da Fundação Pablo Neruda,
Darío Oses.
"Sim, é possível associar muitos dos poemas a algumas
épocas, por exemplo aquela na qual Neruda estava
escrevendo suas odes, que finalmente publicou em quatro
livros", acrescentou.
A fundação afirmou que entregou os poemas ao seu
agente, que contratou o grupo Planeta para a publicação.
O autor de "Vinte Poemas de Amor e uma Canção
Desesperada" morreu em 23 de setembro de 1973, duas
semanas depois do golpe militar que levou Augusto
Pinochet ao poder.
Certa agência de
notícias afirmava
em 18.06.2014 que:
A publicação dos 20
poemas inéditos
deve ocorrer no fim
deste ano, coinci-
dindo com a
comemoração dos
110 anos do
nascimento do poeta chileno A relevância dos poemas
reside no fato de que foram escritos depois de Canto
Geral(1950), época da maturidade de Neruda. Antes
desses, apenas dois trabalhos inéditos tinham sido
encontrados – O Rio Invisível (1980), que incluía poesia e
prosa da juventude, e seus poemas de adolescência
(Cadernos de Temuco, 1996).
O poeta e acadêmico Pere Gimferrer, que está empenhado
na publicação dos novos inéditos, acredita que nos novos
poemas estão “o poder imaginativo, a transbordante
plenitude expressiva e o mesmo dom, a paixão erótica e
amorosa” de Neruda. “Ali se encontra o mesmo Neruda
de Odas Elementales e de La Barcalora”, diz.
A editora Seix Barral adiantou nesta quarta um fragmento
de um poema sem título, escrito em 1964, mesmo ano em
que é publicado Memorial de Isla Negra:
"Reposa tu pura cadera y el arco de flechas mojadas
extiende en la noche los pétalos que forman tu forma
que suban tus piernas de arcilla el silencio y su clara escalera
peldaño a peldaño volando conmigo en el sueño
yo siento que asciendes entonces al árbol sombrío que canta
en la sombra
Oscura es la noche del mundo sin ti amada mía,
y apenas diviso el origen, apenas comprendo el idioma,
con dificultades descifro las hojas de los eucaliptos"
Mar de outrora
e
poemas de agora
O livro é dividido em duas partes, que conta com
fotos de Patrícia Barbosa e do próprio autor. A primeira
parte, O mar de outrora, tem o mar como ponto de partida,
para então cair em reflexões acompanhadas de
referências, requintadas com um toque de francês. Na
segunda parte, Poemas de agora, os textos foram escritos
em Paris, no Rio de Janeiro, Nova York, Chile e outros
lugares, trazendo linhas ora bem-humoradas, ora
reflexivas”. Diz o próprio autor no texto-
introdução: “Mar onde jaz sal e sol, céu tombado. O mar
onde me aprofundar. Vertente, voragem, vértice, vórtice,
vertigem. Mosaico de memórias, nele nado. La
mermêléeausoleil, o mar lambuzado de luz, de tarde e
eternidade, o mar que Rimbaud me roubou. Nele nado. O
mar ao qual novamente retorno e retomo nesse longo
poema que ficou meio perdido em meu livro minas em
mim e o mar esse trem azul. Minas-mar-memória. O mar
e seus tropeços, o mar-em-mim e seu recomeço. Minas
marejando, ritornelo, delta, infância. O mar que não era
mar levou-me ao mar de papel, mar da memória, mar-
palimpsesto. De quebra(mar) alguns novos poemas que
bateram na areia. Essa é minha praia”.
O poeta cataguasense Antônio Jaime Soares analisa no
texto de orelha: “A primeira parte deste livro é um marzão
poépico minuciosamente esquadrinhado por Mariana
Cândida e Maria José Ladeira, no posfácio, e por W. J.
Solha, no prefácio. Na segunda, continua “o mar mar/-
telando nas pedras” e na cabeça do Werneck, entre voos
transoceânicos, destaco “Mauro-Niemeyer: nuvens” –
contido, rimas toantes, a palavra arquiteto usada como
verbo, surpresa. E “Duas faces” (compõe/põe com,
pano/panorama – bonitas aliterações). “Madrugaurora”,
diz ele noutro poema, outro saque de craque.
Em “Paris/Patrícia” o nome dela coincide com o da
personagem de “Acossado”, de Godard. Passeios revividos
em Santiago, Nova Iorque, Barcelona e onde mais estiver,
com “aquela que me namorama”. Ao fim dos voos nupciais
ele pousa no seu ninho-livro propondo “um poema que
saia de mim como um sopro de amor sem fim”.
Em Ronaldo Werneck – escreve o ensaísta W.J. Solha no
prefácio do livro – é tudo muito rápido, non finito, à base
do meia palavra basta, impressionista. Van Gogh disse um
dia ao seu irmão Théo: “A natureza me contou algo, falou
comigo, e anotei isso em estenografia. No meu
estenograma pode haver palavras indecifráveis – erros ou
lacunas – no entanto resta alguma coisa do que o bosque,
a praia ou a figura me disseram”. Parece-me que ele falava
de O Mar-Em-Mim, que nosso poeta reapresenta na
primeira parte deste volume inteligentemente intitulado o
mar de outrora & poemas de agora.
Ronaldo Werneck se serve, como em obras anteriores, de
um trabalho virtuosístico em cima da palavra. Em
Fogalegre, um dos poemas rapidíssimos de agora, brinca
com o nome de Audrey Hepburn – happy, rap, help, burn–
, tal como Shakespeare, quatrocentos anos antes, pusera
sua assinatura em Antonio e Cleópatra, ao dizer que
alguém, como um animal, shakeshisears. É com a mesma
técnica que Werneck lamenta o “mar que rimbaud me
roubou”.
Concurso de poesia
O Sebo Aluados, sob a batuta do intrépido Luciano,
promove anualmente um concurso de poesias. O último
teve seu resultado anunciado em 13.12.2014, data de
aniversário do sebo. A vencedora foi a Vanessa Barbosa
com o poema que vocês já viram em páginas anteriores,
aqui. Ele promete que este ano tem mais. Fiquem atentos.
No Clube de Leituras
“Nossas Causas”
Depois de A Arte do romance de Milan Kundera, dia
27.02.205, o pessoal reuniu-se para discutir A menina sem
palavra de Mia Couto em 28.03.2015. Já estão agendados:
Flores Artificiais de Luiz Ruffato dia 30.04.2015 e Assunto
Encerrado de Italo Calvino, ainda sem data.
Silvério Costa
Jornal SulBrasil – Chapecó - SC
Crônicas de Pataca inteira
“Fantasias de Meia Pataca”, de José Antonio Pereira, de
Cataguases – MG é um livro de crônicas que se preza, Não
só pela diversidade unívoca, em estado latente, mas
também pela qualidade, já que a crônica, segundo alguns
despeitados, é considerada uma literatura sem gravata,
que padece da fugacidade.
Ledo engano, pois o José A. Pereira é um notável
representante desse gênero literário, que consagrou
grandes nomes como Rubem Braga, por exemplo.
O autor dá um mergulho para dentro de si mesmo,
trazendo à superfície um conjunto de crônicas que
resgata a memória da pequena cidade (ou seria vila?) de
Cataguases, numa linguagem despojada, irônica, que
mostra os encontros e desencontros da vida, ao retratar o
dia a dia de certas pessoas do seu meio. São textos,
portanto, identificados com o seu universo, fruto da
observação e da convivência, que revelam a força das
imagens (fanopeia) e o despojamento estilístico, dando-
lhes um toque de genialidade, porque fogem da
linearidade afetada para se tornarem singulares e fiéis,
no que tangem aos fatos e ao seu processo criativo.
Trata-se, pois, de um livro que conta pedaços da sua
própria história, ou seja, é o registro histórico da sua
própria vida e/ou de outros por ele vivenciada. É uma
narrativa que leva em conta o texto e o contexto, muito
bem alicerçados, independentemente dos temas.
O autor é extremamente perspicaz e sabe como dar
vida e colorir o imaginário do leitor, ou não fosse ele de
uma terra pródiga na revelação de grandes escritores e
poetas, como Ronaldo Cagiano, P. J. Ribeiro, Aquiles
Branco e tantos outros, que dignificam as Letras
Brasileiras. Segue abaixo uma das crônicas do livro que
mexe na parte que me toca, que é a nacionalidade
portuguesa! Vejam...
Alguém sabe do “Ilha desconhecida”?
Apareceu no bar da esquina, conduzido pelas mãos do
Vanderlei Pequeno, que o encontrara, junto a um
amontoado de lixo, em uma rua central de Juiz de Fora.
Curiosamente, é aquela cidade, tida pelo escultor Amílcar
de Castro, como a Lisboa mais próxima do seu quintal.
Talvez seja essa semelhança que levou Murilo Mendes a
optar pelo original, preferindo as margens do Tejo às
barrancas terceiro-mundistas do Paraibuna.
Mas o nosso abandonado em Juiz de Fora migrou para
Cataguases. Apresentava no “rosto” as marcas da
violência de ser atirado às ruas. Puído e com
afundamentos pelo lombo, uma nódoa arredondada
deixada por molho barato, deve ser aqueles ácidos
extratos de tomates ou azedos catchupes, o que dá no
mesmo. O coitado trazia outras manchas horríveis, de um
amarelo fecal, que pareciam ter sido feitas por respingos
de mostarda estragada.
O primeiro a sair com ele do bar foi o Emerson,
passando alguns dias pelos lados da Pampulha. Voltou ao
bar, desaparecendo para a Granjaria com o Altamir.
Esteve em minha casa, no Baixo Haidée, por uma semana.
Voltou à Pampulha em companhia do Luiz Lopez.
Reapareceu no bar por alguns dias e desapareceu.
Naqueles dias, ele entre nós, discutimos muito sobre
os portugueses, suas aventuras marítimas e a venturosa
literatura. Emerson começou lá pelo Camões e a epopeia
dos Lusíadas, alguém comentou em contraponto a
incrível poesia de Mensagem, do Fernando Pessoa,
enquanto outro cantarolava: “... navegar é preciso... viver
não é preciso...” tentando imitar o sotaque do Caetano
Veloso. Quem também apareceu nas conversas foi Miguel
Torga, que quando ainda era conhecido apenas como
Adolfo Correia da Rocha saiu de Trás-os-Montes
“singrou” o Atlântico, para trabalhar numa fazenda aqui
na Zona da Mata e estudar no Colégio Leopoldinense; é
isso mesmo, a Leopoldina onde o coitado do Augusto dos
Anjos encerrou a “carreira” e está enterrado. Até o
Henrique Frade foi lembrado, não pela literatura, mas
pela “ficção” de ser o único atleta de origem lusitana
daquele time de peladeiros do Chico Buarque.
Circunavega para lá, circunavega para cá, chegamos a
José Saramago, lembraram-se da presença dele em uma
edição do Fórum Social de Porto Alegre, num discurso
quixotesco, permeado de ceticismo e descrença, metendo
o pau no utopismo.
A vocação de navegantes dos portugueses, que nunca
se apaga, ainda que nos pareça nos dias de hoje que esta
chama se mantém mais acesa na memória do que nos
oceanos, leva-nos a lembrar do nosso desaparecido.
Será que nosso amigo, feito a caravela, um bocado
modificada pelos arranjos e adaptações, amarrotada,
continua seu propósito, singrando os mares dos saberes
ou os oceanos das ignorâncias, segundo as vontades de
Netuno?
Talvez só o Vanderlei Pequeno saiba por onde ou com
quem anda aquele livro que ele nos apresentou, o ótimo O
conto da ilha desconhecida do José Saramago.
Chicos 42 abril 2015

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  • 1.
