1) O artigo descreve o Encontro Internacional realizado em Paris para comemorar os 150 anos da publicação do Manifesto Comunista, que reuniu cerca de 1500 pessoas de diversos países.
2) No encontro, três principais abordagens foram identificadas: uma apologética do pensamento de Marx, uma aberta a revisões, e uma intermediária entre as duas.
3) O autor aponta desafios como a conjugação do internacionalismo com o respeito às particularidades locais e a ausência de jovens nos debates.
1. Um mundo a ganhar: O "Manifesto Comunista" faz
150 anos.
Daniel Aarão Reis Filho - Professor de História Contemporânea da UFF
Se Chico Buarque estivesse lá poderia cantarolar: quem não a conhece, não
pode mais conhecer, quem jamais a esquece não pode reconhecer. Mas não estaria
se referindo à porta-bandeira da escola de samba que virou bacana, e trocou a rua
pela galeria, mas ao encontro das diferentes correntes - e tradições - do que foi um dia
o movimento comunista internacional.
Leninistas, stalinistas, trotskistas, conselhistas, autonomistas,
luxemburguistas, maoistas, gramscianos, guevaristas, além de partidários de outros
ismos menos cotados: ali estavam eles, e, com eles, as várias - e numerosas - famílias
descendentes do pensamento e das referências de K. Marx. Em vez de anátemas,
congraçamento, no lugar de injúrias e excomunhões, troca ponderada de reflexões e
idéias, não mais a condenação de desvios, em nome da defesa de uma ortodoxia, mas
o elogio das diferenças, em prol do pluralismo, transformado em virtude. Há duas ou
três décadas, quem poderia imaginar uma reunião assim, congregando tamanha
diversidade? Pois aconteceu: o Encontro Internacional de Paris para comemorar os
150 anos de publicação do Manifesto Comunista (1848-1998), realizado entre 13 e 16
de maio passado, promoveu a realização do improvável.
A grandeza de alguns números do evento não deixa de impressionar: cerca de
1500 presentes, um terço deles proveniente de mais de 60 países; 37 mesas
redondas, com 280 participantes; 349 textos apresentados, publicados em anais que
reunirão 12 volumes (10 distribuídos ainda durante o encontro). Cerca de 60
brasileiros participaram, apresentando 31 artigos para o debate.
A partir de uma organização francesa - a Espaços Marx -, patrocinada por
quase duzentos intelectuais e lideranças políticas sindicais de diferentes concepções e
sensibilidades, formou-se uma rede de comitês nacionais, de modo geral não
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governamentais e apartidários, que atingiu os continentes: 16 na África, 10 na América
Latina, 2 na América do Norte, 11 da Ásia, 23 na Europa e 3 na Oceania.
Em torno de um pequeno - grande - texto, o Manifesto Comunista, escrito em
parceria por K. Marx e F. Engels, há exatamente um século e meio, reuniu-se esta
verdadeira massa crítica, com dois objetivos: elaborar diagnósticos renovados a
respeito de um sistema considerado de horrores, dominado pelas águas geladas do
cálculo egoísta, e debater e propor alternativas: em que direção? com que atores? que
emancipação humana? que revolução?
Seria verdadeiramente impossível dar conta do conjunto dos debates, mesmo
porque havia momentos em que se realizavam simultaneamente diversas mesas
redondas, cada qual congregando, em média, sete debatedores, sem contar as
perguntas e intervenções de uma platéia inquieta e crítica, também querendo participar
e deixar seu recado.
Do que me foi possível observar, no entanto, e ressalvada as inevitáveis
insuficiências e parcialidade de meu ponto de vista individual, destacaria, para além de
incontáveis nuanças, a existência de algumas propostas de abordagem. Não chegam,
ou não chegaram, a configurar tendências propriamente ditas, mesmo porque não se
tratou, em nenhum momento, de votar decisões ou resoluções. Mas configuram,
digamos, sensibilidades diferenciadas. Nomear estas propostas, ou qualificá-las, é um
exercício perigoso, sujeito a riscos e a injustiças, sobretudo porque, no futuro, se a
realização deste tipo de encontro for retomada, é possível que elas venham ainda a se
redefinir, a se decantar, reagrupando-se ou se fragmentando, de acordo com as
exigências da conjuntura, as opções tomadas ou os azares da vida. Feitas essas
ressalvas, impostas pela elementar prudência, destacaria, pelo seu sentido geral, três
grandes conjuntos de interpretações.
