Este documento discute como desenvolver a percepção matemática em crianças da educação infantil, propondo explorar três campos (espaço, número e medida) e trabalhar com noções básicas e processos mentais como comparação e classificação. Também enfatiza a importância de integrar esses elementos e variar as atividades para favorecer a compreensão das crianças.
A percepção matemática ou por onde começar - Sérgio Lorenzato
1. Capítulo 5
A PERCEPÇÃO MATEMÁTICA
ou por onde começar?
A fim de auxiliar o professor na organização de situações que permitam à criança observar,
refletir, interpretar, levantar hipóteses, procurar e encontrar explicações ou soluções, exprimir
ideias e sentimentos, conviver com os colegas, explorar melhor seu corpo, elaboramos a proposta
a seguir. Ela visa ao desenvolvimento integral da criança, como não poderia deixar de ser, mas
possui propositalmente um componente direcionado à futura aprendizagem de matemática.
Por ora, trata-se apenas de favorecer o desenvolvimento do que chamamos de senso
matemático infantil, o que pode ser feito por meio de explorações do campo matemático. No
entanto, é preciso, inicialmente, observar que esse importante trabalho de exploração matemática
a ser proposto às crianças sofre duas diferentes contribuições negativas, ambas externas a elas,
mas que podem lhes afetar fortemente em seu desenvolvimento: a primeira vem dos próprios
professores, que não incluem no processo de exploração matemática inúmeras atividades, por
julgá-las muito simples, e, portanto, desnecessárias ou inúteis à aprendizagem; a segunda vem
dos pais, que cobram da pré-escola o ensino de numerais e até mesmo de algumas “continhas”.
Atender a esse pedido é provavelmente dar à criança um péssimo começo para o longo caminho
da aprendizagem do importante significado que a matemática terá em sua vida; seria fazer como
o pedreiro que se põe apressadamente a construir as paredes de uma casa sem ter preparado o
alicerce.
Surge, então, uma questão fundamental: por onde a educação infantil deve começar o
trabalho de desenvolvimento do senso matemático das crianças? Em outras palavras, quais
os assuntos a serem abordados e como podemos tratá-los1?
Toda criança chega à pré-escola com alguns conhecimentos e habilidades no plano físico,
intelectual e socioafetivo, fruto de sua história de vida. Essa bagagem, que difere de criança para
criança, precisa ser identificada pelo professor e, se possível, com o auxílio dos pais; o respeito a
essa experiência pessoal é fator determinante para que sejam atingidos os objetivos desejados.
Enfim, temos de começar por onde as crianças estão e não por onde gostaríamos que elas
estivessem.
Nossa proposta, seguindo a tendência internacional, sugere realizar a exploração
matemática em três campos aparentemente independentes: o espacial, das formas, que
apoiará o estudo da geometria; o numérico, das quantidades, que apoiará o estudo da
aritmética; e o das medidas, que desempenhará a função de integrar a geometria com a
aritmética.
1
Os grifos no decorrer do texto são nossos.
2. Até aqui, foram estabelecidos dois pontos básicos em nossa proposta: o de aproveitar os
conhecimentos e habilidades de que as crianças são portadoras e o de explorar os três campos
matemáticos. Mas, em sala de aula, por onde começar as atividades, afim de que tenhamos uma
probabilidade maior de sucesso? Eis, então, nosso terceiro ponto: começar o trabalho pelas
noções de:
grande / pequeno mais / menos aberto / fechado
maior / menor muito / pouco em cima / embaixo
grosso / fino igual / diferente direita / esquerda
curto / comprido dentro / fora primeiro / último / entre
alto / baixo começo / meio / fim na frente / atrás / ao lado
largo / estreito antes / agora / depois para frente / para trás / para o lado
perto / longe cedo / tarde para a direita / para a esquerda
leve / pesado dia / noite para cima / para baixo
vazio / cheio ontem / hoje / amanhã ganhar / perder
devagar / depressa aumentar / diminuir
Essas noções devem ser introduzidas ou revisadas verbalmente e por meio de diferentes
situações, materiais manipuláveis, desenhos, histórias ou pessoas. Essa diversidade de modo no
tratamento de cada noção é que facilitará a percepção do significado de cada uma delas. Como o
tratamento está no plano verbal, torna-se favorável a utilização de indagações, tais como: Como
ele é? Onde ele está? O que está acontecendo? Onde acontece isso? Quando aconteceu? Como
eles são diferentes? Qual é o maior? Qual deles possui mais? Para onde ele foi?..., cujas
respostas recaem diretamente nas noções mencionadas anteriormente.