  • 2. Chicos N. 42 Abril 2015 e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG Capa Altamir Soares Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Fotógrafo Vicente Costa Ilustrador Altamir Soares Colaboradores desta edição Antônio Jaime Soares Antônio Perin Flauzina Márcia da Silva José Tarcísio Lima Ronaldo Cagiano Ronaldo Werneck Vanessa Barbosa Fale conosco em: cataletras.chicos@gmail.com Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ Um dedo de prosa Esta é a edição número 42 de 01 de abril de 2015. Aqui, iniciamos 2015 agora. Durante este ano, vamos permanecer com a foto do Chico Cabral nesta página. É a nossa homenagem ao grande poeta. Por sugestão e iniciativa do Rogério Torres criou-se em dezembro de 2014 o Clube de Leitura Nossas Causas. Ao final desta edição vejam o que anda acontecendo por lá. Apresentamos alguns poemas de Celina Ferreira, outra de nossas grandes poetas. Saudada pelos grandes nomes da poesia brasileira. Seu primeiro livro foi publicado em 1954. Sua obra precisa e merece ser reeditada. A estreante da vez é Vanessa Barbosa, jovem poeta que já disse a que veio vencendo um concurso de poesia no final do ano passado. Concurso promovido pelo Sebo Aluados. O poeta português Herberto Helder faleceu no último 23 de março. Um dos grandes nomes da poesia contemporânea da Europa, vale a pena conhecer a poesia dele. Outros poetas que colaboram com a Chicos também marcam presença nesta edição. Emerson Teixeira apresenta interessantes considerações sobre a poesia de Celina. José Tarcísio é um amigo de longas datas, é sua primeira participação aqui. Primeira de muitas é o que esperamos. Em fevereiro alguns eventos não deixaram passar em branco os 70 anos da morte de Mário de Andrade, o dínamo do Movimento modernista. E muito mais vocês encontrarão por aqui. Divirtam-se! Uma boa leitura para todos. Os Chicos 18.11.1930 - 20.08.2014
  • 3. Sumário CELINA FERREIRA A poesia de Celina.....................................................................................................................04 VANESSA BARBOSA Facilis descensos Averni..........................................................................................................15 FLAUSINA MÁRCIA Inventário de males ..................................................................................................................16 RONALDO CAGIANO Ritmo das coisas - e outros poemas....................................................................................17 ANTÔNIO PERIN A tecelã..........................................................................................................................................20 HERBERTO HELDER Sobre um poema - e outros poemas.....................................................................................21 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Celina Seleta................................................................................................................................25 MARIANA IANELLI Poema de Brecht sobre peregrinação de órfãos durante a guerra ganha livro ......28 RONALDO WERNECK O som de Solha ao redor e.....................................................................................................30 JOSÉ ANTONIO PEREIRA Tinhorões e taiobas...................................................................................................................32 ANTÔNIO JAIME SOARES Duas plásticas no Pitanguy....................................................................................................33 JOSÉ TARCÍSIO LIMA Monarck 66..................................................................................................................................34 FLAUSINA MÁRCIA A Lua não Existe ou Uma infecção científica..................................................................36 JOSÉ ANTONIO PEREIRA A Viúva.........................................................................................................................................37 MÁRIO DE ANDRADE 70 anos de sua morte................................................................................................................38 ALEXANDRE COSLEI Os camelôs da literatura.........................................................................................................40 OUTROS PAPOS Mas, todos afins........................................................................................................................41
  • 4. Celina Ferreira Celina Ferreira (Óleo s/madeira 1952) - Guignard Celina Ferreira – Poeta, nasceu em 27 de setembro de 1928 e faleceu em 05.08.2012. Nasceu em Cataguases MG, numa época em que a grande diversão era o circo, com seus palhaços, trapezistas e malabaristas. Radicou-se, mais tarde, no Rio de Janeiro. Jornalista, redatora (inclusive da Rádio MEC) e poeta admirada por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, a autora escreveu para rádio e televisão e, como adora crianças, fez muita literatura infantil, pela qual recebeu o Prêmio de Literatura Infantil do Estado da Guanabara, em 1971, e o Prêmio Brasília de Literatura Infantil e Juvenil, em 1978. "Poesia de Ninguém" e "Espelho Convexo" são dois dos vários livros que lançou. Efusivamente saudada por nomes como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Affonso Romano de SantAnna, a poeta Celina Ferreira permanece ainda hoje pouco divulgada e praticamente desconhecida do grande público. Isso mais de 40 anos após seu primeiro livro, Poesia de Ninguém, publicado em 1954. “Não há malabarismos óticos dentro dos versos e muito menos o espetáculo de palavras com picadeiro. Mas esta estabilidade também procede do temperamento da autora, e em Celina Ferreira, já pela própria temática, já pelo seu modo de ser, há razão para esta cadência romântica do verso.” Affonso Romano de Sant´Anna. “A perspectiva da realidade da morte desponta na atmosfera do sono de Celina Ferreira. Numa espécie de coloração goyesca ela compara seu mundo de iluminação a um “umbral de flores sombrias, que se desata e dorme e adormece quando é dia”. Celina Ferreira renunciou à inspiração diurna. Não teve direito ao ócio, ao abandonar-se das horas. A vida colocou-a numa intensidade de trabalho que tem sido o túmulo de muitos bons poetas. Trabalho que, à margem da elaboração poética, absorve as horas, o tempo, a distância, a disponibilidade. Celina cumpre a tarefa de sua vida comum e cotidiana, com amor e vocação. Reservou-se o subterfúgio do sono como aparelho de fuga. Fuga não ao sentido da alienação e da omissão. Fuga para poder render melhor, espécie de solidão lucrativa.” Walmir Ayala “Nada apresenta de vacilante ou veleidade, de promessa ou subordinação, de fingimento ou artifício na temática. Celina Ferreira chega a um gabarito onde podia ficar. Não precisa mais crescer para ser grande.” Mauro Mota Após Poesia de Ninguém, sua estreia em 1954, vieram Nave Incorpórea (1955), Mundo Encantado (Prêmio Júlia Lopes de Almeida, da Prefeitura do Distrito Federal, 1957), Invenção do Mundo, O Cavalo Encantado, A Princesa Flor-de- Lótus, todos os três de 1958, Poesia Cúmplice (Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Distrito Federal, 1959) e Espelho Convexo (1973). Isso sem contar a coletânea Hoje Poemas, editada em 1966, com ilustrações de Guignard, de quem Celina foi a eterna musa.
  • 5. Profecia Haveis de crescer, suavemente, como a planta na pedra. Haveis de crescer de manso, respirando humilde o hálito da pedra. E sugareis na pedra a seiva e o vosso sangue. E sofrereis na pedra aridez e solidão. E o vento achará em vós o irmão perdido e havendo mar, as ondas saber-vos-ão aquático e vos reclamarão areia, musgo, concha. Os pássaros achar-vos-ão propício para o ninho, sereis fecundo, abrireis múltiplas asas e aprendereis o canto das madrugadas. Haveis de crescer amargamente, como a sombra das nuvens pressagas. E sereis fundo como a noite sem estrelas. E estareis a sós como o primeiro sinal de tempestade. Haveis de gritar, mas ninguém vos ouvirá. Tôdas as consciências se fecham na tempestade. Ficareis completamente a sós na noite densa, tão tristemente só, que nem haverá prenúncio de eco. A solidão será irremediável como a chuva pesada em que vos mudareis. E será bom que haja longa chuva porque renascereis em flores e ciprestes. Haveis de crescer humildemente, como as coisas que vegetam sem pretexto. Haveis de crescer como a fumaça triste que se nutre e se devora e se arrepende. Ninguém, nem mesmo a vossa sombra vos impede, antes subjuga-vos mais forte que o pensamento. Haveis de crescer, tão doloroso como a solidão em que vos iniciais. Vós sois o muro; a solidão, a hera. Negar-lhe-eis o apoio e a vossa aquiescência mas estareis de todo possuído – até aos olhos. Não busqueis fortaleza. Sereis fraco, tão pobre que as abelhas vos darão do mel e da humilhante cêra. Sereis fraco e pobre. Haverá um dia em que cuspireis na vossa carne Mais fraca do que vós. E negareis o corpo tantas vezes, que infinitas vozes gritarão no fundo e estareis decerto mais fiel em vosso negar. Seria bom se não tivésseis corpo. Ficaríeis mais só do que a única estrela no deserto. Haveis de arrepender-vos, tão de manso, Que a morte pensará vossa ferida.
  • 6. Fuga Meus olhos se perderam. Foi chuva, bruma, vento, não me lembro. Foi o menino que passou descalço... Quem convidou meus olhos para a fuga? Quero meus olhos fantásticos de noite! Eu fico aflita! Quem roubou meus olhos? O mar mostrou-me as ondas. Mar imenso. A noite abriu-se ao meio. Noite Amarga. Só sei de estrela e concha. Onde meus olhos? A fuga foi prevista. Eu pressenti quando as folhas voavam, quando as aves fugiam e tudo era convite. A esquecida Quando vim para êste mundo, não por mim – eu vim mandada – trouxe um destino comigo. Mas passei por tantas nuvens, me molhei de tanta chuva, me perdi em muitos ventos, virei poeira de estrada, lírio, rosa, espinho, terra, que esqueci minha mensagem. Procuro me renovar: pedra, sangue, cal, areia, preciso me definir e encontrar o meu perdido. Choro sangue todo o sempre quando estou entre oprimidos. Sinto a fome dos famintos, sofro a dor dos humilhados, me consumo no momento. Minha mensagem é dor. Deito na areia que invento, areia de um mar profundo: Mar de mistério. Eu, enigma, consigo descer ao fundo. Meu corpo verde flutua, minha alma sobe incolor. E no fundo, outro infinito, mais mergulho, mais atinjo alturas desconhecidas. Asas brancas me tocaram. De fôlhas faço o meu ninho pelo prazer de fugir.
  • 7. Nesse vôo ilimitado, humano não me corrompe. Quem me busca, não me atinge, quem me atinge é perseguido, vira irmão, foge comigo. A chuva cai. Vai lavando tanto pó acumulado do tempo que me antecede. As imagens vão gritar E eu lembrada de mim mesma Serei humana de novo. Quero cumprir meu destino. Não por mim. Eu vim mandada. Desencanto Eu me afogarei, acintosamente que perdido é o sonho casto e a habitual pureza das formas. Meu suicídio é a morte convencional: ocaso, esquecimento, sono. Não o som. Não o desperdício do tempo. Não as vozes. Não o espaço limitando corpos. Nem a acusação dos traços. Eu me apegaria jamais a um ramo ou escusa. Ao fundo levarei comigo consciência e solidão, E quando o flutuar trouxer-me às margens podeis recolher meu corpo e eu estarei possível de habitar-vos, mundo convencional, escuso, diluído. Balada da idéia fixa Balada de idéia fixa um dia vos cantarei. Falarei dos meus amores no meu canto, falarei. Pois quando falo de amores de mim mesma já falei. Balada de idéia fixa talvez me arrependerei. Para tornar-vos mais triste também me entristecerei. Pois quando falo em tristeza de mim mesma já falei.
  • 8. Balada de idéia fixa algum dia vos direi. Para matar-vos de manso, morrendo vos cantarei. Pois quando falo de morte De mesma já falei. Poesia de ninguém (1954) Natal Cada dia nasce um novo menino na palha, na seda, no feno, no linho. Cada dia nasce um novo destino que sempre começa no mesmo menino. A estrela de cada natal é a medida palavra que escapa em face da vida. Na ficha, a palavra festiva traduz: Antônio, Isaías, Ricardo ou Jesus.
  • 9. Nave Incorpórea Nave intocada e neutra, em mar de vidro, indiferente aos símbolos se fixa. No mastro o ôlho inclemente da pesquisa e sem roteiro ou plano, o leme esquivo. Na quilha, se existisse, de granito ou de incenso talvez, em ondas místicas, a minha solidão que o mar limita por linhas intangíveis de infinito. No mar apocalíptico do mundo (vidro não seja, mas tormento) a nave é minha alma esquecida em sangue e chumbo. E tudo que me resta: mapas púnicos da minha alma galera, inavegável no tempo que é seu berço e foi seu túmulo.
  • 10. Canção velada Agora, a paz da noite cobriu teu corpo calmo. Ao lado, o anjo da espera cruzou asas em luto. A cêra ergueu um grito. Deixemo-la cantar o salmo dos que partem. As sombras se recolhem e em vão fabricam casas que guardem teu silêncio. Em vão tecem grinaldas de flores monstruosas. Ah! deixo-te sozinho na terra que te entregam. Teus dedos abrem coisas, Conversas minerais. Flor de granito e prata serás, além de morto. Romance por sôbre o rio Entende a louca de rir com seis olhos sobre a ponte. Que ria no seu mistério, ausente ou triste, que ria no firmamento onde encontre outras pontes já sem rio, com seis olhos, com seis fontes. Entende o rir não ter nexo Rolando por sôbre o rio. E o corpo plácido, erétil entende não ser completo no frio azul remissivo de um total esquecimento, ponte de um rio perdido. Entende a louca viajar no seu sorriso infinito. Com seis olhos sobre as águas, seis fontes vertendo absinto. Fontes de águas ignoradas nem fazem volume ao rio que envolve em frias mortalhas um corpo frágil, vazio. Tão sem alma! Ai, tão sem alma no seu sorriso de vidro, duro cristal prêso em garras, na prata antiga do rio.
  • 11. Natal Cada dia nasce um novo menino na palha, na seda, no feno, no linho. Cada dia nasce um novo destino que sempre começa no mesmo menino. A estrela de cada natal é a medida palavra que escapa em face da vida. Na ficha, a palavra festiva traduz: Antônio, Isaías, Ricardo ou Jesus. Dons Na língua, o segredo das coisas: o travo da cica, o favo de mel, o gôsto sòzinho do pão. Nos olhos, o reino de ver. Na concha do ouvido, um mar de mistério: as vozes de casa, o cravo, o soluço, o grito, a cascata. Olfato amoroso: o cheiro suado na roupa do filho. A terra molhada de chuva. E os dedos crivando de amor o corpo do amado. O tátil percurso do abraço.