Um primeiro, bastante minoritário, apresentou-se com uma forte conotação
apologética. Para este grupo não se trata de rever criticamente o que Marx disse ou
escreveu, nem de atualizá-lo, segundo as exigências do atual momento e das
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experiências socialistas do século XX, mas de retomá-lo, e de aplicá-lo, sem deixar
brecha para leitura revisionistas. A velha pecha, cara a todas as ortodoxias,
reapareceu constantemente neste tipo de discurso. Algumas heranças tradicionais são
aqui reafirmadas e reivindicadas: o proletariado como classe revolucionária, por
excelência, o partido de vanguarda, o recurso à violência, a revolução anti-capitalista,
retomando-se o sentido das que forma realizadas ao longo deste nosso breve século,
embora admitindo-se inovações devidas a particularidades de tempo e de lugar. De
modo geral, mas nem sempre, os seus partidários provinham de partidos comunistas
que se mantiveram no poder, o que não deixa de ser paradoxal, considerando os
experimentos altamente heterodoxos (revisionistas no sentido próprio da palavra), de
que são palco tais países, adotados seja por convicção (caso chinês), seja pela
pressão das circunstâncias (caso cubano).
Num outro registro - e num outro extremo do espectro que se constitui no
Encontro – um segundo grupo apareceu aberto a todo o tipo de revisões e
aggiornamentos. Para os participantes deste conjunto, respeitadas as reflexões
teóricas básicas de Marx, que ninguém pretendeu desafiar, as novas alternativas
anti-capitalistas do século XXI devem, sem desprezar a presença e a força do
proletariado, incluir novos atores; imaginar outras formas de luta (das quais deve estar
excluído o recurso à violência); prever a participação de uma pluralidade de forças
sociais e político-partidárias; comprometer-se radicalmente com a democracia e os
valores democráticos, condenando-se, assim, as tradições associadas aos partidos
marxistas leninistas; e, finalmente, mas não menos importante, compreender o
processo de afirmação do socialismo como algo que se desdobra a longo prazo: certas
vozes chegaram mesmo, efetuando comparações com a história do capitalismo, a falar
em um processo multisecular, proposição que dificilmente obteria o entusiasmo dos
que atualmente têm fome e sede de justiça (no sentido próprio e figurado). Integravam
este grupo muitos partidos comunistas europeus, entre os quais, surpreendendo pela
abertura, o próprio partido comunista francês, que, sob a batuta de R. Hue, seu atual
líder, foi uma das principais formações políticas a emprestar apoio e a sustentar com
recursos a organização do encontro.
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No meio termo entre estes extremos, no centro - esta antipática mas
inescapável metáfora, quando se trata de debates políticos - um conjunto ainda pouco
definido, tateando veredas, uma nebulosa. Não tem compromisso com uma
recuperação esclerosada de Marx, mas ainda considera seu legado essencial como
diagnóstico do sistema capitalista atual e como previsão do futuro. Está disposta a
repensar a revolução anti-capitalista, mas não se dispõe a abandoná-la como conceito.
Não se entusiasmando pela violência em si mesma, não aderiu à teses pacifistas.
Incorporando os valores democráticos, insiste em demarcar-se dos que já não querem
adjetivá-los. Assim, este grupo assume pontos de vista dos dois extremos, podendo
configurar-se, no futuro, como síntese ou como pântano, tudo vai depender de sua
capacidade em formular caminhos teoricamente originais e socialmente mobilizadores,
ou seja, politicamente eficazes. Reuniram-se nesta abordagem indivíduos e grupos de
diversa procedência, entre os quais os trotskistas da Liga Comunista francesa, à
procura de uma identidade entre o dogmatismo puro e duro e um revisionismo que
teria ido longe demais no abandono de premissas e princípios considerados ainda
atuais.
Uma análise comparada com as anteriores comemorações cinqüentenárias da
publicação do manifesto evidenciaria significativos contrastes. Com efeito, quando
completou os primeiros 50 anos, em 1898, a social-democracia internacional vivia
tempos de ouro. Solidamenteagrupados naentão chamada Segunda Internacional,
tendo já excluído de seu seio tendências rivais, como a anarquistas, com seus líderes
e teóricos irmanados em torno de uma certa vulgata do marxismo, onde predominava o
partido social-democrata alemão e seu principal teórico, K. Kautski, os partidos
socialistas acreditavam ter o futuro nas mãos e a história desdobrava-se segundo as
previsões daqueles que imaginavam conhecê-la cientificamente. As lutas sociais, as
conquistas políticas e materiais, a progressão eleitoral, a rede de instituições formada
(jornais, bancadas parlamentares, organizações de mulheres e de jovens, sindicatos e
partidos), tudo indicava amanhãs que cantavam, promissores. Nunca pareceu tão
certo, apesar das dificuldades que ninguém negava, que o mundo marchava para o
socialismo.