Seja qual for a noção e o campo matemático (espaço, número, medida) que estiver sendo
trabalhado, haverá sempre uma relação direta com um dos conceitos físico-matemáticos
seguintes:
tamanho quantidade posição volume
lugar número medição comprimento
distância capacidade operação massa
forma tempo direção
Por isso, é importante que o professor compreenda claramente tais conceitos, para que ele
possa ter segurança na condução das atividades com as crianças.
3. É preciso ressaltar que, para o professor ter sucesso na organização de situações que
propiciem a exploração matemática pelas crianças, é também fundamental que ele
conheça os sete processos mentais básicos para aprendizagem da matemática, que são:
correspondência, comparação, classificação, sequenciação, seriação, inclusão e
conservação. Se o professor não trabalhar com as crianças esses processos, elas terão grandes
dificuldades para aprender número e contagem, entre outras noções. Sem o domínio desses
processos, as crianças poderão até dar respostas corretas, segundo a expectativa e a lógica dos
adultos, mas, certamente, sem significado ou compreensão para elas. Vejamos o que significa
cada um desses processos, que podem se referir a objetos, situações ou ideias:
1. Correspondência: é o ato de estabelecer a relação “um a um”. Exemplos: um prato para
cada pessoa; cada pé com seu sapato; a cada aluno, uma carteira. Mais tarde, a
correspondência será exigida em situações do tipo: a cada quantidade, um número
(cardinal), a cada número, um numeral, a cada posição (numa sequencia ordenada),
um número ordinal.
2. Comparação: é o ato de estabelecer diferenças ou semelhanças. Exemplos: esta bola é
maior que aquela; moro mais longe que ela; somos do mesmo tamanho? Mais tarde,
virão: Quais destas figuras são retangulares? Indique as frações equivalentes.
3. Classificação: é o ato de separar em categorias de acordo com semelhanças ou
diferenças. Exemplos: na escola, a distribuição dos alunos por séries; arrumação de
mochila ou gaveta; dadas várias peças triangulares, e quadriláteras, separá-las
conforme o total de lados que possuem.
4. Sequenciação: é o ato de fazer suceder a cada elemento um outro sem considerar a
ordem entre eles. Exemplos: chegada dos alunos à escola; entrada de jogadores de
futebol em campo; compra em supermercado; escolha ou apresentação dos números
nos jogos loto, sena e bingo.
5. Seriação: é o ato de ordenar uma sequência segundo um critério. Exemplos: fila de
alunos, do mais baixo ao mais alto; lista de chamada de alunos; numeração das casas
nas ruas; calendário; loteria federal (a ordem dos números sorteados para o primeiro ou
quinto influi nos valores a serem pagos); o modo de escrever números (por exemplo,
123 significam uma centena de unidades, mais duas dezenas de unidades, mais três
unidades e, portanto, é bem diferente de 321).
6. Inclusão: é o ato de fazer abranger um conjunto por outro. Exemplos: incluir ideias de
laranjas e bananas, em frutas; meninos e meninas, em crianças; varredor, professor e
porteiro, em trabalhadores, na escola; losangos, retângulos e trapézios, em
quadriláteros.
7. Conservação; é o ato de perceber que a quantidade não depende da arrumação, forma
ou posição. Exemplos: uma roda grande e outra pequena, ambas formadas com a
4. mesma quantidade de água; uma caixa com todas as faces retangulares, ora apoiada
sobre a face menor, ora sobre outra face, conserva a quantidade de lados ou de cantos,
as medidas e, portanto, seu perímetro, área e volume.