  • 12. ESP O tempo foi destruído na fina face do espelho. O ontem virou agora o amanhã chegou mais cedo. (Capto imagens perdidas. Brilho em pânico, presa de um cristal único.) O tempo foi redimido, distância não é segredo. Mas o mistério profundo é a pátima do espelho. A maçã no espelho sinto a impressão de vermelho, compondo a densa maçã, que, no espelho, é intocável nesta severa manhã. Mil espelhos reproduzem a maçã iluminada. São mil maçãs a que vejo por mil faces cobiçada. Retiro-a da fria côdea de prata. Resta-me o espelho, acusando a sua ausência, no campo, outrora, vermelho. Sonata em dó maior para um flautim Sozinha, uma fonte, ao longe, um flautim. Por que não morrer de amor? Por que sofrer só de mim? O espelho do lago cansou-se de mim. No estojo frio e sem alma ficou dormindo um flautim. Mas a noite desenrola o seu novelo sem fim...
  • 13. Espelho e Face Procuro no espelho a face remota. Não aquela que é visível. A que o vidro não comporta. Retiro-a, sem medo, descubro-a, ignota. Não a face que percebo em mim mesma, superposta. Mas imagem lúcida, clara e luminosa, que cada dia enterrara sob a face que está morta. Espelho convexo Que reino lúcido, liso e perfeito, que se aprofunda na superfície do meu segredo! Vejo-me: o duplo de mim, liberto no mundo líquido, água, azulejo. Move-se o duplo sou eu que o vejo? Elfo, no estanho azul do espelho. Colo meu rosto à face esquiva que me repete, grave e precisa, na densa tela de prata líquida. Beijo meu beijo que me hostiliza, mergulho os olhos nos olhos duros que me fustigam. Além, meu duplo zomba de mim. Ri do meu riso se me duplico no seu sorriso cúmplice e afim. Eros e Anteros, eu e meu duplo no mundo, espelho no mundo, espelho que não tem fim.
  • 14. Salto Moral Sondar a possibilidade do salto e a profundidade do abismo. Formular o desenho preciso. Vôo e queda, a mesma dimensão e altura. Vôo e queda recortam no ar a mesma figura. Saltar de dentro de si mesmo Como quem pula o muro da infância, A cerca que esconde os pomares do mundo e limita o corpo e seu agreste crescimento. E restringe o homem e seu poder. Saltar para o desconhecido sem redes sob o corpo. O salto moral Diante de mil trapézios oscilantes e luzes e o pavor dilacerante da platéia. A comovente platéia da autopiedade Saltar para a verdade
  • 15. Vanessa Barbosa Vanessa S. Barbosa – Nascida em Cataguases em 1995. Poeta vencedora do concurso promovido pelo Sebo Aluados em dezembro de 2014. “Escrevo porque as palavras surgem, como flashes, como pensamentos, por vezes soltas, mas sempre presentes, o que faço é tentar emenda-las.” “Facilis descensos Averni” Sei que não vou por aí, tal como sabia o poeta, que sabia também como deslizar palavras no papel. Tal como dizia o profeta que sabia também compreender a causa das coisas. Todavia não sei aonde vou, fico a andar por caminhos que muito se assemelham aos crepúsculos. Uma lástima, não saber onde ir “Facilis descensos Averni” Já que a porta lá de baixo parece sempre, ficar aberta... O diabo facilitou deixando a porta aberta Mas é preciso retornar para a luz, fácil não é viver na claridade quando cada um de nós carrega a própria sombra. Metade de Minh’alma é luz, Deus quis assim. A outra metade não sei Quisera-me saber sobre as noites e dias do profundo inferno Assim voltar e sempre ver a luz do dia – Aí está a tarefa, o árduo. “Facilis descensos Averni” Pensa que eu não sei?
  • 16. Flausina Márcia Flausina Márcia da Silva poeta nascida em Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014). Inventário de Males Arrolados, sem mais juízo que, justa causa, os fizeram eis, desmesurados, lisos para cálculo do que puderam. Injustiça, essa é de nascença, classificam-se logo os bebês, batizando-se as diferenças com adjetivos e até sordidez. Inconstância, ela é o abrigo das sortes todas do azar. Amo você por estar comigo. Odeio você por não estar. Ingratidão, desses descende mas carece de visibilidade é conversa de fadas e duendes prospera na licenciosidade. Dói mais no silêncio! Kandinsky
  • 17. Ronaldo Cagiano Ronaldo Cagiano – Nascido em Cataguases, morou por vários anos em Brasília e hoje encontra-se em São Paulo. É autor, entre muitos títulos, de Dezembro Indigesto (2001) poesia, O Dicionário de Pequenas Solidões (2006) e O sol nas feridas(2011), de onde são os poemas aqui publicados. O ritmo das coisas O tempo com sua máquina de esquadrinhar esfarela o museu de ossos escondido sob a pele fatigada. O tempo e seu evangelho de dissoluções escultor insone burilando o caminho rumo às Parcas. O tempo com sua vigília sobre os escombro em que nos transformamos a cada dia. O tempo arsenal de punhais com a lógica taliônica de uma rude cronologia. O tempo (belvedere ou abismo?) no qual me lanço para ser absorvido pelo insondável na peregrinação movediça no vazio. O tempo animal invisível que nos rouba todas idades e nos devora com seu ritual insensato dentes afiados como uma nuvem de gafanhotos devorando nossas córneas O tempo Relógio insaciável anoitecendo os meus olhos O tempo a moenda das horas impondo o ritmo das coisas.
  • 18. Ilustração de Marcos Garuti Flamboyants Para Eltânia André Nas avenidas de Cataguases os flamboyants florescem como numa pintura de Van Gogh, enquanto a cidade jaz num silencio sepulcral. Corolas e pistilos denunciam que no asfalto distante rompe uma flor: é a roas destemida que vinga contra o tédio e a dissimulação que o tempo decreta nesses homens tão urgentes. Os passos enviesados da entourage ensimesmada não colhem dos pássaros a melodia mozartiana que insiste em meio à indiferença total. Mas essas árvores solenes (como os discretos oitis das alamedas) explodem altivas nas cercanias solitárias e guardam segredos das gentes sob o beiral do riacho exausto que, sonolento, beija suas raízes. Mas vivo do que nós, celebram o que em mim já não vive.
  • 19. S(o)bras Para Leo Barbosa Vejo o rio que corre em Cataguases – é o mesmo vário rio que (es)corre em mim: educando-me pelas encostas com lições de cheias e úmida cartilha de enfados. O exemplo da água que f(l)ui, com sua impessoalidade e inconcretude crava-me um sertão nas entranhas. E um acúmulo de pedra nas vísceras Embrenha na alma tantos eus. Essa sombra, essas sobras boiam indigentes, como um feto em placentária clandestinidade.
  • 20. Antônio Perin Existência -1985 - Manabu Mabe Antônio Perin Baiano, nasceu em Itaobim MG, cresceu nas franjas do Meia Pataca ouvindo sapateiros, costureiras, roceiros, tecelões contarem seus casos e suas histórias de trabalho. Se encantava com folias de reis e embriagados calangueiros em seus desafios pelos becos da infância. Em casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó negra cantando benditos em latim enquanto costurava, estranhava a emoção materna entre novelas radiofônicas e os afazeres domésticos. A tecelã No manicômio, observo a tecelã. Cabelos negros mecheados de algodão, mãos inábeis e tremulas tecem algo de novo, tramam um tecido. Obra urdida na dor. Poema grotesco e trágico brotando entre os dedos, que pinçam como teares outros ritmos indóceis. Lentamente vêm acercando-a ritmos mecânicos, ritmos doentes ritmos graves, ritmos fortes... Juntando-se nas sombras gemendo e buscando-a, uns, qual choques de ferros, outros, qual grito de loucos, trançam fios coloridos, baixam rendas frágeis, cruzando as tramas como ágeis tizius. Ela contou a um canto que crescera servil. Isto dito com um rosto trágico numa voz sútil. Era a história triste desprotegida e torta de uma mulher apagada cinzenta e morta. Sua boca, agora, emite sons abafados como uma música estranha. Dedos espuladeiras não param, ainda, trançam fios imaginário. Mostra-me tecidos finos. Só vejo a impaciência vazia da lavrada mão e ásperos dedos. Triste penitente beijo-lhe a mão.
  • 21. Herberto Helder Herberto Helder – Nasceu em 23.11.1930 no Funchal Ilha da Madeira, em 1948 matriculou-se em Direito mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e colaborou em vários periódicos como A Briosa, Re-nhau-nhau, Búzio, Folhas de Poesia, Graal, Cadernos do Meio-dia, Pirâmide, Távola Redonda, Jornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais a 23 de março de 2015, tinha 84 anos. É considerado como um dos maiores poetas europeus contemporâneos "Poeta que reescreve sem cessar, é criador/destruidor de uma gramática peculiaríssima. A transgressão regula a pontuação, os padrões são sujeitos à sua consciente desorganização, o fluxo verbal se alastra animalizando o poema." "Herberto Helder impulsiona a viva encantação das palavras, o abalo que a sua poesia provoca é um dos mais profundos que a literatura de língua portuguesa já sofreu." – Trecho retirado do comentário do livro: O Corpo O Luxo A Obra, Editora Iluminuras, 2000. Seleção e apresentação de Jorge Henrique Bastos. Sobre um Poema Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, os rios, a grande paz exterior das coisas, as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento, – a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo. – Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. – E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
  • 22. e outros poemas “A uma devagarosa mulher com a boca do corpo cheia de sangue e a boca do rosto cheia de respiração, por cinco dedos meus esquerdos, na curta duração de tudo, a curta canção que pulsa do fundo de si mesma: a uma devagarosa mulher no mundo. * do corpo cheia de sangue e a boca do rosto cheia de respiração, por cinco dedos meus esquerdos, na curta duração de tudo, a curta canção que pulsa do fundo de si mesma: a uma devagarosa mulher no mundo. * Nas mãos um ramo de lâminas. Cada palavra tem mais à frente o lado escuro, Mais noutra posição armada, as suas zonas últimas --- ofertas do amor: a morte e a homenagem”. ......................... “Quero um erro de gramática que refaça na metade luminosa o poema do mundo, e que Deus mantenha oculto na metade nocturna o erro do erro: alta voltagem do ouro, bafo no rosto. * Um espelho em frente de um espelho: imagem que arranca da imagem, oh maravilha do profundo de si, fonte fechada na sua obra, luz que se faz para se ver a luz”. de Do Mundo Não percas a cabeça - Sá Nogueira
  • 23. “Mulheres correndo, correndo pela noite. O som das mulheres correndo, lembradas, correndo como éguas abertas, como sonoras corredoras magnólias. Mulheres pela noite dentro levando nas patas grandiosos lenços brancos. Correndo com lenços muitos vivos nas patas pela noite dentro. Lenços vivos com suas patas abertas como magnólias correndo, lembradas, patas pela noite Levando, lembrando, correndo.” de A Máquina Lírica “Em quartos abalados trabalho na massa tremenda dos poemas. Que me olham de tão perto que eu ardo. Um dia hei-de ficar todo límpido ou calcinado nervo a nervo. Ou por me ver Deus de um canto das palavras, com sistinos dedos pintados em torno à voragem diuturna, tocando na matéria. Alguém poderia dar um grito. Quase morro de medo ao sentir o meu nome. Penso que apenas numa hora o sangue encharcaria a roupa de alto a baixo, enquanto brilha o rosto.” de Flash Um poema cresce inseguramente na confusão da carne. Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndia violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, rios, a grande paz exterior das coisas, folhas dormindo o silêncio
  • 24. ---a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, Invade as casas deitadas nas noites e as luzes em volta da mesa e a força sustida das coisas e a redonda e livre harmonia do mundo. --- Embaixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. --- E o poema faz-se contra a carne e o tempo. de A Colher na Boca “ Há sempre uma noite terrível para quem se despede do esquecimento. Para quem sai, ainda louco de sono, do meio de silêncio. Uma noite ingénua para quem canta. Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou que varre as pedras da cabeça. Que mexe na língua a cinza desprendida. E alguém me pede: canta. Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio: canta até te mudares em azul, ou estrela eletrocutada, ou em homem noturno. Eu penso também que cantaria para além das portas até raízes de chuva onde peixes cor de vinho se alimentam de raios, raios límpidos. Até à manhã orçando pendúculos e gotas ou teias que balançam contra o hálito. Até à noite que retumba sobre as pedreiras. Canta – dizem em mim – até ficares como um dia órfão contornado por todos os estremecimentos. E eu cantarei transformando-me em campo de cinza transtornada. Em dedicatória sangrenta. de Lugar II Fragmentos - Sá Nogueira
  • 25. Emerson Teixeira Cardoso Celina Seleta Dizem que o poeta não escreve por vontade própria. Tal fenômeno só é possível se considerarmos que ele não procede de um sentido mental mas da natureza do imponderável, esse misterioso e indefinível estado d’alma essa indefinível sugestão. Esses conceitos me vieram à cabeça assim que comecei a ler o livro Hoje poemas de Celina Ferreira encontrado pelo meu amigo Zé Antonio, como por milagre em um sebo aqui em Cataguases, como atesta estes versos de um poema seu Rondó da chuva caindo: “A chuva chovendo chora minhas gotas de alegria. Que é de meu livro de estórias, a bruxa de cartolina, meu pilãozinho de vidro? Que é do arraial na memória, e apito rouco de usina noite e noite, dia e dia? A chuva chove que chove lembrança tanta haveria? Santana será que existe? As ruas da meninice, o doido correndo alegre mais doido que alguém de nós o lago sem muita história, uma igreja e a Santa rindo, rindo rindo sobre nós. Com os olhos chorando o tempo que a chuva mansa escorria A infância lavada em chuva, o corpo crescente agreste, as mãos tocando o infinito. Lá longe o medo e o silêncio, a solidão incorpórea, as coisas do desengano, lá longe o tempo de agora. E a chuva chovendo chora minhas gotas de alegria. O meu interesse pela obra da poeta é antigo, mas nunca pude encontrá-la. Não fosse por alguns versos avulsos garimpados em antigas edições do O Cataguases. Recentemente o Ronaldo publicou aqui mesmo, na Chicos um artigo intitulado: “Celina Ferreira, uma palestra que não houve” dando notícia de seu falecimento mais precisamente em 5 de agosto de 2012. Portanto não cheguei a conhece-la pessoalmente mas graças ao meu Pomba poeta tomei conhecimento de mais um bom lote de sua poesia que ilustrava o excelente artigo. O texto do Ronaldo, prestava-se a homenagear Celina colocando-a entre as maiores vozes da poesia cataguasense. Saudada entusiasticamente por nomes como Manoel Bandeira, Guimaraes Rosa segundo Ronaldo permanece, ainda hoje pouco divulgada, daí o desconhecimento do grande público. O evento que inauguraria o Café do Museu e ainda oficialmente o Anfiteatro Ivan Muller Botelho acabou não ocorrendo por questão de tempo e a palestra estivera então desconhecida até por Celina, a Chicos, publicou-o no seu número 36 e o subtítulo era, “uma poeta de voz maior”. Não sei porque passou-me despercebido o referido evento e em consequência disso perdi a oportunidade de conhecer uma das maiores poetas de uma geração que já nos havia dado Francisco Marcelo Cabral e Lina Tâmega Peixoto.
