Mais de mil e seiscentos trabalhadores escravos, muitos indígenas, foram libertados em 2007 em usinas de cana-de-açúcar em Mato Grosso do Sul. As usinas continuam recebendo incentivos fiscais do governo mesmo tendo sido flagradas com trabalho escravo e condições degradantes. O estado possui a segunda maior população indígena do Brasil e está entre os maiores produtores de cana-de-açúcar, o que coloca os indígenas em situação de vulnerabilidade e exploração.
Incentivos fiscais para usinas de cana-de-açúcar acusadas de exploração de índios em MS
1. Desenvolvimento Insustentável Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 6
Senzala indígena do etanol
Mais de mil e seiscentos trabalhadores escravos foram libertados em 2007 em Mato Grosso do Sul.
Muitos eram índios. Todos trabalhavam em usinas de cana-de-açúcar. Essas usinas, mesmo “sujas”, conti-
nuam recebendo incentivos fiscais. E o Estado, que apóia essas implantações, é palco de cenas de explora-
ção e ocupa o sexto lugar no ranking de libertações de trabalhadores escravos no Brasil.
Marcelle Souza e tos, superlotados, estavam em situação menta Maucir Pauletti, coordenador da da para qualquer tipo de trabalho”.
Nathaly Feitosa precária. O lixo espalhado pelo chão Comissão Permanente de Investigação Com a falta de terra, de emprego
se misturava a moscas e outros insetos. e Fiscalização das Condições de Tra- e a miséria nas aldeias, os índios que
Os sanitários exalavam mau cheiro e balho do Estado de Mato Grosso do ainda não trabalham para uma das oito
No dia 13 de novembro de 2007, não tinham condições mínimas de uso. Sul, que acompanhou a interdição da usinas em funcionamento, provavel-
fiscais do Grupo Especial de Fiscaliza- O esgoto corria a céu aberto e faltava Debrasa. mente vão cortar cana para outras 43
ção Móvel do Ministério Público do água para o banho. Mato Grosso do Sul possui a se- empresas que vão se instalar no estado
Trabalho (MPT) resgataram 1.011 ín- “A situação era absurdamente gunda maior população indígena do até 2012.
dios em trabalho degradante na Usina dantesca, em relação às condições de Brasil. Esses índios formam o que Além do aumento da quantidade
Debrasa, empresa da Cia. Brasileira de trabalho e de submissão dos trabalha- Pauletti denomina “favelas rurais”, de usinas, MS subiu em outra estatísti-
Açúcar e Álcool (CBAA), em Brasi- dores nestes alojamentos após uma jor- “grandes estoques de mão-de-obra ba- ca. É agora o sexto no ranking de li-
lândia. Quando chegaram, os alojamen- nada exaustiva no corte de cana”, la- rata e desqualificada que está prepara- bertações de trabalhadores escravos no
“Tudo não passou de uma grande palhaçada” José – Em 1991 e 1996, você tem esses dio, que a Funai tinha exigido para não
Em entrevista ao Projétil, José Pessoa de Queiroz Bisneto, presidente mesmos problemas em todas as usi- misturar índio e branco. A de 2005 foi
da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool em Brasilândia e do Sindalcool nas do Estado. A relação entre o índio quando destruímos o alojamento dos
(Sindicato dos Produtores de Álcool do MS) se defende e fala sobre as e a empresa vem se alterando, e a últi- índios e passamos a trazer para o dos
libertações na Debrasa, criticando a fiscalização. ma mudança foi em 1997. brancos.
Projétil – Por que foi encontrado tra- tar à mesa, ele põe o prato no colo e Projétil – E em 2005? “Alguns dos que Projétil – Por que contratar
balho degradante na Debrasa? prefere sentar no chão. Não podemos José – 2005? Não conheço estavam na mão-de-obra indígena?
