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FICHAMENTO


FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir: nascimento da prisão. (Título Original: Surveiller
et punir. Traduzido por Raquel Ramalhete). 37. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

A obra Vigiar e Punir de Michel Foucault, pensador francês contemporâneo, faz uma análise científica sobre a
legislação penal e o sistema punitivo adotado pelos poderes jurídicos para os que praticam alguma
modalidade de crime ao longo dos séculos.


O livro é formado por quatro partes: Primeira Parte: Suplício, dividida em dois capítulos – O corpo dos
condenados e A ostentação dos suplícios; Segunda Parte: Punição, dividid a em dois capítulos – A punição
generalizada e A mitigação das penas; Terceira Parte: Disciplina, dividida em três capítulos – Os corpos dóceis,
Os recursos para um bom adestramento e O panoptismo; Quarta Parte: Prisão, dividida em três capítulos –
Instituições completas e austeras, Ilegalidade e delinqüência e O carcerário.


Na primeira parte, no primeiro capítulo, apresenta-se exemplo de suplício e utilização do tempo. Foucault
relata o esquartejamento de Damiens que havia sido condenado por cometer parricídio. Com uma riqueza de
detalhes, o processo é descrito, assim como a dificuldade do carrasco em executar seu ofício. A rotina de uma
prisão também é descrita através do regulamento redigido por Léon Faucher para a “Casa dos jovens detentos
em Paris”. Desses relatos, o autor estabelece a seguinte relação: “Eles não sancionam os mesmos crimes,
não punem o mesmo gênero de delinqüentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal.”. (p.
13).


É no fim do século XVIII e começo do século XIX, que se começa a ocorrer gradativamente a supressão do
espetáculo punitivo. “Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um
arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação.” (p. 13). O corpo deixa de ser o
principal alvo da repressão penal. O cerimonial da pena passa a ser um novo ato de procedimento ou de
administração. Isso porque o espetáculo adquiriu um cunho negativo, pois expunha os espectadores a uma
atrocidade que todos queriam evitar, mostrava-lhes a freqüência dos crimes, fazia o carrasco se igualar ou até
mesmo ultrapassar o criminoso e tornava o supliciado um objeto de piedade e admiração. “a certeza de ser
punido é o que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro.” (p. 14).


A aplicação da pena, a partir daí, passa a ser um procedimento burocrático, procurando corrigir e reeducar. “O
castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.” (p. 16).
Penas mais suaves, com mais respeito, mais humanidade, menos sofrimento. Houve, assim, o deslocamento
do objeto da ação punitiva, não sendo mais o corpo, mas a alma. Toma-se como objeto a perda de um bem ou
de um direito. Porém, é certo que a privação pura e simples da liberdade nunca foi eficaz sem complementos
punitivos referentes ao corpo. “ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando
utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças,
da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.” (p.28). Um conjunto de julgamentos
apreciativos, diagnósticos, normativos, concernentes à pessoa criminosa se encontrou então acolhido no
sistema do juízo penal.


No segundo capítulo, Foucault ressalta o valor atribuído às penas físicas. Define-se o que é um suplício “Pena
corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jacourt]; e acrescentava: ‘é um fenômeno inexplicável a
extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade.” (p. 35). O suplício é uma arte quantitativa
do sofrimento que correlaciona o tipo, a qualidade, a intensidade e o tempo dos ferimentos com a gravidade do
crime, a pessoa do criminoso e seu nível social. Em relação à vítima, o suplício deve ser marcante e pelo lado
da justiça, deve ser ostentoso.


Como suplício da verdade, o interrogatório encontra seu funcionamento. A confissão é a peça complementar
de uma informação escrita e secreta. Porém, vale destacar que o interrogatório não é uma maneira de
arrancar a verdade a qualquer preço. É cruel, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada que
obedece a um procedimento definido. “Sofrimento, confronto e verdade estão ligados uns aos outros na prática
da tortura” (p. 42). O ritual que produz verdade caminha juntamente com aquele que impõe a punição. O
corpo, assim, continua sendo peça essencial na cerimônia do castigo público. “O ciclo está fechado: da tortura
à execução, o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime.” (p. 47).


O suplício tem também uma função jurídico-política, objetivando reconstituir a soberania lesada. Pois, em todo
crime há alguma espécie de sublevação contra a lei que torna o criminoso um inimigo do príncipe. “A cerimônia
do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei.” (p. 50).


“O suplício se inseriu tão fortemente na prática judicial, porque é revelador da verdade e agente do poder” (p.
54). Sua prática permite que o crime seja reproduzido e voltado contra o corpo do criminoso.


O povo é, sem dúvidas, o personagem principal das cerimônias de suplício. Atraídos pelo espetáculo feito para
aterrorizá-los, podem até alterar o rumo do momento punitivo: impedindo a execução, perseguindo os
executores, fazendo tumulto contra a sentença etc.


O autor então expõe diversos relatos publicados em jornais, pasquins, folhetins que narravam essas “emoções
de cadafalso”. E encerra o capítulo apresentando a literatura em que o crime é glorificado, porque revela a
monstruosidade dos fortes e dos poderosos. Passa-se da busca pela confissão para o lento processo de
descoberta, do confronto físico à luta intelectual. “Os grandes assassinatos tornaram-se o jogo silencioso dos
sábios”. (p. 67).


Na segunda parte, “Punição”, Foucault mostra como, na segunda metade do século XVIII, os protestos contra
os suplícios eram facilmente encontrados. Era necessário punir de outro modo. O suplício tornou-se
inaceitável, vergonhoso, passou a ser encarado como revelador da tirania, do excesso, da sede de vingança e
do “cruel prazer de punir”. Surge então a campanha a favor de uma punição generalizada, que nomeia o
primeiro capítulo dessa parte.


Na punição generalizada, prega-se que é preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar. A
“humanidade” deveria ser respeitada ao se punir. “O castigo deve ter a ‘humanidade’ como ‘medida’.” (p. 72). O
autor passa então a contar a história dessa suavização das penas, creditando-a aos grandes reformadores -
Beccaria, Servan, Dupaty, Duport, Pastoret, Target, Bergasse – por terem imposto esse abrandamento a um
aparato judiciário.


Pode-se dizer que o afrouxamento da penalidade no decorrer do século XVIII deve-se à considerável
diminuição dos crimes de sangue, das agressões físicas. Desde o fim do século XVII, nota-se o
prevalecimento dos delitos contra a propriedade sobre os crimes violentos. Houve assim uma suavização dos
crimes antes da suavização das leis. Essa transformação, também, não pode ser separada de outros
processos que lhe formaram uma base. “Como nota P. Chaunu, de uma modificação do jogo das pressões
econômicas, de uma elevação geral do nível de vida, de um forte crescimento demográfico, de uma
multiplicação das riquezas e das propriedades e da ‘necessidade de segurança que é uma conseqüência
disso’.” (p. 74).