  • 26. Lamento que um contato mais possível com a poeta (na realidade um tanto hipotético) é uma visita ao campo santo da cidade onde está sepultada. Hoje Poemas contem: Poesia de ninguém, Nave incorpórea, Poesia Cúmplice e Rio do Sono. Reúne um vasto lote de poemas que constitui o melhor de sua produção. Utiliza-se Celina no seu fazer poético dos processos clássicos que inclui rondós, sextilhas, sonetos, cantares e baladas, modelos adotados por aquele seguimento que nos anos 40 resolveu afastar-se dos ideais do modernismo provando que na literatura os modismos como em outras esferas são pendulares. Outro aspecto interessante deste Hoje Poemas são as ilustrações de Guignard que caem nos poemas como música incidental em um filme. Doce, tátil, fortuna, as palavras, não fosse uma sequência de poemas, perfeita definição de sua poesia harmônica, saborosa inteira sinestesia. Como em “Doce”: A cidra no açúcar a brasa na cidra a cidra e o açúcar na exata medida. O fogo apagado, a mesa estendida, o queijo no prato e o doce na cidra. Vai-se degustando, querendo-se, queimando-se guloso o leitor na fogueira dos versos: Tátil No dorso da noite meu amor campeia tão perto que as mãos o fogo incendeia Tão fácil que o corpo querendo se abeira Tão certo que é meu pela vida inteira O amor eu conheço no peso do corpo o amor eu acendo com macio sopro o amor eu percebo pelo seu contorno. Requintes cabralinos em dísticos, desmembran- do: olhos, braços, mãos e rosto. Na enumeração da vida, jogo, morte. Excelências Uma excelência por um corpo que hoje agora já está morto Duas excelências por sua alma que procura um lugar novo. Três excelências pelas mãos que trabalharam no fogo. Cinco excelências pelos braços cobertos de trapos rotos. Seis excelências pelos pés que só conhecem malogro. Sete excelências pelo sangue enfraquecido e sem rosto. Oito excelências pelo homem seu viver tão custoso. Nove excelências pela vida que não deseja retorno. Doze excelências pela sorte que recolheu o seu jogo. Começando pelo fim, portanto, saio deste Inventário. Volto ao começo visitando outros temas do seu livro de estreia: Poesia de Ninguém. Compõe-se de 12 poemas escritos entre 1950 e
  • 27. 1954 cujos subtítulos Viola de Amor e O Vivo e suas perdas (22 poemas) formam um conjunto compreendendo poemas mais longos: sextilhas, quadras ou dísticos de um lirismo que mescla às vezes elementos da poesia provençal, passando pelo Barroco propriamente dito nos seus conflitos: o homem dividido entre o terreno e o divino na busca simultânea de uma possível comunhão entre o êxtase da alma e o desejo do corpo. Como em: O jogo da Rosa Preciso de arrepender-me preciso de proteção preciso de comover-me e fazer uma oração preciso de muita rosa e talvez de solidão. Mas o arrepender é frio e a proteção foi perdida o meu céu está vazio minha boca emudecida sei que preciso de rosa e talvez de solidão. A flor perdeu-se no relento talvez rolasse no chão como a flor desfaz-se ao vento também se pede a ilusão eu não quero mais rosa quero a minha solidão. Do vivo e suas perdas Canção Clara Canção muito clara, o bastante para o verso condenar. Condeno o que passou breve sem desejo de ficar. Aquele que bem devia dar-se a mim vivo de amor. Condeno o que me viu frágil e não foi o meu protetor. Esse que me cativou e não quis me conservar. Ah! Canção clara, o bastante Para o nosso condenar! Obra singular, ainda que não esteja ainda ao alcance do grande público ledor (Poesia de ninguém é de 1954) mereceu o apreço de notáveis como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, sendo que este último a homenageou no Mafuá de Malungo o que chamou de jogos onomásticos, versos de circunstâncias dotados de uma singela beleza: “Celina Ferreira não me tocou levemente Tocou-me fundo, Celina, a tua poesia, que me tornou para sempre, seu cúmplice.” Pelos livros que deixou e prêmios que conquistou em sua trajetória literária, acho que Celina não teve ainda o reconhecimento que merece nem de público nem suficientemente de crítica. Lacuna que uma republicação de sua obra poderia quem sabe, reparar?
  • 28. Mariana Ianelli Poema de Brecht sobre peregrinação de órfãos durante a guerra ganha livro ilustrado Em 'A Cruzada das Crianças', desconhecidos se unem durante a Segunda Guerra na busca por um lugar seguro, comida e paz Onde quer que haja guerra, há uma cruzada de crianças. Essa é a máxima que Bertolt Brecht (18981956) formula, em outros termos, ao transpor para a realidade da Segunda Guerra o drama da lendária narrativa medieval. A Cruzada das Crianças aparece pela primeira vez em Histórias de Almanaque, coletânea de parábolas, poemas e contos, incluindo as famosas Histórias do Sr. Keuner, que o autor publica no final dos anos 1940 na Alemanha. O poema pertence a um extenso conjunto de textos que Brecht escreveu durante seus anos de exílio. Hannah Arendt chegou a considerar que este seria “o único poema alemão da última guerra” que perduraria. Sua contundência permanece, por isso a oportunidade da recente edição brasileira, na tradução de Tercio Redondo, com ilustrações da artista catalã Carme Solé Vendrell. Seguindo o formato da versão espanhola de 2011, com o traço de Solé Vendrell sangrado nas páginas, é uma edição que valoriza a dimensão épica dessa história de pequenos peregrinos, filhos da guerra, que se unem para buscar a paz sem saber onde. No inverno de 1939, numa Polônia recém tomada pelos alemães, tropas de crianças famintas se juntam, conduzidas por um “pequeno chefe / que animá-los bem queria, / porém algo o preocupava: o caminho não sabia”. O filho de um nazista, um judeu, um
  • 29. pequeno músico, um menino socialista que discursa, todos têm uma fome comum, de pão. Ao todo são 55. Abstêm-se de lutar entre eles, “pois com fome não há luta”. O nome da terra prometida que procuram, que um soldado moribundo lhes indica, é Bilgoray, nome de uma paz tão inacessível quanto o pão. Ao final do poema, o poeta narrador fala em primeira pessoa: “Quando fecho os meus olhos, / vejo-os perambular, vagando de sítio em sítio, / (...) / Buscando a terra da paz, / (...) / vai crescendo assim o bando. / Ao mirá- lo no crepúsculo, / não lhe vejo a mesma tez: / outras caras eu contemplo, / de espanhol, francês, chinês!”. É interessante pensar na figura do cão que serve de mensageiro às crianças, levando uma placa de socorro no pescoço. O animal, no poema, é encontrado por camponeses, mas em vão, ao contrário daquele que salva o mendigo na peça O Mendigo ou o Cachorro Morto, escrita por Brecht logo após a Primeira Guerra, em 1919. Curiosamente, esse socorro que não vem para os órfãos da Segunda Guerra; de certo modo, é traído pela própria realidade, pela influência que Brecht exerceu, indiretamente, na ópera infantil Brundibár para as crianças do campo de Theresienstadt. Criada como um “estudo brechtiano”, em 1938, em Praga, por Hans Krása e Adolf Hoffmeister, Brundibár estreou no orfanato de um abrigo em 1942 e a partir do ano seguinte passou a ser apresentada semanalmente em Theresienstadt. Eram 55 meninos e meninas no palco. Eva Landová, que sobreviveu à guerra, fala sobre a importância da ópera como fonte de esperança e resistência dentro do campo: “Nós, as crianças, derrotamos todos aqueles que nos subestimaram: os adultos e Brundibár (personagem associado a Hitler). E, nos momentos em que assistíamos à ópera, acreditávamos firmemente em nossa vitória”. Nessa aderência da vida à ópera, o poema de Brecht, lacônico sobre o destino das crianças, ganha uma nova leitura. Outro aspecto interessante de mencionar é a tese de Georges Duby e Philippe Ariès de que, historicamente, a cruzada das crianças teria sido uma cruzada de camponeses afetados pelas transformações econômicas do século 13, já que o termo latino “pueri”, além de designar “crianças”, remete a pessoas em situação miserável. O escritor francês Marcel Schwob, que criou sua versão da história em várias vozes, num livro de mesmo título, de 1896, também merece ser citado. Um acrescento à linguagem seca e direta de Brecht, o poema tem em comum com o livro de Schwob uma triste ternura, uma pungência, que é realçada na nesta edição pelas ilustrações de Carme Solé Vendrell. Trecho inicial do poema: "No ano de trinta e nove a Polônia verteu sangue; suas vilas pereceram sob o fogo de falanges. A criança ficou órfã, faleceu o irmão querido, a cidade era só chamas, a mulher perdeu o marido. Do país nada chegava, só rumores sem valia, mas em terras lá no leste estranha história se ouvia. (...)" A CRUZADA DAS CRIANÇAS Autor: Bertolt Brecht Trad.: Tercio Redondo Editora: Pulo do Gato (36 págs.; R$ 38) Mariana Ianelli é poeta e autora de O Amor e Depois, entre outras obras
  • 30. Ronaldo Werneck O som de Solha ao redor No verão de 2013, de passagem pelo Recife, assisti por acaso, sem qualquer indicação, ao filme “O Som ao Redor”, de Kléber Mendonça Filho. Não sabia nada do filme nem do diretor, mas como a trama acontecia no Recife acabei “arriscando”, já que ali estava. Grata surpresa: “O Som ao Redor” é um dos melhores filmes que vi nos últimos anos, e aí entram também os estrangeiros. De volta ao hotel, na Praia da Boa Viagem, me vi subitamente dentro do cenário de “O Som ao Redor” e lembrei-me do personagem Francisco (chefe de uma família que domina alguns quarteirões da Zona Sul do Recife) entrando no mar à noite, bem ali onde eu me encontrava. Nos créditos do filme, lembrava-me de ter notado o nome de um dos atores, W.J. Solha, mas não sabia qual o seu papel. Pensei já ter visto o nome, talvez até em meus contatos de email, já ter lido alguma coisa dele, mas não ligava o nome à pessoa, ou vice-versa. Qual não foi minha surpresa quando há pouco tempo, por ocasião da morte de um amigo em comum, o escritor cearense Nilto Maciel, vi novamente o nome W.J. Solha assinando um texto sobre o Nilto na web. Havia uma foto dele e identifiquei de imediato o “Senhor Francisco” do Som ao Redor. Logo depois, li um excelente texto do Solha na Revista Eletrônica Rio Total, onde falava en passant do Guernica de Picasso visto no Museo Reina Sofia, em Madri, mas voltava os olhos com maior atenção para a mostra de um fotógrafo canadense, Jeff Wall, que ali se encontrava. Também eu vira por duas vezes o Guernica no Reina Sofia, inclusive quando de uma grande exposição sobre Picasso, em 2010. E me detivera, e me detivera, e me detivera e vou me deter sempre ante o quadro trágico e monumental. Mas a atenção de Solha naquele dia – Guernica à parte – fixou-se nas fotos de Jeff Wall – em transparência, de grande porte e retroiluminadas –, principalmente uma intitulada “Um brusco golpe de vento (a partir de Hokusai, de 1993”). Fora a dinâmica, o que mais deslumbrou Solha foi saber que a foto remetia a uma imagem que o japonês Hokusai (Katsushika Hokusai, 1760-1849) flagrara 200 anos antes. Daí, mostrando grande erudição, Solha parte para a influência da arte oriental na Europa, marcando trabalhos de Manet, Van Gogh, Cèzanne e outros mais. Seu texto, acuradíssimo, estava eivado de tal argúcia e propriedade que não me contive: acabei enviando ao Solha longo email elogiando o primor de suas palavras. Logo, seguiram-se outros e-mails de cá pra lá, de lá pra cá, e descobrimos vários e vários amigos em comum. Enviei também alguns de meus livros, enquanto aguardava/aguardo o envio de seus livros (o Solha poeta ganhou o prêmio João Cabral de Melo Neto e foi finalista no Jabuti), que ainda não chegaram. Qual não foi o meu espanto há algumas semanas, quando estava em Nova York – e pensara nele naquele mesmo dia, ao ver um quadro de Van Gogh no MoMa (o título de um dos livros de poemas de Solha, “Trigal com Corvos”, remete ao quadro de Van Gogh) –, qual não meu espanto, repito ainda espantado, ao ler no meu facebook dois textos do Solha sobre meus livros. Sou um analfabeto nos mistérios do facebook e não consegui enviar mensagem pra ele de meu i-phone, instrumento que manejo com total deficiência, com a imperícia de um matuto manobrando nave espacial. Agora sim, “acá y ahora”, direto da base/Cataguases, prestidigito essas linhas de agradecimento. “Paraibano” desde 1982, embora nascido em Sorocaba, o escritor, poeta, dramaturgo, roteirista, ator e artista plástico W.J. Solha é desses seres multifários que fazem de tudo um muito e um muito de tudo, com argúcia e grande competência. Mais que agradecido, sinto-me honrado com suas palavras. Parece cabotinismo (e é), mas não resisto a divulgar aqui os seus textos sobre meus livros. Gracias, Solha!