Os exemplos aqui apresentados devem ser interpretados como sugestões para abordagem
dos processos mentais em sala de aula, e não como conteúdos matemáticos para a educação
infantil. É importante lembrar que o fato de crianças terem uma mesma idade não garante que
apresentem a mesma maturidade cognitiva em alguns desses processos. Essas defasagens
momentâneas desaparecerão com o desenvolvimento de atividades diversificadas, conforme
sugestões apresentadas nas páginas seguintes.
Convém ainda salientar que os processos aqui descritos não estão restritos a um
determinado campo de conhecimento, na medida em que podem interagir com qualquer situação
do cotidiano. Na verdade, eles são abrangentes e constituem-se num alicerce que será utilizado
para sempre pelo raciocínio humano, independentemente do assunto ou tipo de problema a ser
enfrentado.
Antes de prosseguir com a apresentação de algumas considerações sobre os três campos
matemáticos a serem explorados na educação infantil (número, espaço e medida), é necessário
ressaltar a importância da integração entre os assuntos até aqui abordados. Foi por questão
didática e para facilitar o planejamento do professor de educação infantil que esses mesmos
assuntos foram apresentados em forma de itens, ou seja:
• Quem é a criança pré-escolar (características, conhecimentos e habilidades);
• Que campos matemáticos devem ser explorados na educação infantil (geometria, medição
e aritmética);
• Que noções devem ser trabalhadas (alto/baixo, mais/menos...);
• Que conceitos devem ser desenvolvidos (tempo, massa, distância...);
• Quais são os processos mentais básicos para aprendizagem da matemática
(correspondência, classificação...).
Embora cada um desses assuntos tenha sua especificidade, todos eles devem estar
presentes no planejamento do trabalho do professor, pois tão importante quanto trabalhar com
todos esses fatores é fazê-lo de forma mesclada e integrada; é nessa integração que reside o
verdadeiro favorecimento didático para o progresso educacional da criança. E é justamente nisso
que se constitui a pré-matemática. Em sala de aula, essa integração aparece de forma mais
simples e natural possível. Por exemplo, ao se explorar o espaço, propomos a comparação de
formas; estamos assim usando a geometria e o processo mental de comparação; para expressar
medidas, utilizamos números (medição x conceito de número); podemos auxiliar a contagem
através do uso de figuras geométricas (conceito de número x geometria), e assim por diante.
5. Além da integração mencionada, é preciso trabalhar o mesmo assunto apresentando-o
e reapresentando-o diversas vezes, mas com a variação do contexto: assim, a comparação
aparece num primeiro momento para “verificar quem é a mais alta das crianças”; num segundo
momento, para descobrir “qual é a fileira mais comprida”; depois, para discernir “qual é a cor mais
parecida”, etc., trabalhando ora com pessoas, ora com objetos, ora com imagens, ora com
histórias. É justamente essa diversificação de atividades, experiências e contextos, a respeito de
um mesmo conceito, que favorece a formação do conceito que está sendo construído pela
criança.
Nesse sentido, o educador francês Vergnaud (1995) diz que todo campo conceitual é
constituído por:
a) Um conjunto de situações que, para dar significado a um conceito, devem ser distintas e
diferenciadas entre si e referentes ao mesmo conceito;
b) Um conjunto de invariantes presentes em diferentes e distintas situações, que indicam
constâncias, regularidades ou semelhanças. São os invariantes que dão significado ao
conceito;
c) Um conjunto de representações, que são linguagens e símbolos utilizados para representar
o conceito. São os significantes do conceito.
Finalmente, é imprescindível que o professor avalie constantemente seu trabalho, fazendo
a si próprio, frequentemente, questões do tipo:
• Como tenho abordado os assuntos que desejo desenvolver com meus alunos?
• As questões que são sugeridas estão auxiliando o aluno na (re)descoberta das noções que
quero propor?
• Tenho proporcionado a participação de todas as crianças, ouvindo-as e incentivando-as a
opinar?
• As atividades propostas estão adequadas às possibilidades de meus alunos?
• O que pretendo com cada atividade proposta?
• A integração dos assuntos está satisfatória?
• Há necessidade de rever a distribuição do tempo entre os vários “conteúdos”?
Referência Bibliográfica
LORENZATO, S. Educação Infantil e Percepção Matemática. Campinas, SP: Autores
Associados, 2006. p.23-28.