Baseando-se no fato da justiça penal ser irregular, devido às suas múltiplas instâncias encarregadas de
realizá-la, e lacunosa, devido às diferenças de costumes e de procedimentos, aos conflitos internos de
competência, aos interesses particulares e à intervenção do poder real, o objetivo da reforma não se trata de
fundar um novo direito de punir baseado em princípios mais equitativos.


Mas estabelecer uma nova ‘economia’ do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com
que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais em instâncias que
se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda a parte, de
maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social. (p. 78).


Não se pretendia punir menos, mas punir melhor. Fazendo com que o poder de punir não dependa de
privilégios múltiplos e contraditórios da soberania. Punia-se com uma severidade atenuada para punir com
mais universalidade. Assim, na brecha continuamente alargada pela ilegalidade popular, que não possuía
convergência, nem oposição fundamental, ocorreram várias transformações e com estas a burguesia
fundamentou uma parte do crescimento econômico. “A tolerância torna-se um estímulo” (p. 81).


Porém, na segunda metade do século XVIII, o processo tende a se inverter. Isso porque o alvo da ilegalidade
deixa de ser os direitos e passa a ser os bens, a propriedade. Disso inicia-se progressivamente uma crise da
ilegalidade popular. “A ilegalidade dos direitos, que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais
despojados, tende, com o novo estatuto da propriedade, a tornar-se uma ilegalidade de bens. Será então
necessário puni-la.” (p.82). Passou, assim, a ser mais necessário controlar e codificar as práticas ilícitas.


Com o desenvolvimento da sociedade capitalista, ocorreu uma divisão que corresponde a uma oposição de
classes. A ilegalidade dos direitos foi separada da ilegalidade dos bens. Esta mais acessível às classes
populares e aquela à burguesia. Devido a essa pressão sobre as ilegalidades populares, a reforma do sistema
penal pôde ir da condição de projeto à de instituição e conjunto prático. Um sistema penal era necessário para
gerir diferencialmente as ilegalidades, não para todas suprimi-las.


Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue, mas
também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às quais ajustas as punições e
cujos efeitos adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar.
Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando
seus circuitos. Em resumo, constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir: tais são
sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII. (p. 86).


O ato de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade e o infrator passou a ser
considerado o inimigo comum. Agora são os efeitos de retorno do castigo sobre a instância que pune e o poder
que ela pretende exercer que precisam ser modelados e calculados. “Punir será então uma arte dos efeitos”
(p.89). É preciso punir exatamente o suficiente para impedir que o delito se repita.


O autor nos apresenta então as seis regras mais importantes que definem o poder de punir:
a) Regra da quantidade mínima: determina que para o castigo produzir os efeitos esperados, basta que o mal
que ele cause ultrapasse o bem que o culpado ganhou com o crime.


b) Regra da idealidade suficiente: determina que a essência da punição não é a sensação de sofrimento, mas
sim a idéia de um desprazer, de um inconveniente. A representação da pena deve ser maximizada e não sua
realidade corpórea.


c) Regra dos efeitos laterais: determina que a pena deve surtir mais efeitos naqueles que não cometeram a
falta.


d) Regra da certeza perfeita: determina que a idéia de cada crime esteja precisamente associada à idéia de
um determinado castigo. Que essas leis sejam publicadas e perfeitamente claras. E que nenhum crime escape
ao olhar da justiça, pois nada a torna mais frágil do que a esperança de impunidade.


e) Regra da verdade comum: determina que a verificação do crime deve obedecer aos critérios gerais de
qualquer verdade. O senhor da justiça deixa de ser o dono da verdade.


f) Regra da especificação ideal: determina que todas as infrações têm que ser qualificadas, pois o mesmo
castigo não tem a mesma força para todo mundo. O rico não teme a multa e nem o já exposto teme a infâmia.


Vê-se aí a necessidade de uma classificação dos crimes e castigos e a necessidade de uma individualização
das penas, levando-se em conta as características singulares de cada criminoso. A individualização passa a
ser o objetivo de um código bem adaptado.


Porém, essa individualização é muito diferente da praticada na jurisprudência antiga. Antigamente, usavam-se
duas variáveis para ajustar o castigo: a “circunstância” e a “intenção”. Já nessa, baseia-se mais ao que “se
refere ao próprio infrator, à sua natureza, a seu modo de vida e pensar, a seu passado, à ‘qualidade’ e não
mais à intenção de sua vontade” (p. 95).


Pode-se também definir duas linhas de objetivação do crime e do criminoso: o criminoso tratado como inimigo
de todos e a necessidade de medir os efeitos do poder punitivo que intervém sobre os criminosos atuais ou
eventuais. Entretanto, a primeira objetivação do criminoso fora da lei não passa ainda de uma virtualidade,
onde se cruzam as críticas políticas e as figuras do imaginário. Enquanto a segunda teve efeitos rápidos e
decisivos, pois estava mais diretamente ligada à reorganização do poder de punir.


Assim, o autor termina o capítulo destacando uma nova anatomia política em que o corpo novamente será o
personagem principal, mas numa forma inédita. E conseguirá permitir o recruzamento dessas duas linhas
diferentes de objetivação formadas no século XVIII: “a que rejeita o criminoso para ‘o outro lado’ – o lado de
uma natureza contra a natureza; e a que procura controlar a delinqüência por uma anatomia calculada das
punições” (p. 99).


A arte de punir deve concentrar-se na tecnologia da representação. É preciso que se encontre um castigo com
uma desvantagem que definitivamente sem atração a idéia de um delito. É apoiando a criação de sinais-
obstáculos para a não realização de um crime que o autor inicia o segundo capítulo, “A mitigação das penas”.
Entretanto, para de fato funcionarem esses sinais-obstáculos devem obedecer a várias condições. Sendo que
entre estas seis são apresentadas pelo autor.


1) Devem ser o mínimo arbitrárias quanto possível. A punição ideal será transparente ao crime que pune e o
poder responsável por ela se esconderá. “Que o castigo decorra do crime; que a lei pareça ser uma
necessidade das coisas, e que o poder aja mascarando-se sob a força suave da natureza.” (p. 102).


2) Esses sinais devem diminuir o desejo que torna o crime atraente e aumentar o interesse que torna o crime
temível. E, assim, fazer funcionar contra ela a força que levou ao delito.


3) A pena deve ser responsável por transformar, modificar, estabelecer sinais e organizar obstáculos. E o
tempo deve ser o seu operador.


4) Pelo lado do condenado, a pena deve ser uma mecânica dos sinais, dos interesses e da duração. É preciso
que o castigo seja natural e interessante e que não haja mais aquelas penas ostensivas e inúteis. “O ideal
seria que o condenado fosse considerado como uma espécie de propriedade rentável: um escravo posto a
serviço de todos” (p. 105). Enquanto no sistema antigo o corpo dos condenados se tornava propriedade do rei,
agora ele será um bem social. Daí têm-se, na visão dos reformadores, as obras públicas como uma das
melhores penas possíveis. “Obra pública quer dizer duas coisas: interesse coletivo na pena do condenado e
caráter visível, controlável do castigo. O culpado assim paga duas vezes: pelo trabalho que ele fornece e pelos
sinais que produz.” (p. 105).


