1. Lógica, cultura, memória e significados
Na história, as imagens servem como um meio de expressão do homem
e de acordo com vários estudos elas surgiram muito tempo antes da escrita. De
acordo com Santaella e Noth (1998, p.13), “(...) enquanto a propagação da
palavra humana começou a adquirir dimensões galácticas já no século XV de
Gutenberg, a galáxia imagética teria de esperar até o século XX para se
desenvolver (...)”. Somos hoje bombardeados pelas mensagens visuais que
nos penetram através da nossa exposição cotidiana na televisão, jornais,
revistas, cartazes, revistas, outdoors, cinema e a própria internet. A realidade
se impõe não deixando dúvidas de que estamos na galáxia imagética.
Davis, nos fala que toda excursão estratégica ao futuro tornou-se uma
investigação fundamental e inevitável daquilo que ela denomina como
“imagético”. Ela ainda completa:
“O imagético é o invisível, o misterioso, o intangível, o interior, o
inalcançável, conhecido em alguns círculos como realidade não usual
ou realidade baseada na consciência, o triunfo do invisível, o Efeito
Castaneda1, a ciência irônica ou, ocasionalmente, pelos céticos, como
uma invencionice. DAVIS (2003, p.23).
A imagem pode ser concebida como uma representação plástica,
material ou aquilo que evoca uma determinada coisa por ter com ela alguma
semelhança ou relação simbólica (Santaella e Noth, 1998). A imagem também
pode ser produto da imaginação, consciente ou inconsciente. Peirce (1977) já
afirmava que as imagens mentais, tais como sonhos, visões e alucinações são
signos por que têm o poder de gerar efeitos de sentido.
Santaella e Noth (1998, p.15) nos apresenta o conceito de imagem
encapsulando-a como representação visual e mental:
“(...) O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o
domínio das imagens como representações visuais: desenhos,
pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas,
televisivas, holo e infográficas pertencem a este domínio. As imagens,
neste sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso
meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens na
1
Se refere ao livro de Carlos Castaneda “ A Erva do Diabo” que se tornou um best-seller
entre os jovens do movimento hippie e da contracultura, que rapidamente elegeram
Castaneda um guru da nova era e formaram legiões de admiradores que queriam, por conta
própria, reviver as experiências descritas no livro.
2. nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões,
fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como
representações mentais”. Santaella e Noth (1998, p.15).
Os autores enfatizam ainda que os dois domínios não existem
separadamente e que a unificação se dá no conceito de representação e signo,
“(...) não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de
imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há
imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos
objetos visuais”. Santaella e Noth (1998, p.15).
Os conceitos de representação e signo aparecem muitas vezes na
literatura semiótica como sinônimos, sendo possível e até muito comum a
intercambialidade em diversas situações. O próprio Peirce caracteriza a
semiótica como a “teoria geral das representações” e apresenta-os, em
diversas oportunidades, como sinônimos, “a mais fácil das ideias de interesse
filosófico é a de signo ou representação” (Peirce, CP1.339).
Representar para Peirce é “estar para”, o que indica uma relação com
um outro. Com o propósito de melhor delimitar o conceito de representação e
signo, Peirce introduz o conceito de “representamen”. “(...) Quando se deseja
distinguir entre aquilo que representa e o ato ou relação de representar, o
primeiro pode ser denominado de representamen, e o último de
representação”. (Peirce, 1977). Representação é um conjunto concreto
aprendido pelos sentidos, pela imaginação, pela memória ou pelo pensamento.
Como podemos perceber, o campo semântico do conceito de imagem é
polarizado, ou seja, de um lado temos algo tangível, facilmente perceptível e,
de outro, apresenta-se a imagem mental, abstrata que pode ser tão-somente
imaginada, pensada, intangível, fugidia. Esta polaridade se reflete na história.
As imagens mentais aparecem desde Platão (427-347 a.C.) que as definia
como um grau do processo de conhecimento, encontrando grande destaque
muitos séculos depois, em Sigmund Freud (1856-1939), por meio das análises
dos sonhos. Já as imagens visuais, nas várias culturas, são bem divididas.
Aparecem ora como idolatrias religiosas ora como descrença total.
Numa primeira análise, podemos dizer que a forma de uma imagem é
feita por semelhança com o objeto representado, porém em diversas
oportunidades percebemos que a semelhança não garante a
3. representatividade. Por exemplo: duas fotografias da mesma cena, mesmo que
feitas a partir do mesmo negativo, não são imagens uma da outra. Outros
exemplos nesse sentido são explorados por Goodman (1976, p.28), conforme
podemos observar: “(...) uma menina não é uma representação de sua irmã
gêmea; uma palavra impressa não é imagem de outra palavra impressa com o
mesmo tipo (...)”.
As imagens podem ser analisadas, semioticamente, sob três aspectos,
que acompanham todo o raciocínio triádico de Peirce: as imagens em si
mesmas, ou seja: os quali-signos, sin-signos e legi-signos, as imagens em
relação ao objeto a que representam: ícone, índice e símbolo e as imagens em
relação aos efeitos gerados nas mentes interpretadoras: imediato, dinâmico e
final. É importante falarmos que o interpretante imediato é possibilidade,
potência. O interpretante dinâmico é o efeito efetivamente gerado na mente
interpretadora e se subdivide em funcional, emocional e lógico ou hábito.