José Pessoa - É muito simples, há 20 aculturá-los. Tudo não passou de uma essa... fiscalização José – Em 1997, depois do últi-
anos a empresa emprega índio e ín- grande palhaçada de alguns que esta- queriam se mo conflito, resolvemos que
dio é muito visado em MS. Fomos vam lá para se auto-promoverem. Projétil – A vistoria desse ano auto-promover” não íamos mais contratar.
fiscalizados três vezes em 2007, se relatou condições degra- Compramos colheitadeiras
os alojamentos não são condizentes, Projétil – O Sr. disse que é novidade dantes e instalações precári- mecânicas. Em 1999 paramos
como que há 20 anos eles servem? classificar os alojamentos como degra- as. A empresa disse que iria demolir os de contratar índios e a colheita passou
Disseram que os índios pareciam dantes. Mas desde 1991 há relatórios alojamentos e construir novos. a ser mecânica. Em 2000, o governa-
animais comendo no chão. Só que com as mesmas características. Em José – Nós demolimos. Eram três alo- dor José Orcírio Miranda, do PT, nos
na hora do almoço em vez de sen- 1991, 1996, 2005... jamentos. Um só para trabalhador ín- procurou, fez um apelo para voltar a
2. 7 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS Desenvolvimento Insustentável
Brasil, segundo relatório da Comissão lhorar as condições da população, só rismo (Seprotur), “as 8 usinas em fun- desde 1991.
Pastoral da Terra. Em 2006, foram 29 que ele não pode vir com o aumento cionamento em MS e as 16 já em im- Nos relatórios são apresentadas
trabalhadores libertados. Em 2007, o da exploração do trabalhador e com plantação receberam benefícios fiscais, deficiências na segurança e saúde do
número saltou para 1.634, resultado da a degradação do meio ambiente”. com exceção das de Quebra-Coco e trabalhador, nos refeitórios e aloja-
soma das libertações na Debrasa e na Empresa “suja” Sonora”. mentos. Em vários deles há observa-
Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda Mas a exploração é fato e o que Diante do incentivo estadual, o ções que enfatizam que “essa é a úni-
(Dcoil), em Iguatemi. O estado só fica impressiona é que muitas indústrias procurador do trabalho Jonas Ratier ca destilaria que não tem realizado ne-
atrás de Tocantins, Bahia, Maranhão, mesmo “sujas” e reincidentes conti- Moreno enfatiza que “é legítimo e nhum esforço para melhorar as con-
Mato Grosso e Pará. nuam recebendo incentivos fiscais do engrandecedor que um empreendi- dições de trabalho e vida dos traba-
Todos os empregados da governo. Segundo a Organização não- mento se instale em uma região e tra- lhadores, especialmente as de mora-
Debrasa e um terço dos funcionários governamental Repórter Brasil, o ga progresso, mas não basta ter o dia dos indígenas”.
da Dcoil eram indígenas. “A popula- Como meio de tentar barrar que
ção daqui do estado não se sujeita a desenvolvimento sucro-alcooleiro ve-
este tipo de trabalho, que por si só já nha junto com exploração, o deputa-
é insalubre”, declara Egon Heck, co- do Pedro Kemp (PT) apresentou em
ordenador do Conselho Indigenista fevereiro deste ano, na Assembléia
Missionário (CIMI) em MS. “Isso faz Legislativa, um projeto de lei que can-
com que as usinas contratem índios e cela a concessão de serviços e incenti-
muita gente do Nordeste. Essas pes- vos fiscais para empresas com traba-
soas ficam mais vulneráveis porque es- lho análogo à escravidão. “Nesse mo-
tão longe de casa e acabam se subme- mento, eu acho que entra a obrigação
tendo ao trabalho escravo”. do Estado de suspender os incenti-
Diante da expansão das usinas, o vos fiscais e cobrar dessas empresas
advogado Maucir Pauletti teme a re- o cumprimento das obrigações traba-
lação entre avanço da cana e trabalho lhistas”.
escravo. “Se hoje já temos problemas “Explorar a de mão-de-obra in-
aos montes, com as usinas que virão dígena de maneira discriminatória não
isso vai se tornar um caos. Ou colo- garantindo a devida remuneração e os
cam quatro vezes mais fiscais do tra- demais direitos trabalhistas”. Esta é
balho, procuradores, juízes e varas do uma das definições de trabalho escra-
trabalho, ou isso aqui se torna terra de vo presentes no projeto, que destaca
ninguém”. a especificidade do trabalho indígena.