5) Enquanto no suplício corporal o terror, o medo físico, o pavor coletivo eram o suporte do exemplo, agora é a
lição, o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da moralidade pública que devem dar o
exemplo. Cada elemento do ritual de punição deve falar, dizer o crime, lembrar a lei, mostrar a necessidade da
punição e justificar sua medida.


6) O crime deve aparecer como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem se re-ensina a vida
social, apagando assim a glória duvidosa dos criminosos. E que cada castigo seja um apólogo.


Neste ponto do livro, o autor destaca como a idéia de prisão como forma geral de castigo nunca foi
apresentada nos projetos de penas específicas, visíveis e eloqüentes. Ele pontua que, em seu todo, a prisão é
incompatível com a técnica da pena-efeito, da pena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal e
discurso. “O cadafalso onde o corpo do supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano, o
teatro punitivo onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social, são
substituídos por uma grande arquitetura fechada, complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do
aparelho do Estado.” (p. 111). O princípio formulado da Constituinte de penas específicas, ajustadas e
eficazes, em menos de vinte anos, tornou-se a lei da detenção para toda infração que não merecer a morte,
modulada apenas em certos casos e agravada por ferretes ou algemas.


Porém, os juristas defendem que, no sistema civil, a prisão não é vista como uma pena. “A prisão assegura
que temos alguém, não o pune. É este o princípio geral.” (p. 114). De outro lado, inúmeros reformadores dizem
que a detenção figura um instrumento privilegiado do despotismo. Isso porque a prisão era também utilizada
de uma forma arbitrária e indeterminada marcada pelos abusos de poder.
Muitos também rejeitam a prisão alegando que ela seria incompatível com a boa justiça. Quer em nome dos
princípios jurídicos clássicos, quer em nome dos efeitos da prisão que pune aqueles que ainda não foram
condenados, indo contra o princípio da individualização da pena.


Foucault então põe em debate: “Como pôde a detenção, tão visivelmente ligada a esse ilegalismo que é
denunciado até no poder do príncipe, em tão pouco tempo tornar-se uma das formas mais gerais dos castigos
legais?” (p. 116).


A formação de grandes modelos de encarceramento punitivo durante a época clássica é a mais freqüente
explicação. Esses modelos teriam afastado as idéias punitivas imaginadas pelos reformadores e imposto a
realidade da detenção. O mais antigo desses modelos e que provavelmente inspirou os demais foi o Rasphuis
de Amsterdam, aberto em 1596. Este modelo possuía “um horário estrito, um sistema de proibições e de
obrigações, uma vigilância contínua, exortações, leituras espirituais, todo um jogo de meios para ‘atrair para o
bem’ e ‘desviar do mal’ enquadrava os detentos no dia-a-dia.” (p. 117).


Já a cadeia de Gand se organizou em torno de imperativos econômicos, dado que foi constatado que a
ociosidade era a causa geral da maior parte dos crimes. Assim, as casas de detenção passaram a realizar
uma pedagogia universal do trabalho para os mais refratários. E com isso, quatro vantagens: diminuição do
número de processos criminais, formação de uma quantidade de novos operários, não ser necessário adiar os
impostos dos proprietários dos bosques arruinados pelos vagabundos e acesso aos benefícios pelos
verdadeiros pobres.


O trabalho era obrigado e a retribuição permitia ao detento melhorar seu destino durante e depois da
detenção. A pena só teria sentido se objetivasse uma correção e uma utilização econômica dos criminosos
corrigidos. Só depois, o modelo inglês acrescentou o isolamento como condição essencial para a correção.
“Entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão constituirá um ‘espaço entre dois mundos’, um lugar
para as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera.” (p. 119). O
encarceramento entra no sistema das leis civis para transformar a alma e o comportamento, constituindo um
exemplo temível, um instrumento de conversão e de condição para um aprendizado.


A prisão de Walnut Street aberta em 1790 desenvolveu o princípio da não-publicidade da pena, que
determinava que, ao contrário da condenação e do que motivou o crime, a execução da pena deveria ser feita
em segredo. O público não deveria intervir. Dever-se-ia ter a certeza de que atrás dos muros o detento cumpre
sua pena, evitando assim a necessidade daqueles espetáculos de rua criados pela lei de 1796 que impunha a
certos condenados a execução de obras públicas.


Destaca-se, também a função de aparelho do saber exercida pelas prisões, que deixam de tomar como
referência o crime cometido e se organizam de acordo com a virtualidade de perigos contida num indivíduo e
que se manifesta no comportamento observado cotidianamente.


Já finalizando o capítulo, o autor estabelece uma comparação entre os modelos flamengo, inglês, americano e
os “reformatórios” e os castigos imaginados pelos reformadores. Apresentam-se como pontos de
convergência: a preocupação com o retorno temporal da punição. Não se pretende apagar o crime, mas sim
evitar que ele recomece. Pune-se para transformar o culpado. O sistema das penas deve se adequar às
variáveis individuais do crime e do criminoso. Utilizar processos para singularizar a pena: “em sua duração,
sua natureza, sua intensidade, a maneira como se desenrola, o castigo deve ser ajustado ao caráter individual,
e ao que este comporta de perigo para os outros.” (p. 123).


Todavia, ao se tentar definir as técnicas dessa correção individualizante, as disparidades aparecem. Eles se
diferem no procedimento de acesso ao indivíduo, na maneira como o poder punitivo se apossa dele, nos
instrumentos que utiliza para realizar a transformação, na relação que estabelece no corpo e na alma.


No método dos reformadores, “a coerção individual deve então realizar o processo de requalificação do
indivíduo como sujeito de direito, pelo reforço do sistema de sinais e das representações que fazem circular”
(p. 124). Já no aparelho da penalidade corretiva, o ponto não é a representação, é o corpo, o tempo, os gestos
e as atividades de todos os dias e também a alma, quando esta é sede de hábitos.


“Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se exerce na sombra de acordo
com critérios e instrumentos que escapam ao controle.” (p. 125). Os novos modelos comprometem toda a
estratégia da reforma. De um lado tem-se o funcionamento do poder real repartido em todo o meio social. E de
outro, um funcionamento compacto do poder de punir. No projeto dos juristas reformadores, a punição
requalifica os criminosos como sujeitos de direito. No projeto da instituição carcerária, a punição é uma técnica
de coerção destes.


O autor, enfim, expõe que no fim do século XVIII encontram-se três maneiras de organizar o poder de punir. A
primeira e ainda vigente se apoiava no direito monárquico. E as outras se referem a uma concepção
preventiva, utilitária, corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade inteira, mas que ainda assim
são muito diferentes entre si, ao nível dos dispositivos que esboçam. Fecha-se então o capítulo e a segunda
parte retomando a indagação de como teria sido possível que a terceira maneira, a prisão, tenha se imposto
sobre as outras duas. “Como o modelo coercitivo, corporal, solitário, secreto, do poder de punir substitui o
modelo representativo, cênico, significante, público, coletivo?” (p. 127).