  • 31. Ronaldo Werneck em cataminas pomba & outros rios W. J. Solha A obra tem substancial fortuna crítica. Fábio Lucas define-a como um suave percurso pela estória, pela História, pelas partes do Ser. Articulando confidências da memória e da memória coletiva. Mas Délson Gonçalves parece alertar, em versos, que se trata disso tudo, mas também de poesia, ao acrescentar a essa definição algo essencial, quando diz que “o rio caminha fora de mim/ e o mesmo Pomba me navega por dentro”. Não é à toa a citação que o próprio Werneck faz de Neruda: “– Sé lo que dicen / todos los rios. (...) Hay secretos míos/ que el rio se há llevado. (...) Reconocí en la voz del Arno entonces/ viejas palabras que buscaban mi boca”. Recapitulando: “Confidências da memória e da memória coletiva”. “Secretos míos”. Tem a ver, que numa reedição futura, por isso mesmo, talvez o livro venha a se encher de notas de rodapé, como o “The Waste Land” do Eliot, desnecessárias para os de Cataguases e – em alguns casos – somente para o autor, pois a obra acaba tendo alguma coisa muito pessoal, claro que não hermética como no “Finnegans Wake”, mas tendo. Exemplo: “como numa fotografia/ como num stop no tempo/ como num apanhado do landóes”. Felizmente o volume é fartamente ilustrado e se vê, no verso de uma foto de 1911, reproduzida justamente nesse ponto: “Atelier Photográphico Alberto Landóes”. Como diz o Manoel de Barros, numa das inúmeras epígrafes do livro: “Imagens são palavras que nos faltaram”. Mas isso fez com que eu só fosse conquistado totalmente pela obra quando – no final dela – Werneck fala de rios com que não tem a mesma intimidade, como o Tajo, o Tâmisa, o Sena, que me fizeram voltar ao Cataminas e ao Pomba com outros olhos. E por falar em fotos, realmente cataminas pomba & outros rios tem a beleza extra de muita, muita fotografia de Cataguases e de sua gente, o que, com o que afirma Fábio Lucas – seu ritmo é cinemático – mais o fato de que o poeta é apaixonado pelo cinema, me fazem ver, nele, por um momento, um belo roteiro devidamente ilustrado com todas as suas locações no tempo e no espaço. Por que, então, se não lhe faltavam engenho & arte, Werneck não fez um filme? Porque, parafraseando Manoel de Barros, palavras são imagens que nos faltaram. Como quando o mesmo Werneck, genialmente, diz: “Pressinto/ cabreiro/ com horror/ que estou/ numa cidade/ do exterior/ mineiro”. Uau! Mais adiante, ele descreve o Tibre como “fio presente ausente/ nas glórias de outrora/ não se vê não se sente”. Mas “não se vê, não se sente” o quê? “faces flashes de outrora/ estilhaços de fausto/ tênues fragmentos/ sombras sobre a história”. Claro. História! Ele é novamente genial quando diz, em El tajo/tejo:toledo: “Miúdo /em toledo el tajo é tudo/ el cid el greco”. Exato. Senti isso ao parar na pista, fora da cidadela fortificada pelo rio franzino que a rodeia no fundo do vale, eu exatamente onde o pintor excepcional fincara o cavalete para pintar a bela Vista de Toledo, cheia do espírito místico da cidade e dele mesmo. Werneck me faz pensar novamente nela, quando descreve Ouro Preto: “chove sobre a cidade encarcerada em sabão e pedra”, finalizando assim: “chove água que escorre sobre o ouro dos pretos e leva sua memória”. Não “lava”, como seria de se esperar. “Leva”. É impressionante como ele venera sua terra, como ama a História. Ele diz, em L´arno a firenze: “Como antes/ la luna / a mesma/ de dante/ & petrarca/ a mesma se via/ sobre a água/ refluxos de poesia”. E vai fundo, em El manzanares en madri: “Um rio/ fechado em si/ um rio/ lago/ um rio/ del cante-jondo/ pardo-tardo- redondo”. Fluem, assim, os versos de Werneck, sobre o rio que cruza Cataguases “correndo corroendo/ um século em cada minuto”. “Correndo corroendo”. “A preta prata madrugada”. “Gretas grutas”. Nesses desdobramentos de palavras – que me lembram o glauberiano poeta recifense Jomard Muniz de Brito – , ele mostra o quanto cuida de cada detalhe do que compõe, quase como um outro grande mineiro, Guimarães Rosa, mas empenhado na multiplicação dos enfoques, como os cubistas faziam, trabalhando sempre com vários ângulos simultâneos, como numa quarta dimensão. “O bafo da railway bufando com bazófia/ entre nostálgicas indústrias/ se acendendo se ascendendo se/ movendo-se movendo se/ como loucas se locomovendo se”. Cinema? Quase. Veja a decupação que ele faz desta cena: “O rio envolve/ esse tropel de burros/ bicicletas/ meninos soltos/ no pó/ no pé descalço/ nos galhos/ pendurada no ar/ nas árvores”. Mas aí se segue o pulo do gato: “a poesia / se desmanchando/ se amarelando/ se dissolvendo”. alço-as e me vou, ou sou levado voando, me vou.
  • 32. José Antonio Pereira Taioba e taiobas Algumas imagens que mais habitam os descaminhos de minha memória são as de taiobas. Um pé em especial, plantado num bem cuidado gramado na casa do Zé Tarcísio, me ocorreu. Ele reinava imperiosamente tal qual uma palmeira naquele chão verde. Eu, ainda morava em São Paulo, fôramos, eu e Roseli, visitar o amigo em Lavras num carnaval. Zô carregava no ventre sua primogênita, eu nem imaginava que ia ali o nome de uma das minhas canções favoritas do Caymmi. Numa das divertidas conversas com o dono da casa, senhor de um humor ligeiro e contundente, torna-se sério, com um dedo professoralmente aponta para a pequena planta, e diz: – Aquela taioba tá ali, para eu não esquecer quem matou minha fome nos tempos bicudos de estudante em Viçosa. Até hoje não conheci gratidão tão singela como esta. Já eu... Eu nunca fui fã de taioba, pra ser honesto, sempre nutri um grande desprezo pela plantinha. Na minha infância, morávamos de aluguel numa casa com quintal, entre a linha férrea e o Meia Pataca; quintal com jabuticabeira, cercas forradas de bertalhas. Estas, sombreavam moitas de teimosas e renitentes tiriricas, apesar dos esforços diuturnos de mãe e Vó Maria. Num lado umas ararutas, doutro uns inhames, ao fundo uns velhos pés de couves cercados por um taiobal que crescia e teimava, como a tiririca, dominar o canteiro. A bertalha, já adulto, serviram-me num restaurante vegetariano de duvidoso requinte, com o nome de espinafre indiano; até hoje me pego rindo com a galhardia do garçom tecendo loas a plantinha tão insonsa. O mundo realmente dá suas voltas e como tudo gira e roda. Na frente da casa uma romãzeira cercada por uma touceira de tinhorão. O tinhorão todos da casa viviam dizendo que era planta venenosa. Parecia uma taioba, em que algum pintor jogara restos de vermelhão diluído. Se era veneno o que fazia ali? Pensava toda vez que tomava uma bronca quando punha a mão na tal planta. Minha ojeriza pela plantinha aumentou quando já adolescente um certo crítico musical irascível chamado Tinhorão, detonava todos os roquinhos que eu gostava de ouvir. Já adulto, lendo Cruz e Souza, dei de cara com os versos Cróton selvagem, tinhorão lascivo, / Planta mortal, carnívora, sangrenta, / Da tua carne báquica rebenta / A vermelha explosão de um sangue vivo. Não teve jeito passei a desprezar definitivamente qualquer coisa que tivesse a menor semelhança com tinhorão. Confesso aqui que meu problema com a taioba é caso psicanalítico não resolvido. Deriva, e eu sei disto, de pesadelos que me perseguiram a adolescência inteira. Sonhava que minha mãe, coitada dela, espumando de raiva por mais uma das minhas traquinagens; servia meu prato com um arroz branquinho, um feijão cheirando a alho frito, um angu molinho, um ovo estrelado e um farto punhado de taioba rasgada refogada, uma delícia para quem chegava da escola morto de fome. Só que na última garfada eu via no meio do verde alguns tons de vermelho. A garganta apertando e sufocando, o ar faltando, a língua queimando, os beiços engrossando, babando feito um cachorro, uma baba verde com traços de espuma vermelha. Acordava banhado de suor e o coração disparado. Dia claro, ia para o quintal e me punha a chutar toda planta que aparecia na minha frente. Vó Maria da varanda gritava – Ficou doido menino! O que continha meu ímpeto, era o pé descalço doendo por ter chutado alguma pedra ou toco que brotava do chão encoberto por alguma moita verde. E a ameaça de uma surra encomendada pela minha mãe. Até hoje, não tem jeito, taioba não entra no meu prato.