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Nas comemorações do centenário, em 1948, a poderosa Internacional
Socialista já estava em farrapos, e o que restava dela, depois da II Guerra Mundial,
não autorizava previsões otimistas. O bastão passara à URSS e seu partido
comunista, no auge do prestígio, depois do papel essencial que haviam
desempenhado na vitória sobre o nazi-fascismo. Tendo-se expandido pela Europa
Central, e às vésperas de um triunfo tão inesperado quanto espetacular na China, com
partidos fortalecidos em várias partes do mundo, os comunistas apresentavam-se, e
eram considerados, os herdeiros do pensamento revolucionário de Marx. Em um ou
dois anos, o mundo socialista passaria a congregar 1/3 da população mundial, a
solidariedade entre os diversos partidos era, como então se costumava dizer, granítica.
Agora sob a direção de J. Stalin, o maquinista da locomotiva da história, o mundo
continuava marchando triunfalmente para o socialismo e para o comunismo.
Passados mais cinqüenta anos, o panorama mudou outra vez, e radicalmente.
A social-democracia recobrou força mas já não tem nenhum compromisso com a
destruição do capitalismo. O movimento comunista agora é que se encontra em
farrapos, esmigalhado. Desapareceu a poderosa URSS e o trem da história
descarrilou em alguma curva do caminho. Seu maquinista, outrora glorioso, é figura
execrada, dentro e fora do movimento socialista. Do dogma à tolerância. O
monolitismo cedeu o lugar ao pluralismo. A ditadura à democracia. O socialismo deixo
de ser algo que se prevê de acordo com as leis da história. Na melhor das hipótese,
passou a ser uma aposta. Incerta, como toda a aposta. Possível, mas não
necessária. É sob este signo que se realizam os debates dos 150 anos da publicação
do Manifesto Comunista.
Será necessário enfrentar questões espinhosas, de resto levantadas por
ocasião do Encontro Internacional em Paris. Ainda em forma de balanço, dois
problemas: como uma teoria emancipatória pode engendrar tanto terror, e em larga
escala? Depois de tantos crimes cometidos em seu nome, este nome, comunista,
ainda é possível mantê-lo, do ponto de vista de uma alternativa ao capitalismo?
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E o elenco impressionante de desafios: a conjugação da proposta
internacionalista, única alternativa à globalização atualmente em curso, com o respeito
pelas particularidades regionais e nacionais. A investigação sobre a configuração do
político numa sociedade socialista. A reabilitação da utopia como invenção, mas
ancorada no cotidiano vivido pelos comuns dos mortais. As metamorfoses do trabalho
(o capitalismo enterrou seus coveiros?), as incertezas do progresso, os desafios
ecológiocos, a chamada exclusão de parcelas crescentes da humanidade dos
benefícios possíveis da nossa época (visto de um outro ângulo, não seria esta uma
forma, perversa, é verdade, de inclusão destas parcelas?).
Algumas carências chamaram a atenção, pedras no caminho. Por exemplo, a
rarefação de jovens. Marx e Engels tinham menos de trinta anos, quando escreveram
o Manifesto há 150 anos. Lenin tinha 47 em 1917, mas era afetuosamente chamado
pelos camaradas de o Velho. De modo geral, a liderança bolchevique estava na casa
dos 30 anos. O mesmo em relação à liderança chinesa, quando começou a Longa
Marcha, ou em relação aos revolucionários cubanos em 1959. No Encontro de Paris,
os quarentões poderiam ser considerados garotões. Em mais de uma Mesa,
cinqüentões eram benjamins. Nada a opor à participação da terceira idade, mesmo
porque os progressos da medicina estão mesmo alongando a expectativa de vida, e a
velhice, tão desvalorizada pelo capitalismo, pode ser fonte de sabedoria. Mas é
intrigante a ausência da juventude. Numa Mesa destinada a discutir os novos atores
de uma possível revolução, formada por pessoas acima dos quarenta anos, nenhuma
menção foi feita aos jovens. Como se uma luz amarela tivesse se acendido. Se
continuar assim, há o risco de não haver comemorações pelos 200 anos do Manifesto.
Também foi discreta a participação da segunda metade do céu: das 253
contribuições já publicadas, apenas 37 eram de autoria feminina, e 14 somente de não
européias. Dos 31 textos de brasileiros, 4 de mulheres.
Sem jovens e mulheres, que futuro terá a revolução? Desafios à espera de
respostas. Que serão formuladas (ou não) em próximos encontros. Alguns sugeriram
novas reuniões, bi-anuais. Outros, mais prudentes, de três em três anos. Os mais
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ousados propuseram um encontro anual, alternativo e paralelo ao realizado pelos
cultores do capitalismo em Davos, na Suíça, um Davos vermelho. Nada ainda
decidido, mas ficou o consenso de que, pelo menos, uma rede de associações
Espaços/Marx, deve ser criada.
Ao acompanhar esta saga. Afinal, não são tantos assim os textos que
resistem bravamente a 150 anos de existência.