Passa-se, assim, para a terceira parte intitulada “Disciplina”. O autor inicia o primeiro capítulo fazendo uma
analogia com o modo que se vê a figura do soldado e o ponto a ser abordado. No início do século XVII, o
soldado era reconhecido pelos seus sinais naturais de vigor, coragem, orgulho. Seu corpo era o brasão de sua
valentia e força. Já na segunda metade do século XVIII, o soldado tornou-se algo que se fabrica, um corpo
inapto, uma máquina feita com o que se precisa.


Não é a primeira vez que o corpo é considerado objeto de investimentos imperiosos e urgentes. Porém, dessa
vez há algumas novidades que diferenciam essas novas técnicas das da época clássica. A escala do controle
– não se trata de cuidar simplesmente do corpo em massa, mas de trabalhá-lo detalhadamente com uma
coerção sem folga. A modalidade – trata-se de uma coerção ininterrupta, constante que se exerce de acordo
com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. “Esses métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e
lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’”. (p. 133).


As disciplinas se tornaram ao longo dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da
escravidão, pois não se apropria dos corpos. Diferentes da domesticidade, pois esta, diferentemente das
disciplinas, não são analíticas e ilimitadas. Diferentes da vassalidade, pois não é uma relação submissa e
codificada. Diferentes do ascetismo e das “disciplinas” de tipo monástico. Forma-se uma política de coerção,
uma manipulação calculada do corpo, de seus elementos, de seus gestos e de seus comportamentos. “O
corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (p. 133). A
disciplina fabrica corpos submissos e exercitados,”corpos dóceis” – termo que nomeia o primeiro capítulo.


A disciplina é uma análise política do detalhe. Este que já era uma categoria da teologia e do ascetismo. Para
o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, todo detalhe é importante, pois aí se encontra o poder
que se quer apanhar.


Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para
controle e utilização dos homens, sobem através da Era Clássica, levando consigo todo um conjunto de
técnicas, todo um corpo de processo e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses
esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno. (p. 136)


O capítulo se subdivide em subcapítulos que descrevem melhor as técnicas da disciplina.


A arte das distribuições: A disciplina surge com a distribuição dos indivíduos no espaço. E para isso utiliza
algumas técnicas:


1) A disciplina às vezes exige uma cerca para especificar um local heterogêneo. Como acontece nos colégios
e quartéis.


2) De acordo com o princípio da localização imediata ou do quadriculamento, deve-se evitar a distribuição por
grupos, decompor as implantações coletivas, analisar as pluralidades confusas e esquivas e saber onde
encontrar os indivíduos, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um.


3) A regra das localizações funcionais codifica os espaços que a arquitetura deixa geralmente livre. Esses
lugares satisfazem não só a necessidade de vigiar e romper comunicações perigosas, mas também a de criar
um espaço útil.


4) Na disciplina, cada um se define pelo lugar que ocupa na série. A unidade não é o território, nem o local,
mas a posição na fila, na classificação. A disciplina é a arte de dispor em filas, individualizando os corpos por
uma localização que os faz circular numa rede de relações.


“As disciplinas, organizando as ‘celas’, os ‘lugares’ e as ‘fileiras’ criam espaços complexos: ao mesmo tempo
arquiteturais, funcionais e hierárquicos” (p. 142).


O controle da atividade:


1) O horário: Herança das comunidades monásticas. O aumento do número de assalariados acarreta num
quadriculamento cerrado do tempo. A exatidão e a aplicação são as virtudes fundamentais do tempo
disciplinar.


2) A elaboração temporal do ato: O ato é decomposto em seus elementos: a posição do corpo, dos membros,
das articulações para cada movimento é determinada, assim como sua direção, amplitude e duração. “O
tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (p. 146).
3) Donde o corpo e o gesto postos em correlação: O controle disciplinar impõe a melhor relação entre um
gesto e uma atitude global do corpo, sua condição de eficácia e rapidez. Um corpo bem treinado, então, é a
base de um gesto eficiente.


4) A articulação corpo-objeto: A disciplina estabelece cada uma das relações entre o corpo e o objeto que ele
manipula.


5) A utilização exaustiva: A disciplina coloca o princípio de uma utilização sempre crescente no tempo.
Preocupa-se em extrair do tempo mais instantes disponíveis e de cada instante, mais forças úteis.


Um novo objeto vai se compondo e substituindo o corpo mecânico: o corpo natural, portador de forças e sede
de ago durável. E, assim, os controles disciplinares vão encontrando lugar em todas as pesquisas teóricas ou
práticas sobre a máquina natural do corpo. “O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só
analítica e ‘celular’, mas também natural e ‘orgânica’”. (p. 150).


A organização das gêneses: “Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, em
seus corpos, em suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de
controle?” (p.151-152).


As disciplinas devem ser entendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo. Isto por quatro
processos facilmente identificados na organização militar:


1°) Dividir a duração em segmentos sucessivos ou paralelos dos quais cada um deve possuir um termo a ser
objetivado. Decompor o tempo em sequências separadas e ajustadas.


2°) Organizar as sequências em um esquema analítico, combinando-os segundo uma complexidade
crescente.


3°) Finalizar os segmentos temporais e aplicar uma prova que tem a função de indicar se o indivíduo atingiu o
nível estatuário, de garantir que a sua aprendizagem está em conformidade com a dos demais e diferenciar as
capacidades de cada um.


4°) Estabelecer séries de séries e prescrever a cada um os exercícios concernentes ao seu nível.


“O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização” (p. 154). Os
procedimentos disciplinares integram um momento ao outro, revelando um tempo linear que se orienta para
um ponto terminal e estável. “O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da
duração, não culmina num mundo além; mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar”
(p. 156).


A composição das forças: Surge uma nova exigência a que a disciplina tem que atender. A disciplina deixa
de ser somente uma arte de repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças
para obter um aparelho eficiente. A disciplina deve, então, construir uma máquina cujo efeito será elevado ao
máximo pela articulação combinada de suas peças elementares. Essa exigência se traduz de várias maneiras:
1) O corpo singular torna-se capaz de articular e mover com outros. A coragem e força não o definem mais.
Mas sim, o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a boa ordem segundo as quais opera
seus deslocamentos. O corpo tem sua funcionalidade reduzida e passa a constituir uma peça de uma máquina
multissegmentar.


2) Essa máquina também tem como peça as séries cronológicas que a disciplina combina para formar um
tempo composto. O tempo de uns deve se ajustar ao tempo dos outros para se extrair o máximo de força e
combiná-la em um melhor resultado.


3) “Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência
repousa na brevidade e na clareza” (p. 159).


Pode-se dizer que a disciplina produz quatro tipos de individualidade dotadas de quatro características: uma
celular, devido ao jogo da repartição social, uma orgânica, devido à codificação das atividades, uma genética,
devido à acumulação do tempo e outra combinatória, devido à composição das forças. E para isso, utiliza
quatro técnicas: constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios e organiza “táticas”. Sendo a tática
uma arte de construir que é sem dúvida a forma mais elevada da prática de disciplinar.


Enfim, processos para a coerção individual e coletiva dos corpos já eram elaborados por militares e por
técnicos da disciplina, enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para construir ou
reconstruir o corpo social.