Pelo levantamento da Compa- Só que a aprovação do projeto está
nhia Nacional de Abastecimento ameaçada. Uma estranha coincidência
(Conab), Mato Grosso do Sul será o Trabalhadores aglomerados em instalações precárias revela que parte do dinheiro arrecado
7º estado com maior produção de nas campanhas de alguns deputados es-
cana-de-açúcar do país na safra 2007/ orçamento estadual prevê a renúncia posto de trabalho, porque se ele for taduais foi financiado por empresas do
2008 com 15,8 milhões de toneladas. de R$ 48,5 milhões na arrecadação de indigno é melhor não tê-lo”. Ele foi setor sucro-alco-oleiro. Das 16 presta-
“Esse crescimento me assusta”, reve- impostos que incidiriam sobre as em- o coordenador da operação do MPT ções de conta do Tribunal Regional Elei-
la Luís Antônio Camargo de Melo, presas de álcool combustível em 2008. na Debrasa. E não foi a primeira vez toral de MS analisadas pelo Projétil, de
subprocu-rador-geral do Ministério Conforme a assessoria de im- que a CBAA-Brasilândia foi pega 24 deputados, a metade apresentou ar-
Público do Trabalho. “Sou amplamen- prensa da Secretaria de Estado de De- com trabalho escravo e condições recadação de dinheiro de empresas de
te favorável ao desenvolvimento do senvolvimento Agrário, da Produção, degradantes. O histórico de inspeção açúcar e álcool totalizando mais de meio
setor, porque gera divisas e vai me- da Indústria, do Comércio e do Tu- na indústria aponta irregularidades milhão de reais.
Continua
contratá-los porque era um problema Projétil - Mas e os salários atrasados? gurança do trabalho, nem eram condi- José - Ainda participamos do pacto por-
tantos índios na miséria. Então, em José - Não sei disso não. Podia ser que ções precárias. A única coisa que eles que acreditamos nele. Esse episódio na
2001, redistribuímos as máquinas e estivessem uns dias, mas não foi só a viram de fato foi sujeira, cano rasgado, Debrasa nós não achamos que seja tra-
voltamos a contratar. Para nós era gente. Isso não tem nada a ver com colchão rasgado. Isso acontece porque balho nem escravo, nem degradante.
muito melhor colher com as máqui- trabalho escravo e degradan- as vezes o cara rasga com É um benefício social empregá-los. O
nas. Mas depois desse episódio de 2007, te. O rapaz tá trabalhando, o facão. Em maio você Ministério Público deve ir às aldeias e
estamos repensando. Se não contratar- pelo menos não está desem- “Não existia pinta, fica tudo limpinho, fazer o mesmo escândalo com a Funai,
mos mais, ninguém vai poder dizer que pregado. privação de mas até novembro o cara reclamar das condições degradantes
somos escravagistas de índio. Acho que liberdade, nem vai usando e às vezes ras- para ver que lá as coisas são muito pi-
quem perde nisso é o índio. Os caras Projétil - Então por que os ín- vigilância” ga. Ainda mais sendo ín- ores do que em qualquer usina de Mato
que fizeram essa palhaçada toda, que dios foram libertados e os dio. É a única diferença. Grosso do Sul.
bem fizeram aos índios? Eles se demais não? A Comissão
intitulam libertadores dos índios, eu aponta condições precárias Projétil - Em 2005, a em- Projétil – O que o Sr. tem a dizer sobre a
acho até um absurdo usar esse termo nos alojamentos dos indígenas e para presa era signatária do Pacto Nacional declaração: “Perto da Debrasa, qualquer
‘libertar’. Libertar de quê? Não tinha os outros só faltavam algumas ferra- de Erradicação do Trabalho Escravo, usina é o céu”.
vale, não existia privação de liberdade, mentas de segurança. mas foi retirada após a fiscalização de José - Manda eles irem nas outras usinas,
nem vigilância. José - Nem faltavam ferramentas de se- 2007. porque eu acho que não estão indo não.