  • 33. Antônio Jaime Soares Duas plásticas no Pitanguy Porto Alegre deixou de ser um sonho distante quando fui lá para a campanha de lançamento de um filme de Teixeirinha. Com uns colegas e, naturalmente, exibiram-nos os cartões-postais locais e o filme, intitulado A filha de Iemanjá. Jamais imaginei que no Sul também cultuam aquela entidade. Sim, e com muito fervor, segundo o filme. Enredo sem pé nem cabeça, puro pretexto para Teixeirinha e sua musa, Mary Terezinha, manterem seu mito. Na primeira noite, levaram-nos a uma boate em que mulheres semi-nuas se mostravam em trajes e cenários, por assim dizer, da Roma antiga, além dos indefectíveis números de danças, bombachas e prendas minhas. Tropicalismo brabo. Tudo caríssimo, mas o uísque, o vinho, tudo por conta do contribuinte, sendo a Embrafilme uma estatal. Eu queria mesmo é um ambiente enfumaçado, clima de fossa anos 50, ao som de Lupicínio Rodrigues. Dia seguinte, encaramos a fera. Baixinho, botas de salto alto, cabelo ralo tinto de castanho, e vaidoso. Levamos um pré-cartaz do filme, baseado em fotos de cena, que ele viu e sentenciou: “Está muito bom, mas eu apareço com rugas. Não quero rugas, paguei duas plásticas ao Pitanguy para não tê-las” (esse tê-las faz sentido, o português deles, gramaticalmente, é caprichado, como no Nordeste). Mas ao vivo e nas fotos, as rugas apareciam. Sem problema, o ilustrador da Embrafilme daria os devidos retoques. “E Mary não está parecida com ela, mas com Edith Veiga”. Também problema contornável. Mary, pois é, sua parceira artística e sentimental, sem que dispensasse a mãe dos seus filhos. Um assistente dele contou que elas até se socorriam, quando havia festa na estância de uma ou de outra, emprestando empregados e vasilhame. Uma bigamia consentida. A seguir, fomos conhecer as instalações da TV Gaúcha, uma Globo em miniatura, situada num bairro bucólico, casas sem muros, pois é. E, lá de cima, vimos o famoso pôr-do-sol sobre o Guaíba, orgulho maior deles, realmente muito bonito. Eu editava um jornalzinho para gerentes de cinemas, por isso entrevistei o da maior sala de exibição de lá. Disse que Teixeirinha era realmente um fenômeno. Quando estreava “fita” com ele, chegavam ônibus até de Estados e países vizinhos. Contudo, eu nunca ouvira falar de filmes dele e aquele, no Rio, passou apenas no Cine São Cristóvão, mais freqüentado por nordestinos. Essa diversidade cultural do Brasil é positiva, prima della televisione.
  • 34. José Tarcísio Lima José Tarcísio Lima – Nascido em Cataguases, reside atualmente em Lavras – MG, onde é professor na UFLA. Estreou literariamente no Lodo publicação que circulou em Cataguases nos anos 80. Monark 66 Escrever sobre autores cubanos atuais é penetrar num lindo mundo enevoado, cheio de perspicácia e adivinhação. Desde tentar a comunicação, estando em Cuba, com Leonardo Padura (1955 – Havana), até tentar localizá-lo através de sua editora brasileira, a Companhia das Letras, a viagem é longa e algo arriscada. Mas vamos a isso. O que se deseja não é ver o autor – aliás, um cinquentão simpático –, mas estudá-lo, escrever sobre ele e sobre a sua criação principal, o detetive da polícia cubana Mario Conde. As bicicletas foram promovidas a bikes e levam ciclistas. Incorporaram tecnologia avançada em design, materiais, mecânica e acessórios que, além dos tradicionais, ostentam velocímetros, ciclocomputado- res e gps. São mais leves, velozes e ergonômicas. Têm amortecedores e contam com mais de vinte marchas! Os ciclistas usam roupas especiais, capacetes, luvas, mochilas, garrafinhas de água e protetor solar com fator de proteção para lá de 30. O mais importante, no entanto, é que agora as bikes são instrumentos para acondicionamento físico, montanhismo, promoção da qualidade ambiental e de trânsito. Os ciclistas reivindicam ciclovias e direitos em relação aos motoristas. É um comportamento que se alinha ao dos europeus, que há muito tempo "descobriram" as benesses de um modo de vida saudável montados nas magrelas. A propósito, um amigo alemão me disse certa vez que na Alemanha os ciclistas têm tantos direitos que se um motorista atropelar um ciclista, é melhor dar ré e esmagá-lo para ter certeza de que ele está mesmo morto, pois se sobreviver, te incomodará para o resto da vida. Humor negro alemão, é claro. Desde a infância até os 25 anos pedalei para me transportar sobre paralelepípedos tórridos. Minha primeira magrela, dividida com meu irmão, era uma japonesa, pequena, aro 20; depois veio uma Philips, uma Bluebird, mas duas foram mais dedicadas a me carregar: uma Monark 66 e uma Caloi 80. Depois que comprei um Chevette GLS - GLS!, me libertei quase que definitivamente daquele meio de transporte, mas me criou um problema que em outro momento conto. Naquele tempo, bicicletas eram meios de locomoção da classe trabalhadora, mas ostentavam adereços como fitinhas no guidão, capa almofadada no selim com o escudo do time de futebol, espelho retrovisor, bomba de ar, garupeira, cadeirinha para criança, campainha e algumas até farol a dínamo! Não representavam um estilo de vida como as de hoje, mas uma necessidade. Em Cataguases, então uma cidade operária, nos momentos de troca de turno das fábricas de tecido acontecia um frenético trânsito de bicicletas. Era bonito de ver aquele rush. "Herdei" a Monark aro 26, branca com paralamas marrons, de minha irmã e, anos mais tarde, comprei uma Caloi 10 - de marcha! Não eram para uso eventual nos finais de semana, mas permanente. Eram essenciais para me levar ao colégio, pescar, passear, fazer compras para minha mãe; anos mais tarde para ir ao trabalho na fábrica de macarrão, onde fui office boy. Hoje seria bikeboy! Também usei a Monark para, junto com amigos, viajar para localidades ao redor de Cataguases como Leopoldina, Miraí, Astolfo Dutra, Dona Euzébia, Santana, Itamaraty de Minas, além de prainhas do rio Pomba, zonas e fazendas. Anos mais tarde, compreendi quando o Airton Senna disse sua interação com a máquina era tão intensa que chegava a sentir o carro como parte integrante de seu corpo.
  • 35. Cada um de nós com seu brinquedo. Sofri alguns tombos, mas, diferentemente de nosso herói, ainda tenho sobrevivido. Quando fui estudar em Viçosa, em 1975, mandei a Monark para lá. Fui de ônibus e ela de trem. Com medo de perdê-la por extravio corri para a Estação Ferroviária de Viçosa para resgatá-la. Tudo bem! Durante todo o período na universidade andei de bicicleta para lá e para cá. Para cima e para baixo, assim como fizera em Cataguases. Tempos depois, mandei-a de volta para casa de meus pais, pois investi na Caloi 10 prateada, mais estilosa, é claro. Assim, passei a dispor de uma bicicleta em Viçosa e outra em Cataguases, que me servia quando viajava para lá nas férias. Com o tempo e minhas andanças por esse mundo, perdi contato com a Monark. Não sei se foi vendida, se repousa como sucata em algum porão, ou se reciclada por um ferro-velho tem seus átomos diluídos por aí, mas tenho lembranças dela como se fosse o meu trenó Rosedud. Fiquei com a Caloi até 1995, mas já não a usava mais. Por muitos anos a mantive esquecida em um canto na garagem. Ela se tornou empoeirada, os pneus e câmaras de ar deterioraram. Até que em um período de férias resolvi recuperá-la. Nesta época eu já vivia em Lavras e asseguro que entendia, relativamente bem, da manutenção mecânica da bicicleta. Comprei algumas ferramentas, alguns raios, graxa, óleo, pneus, câmaras e uma corrente nova. Fiz um checkup na magrela e deixei-a limpinha com água, sabão e bombril. No sábado, montei nela e me dirigi ao nosso Clube de Campo, distante seis quilômetros de minha casa. Embora Lavras seja uma cidade de topografia bem íngreme, o percurso a cumprir tinha apenas algumas subidas e descidas leves. Pela primeira vez em minha vida usava uma bicicleta como bike, pois a finalidade era exercitar. A sensação do vento na cara era deliciosa e resgatava um sentimento de controle, liberdade e singeleza que há muito não experimentava. Fiz mais da metade do percurso relativamente bem, mas na parte final comecei a me cansar. Num momento, ao olhar para trás, já fora do perímetro urbano, vi que vinha um velho de chapéu, pedalando para me passar, a uns duzentos metros, em uma bicicleta simples. Faltavam cerca de dois quilômetros para chegar ao clube. Não vou deixar esse homem me passar, decidi. E ele estava mais veloz. Apertei a pedalada, mas não adiantou muito, ele se aproximando. Sou capaz de apostar que ele tinha decidido me ultrapassar. Eu com a tecnologia e a juventude, ele com o controle da situação e domínio da máquina. Apertei mais a pedalada e ele cada vez mais se aproximando. Nós dois dissimulando uma disputa. 50 metros, 25 metros, 10 metros, eu ofegante, buscando ar e músculos. Pouco antes da portaria do clube foi possível, numa visada rápida para trás, identificar sua feição impassível. Enquanto ele também deve ter visto em mim o desgaste, o cansaço e a língua de fora. Cruzei a linha de chegada, entrando no clube sem parar para me identificar e comemorando silenciosamente como se fosse a maior vitória de minha vida. Um amigo me disse que venci por beiço de pulga. Mas venci! O homem continuou pela rodovia, sei lá para onde, como se nada tivesse acontecido. A Caloi ficou no clube por seis meses, até que um colega a levou de volta em uma caminhonete para o ostracismo do fundo da garagem, de onde somente saiu, quando um pedreiro que fazia uma reforma em casa me convenceu a vendê-la. Esta foi minha última relação com uma bicicleta. Se bem que ...
  • 36. Flausina Márcia Flausina Márcia da Silva poeta nascida em Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou: Vagalume (2002), Sua Casa Minha Cruz (2003), Teófilo Benedito Ottoni (2009) e Poemas Declives (2014). A Lua não Existe ou Uma infecção científica Eles apareceram, com variadas formas e tamanhos, revestidos de coisas indestrutíveis como espadas, mobilidade de fantasmas, truques de mágicos e pedras verdes fosforescentes. Ninguém havia sido, como ele, tão super. Veio do céu. Trouxe a guerra das estrelas para um planeta descontente com o seu status na galáxia. Queria estrelar, no seu “malvado favorito”, papel de campeão do universo, para ensinar-lhe a causar muitas inimizades com marcianos e alienígenas, sofrer com invasões de tudo, corporais e cerebrais. Venceu todas com brilho e preparativos de fuga, supostamente salvadora dos tesouros terráqueos. As inúmeras superioridades, suas contemporâneas ou descendentes, salvadoras da humanidade, quase convencem o planeta de que morrer é bom para mudar de status. Não se sabe como reagem os planetas, quando percebem seu próprio engano, talvez fiquem loucos, deixem de proteger interruptores e, pronto, lá se vai embora, a lua, num curto circuito. O super, coitado aliena-se também. Nunca mais ouve estrelas, ama um rio, reverencia uma árvore. Para de ser lunático. Cadavre Exquis... - Mário Cesariny
  • 37. José Antonio Pereira A viúva Abstrato - Viktor Sheleg Rangia os dentes. Engolir mais uma estopa que o mundo enterrava goela abaixo. Olhos vagos, tateavam imagens sem foco. Tudo corria rapidamente, sem destino algum. Misturavam-se todas as dores e sofrimentos de uma vida inteira, uma desarrumação mental total. Assim, Lia percorre seu passado e seu presente. Chora, tendo como virgulas o soluço, e vagueia por toda sua existência. Desesperada procura um lapso temporal, um segundo sequer onde tenha errado. Nada justifica aquela trombada que a vida perpetrara-lhe. Desmoronara tudo, como terra arenosa sob chuva de verão. Acreditara piamente em tudo que lhe fora dito. A carreira de Quim, o casamento, achava que eram siameses de tão igual no pensar. Cuidara de tudo, casa, contas, dele e a carreira dele. Respira fundo, só sentia ciúmes de Marilyn Monroe, uma das paixões dele; era obcecado pelo filme O pecado mora ao lado. A outra paixão era o vermelho. E agora era solicitada a deixar o dito pelo não dito. – Como? Construíra laboriosamente aquela aracnídea teia onde vida, trabalho e amores se interpenetravam. Sempre acreditara que havia honestidade entre eles. Metódica, via desabar o ordenamento em que sempre organizara o mundo dos dois. Onde foi que eu errei? Nega-se a pensar nesta clássica indagação, isto, sempre a leva assumir o erro que não cometeu. Erros? Com certeza, os dois cometeram. A lágrima brilha, mas não desce, a garganta aperta, mas não seca. Todos os órgãos e vísceras parecem querer explodir como um balão de gás. – Quem era aquela chorosa mulher de vermelho? O corpo oscila febril nunca sentira nada igual. É o ódio. Ódio à única atitude que Quim tomara na vida. Desata o nó na garganta e solta... – Quim. Vai prá putaquiopariu!