O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século
XVIII; mas há também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de
natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas
às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos,
não à vontade geral, mas à docilidade automática. (p. 162).


Capitulo II O poder disciplinar é um poder que em vez de somente apropriar e retirar, “adestra”. Adestra as
multidões confusas, móveis e inúteis de corpos e forças para retirar e apropriar mais e melhor. No segundo
capítulo, o autor discorre sobre “Os recursos para o bom adestramento”. “O sucesso do poder disciplinar se
deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua
combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.” (p. 164).


A vigilância hierárquica: O exercício da disciplina requer um dispositivo que obrigue pelo jogo de olhar, que
os meios de coerção sejam visíveis e as técnicas que permitem ver induzam os efeitos de poder. Um exemplo
quase ideal desses “observatórios” é o acampamento militar que age pelo efeito de uma visibilidade geral.


A arquitetura então passa a permitir o controle interior e articulado e não apenas vigiar o espaço exterior ou ser
admirada. Tem-se uma arquitetura que opera na transformação dos indivíduos.


“Nessas máquinas de observar, como subdividir os olhares, como estabelecer entre eles escalas,
comunicações? Como fazer para que, de sua multiplicidade calculada, resulte um poder homogêneo e
contínuo?” (p. 167). Foucault se põe então diante dessa pergunta e propõe a ideia de um aparelho disciplinar
perfeito que capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente.
“A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça
interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder de disciplinar.” (p. 169). Com a
vigilância hierarquizada, o poder de disciplinar torna-se um sistema integrado, ligado à economia e aos fins do
dispositivo onde é exercido.


A sanção normalizadora:


1) Em cada sistema disciplinar funciona um mecanismo penal. As disciplinas estabelecem suas leis próprias e
suas formas particulares de sanção, preenchendo assim o espaço deixado vago pelas leis.


2) A disciplina traz um jeito próprio de punir que é quase um modelo reduzido do tribunal. Pune-se tudo aquilo
que está inadequado à regra e que se afasta dela.


3) O castigo disciplinar tem a função de reduzir e evitar esses desvios, sendo essencialmente corretivo.


4) A punição na disciplina se baseia no sistema gratificação-sanção. O que permite a qualificação dos
comportamentos entre o bem e o mal. E sancionando os atos com exatidão, a disciplina avalia os indivíduos
com mais verdade do que a justiça penal.


5) Essa divisão bem-mal tem o papel de marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as
aptidões e também castigar e recompensar.


Em suma, a arte de punir não visa exatamente à repressão. Ela normaliza. Pratica cinco operações distintas:
relaciona desempenhos, diferencia os indivíduos, mede e hierarquiza as capacidades, faz funcionar a coação
de uma conformidade a realizar e traça o limite que define a diferença entre todas as diferenças. Aparece,
assim, o poder da Norma. “Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema
de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade, que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil
e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais.” (p. 177).


O exame: Combinam-se as técnicas da hierarquia que vigia e da sanção que normaliza. Estabelece-se sobre
os indivíduos uma visibilidade com que eles são diferenciados e sancionados. O exame é um mecanismo que
liga a formação do saber com o exercício do poder.


1) O exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder: o poder geralmente é o que se vê e se
manifesta. O poder disciplinar, entretanto, torna-se invisível. E em compensação impõe aos que submete uma
visibilidade obrigatória. Essa inversão da visibilidade no funcionamento das disciplinas é o que realizará o
exercício do poder. “Entramos na era do exame interminável e da objetivação limitadora” (p. 181).


2) O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário: Além de colocar os indivíduos sob
vigilância constante, os procedimentos do exame são acompanhados imediatamente por um sistema de
registros e acumulação documentária. E graças a isso, abrem-se duas possibilidades: constituição do indivíduo
como objeto descritível, analisável e a constituição de um sistema comparativo.


3) O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz de cada indivíduo um “caso”: um caso
constitui ao mesmo tempo um objeto para se conhecer e um poder para ser tomado. O caso, diferentemente
do que é na casuística ou na jurisprudência, é mais do que um conjunto de circunstâncias, é o próprio
indivíduo tal como pode ser descrito. “Finamente, o exame está no centro dos processos que constituem o
indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber” (p. 183).


Pode-se dizer que as disciplinas marcam a troca do eixo político da individualização. À medida que o poder se
torna mais anônimo, aqueles sobre os quais se exercem se tornam mais individualizados. “O indivíduo é sem
dúvida o átomo fictício de uma representação ‘ideológica’ da sociedade; mas é também uma realidade
fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a ‘disciplina’”. (p. 185).


Capítulo III O autor inicia o terceiro capítulo descrevendo minuciosamente a rotina de uma cidade invadida
pela peste no século XVII onde várias medidas foram tomadas. Um policiamento espacial estrito foi feito,
inspeções eram constantemente feitas e todos os acontecimentos eram registrados. Essa situação constitui
um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste. “Contra a peste, que é mistura, a
disciplina faz valer seu poder que é de análise.” (p.188).


Foucault aborda então o Panóptico de Benthan que dá origem a “O Panoptismo” do título do capítulo.
Descreve sucintamente o princípio já conhecido da construção em anel com uma torre no meio. No panóptico,
o princípio da masmorra é invertido, das funções trancar, privar da luz e esconder, só resta a primeira. A
visibilidade torna-se uma armadilha.


Os detentos são uma fonte de informação e não de comunicação. A multidão, individualidades fundidas, dão
lugar a uma coleção de individualidades separadas. “Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no
detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do
poder” (p. 191). Benthan inicia o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. O detento não sabe
se está sendo vigiado, mas isso não importa, o que importa é que ele saiba que pode estar sendo vigiado. O
Panóptico dissocia o par ver-ser visto, automatizando e desinvidualizando o poder. “Vê-se tudo, sem nunca ser
visto.” (p. 191).


Além desses efeitos, o Panóptico pode ser utilizado como máquina de experiências, modificando, treinando e
retreinando os indivíduos e analisando as transformações obtidas nesse processo. Benthan o apresentou
como uma utopia do encarceramento perfeito, embora muitas vezes o Panóptico aparecesse descrito como
uma jaula cruel e sábia. Entretanto é indubitável que ele tenha polivalentes aplicações: emendar os
prisioneiros, cuidar dos doentes, instruir escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os
mendigos. Enfim, é um tipo de implantação do corpo no espaço. O esquema panóptico assegura a economia e
assegura a eficácia e funcionamento de qualquer aparelho de poder em que for implantado. E é válido frisar
que não existe o risco de que a máquina panóptica se degenere em tirania, pois seu dispositivo é
democraticamente controlado.


A disciplina se apresenta em duas imagens: a disciplina-bloco (instituição fechada e voltada para funções
negativas) e a disciplina-mecanismo (dispositivo funcional que melhora o exercício do poder. Têm-se um
esquema de exceção e outro de vigilância generalizada que acabam culminando numa extensão dessas
instituições disciplinares sobre todo corpo social. Essa extensão, entretanto, é somente o aspecto mais visível
entre os diversos processos mais profundos que também ocorreram.