3. Desenvolvimento Insustentável Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 8
Do Quilombo
Foto: MPT/ MS
A luta pela terra entre comunidades quilombolas
e fazendeiros
Adriane Mascaro nião fraterna e livre, solidariedade,
convivência, comunhão existencial”.
Em 1740, reportando-se ao rei A relação harmônica com a na-
de Portugal, o Conselho Ultramari- tureza é outro fator inerente à histó-
no valeu-se da seguinte definição de ria das comunidades quilombolas,
quilombo: “toda habitação de negros pois suas ações cotidianas estão liga-
fugidos, que passem de cinco, em das ao meio ambiente. A questão do
parte despovoada, ainda que não te- território é, portanto, a base para a
nham ranchos levantados e nem se concepção de suas relações e mani-
No corte de cana, a achem pilões nele”. Mas não é assim festações culturais, capaz de resgatar
mão-de-obra indígena é que as mais de 2.000 comunidades sua história e manter suas tradições.
quilombolas brasileiras se identificam, Mas, como terra é sinônimo de poder,
considerada de alta ou seja, com um passado de rebelião a garantia de posse desses territórios é
produtividade e pouca e isolamento ou simplesmente pela motivo de discórdias entre comunida-
exigência de alimentação cor da pele. O poeta negro Abdias des quilombolas e fazendeiros no Bra-
e hospedagem do Nascimento define bem este con- sil, inclusive no Mato Grosso do Sul,
ceito: “Quilombo não significa escra- principalmente depois da aprovação do
vo fugido. Quilombo quer dizer reu- Decreto 4.887 em novembro de 2003.
Direito de ser diferente
Recebendo pouco e com
um trabalho insalubre, o indí-
gena é, para as usinas, uma
mão-de-obra com boa lucra-
tividade. “Eles usam a mão-
de-obra indígena porque tem
alta produtividade, pouca exi-
gência de alimentação e hos-
pedagem, e com eles o
usineiro tem mais controle”,
revela o coordenador do CIMI/MS,
Egon Heck. “Quem faz a intermedia-
ção entre a usina e os indígenas geral- balho são baseados na Convenção
mente é um índio que se destaca na al- 169 da Organização Internacional do
deia, chamado cabeçante. Ele é respon- Trabalho (OIT) que garante aos po-
sável por reunir e coordenar um gru- vos indígenas o direito de conservar
po de 40, 50 índios que vai trabalhar seus costumes diante das relações de
na usina. O que facilita e faz com que trabalho.
haja um tipo de controle”, explica Mesmo assim, os impactos desse
Egon. tipo de trabalho são sentidos nas aldei-
O líder da comunidade indígena as. “Está dando muitos problemas de
de Dourados, Anastácio Peralta, con- saúde, gripe, diarréia e câimbra. O tra-
firma a existência desses cabeçantes. balho é forçado é o homem chega em
Mas, segundo ele, “essa relação entre casa sem disposição para nada, nem
usinas e a mão-de-obra indígena é uma mesmo para a família”, diz Peralta.
faca de dois gumes: como na aldeia fal- Enquanto isso, diante deste qua-
ta trabalho e não temos terra, a solu- dro de vulnera-bilidades e violações, o
ção é ir para a cana”, declara. procurador Cícero Rufino afirma:
Para evitar que o trabalho pre- “perto da Debrasa, qualquer usina é o
judique a relação do indígena com céu”. E ainda ameaça, “se voltarmos
sua comunidade, o Ministério Públi- naquele alojamento, naquela senzala,
co do Trabalho adota procedimen- com possibilidade de trabalho escra-
tos específicos na garantia de seus di- vo, vamos pedir para que fechem a em-
reitos. Os acordos e contratos de tra- presa, seja o que for”.