  • 38. Mário de Andrade Mário de Andrade por Lasar Segall Em 25 de fevereiro de 2015, algumas efemeridades não deixaram passar em branco os 70 anos da morte de Mário de Andrade, aqui na Chicos ninguém nem era nascido quando do falecimento dele, mas é figura de extrema importância para nós. Foi ele um dos interlocutores fundamentais para os escritores da Revista Verde, os pioneiros da literatura de Cataguases. No ano que vem, a obra de Mário de Andrade entra em domínio público. De repente a Cataletras, se empolga e publica Macunaíma e Amar: Verbo Intransitivo. Para aproveitar os últimos momentos de uma obra protegida pela lei de direitos autorais, a Nova Fronteira, responsável, com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), pelos volumes disponíveis hoje, lança o romance inédito Café, uma coletânea de contos e crônicas e a graphic novel Macunaíma em São Paulo: O Nascimento de um Brasil, com roteiro de Izabel Aleixo e ilustrações de Kris Zullo. Os três ficam prontos para a homenagem que o autor recebe na Festa Literária Internacional de Paraty, entre 1.º e 5 de julho. Antes disso, serão lançados três ebooks com estudos de Mário de Andrade: Música de Feitiçaria, As Melodias do Boi e Pequena História da Música. O primeiro lançamento, porém, foi o da Edições de Janeiro e da Fundação Biblioteca Nacional. Numa quarta-feira, no dia do aniversário de morte do escritor, elas apresentaram, no Rio, Eu Sou Trezentos: Mário de Andrade Vida e Obra, do pesquisador Eduardo Jardim. Repleto de imagens, o volume tem, como diz o autor na apresentação, “o propósito de reconstituir a trajetória do poeta e pensador até o momento da sua morte, no ponto em que os impasses com que se deparou se mostraram insuperáveis”. Autor de Segredo de Estado O Desaparecimento de Rubens Paiva, entre outros, Jason Tércio está mergulhado há 10 anos no universo de Mário de Andrade. No momento, ele finaliza a escrita de As Vidas de Mário de Andrade que, imagina, terá 500 páginas. Para facilitar o trabalho, ele chegou a se mudar do Rio para São Paulo. “O diferencial de minha pesquisa é que estou abrangendo nessa biografia a complexa personalidade de Mário e todos os aspectos da sua vida: poeta, ficcionista, crítico literário e de artes, musicólogo, cronista, etnógrafo, fotógrafo, professor de música, colecionador de arte, viajante, epistológrafo, agitador cultural, bibliófilo, diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, católico e boêmio”, adianta Tércio. A empreitada é grande. “Mário foi um oceano, por isso a maior dificuldade ao reconstituir sua vida é enveredar por diversas áreas e ao mesmo tempo pesquisar a vida de inúmeras personalidades que conviveram com ele e evitar repetir erros de narrativas existentes”, diz. “Outra dificuldade é elucidar as contradições de Mário. Por exemplo, surgiu uma tese de que ele era antissemita. Não é verdade. Também essa história de que ele era homossexual. Não é verdade”, completa. Ainda não há previsão de lançamento ou contrato assinado com editora. Ainda neste ano, a Edusp e o IEB lançam, pela coleção Correspondência de Mário de Andrade, as cartas trocadas com Lasar Segall, Romance inédito de Mário de Andrade, HQ, biografias, crônicas e cartas serão lançados organizadas por Vera Dorta, e com Alceu Amoroso Lima, por Leandro Garcia Rodrigues e coedição da PUC-Rio. Navegando pela internet, achamos este artigo do João Marcos Coelho publicado em fevereiro último no Estadão, jornalão paulista: A “tempestuosa proximidade”, feliz expressão usada por Jorge Coli para caracterizar as relações entre Heitor VillaLobos e Mário de Andrade, esconde segredos até hoje. Mário reconheceu a genialidade e indicou caminhos ao Villa, como Flávia Toni mostrou em livro editado pelo Centro Cultural São Paulo (1987). As Cirandas, por exemplo, seu ciclo pianístico mais celebrado, nasceram em 1926 como um pedido “fictício” de Mário. Isso já era conhecido. Recentemente, Flávia e Manoel Aranha descobriram cartas e bilhetes de Villa a Mário, incluindo uma, inédita, na qual o compositor lhe fala das Cirandas. O lado musical de Mário tem sido pouco estudado. Flávia considera distorcida a imagem que o mundo musical ainda faz dele. “O mais comum é associar a campanha dele entre os compositores como sendo de índole nacionalista. Mário era um pesquisador da música e da literatura brasileiras. Sendo fluente nos dois ‘idiomas’, mas poeta e romancista, não compositor, é possível entender a atitude dele pelas conquistas no campo literário. Da pesquisa sistemática lendo os relatos dos viajantes, os nossos historiadores dos costumes, das práticas da sociedade e da formação do vernáculo, resultam obras como O Clã do Jabuti e Macunaíma, poesia e prosa que transpiram o programa que ele apregoa a seus interlocutores. O empenho, na criação musical, espelha a mesma natureza: estudar a criação espontânea e a performance do canto improvisado; conhecer as fontes europeias trazidas para o Brasil; analisar a contribuição dos compositores do século 19. Este é o programa do Ensaio Sobre a Música Brasileira, texto urdido com a análise do repertório de vários compositores VillaLobos, H. Oswald, os irmãos Levy, L. Fernandez e das 126 melodias que colecionara até 1928.”
  • 39. Em um de seus artigos fundamentais para o Estado, onde escreveu entre 1934 e 1942, Mário clareia bem a questão do nacional e do nacionalismo. Publicado em 30 de outubro de 1934, A Música Popular e a Música Erudita reproduz conferência feita uma semana antes no Teatro Municipal, no 321º. sarau da Sociedade de Cultura Artística. "O nacionalismo é uma das invenções específicas das classes cultas. O povo nunca jamais é nacionalista. Poderá quando muito ser nacional (...) Essa fragilidade nacionalista, ou antes, essa força internacionalista do povo, se manifesta prodigiosamente clara na música popular. (...) A nacionalidade inconsciente da música popular, representante do povo, está sendo aproveitada pelo nacionalismo consciente dos compositores representantes das classes cultas. (...) É pois por causa deste nacionalismo novo que a canção popular lavadinha e vestida de roupagens aristocráticas, perdida a sua verdadeira função utilitária, se pavoneia agora nos salões e salas de concerto", completa em sua prosa deliciosa. Se começa falando da luta de classes no mundo da música, termina se perguntando "em que classe estaremos nós aqui". E responde: "Em nenhuma delas. Nós estamos na classe das Belas Artes. Este é o verdadeiro terreno de ninguém" (...) onde "tudo e todos nós nos fundimos na fraternidade piedosíssima da Beleza". Leia abaixo trechos da resposta do compositor, só agora trazida a público por Flávia Toni e Manoel Aranha: "Rio de Janeiro, 12 de abril de 1926 Caro Mário Atualmente estou escrevendo coisas que te vão interessar muito (...). "Escrevi uma longa série de 20 peças cujas formas e processos novos dei o nome de Cirandas. São todas para piano ou pequena orquestra; e por fim, uma outra série para canto e piano, intitulada Serestas. (...) Em tudo isso, venho completando o meu velhíssimo programa de escrever música regional, ou melhor, de escrever a música deste grande país, sem estiliza-la, nem harmonizá-la, nem tão pouco adaptá-la, no ambiente da técnica musical européia, tão diferente da nossa, que é vivida há séculos nos nossos choros. (...) "É verdade que até a minha Prole do Bebê nº 1 – (1918) – escrevi dentro da técnica européia, vários temas inteiramente brasileiros, porém, sempre estudando a forma que pudesse ver-me livre desta influência cascuda. Já no meu Quarteto Simbólico comecei a me ver livre desta terrível peia, aonde no meu Sexteto Misto – 1921 – sacudo por completo as asas, e realizo as minhas duas (queridas) Sinfonias Indígenas ou Selvagens (1922) – das quais nasceram os meus Mafuás Dançantes, Nonetto, Malazarte, os Choros, Cinemas, Cirandas, Serestas e não sei o que será mais do teu VillaLobos" Mário de Andrade por Tarsila Amaral Descobrimento Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu. Moça linda bem tratada Moça linda bem tratada, Três séculos de família, Burra como uma porta: Um amor. Grã-fino do despudor, Esporte, ignorância e sexo, Burro como uma porta: Um coió. Mulher gordaça, filó, De ouro por todos os poros Burra como uma porta: Paciência... Plutocrata sem consciência, Nada porta, terremoto Que a porta de pobre arromba: Uma bomba.
  • 40. Alexandre Coslei Alexandre Coslei – Jornalista e escritor, formado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carioca é escritor premiado no Concurso de Contos promovido pelo Intituto Cultural Cidade Viva em parceria com a Secretaria de Cultura do Estado do RJ e com a Secretaria de Educação de Rio Claro. Como resultado do concurso, foi publicada em 18/10/2014 a coletânea Contos de São João Marcos. Os camelôs da literatura Pintores são objetos de vernissages ou exposições; músicos fazem concertos, recitais, cantatas, shows; cineastas fazem pré-estreias, festivais; já os escritores participam de feiras literárias. Tratando-se de uma atividade ligada à criação, o vocábulo “feira” vem carregado de um peso pejorativo que define a atividade mais vulgar do mercantilismo. Esse sutil aspecto nos revela que a literatura é a arte mais seviciada pela banalidade do consumo que impera no século 21. A maioria dos ditos novos autores não mais escreve almejando um sentimento estético que possa refletir o seu tempo e o seu ambiente. Não, os escritores neófitos agora caçam temas que possam inserir com êxito no comércio dos livros. De preferência, assuntos que atendam aos modismos ou aos nichos considerados prósperos pelo mercado. Vivemos um momento em que autores se prostituem na intenção de conquistarem o sucesso imediato. Não há dúvida que os best sellers são a grande inspiração dos amadores. Num cenário onde o valor da arte, antes imensurável, agora é medido por diversas estatísticas, o marketing se instala e traz a reboque vários itens indispensáveis aos camelôs literários. A imagem do escritor precisou ganhar ares de uma figura bem-sucedida, com currículo admirável, dotado de referências numéricas que atestem o seu prestígio e justifiquem a compra do livro pelo leitor. O tapete vermelho da publicidade sempre se veste com o exagero, mas qualquer mentira se legitima por uma boa causa. É a autoexaltação como virtude. Cafetão da criatividade No crepitar das vaidades da nova literatura, o anônimo escritor também perde território para as celebridades que decidiram se aventurar pela escrita. São atores, músicos decadentes, atletas, empresários e até bandidos intelectualizados. Levando-se em conta que escrever, para muitos, se resume à arte de se sentar numa cadeira, a fama se mostra como a maior credencial disponível para lançar um livro que seja bem recebido. E há sempre um séquito de bajuladores para abraçá-los. A princípio, a literatura realmente não parece exigir nenhuma qualificação técnica, como a música pede a um instrumentista, a um cantor de ópera ou para um compositor. No teatro, só é ator quem faz algum tipo de curso que ofereça o registro profissional, foi a regra elaborada para barrar a horda de modelos e aventureiros que anseiam aparecer na TV. Na pintura se faz necessário dominar a orquestração das cores e os traços de um desenho, obstáculos para os leigos. Na literatura, infelizmente, qualquer um pode sentar e escrever. E é na falta de compromisso com a qualificação, com a técnica, com a leitura e com o domínio da língua que nós observamos o opressor avanço da literatice sobre a literatura. No incomensurável camelódromo das letras, a arte é hostilizada diante da imposição do entretenimento, um território onde qualquer bizarrice pode ser perdoada em nome dos resultados comerciais. O que mais vemos hoje? Novos autores anunciando números, rankings, tabelas, resenhas e cifras. A obra é coadjuvante, o comércio é o protagonista. A explicação para tudo isso é óbvia, camelôs precisam passar suas bugigangas. Apavora-nos saber que os autores que dobram seus joelhos ao mercado são os mesmos que ministram cursos de redação, editoração e escrita criativa. Que trágica ironia, aquele que se assumiu cafetão da própria criatividade para embarcar no trem das cores é também o que irá catequizar novos zumbis. Grito de repulsa Como se não bastassem tantas nuvens negras numa paisagem desolada, as editoras estão tomando a aparência de cartórios. No passado, um autor encaminhava entusiasmado o original do seu livro para avaliação e aguardava a resposta. Atualmente, exigem que ele preencha um book proposal para que o editor julgue se vale a pena ler o original, mas não garantem retorno. É possível que num futuro próximo solicitem firma reconhecida, cópias autenticadas e biometria. Compartilhem a revolta, pois é uma afronta que usem um procedimento com nome estrangeiro para que um autor nacional submeta sua obra a julgamento. Os colonizadores são implacáveis. Qual a saída para este beco cultural que quer infligir rédeas à criatividade? Falam da autopublicação, um remédio que pode custar milhares de reais aos escritores desavisados, um campo que está dominado pela ganância dos exploradores de sonhos. Contam-nos sobre pequenas editoras, mas ainda são poucas as que possuem qualidade e elas se mostram limitadas nos gêneros que acolhem. Por enquanto, a melhor saída é a Internet, são os passinhos de formiga dos que escrevem nos grupos e sites que permitem a divulgação da literatura, é ganhar visibilidade pelo talento, pelo mérito do reconhecimento, abrindo mão de buscar uma fama instantânea sem a base de uma relação inovadora e íntima com as palavras. O verdadeiro artista é um abnegado que cultiva na arte um ato de fé. Uma escrita pueril, subordinada a fórmulas pré-estabelecidas, não contém a fé que constrói as grandes obras. O que nos resta para também lutar contra a desproporção abissal no modo como as livrarias promovem o livro descartável e o produto importado? Resta o grito. Um grito milenar que soa mais forte quando é repetido. Um grito que se une a outros gritos. O grito dos que não curvaram o espírito. Grito de repulsa. Grito de quem não será colonizado. Grito de independência. Grito que, invariavelmente, traz a mudança. Na rendição do escritor às frivolidades do Mercado Editorial é que se dá o encontro entre Fausto e Mefistófeles, é quando a literatura perde a alma. Publicado originalmente em 16/09/2014 na edição 816, Observatório da Imprensa