1) A inversão funcional das disciplinas: antes as disciplinas tinham a função de neutralizar os perigos, fixar as
populações agitadas e evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas. Agora, cabe-lhes o papel de
aumentar a utilidade dos indivíduos, modelando os comportamentos e fazendo os corpos entrarem numa
máquina e as forças numa economia. “As disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam
indivíduos úteis.” (p. 199).


2) A ramificação dos mecanismos disciplinares: os estabelecimentos de disciplina se multiplicam, enquanto
seus mecanismos tendem a se desinstitucionalizar, sair das fortalezas fechadas e circular em estado livre.
Processos flexíveis, transferíveis e adaptáveis de controle dão lugar às disciplinas maciças e compactas.


3) A estatização dos mecanismos de disciplina: parte do papel das disciplinas na França foi desencadeada
pelo sistema policial. Os chefes de polícia transpunham a disciplina para uma máquina administrativa, unitária
e rigorosa. É a polícia também que no século XVIII acrescenta funções disciplinares ao modelo: auxiliar a
justiça na busca de criminosos e controlar politicamente os complôs, movimentos de oposição e revoltas.


“Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das
disciplinas fechadas, espécie de ‘quarentena’ social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do
‘panoptismo’”. (p. 204).


A formação dessa sociedade disciplinar está ligada a amplos processos históricos, econômicos, jurídico-
políticos etc.


1) As disciplinas asseguram a ordenação das multiplicidades humanas e tentam definir em relação a elas uma
tática de poder que responde a três critérios: tornar o exercício do poder menos custoso, fazer com que os
efeitos desse poder seja levado ao seu máximo e ligar esse crescimento econômico do poder com esse maior
rendimento. Enfim, fazer crescer a docilidade e utilidade de todos os elementos do sistema das disciplinas.
Esse triplo objetivo apenas responde à grande explosão demográfica do século XVIII e ao crescimento do
aparelho de produção. “As disciplinas substituem o velho princípio “retirada-violência” que regia a economia do
poder pelo princípio “suavidade-produção-lucro”’. (p. 207). E com o crescimento do capitalismo, surgiu um
apelo à modalidade do poder disciplinar que pode ser posto em funcionamento em instituições muito diversas.


2) A modalidade panóptica do poder não depende de nenhuma estrutura jurídico-política da sociedade, porém
ela não é absolutamente independente. A disciplina cria laços privados diferentemente da obrigação contratual.
Os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais, já as disciplinas
caracterizam, classificam, especializam. A prisão se faz necessária no ponto em que se troca o poder
codificado de punir por um poder disciplinar de vigiar. “O que generaliza então o poder de punir não é a
consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de direito, é a extensão regular, é a trama infinitamente
cerrada nos processos panópticos” (p. 211).


3) Atravessando o limiar tecnológico, as disciplinas puderam dar origem a elementos como a medicina clínica,
a psiquiatria, a psicologia da criança, a psicopedagogia, a racionalização do trabalho. Inscrevendo-se, assim,
os métodos disciplinares no processo histórico de desenvolvimento de várias outras tecnologias. Constitui-se
então um processo disciplinar que multiplica os efeitos do poder graças à formação e à acumulação de novos
conhecimentos.


O autor reconhece que o panoptismo foi pouco celebrado, reconhecido como uma utopia estranha, um sonho
de maldade. Ele diz que se fosse preciso achar um equivalente histórico ao que aconteceu com o panóptico
seria a técnica “inquisitorial”. O inquérito foi a peça fundamental para as ciências empíricas da natureza, assim
como a análise disciplinar foi para a ciência do homem. Porém, o inquérito deu lugar às ciências da natureza e
destacou-se do seu modelo político-jurídico, enquanto o exame continua preso à tecnologia disciplinar.


Foucault encerra a terceira parte ressaltando a mudança no ponto de aplicação imposto à justiça penal. O
objeto útil não é mais o corpo do culpado, mas o indivíduo disciplinar. O ponto extremo da justiça penal antiga,
o retalhamento do corpo do regicida, dá lugar ao ideal de penalidade atual, a disciplina infinita.


Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório,
suas instâncias de vigilância e notação, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as
funções do juiz, se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a
prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com
as prisões? (p. 214).


Quarta Parte Capítulo I Foucault chega à quarta parte onde começa no primeiro capítulo a tratar enfim da
formalização da pena de detenção nas “Instituições completas e austeras”. A forma-prisão, entretanto preexiste
à sua utilização na lei, foi criada muito antes que a lei a definisse como pena por excelência. “A prisão, peça
essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal:
seu acesso à ‘humanidade’”. (p. 217). A prisão é uma detestável solução para o sistema penal de que não se
pode abrir mão: conhecem-se todos os seus inconvenientes, mas não se vê o que pôr no lugar.


“Como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence
a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento ‘universal e constante’?”. (p.
218). A prisão é um castigo igualitário. O tempo retirado do condenado traduz a ideia que a infração lesou,
além da vítima, a sociedade inteira. “A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma
oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente diferente” (p. 219). A prisão aparece então
como a forma mais imediata e civilizada de todas as penas. Engana-se quem a vê como uma instituição
sacudida por freqüentes movimentos de reforma. A “reforma” da prisão não adveio de um atestado fracasso.
Esta foi contemporânea da própria prisão.


A prisão deve ser um aparelho “onidisciplinar” exaustivo: cuidar de todos os aspectos do indivíduo, seu
treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas
disposições. Diferindo-se da pura privação jurídica da liberdade e das mecânicas representações com que
sonhavam os reformadores.


1) Isolamento. Em relação ao mundo exterior, ao que motivou a infração, às cumplicidades que a facilitaram.
Têm-se dois sistemas de encarceramento que propõem duas idéias quanto ao isolamento. O primeiro é o
modelo de Auburn que prescreve uma cela individual durante a noite e o trabalho e refeições em comum, sob
a regra do silêncio absoluto. O segundo é o da Filadélfia que opta por um isolamento absoluto, prezando a
relação do indivíduo com sua própria consciência e com a muda arquitetura. E dessa oposição nascem
conflitos religiosos, médicos, econômicos, arquiteturais e administrativos em volta da prática individualizante
coercitiva das prisões.


2) Trabalho. Agente de transformação carcerária, gerando efeitos na mecânica humana: transforma um
prisioneiro violento, agitado em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade. “A utilidade
do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma
relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu
ajustamento a um aparelho de produção.” (p. 230).


3) Modulação da pena. A justa duração da pena deve decorrer não só do ato e das circunstâncias, mas
também de como a própria pena se desenrola. É o julgamento, a sua constatação, diagnóstico, caracterização,
precisão, classificação diferencial que passa a modular a pena, sua atenuação ou mesmo sua interrupção.


Conclui-se que a prisão sempre foi útil com sua privação de liberdade, realizando transformações nos
indivíduos. Para isso, usou três esquemas: político-moral, isolamento individual e hierarquia, econômico, força
aplicada a um trabalho obrigatório e o técnico-médico, cura e normalização. Chama-se de penitenciário, pois, o
conjunto de todos esses suplementos disciplinares.