Os objetos materiais são referidos às variadas modalidades de
significados criados pelo ser humano, confrontando à realidade no decorrer da
sua trajetória histórica. Reconhecidos como detentores de significações e, em
virtude deste entendimento, dizem respeito à “função de representação”
CHARTIER (1990, p.19) ou de simbolização, qualidade que é atribuída aos
objetos pelo campo da cultura, o que permite caracterizá-los tendo a base
conceitual repousando na ordem simbólica.
O objeto oriundo da produção cultural conforme Boudon nos fala é
aquele considerado como forma que se refere a um contexto. BOUDON (1972,
p.94). Neste caso, deve-se compreender contexto como espaço social; e o
termo forma deve ser identificado como conteúdo simbólico, por conseguinte,
da elaboração codificada. Ao mesmo tempo, a questão das relações entre
estruturas mentais e sociais encontradas nos sistemas simbólicos, também,
está sendo enfocada, pois atinge o contexto interpretativo, ou melhor, o
ambiente cultural que se constitui em domínio da realidade social, pleno de
construções/interpretações explicitadoras do mundo existencial e normativo, no
âmbito para as leituras das práticas e das representações culturais. GEERTZ
(1989, p.142,143).
O que podemos verificar, e assim entender, são as significações
relacionadas aos objetos (vinculação de símbolos/signos), querendo dizer que
4. tais artefatos se tornaram expressões materializadas destas ideias, assim
passaram a ter sentido específico (= códigos culturais) definidos e
estabelecidos para fins de reconhecimento (= decodificação) junto ao seu
meio-ambiente social.
Hauser nos afirma que, trabalhando a obra estética sob a ótica da teoria
da arte, podemos pensar que:
“(...) esses produtos da história (...) que têm um significado e valor em
si próprios, considerados em relação ao fluxo vivo da história não são
mais do que documentos, isto é, testemunhos indiretos do que
aconteceu, e assim, susceptíveis de várias interpretações. São
estruturas históricas surgindo e desaparecendo, ganhando e perdendo
reconhecimento; e, contudo, são também objetos importantes cujo
valor para aqueles que os reconhecem parece ser algo absoluto e
eterno”. HAUSER (1978, p.50).
A re-interpretação que se faz do produto cultural ao qualificá-lo na
categoria de Bem Cultural é uma atribuição de valor, um juízo elaborado pelo
campo cultural que consigna como elemento possuidor de caráter diferencial. E
ao distingui-lo deste modo, torna-o especial e em posição de destaque perante
os demais objetos da mesma natureza, emprestando-lhe sentido de
excepcionalidade.
Mencionando objetos materiais que se destacam e os significados
decorrentes dos juízos de valor que lhes foram atribuídos, há exemplos
eloqüentes para citar quando se trata de ilustrar o que se considera um Bem
Cultural. Trata-se, inicialmente, da significação na qual o objeto é distinguido
com potência de comprovação de determinada situação cultural, “o poder da
prova”. Este objeto é denominado de “testemunho” de acordo com Le Goff
(1984, p.97), por ser considerado capaz de representar a “imagem”, por
exemplo, do pensamento da Arte, da História, da Ciência, etc., e é apontado
como possuidor de “valor testemunhal”.
Outra interpretação diz respeito ao objeto exercendo poder de
comunicação, considerado como vetor de comunicações, conforme nos fala
MOLES (1972, p.10,11) e atuando ao modo de um condutor, sendo definido
como veículo de mensagens que são trocadas entre o meio social e os
indivíduos e, assim, revestido do que se poderia chamar de valor
comunicacional. As duas interpretações se associam pelos sentidos aplicados
5. aos conteúdos representacionais do objeto, ou seja, mensagem cultural e
testemunho cultural que impregnados de um sabor de verdade, tornam-se os
dados da informação que tangencia o irrefutável. As interpretações são faces
da mesma moeda da significação cultural (e a moeda, por sua vez é outro
exemplo materializado da produção de determinada imagem procedente do
mundo simbólico).
Referências
BOUDON, Pierre. Sobre o estatuto do objeto: diferençar o objeto do objeto.
Petrópolis: Vozes. 1972.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações.
Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL, 1990. p.13-28. (Coleção
Memória e Sociedade).
DAVIS, Melinda. A nova cultura do desejo. Tradução de Eliane Fraga e Sylvio
Gonçalvez. Rio de Janeiro: Record, 2003.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara-
Koogan,1989.
GOOGMAN, N. 1976. Language of Art: an Approch to the Theory of
Symbols.Indianapolis: Hackett.
HAUSER, Arnold. Teorias da arte. 2 ed. Portugal: Editorial Presença, Brasil:
Martins Fontes,1978.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, Jacques.
(Coord.). Memória e história. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda,
1984a, p. 95-106. (Enciclopédia Einaudi, 1.)
PEIRCE, C.S. Collected Papers (1931-1958). Semiótica. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
SANTAELLA, L. & NÖTH, W. 1998. Imagem: Cognição, Semiótica, Mídia.
São Paulo: Iluminuras.