  • 41. Outros papos... ....mas afins E os 20 poemas inéditos do Pablo Neruda? A Fundação Pablo Neruda anunciou em junho de 2014 o encontro de 20 poemas inéditos do prêmio Nobel de Literatura chileno em caixas com manuscritos de obras do poeta, que os mesmos seriam publicados em um livro no fim do ano. Parece-nos que no Brasil nada foi publicado até hoje. São seis poemas sobre amor e mais 14 de outros temas escritos a partir de 1956. Os textos foram cuidadosamente recolhidos e verificados em um trabalho que se estendeu por mais de dois anos. A fundação explicou que a descoberta ocorreu depois de um estudo rigoroso de uma coleção de manuscritos da obra de Neruda, papel por papel, com o objetivo de fazer um catálogo mais completo do que existia na biblioteca da entidade. Foi durante estes trabalhos que a fundação constatou que havia cadernos nos quais Neruda escreveu poemas que, posteriormente, destinou a diferentes livros. Mas também foram encontrados poemas que não apareciam em nenhuma das publicações, nem em compilações posteriores. Em seguida, o material foi submetido a novas revisões para ter a segurança de que eram realmente inéditos. "Não foi possível determinar a data de todos esses poemas, porque nem todos têm a indicação da data em que foram escritos, pois o poeta colocava a data só às vezes", disse o diretor da biblioteca da Fundação Pablo Neruda, Darío Oses. "Sim, é possível associar muitos dos poemas a algumas épocas, por exemplo aquela na qual Neruda estava escrevendo suas odes, que finalmente publicou em quatro livros", acrescentou. A fundação afirmou que entregou os poemas ao seu agente, que contratou o grupo Planeta para a publicação. O autor de "Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada" morreu em 23 de setembro de 1973, duas semanas depois do golpe militar que levou Augusto Pinochet ao poder. Certa agência de notícias afirmava em 18.06.2014 que: A publicação dos 20 poemas inéditos deve ocorrer no fim deste ano, coinci- dindo com a comemoração dos 110 anos do nascimento do poeta chileno A relevância dos poemas reside no fato de que foram escritos depois de Canto Geral(1950), época da maturidade de Neruda. Antes desses, apenas dois trabalhos inéditos tinham sido encontrados – O Rio Invisível (1980), que incluía poesia e prosa da juventude, e seus poemas de adolescência (Cadernos de Temuco, 1996). O poeta e acadêmico Pere Gimferrer, que está empenhado na publicação dos novos inéditos, acredita que nos novos poemas estão “o poder imaginativo, a transbordante plenitude expressiva e o mesmo dom, a paixão erótica e amorosa” de Neruda. “Ali se encontra o mesmo Neruda de Odas Elementales e de La Barcalora”, diz. A editora Seix Barral adiantou nesta quarta um fragmento de um poema sem título, escrito em 1964, mesmo ano em que é publicado Memorial de Isla Negra: "Reposa tu pura cadera y el arco de flechas mojadas extiende en la noche los pétalos que forman tu forma que suban tus piernas de arcilla el silencio y su clara escalera peldaño a peldaño volando conmigo en el sueño yo siento que asciendes entonces al árbol sombrío que canta en la sombra Oscura es la noche del mundo sin ti amada mía, y apenas diviso el origen, apenas comprendo el idioma, con dificultades descifro las hojas de los eucaliptos"
  • 42. Mar de outrora e poemas de agora O livro é dividido em duas partes, que conta com fotos de Patrícia Barbosa e do próprio autor. A primeira parte, O mar de outrora, tem o mar como ponto de partida, para então cair em reflexões acompanhadas de referências, requintadas com um toque de francês. Na segunda parte, Poemas de agora, os textos foram escritos em Paris, no Rio de Janeiro, Nova York, Chile e outros lugares, trazendo linhas ora bem-humoradas, ora reflexivas”. Diz o próprio autor no texto- introdução: “Mar onde jaz sal e sol, céu tombado. O mar onde me aprofundar. Vertente, voragem, vértice, vórtice, vertigem. Mosaico de memórias, nele nado. La mermêléeausoleil, o mar lambuzado de luz, de tarde e eternidade, o mar que Rimbaud me roubou. Nele nado. O mar ao qual novamente retorno e retomo nesse longo poema que ficou meio perdido em meu livro minas em mim e o mar esse trem azul. Minas-mar-memória. O mar e seus tropeços, o mar-em-mim e seu recomeço. Minas marejando, ritornelo, delta, infância. O mar que não era mar levou-me ao mar de papel, mar da memória, mar- palimpsesto. De quebra(mar) alguns novos poemas que bateram na areia. Essa é minha praia”. O poeta cataguasense Antônio Jaime Soares analisa no texto de orelha: “A primeira parte deste livro é um marzão poépico minuciosamente esquadrinhado por Mariana Cândida e Maria José Ladeira, no posfácio, e por W. J. Solha, no prefácio. Na segunda, continua “o mar mar/- telando nas pedras” e na cabeça do Werneck, entre voos transoceânicos, destaco “Mauro-Niemeyer: nuvens” – contido, rimas toantes, a palavra arquiteto usada como verbo, surpresa. E “Duas faces” (compõe/põe com, pano/panorama – bonitas aliterações). “Madrugaurora”, diz ele noutro poema, outro saque de craque. Em “Paris/Patrícia” o nome dela coincide com o da personagem de “Acossado”, de Godard. Passeios revividos em Santiago, Nova Iorque, Barcelona e onde mais estiver, com “aquela que me namorama”. Ao fim dos voos nupciais ele pousa no seu ninho-livro propondo “um poema que saia de mim como um sopro de amor sem fim”. Em Ronaldo Werneck – escreve o ensaísta W.J. Solha no prefácio do livro – é tudo muito rápido, non finito, à base do meia palavra basta, impressionista. Van Gogh disse um dia ao seu irmão Théo: “A natureza me contou algo, falou comigo, e anotei isso em estenografia. No meu estenograma pode haver palavras indecifráveis – erros ou lacunas – no entanto resta alguma coisa do que o bosque, a praia ou a figura me disseram”. Parece-me que ele falava de O Mar-Em-Mim, que nosso poeta reapresenta na primeira parte deste volume inteligentemente intitulado o mar de outrora & poemas de agora. Ronaldo Werneck se serve, como em obras anteriores, de um trabalho virtuosístico em cima da palavra. Em Fogalegre, um dos poemas rapidíssimos de agora, brinca com o nome de Audrey Hepburn – happy, rap, help, burn– , tal como Shakespeare, quatrocentos anos antes, pusera sua assinatura em Antonio e Cleópatra, ao dizer que alguém, como um animal, shakeshisears. É com a mesma técnica que Werneck lamenta o “mar que rimbaud me roubou”. Concurso de poesia O Sebo Aluados, sob a batuta do intrépido Luciano, promove anualmente um concurso de poesias. O último teve seu resultado anunciado em 13.12.2014, data de aniversário do sebo. A vencedora foi a Vanessa Barbosa com o poema que vocês já viram em páginas anteriores, aqui. Ele promete que este ano tem mais. Fiquem atentos. No Clube de Leituras “Nossas Causas” Depois de A Arte do romance de Milan Kundera, dia 27.02.205, o pessoal reuniu-se para discutir A menina sem palavra de Mia Couto em 28.03.2015. Já estão agendados: Flores Artificiais de Luiz Ruffato dia 30.04.2015 e Assunto Encerrado de Italo Calvino, ainda sem data.
  • 43. Silvério Costa Jornal SulBrasil – Chapecó - SC Crônicas de Pataca inteira “Fantasias de Meia Pataca”, de José Antonio Pereira, de Cataguases – MG é um livro de crônicas que se preza, Não só pela diversidade unívoca, em estado latente, mas também pela qualidade, já que a crônica, segundo alguns despeitados, é considerada uma literatura sem gravata, que padece da fugacidade. Ledo engano, pois o José A. Pereira é um notável representante desse gênero literário, que consagrou grandes nomes como Rubem Braga, por exemplo. O autor dá um mergulho para dentro de si mesmo, trazendo à superfície um conjunto de crônicas que resgata a memória da pequena cidade (ou seria vila?) de Cataguases, numa linguagem despojada, irônica, que mostra os encontros e desencontros da vida, ao retratar o dia a dia de certas pessoas do seu meio. São textos, portanto, identificados com o seu universo, fruto da observação e da convivência, que revelam a força das imagens (fanopeia) e o despojamento estilístico, dando- lhes um toque de genialidade, porque fogem da linearidade afetada para se tornarem singulares e fiéis, no que tangem aos fatos e ao seu processo criativo. Trata-se, pois, de um livro que conta pedaços da sua própria história, ou seja, é o registro histórico da sua própria vida e/ou de outros por ele vivenciada. É uma narrativa que leva em conta o texto e o contexto, muito bem alicerçados, independentemente dos temas. O autor é extremamente perspicaz e sabe como dar vida e colorir o imaginário do leitor, ou não fosse ele de uma terra pródiga na revelação de grandes escritores e poetas, como Ronaldo Cagiano, P. J. Ribeiro, Aquiles Branco e tantos outros, que dignificam as Letras Brasileiras. Segue abaixo uma das crônicas do livro que mexe na parte que me toca, que é a nacionalidade portuguesa! Vejam... Alguém sabe do “Ilha desconhecida”? Apareceu no bar da esquina, conduzido pelas mãos do Vanderlei Pequeno, que o encontrara, junto a um amontoado de lixo, em uma rua central de Juiz de Fora. Curiosamente, é aquela cidade, tida pelo escultor Amílcar de Castro, como a Lisboa mais próxima do seu quintal. Talvez seja essa semelhança que levou Murilo Mendes a optar pelo original, preferindo as margens do Tejo às barrancas terceiro-mundistas do Paraibuna. Mas o nosso abandonado em Juiz de Fora migrou para Cataguases. Apresentava no “rosto” as marcas da violência de ser atirado às ruas. Puído e com afundamentos pelo lombo, uma nódoa arredondada deixada por molho barato, deve ser aqueles ácidos extratos de tomates ou azedos catchupes, o que dá no mesmo. O coitado trazia outras manchas horríveis, de um amarelo fecal, que pareciam ter sido feitas por respingos de mostarda estragada. O primeiro a sair com ele do bar foi o Emerson, passando alguns dias pelos lados da Pampulha. Voltou ao bar, desaparecendo para a Granjaria com o Altamir. Esteve em minha casa, no Baixo Haidée, por uma semana. Voltou à Pampulha em companhia do Luiz Lopez. Reapareceu no bar por alguns dias e desapareceu. Naqueles dias, ele entre nós, discutimos muito sobre os portugueses, suas aventuras marítimas e a venturosa literatura. Emerson começou lá pelo Camões e a epopeia dos Lusíadas, alguém comentou em contraponto a incrível poesia de Mensagem, do Fernando Pessoa, enquanto outro cantarolava: “... navegar é preciso... viver não é preciso...” tentando imitar o sotaque do Caetano Veloso. Quem também apareceu nas conversas foi Miguel Torga, que quando ainda era conhecido apenas como Adolfo Correia da Rocha saiu de Trás-os-Montes “singrou” o Atlântico, para trabalhar numa fazenda aqui na Zona da Mata e estudar no Colégio Leopoldinense; é isso mesmo, a Leopoldina onde o coitado do Augusto dos Anjos encerrou a “carreira” e está enterrado. Até o Henrique Frade foi lembrado, não pela literatura, mas pela “ficção” de ser o único atleta de origem lusitana daquele time de peladeiros do Chico Buarque. Circunavega para lá, circunavega para cá, chegamos a José Saramago, lembraram-se da presença dele em uma edição do Fórum Social de Porto Alegre, num discurso quixotesco, permeado de ceticismo e descrença, metendo o pau no utopismo. A vocação de navegantes dos portugueses, que nunca se apaga, ainda que nos pareça nos dias de hoje que esta chama se mantém mais acesa na memória do que nos oceanos, leva-nos a lembrar do nosso desaparecido. Será que nosso amigo, feito a caravela, um bocado modificada pelos arranjos e adaptações, amarrotada, continua seu propósito, singrando os mares dos saberes ou os oceanos das ignorâncias, segundo as vontades de Netuno? Talvez só o Vanderlei Pequeno saiba por onde ou com quem anda aquele livro que ele nos apresentou, o ótimo O conto da ilha desconhecida do José Saramago.