O Panóptico de Bentham pôde tomar forma material na prisão. Vigilância, observação, segurança, saber,
individualização, totalização, isolamento, transparência. A prisão também deve ser um local que sirva de
observação dos indivíduos punidos e assim formar um saber clínico sobre eles. Trata-se de um sistema de
documentação individualizante e permanente que serve de princípio regulador da prática penitenciária.


Outro papel importante que o aparelho penitenciário desempenha é a substituição do infrator pelo delinqüente.
Eles se distinguem pelo fato do delinqüente ser caracterizado mais pela sua vida, não sendo somente autor do
ato: está ligado ao seu delito por instintos, tendências, impulsos. Surge a necessidade de caracterizar o ato
como delito e o indivíduo enquanto delinqüente. E daí a possibilidade de uma criminologia. “Onde desapareceu
o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do spuliciado, apareceu o corpo do prisioneiro,
acompanhado pela individualidade do ‘delinquente’”. (p. 241).


O delinquente consegue unir as duas linhas divergentes da justiça penal promovida pelos reformadores no
século XVIII: monstros morais e políticos e sujeitos jurídicos requalificados pela punição. Ao se fabricar a
delinqüência, a prisão deu à justiça criminal um campo de objetos, autentificado por “ciências”, que lhe permitiu
trabalhar num horizonte geral de “verdade”.


Inicia-se o capítulo II:


A passagem dos suplícios, com seus rituais de ostentação, com sua arte misturada à cerimônia do sofrimento,
a penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das repartições, não é
passagem a uma penalidade indiferenciada, abstrata e confusa; é a passagem de uma arte de punir a outra,
não menos científica que ela. (p. 243).


A importância que a cadeia adquiriu como espetáculo talvez se deva ao fato dela juntar dois modos de castigo:
a ida para a detenção também se desenrolava como um cerimonial de suplício.


Porém, com seus efeitos visíveis, a prisão foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal. As prisões
não diminuiam a taxa de criminalidade, a taxa de criminosos permanece estável ou, ainda pior, aumenta. A
detenção provoca a reincidência e fabrica delinqüentes. Favorece também a formação de grupos de
delinqüentes solidários entre si prontos para cumplicidades futuras. As críticas eram constantemente feitas em
duas direções: contra o fato da prisão não ser efetivamente corretora e contra o fato de que, ao querer ser
corretiva, ela perde sua força de punição. E é assim que há um século e meio a prisão vem sendo dada como
a única maneira de reparar seu próprio fracasso. Constituindo as sete máximas universais da “boa
penitenciária”:


1) Princípio da correção: A detenção penal tem como objetivo principal a recuperação e reclassificação social
do condenado.


2) Princípio da classificação: Os detentos devem ser isolados e repartidos de acordo com a gravidade da sua
pena, sua idade, técnicas de correção aplicadas etc.


3) Princípio da modulação das penas: As penas podem ser modificadas segundo a individualidade dos
detentos, os resultados obtidos, os progressos ou recaídas.


4) Princípio do trabalho como obrigação e como direito: O trabalho é uma das peças essenciais na
transformação progressiva dos detentos.


5) Princípio da educação penitenciária: A educação do detento é uma precaução no interesse da sociedade e
obrigação para com o detento.


6) Princípio do controle técnico da detenção: O regime da prisão deve ser controlado por pessoas moralmente
especializadas em zelar pela boa formação dos detentos.


7) Princípio das instituições anexas: O encarceramento deve ser acompanhado de medidas de controle e
assistência até a total readaptação do antigo detento.


“O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e
proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquencia e
mecanismos que solidificam a delinqüência” (p. 257).


A penalidade é um meio de gerir as ilegalidades, riscar limites de tolerância, dar espaço a alguns e pressionar
outros. É ingenuidade pensar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo. A penalidade exclui
uns e torna útil outros. A lei é feita para alguns e se aplica a outros, dirigindo-se principalmente às classes mais
numerosas e menos esclarecidas.


O autor então afirma que se deve substituir o atestado de fracasso da prisão pela hipótese de que ela produziu
a delinquência, “tipo especificado, forma política ou economicamente menos perigosa – talvez até utilizável –
da ilegalidade” (p. 262). O sucesso da prisão é tamanho que ela continua a existir produzindo os mesmos
efeitos.


No fundo, a existência do crime manifesta felizmente uma incompreensibilidade da natureza humana; deve-se
ver nele, mais que uma fraqueza ou uma doença, uma energia que se ergue, um ‘brilhante protesto da
individualidade humana’ que sem dúvida lhe dá aos olhos de todos seu estranho poder de fascínio. (p. 274).


Capítulo III: Viu-se que, na justiça penal, o processo punitivo era transformado em técnica penitenciária pela
prisão. O instituto carcerário vai além e transporta essa técnica para o corpo social inteiro. Com vários efeitos:
1) O encarceramento funciona de acordo com um princípio de relativa continuidade. Continuidade das próprias
instituições, dos critérios e mecanismos punitivos.


2) O carcerário permite o recrutamento dos delinqüentes. Numa sociedade panóptica em que o delinqüente
não está fora da lei, mas sim na própria essência da lei, no meio dos mecanismos que fazem passar da
disciplina à lei, do desvio à infração.


3) O sistema carcerário consegue tornar natural e legítimo a punição. Acha-se no contrato a teoria que
fundamenta a aceitação do poder de punir, pois ele cria um sujeito jurídico que dá aos outros o poder de
exercer sobre ele o poder que ele próprio detém sobre eles.


4) Tem-se uma nova forma de lei, a norma: misto de legalidade e natureza, de prescrição e constituição. Uma
nova série de efeitos: deslocamento interno do poder judiciário, dificuldade em julgar, vergonha em condenar.
“A rede carcerária, em suas formas concentradas ou disseminadas, com seus sistemas de inserção,
distribuição, vigilância, observação, foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador.” (p.
288).


5) O carcerário realiza as captações reais do corpo e a perpétua observação. Assim, sua rede e armaduras de
um poder-saber tornaram historicamente possíveis as ciências humanas.


6) A prisão apresenta um extrema solidez. Portanto, se há algum desafio em torno dela, não é saber se ela
será não corretiva. “O problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de normalização
e em toda a extensão dos efeitos de poder que eles trazem, através da colocação de novas objetividades” (p.
290).


O autor encerra o livro com a afirmação de que na genealogia do sistema prisional contemporâneo, baseado
no binômio “vigiar e punir”, há um ronco surdo de uma batalha a ser ouvido.


Nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de complexas relações de poder, corpos e
forças submetidos por múltiplos dispositivos de ‘encarceramento’, objetos para discursos que são eles
mesmos elementos dessa estratégia, temos que ouvir o ronco surdo da batalha (p. 291).


E assim, Foucault interrompe o livro, que, segundo ele mesmo, serve como pano de fundo histórico para
diversos estudos sobre o poder de normalização e sobre a formação do saber na sociedade moderna.

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Foucault

  • 1. FICHAMENTO FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir: nascimento da prisão. (Título Original: Surveiller et punir. Traduzido por Raquel Ramalhete). 37. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. A obra Vigiar e Punir de Michel Foucault, pensador francês contemporâneo, faz uma análise científica sobre a legislação penal e o sistema punitivo adotado pelos poderes jurídicos para os que praticam alguma modalidade de crime ao longo dos séculos. O livro é formado por quatro partes: Primeira Parte: Suplício, dividida em dois capítulos – O corpo dos condenados e A ostentação dos suplícios; Segunda Parte: Punição, dividid a em dois capítulos – A punição generalizada e A mitigação das penas; Terceira Parte: Disciplina, dividida em três capítulos – Os corpos dóceis, Os recursos para um bom adestramento e O panoptismo; Quarta Parte: Prisão, dividida em três capítulos – Instituições completas e austeras, Ilegalidade e delinqüência e O carcerário. Na primeira parte, no primeiro capítulo, apresenta-se exemplo de suplício e utilização do tempo. Foucault relata o esquartejamento de Damiens que havia sido condenado por cometer parricídio. Com uma riqueza de detalhes, o processo é descrito, assim como a dificuldade do carrasco em executar seu ofício. A rotina de uma prisão também é descrita através do regulamento redigido por Léon Faucher para a “Casa dos jovens detentos em Paris”. Desses relatos, o autor estabelece a seguinte relação: “Eles não sancionam os mesmos crimes, não punem o mesmo gênero de delinqüentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal.”. (p. 13). É no fim do século XVIII e começo do século XIX, que se começa a ocorrer gradativamente a supressão do espetáculo punitivo. “Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação.” (p. 13). O corpo deixa de ser o principal alvo da repressão penal. O cerimonial da pena passa a ser um novo ato de procedimento ou de administração. Isso porque o espetáculo adquiriu um cunho negativo, pois expunha os espectadores a uma atrocidade que todos queriam evitar, mostrava-lhes a freqüência dos crimes, fazia o carrasco se igualar ou até mesmo ultrapassar o criminoso e tornava o supliciado um objeto de piedade e admiração. “a certeza de ser punido é o que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro.” (p. 14). A aplicação da pena, a partir daí, passa a ser um procedimento burocrático, procurando corrigir e reeducar. “O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.” (p. 16). Penas mais suaves, com mais respeito, mais humanidade, menos sofrimento. Houve, assim, o deslocamento do objeto da ação punitiva, não sendo mais o corpo, mas a alma. Toma-se como objeto a perda de um bem ou de um direito. Porém, é certo que a privação pura e simples da liberdade nunca foi eficaz sem complementos punitivos referentes ao corpo. “ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.” (p.28). Um conjunto de julgamentos apreciativos, diagnósticos, normativos, concernentes à pessoa criminosa se encontrou então acolhido no sistema do juízo penal. No segundo capítulo, Foucault ressalta o valor atribuído às penas físicas. Define-se o que é um suplício “Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jacourt]; e acrescentava: ‘é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade.” (p. 35). O suplício é uma arte quantitativa
  • 2. do sofrimento que correlaciona o tipo, a qualidade, a intensidade e o tempo dos ferimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso e seu nível social. Em relação à vítima, o suplício deve ser marcante e pelo lado da justiça, deve ser ostentoso. Como suplício da verdade, o interrogatório encontra seu funcionamento. A confissão é a peça complementar de uma informação escrita e secreta. Porém, vale destacar que o interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço. É cruel, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada que obedece a um procedimento definido. “Sofrimento, confronto e verdade estão ligados uns aos outros na prática da tortura” (p. 42). O ritual que produz verdade caminha juntamente com aquele que impõe a punição. O corpo, assim, continua sendo peça essencial na cerimônia do castigo público. “O ciclo está fechado: da tortura à execução, o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime.” (p. 47). O suplício tem também uma função jurídico-política, objetivando reconstituir a soberania lesada. Pois, em todo crime há alguma espécie de sublevação contra a lei que torna o criminoso um inimigo do príncipe. “A cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei.” (p. 50). “O suplício se inseriu tão fortemente na prática judicial, porque é revelador da verdade e agente do poder” (p. 54). Sua prática permite que o crime seja reproduzido e voltado contra o corpo do criminoso. O povo é, sem dúvidas, o personagem principal das cerimônias de suplício. Atraídos pelo espetáculo feito para aterrorizá-los, podem até alterar o rumo do momento punitivo: impedindo a execução, perseguindo os executores, fazendo tumulto contra a sentença etc. O autor então expõe diversos relatos publicados em jornais, pasquins, folhetins que narravam essas “emoções de cadafalso”. E encerra o capítulo apresentando a literatura em que o crime é glorificado, porque revela a monstruosidade dos fortes e dos poderosos. Passa-se da busca pela confissão para o lento processo de descoberta, do confronto físico à luta intelectual. “Os grandes assassinatos tornaram-se o jogo silencioso dos sábios”. (p. 67). Na segunda parte, “Punição”, Foucault mostra como, na segunda metade do século XVIII, os protestos contra os suplícios eram facilmente encontrados. Era necessário punir de outro modo. O suplício tornou-se inaceitável, vergonhoso, passou a ser encarado como revelador da tirania, do excesso, da sede de vingança e do “cruel prazer de punir”. Surge então a campanha a favor de uma punição generalizada, que nomeia o primeiro capítulo dessa parte. Na punição generalizada, prega-se que é preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar. A “humanidade” deveria ser respeitada ao se punir. “O castigo deve ter a ‘humanidade’ como ‘medida’.” (p. 72). O autor passa então a contar a história dessa suavização das penas, creditando-a aos grandes reformadores - Beccaria, Servan, Dupaty, Duport, Pastoret, Target, Bergasse – por terem imposto esse abrandamento a um aparato judiciário. Pode-se dizer que o afrouxamento da penalidade no decorrer do século XVIII deve-se à considerável diminuição dos crimes de sangue, das agressões físicas. Desde o fim do século XVII, nota-se o prevalecimento dos delitos contra a propriedade sobre os crimes violentos. Houve assim uma suavização dos crimes antes da suavização das leis. Essa transformação, também, não pode ser separada de outros processos que lhe formaram uma base. “Como nota P. Chaunu, de uma modificação do jogo das pressões
  • 3. econômicas, de uma elevação geral do nível de vida, de um forte crescimento demográfico, de uma multiplicação das riquezas e das propriedades e da ‘necessidade de segurança que é uma conseqüência disso’.” (p. 74). Baseando-se no fato da justiça penal ser irregular, devido às suas múltiplas instâncias encarregadas de realizá-la, e lacunosa, devido às diferenças de costumes e de procedimentos, aos conflitos internos de competência, aos interesses particulares e à intervenção do poder real, o objetivo da reforma não se trata de fundar um novo direito de punir baseado em princípios mais equitativos. Mas estabelecer uma nova ‘economia’ do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais em instâncias que se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda a parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social. (p. 78). Não se pretendia punir menos, mas punir melhor. Fazendo com que o poder de punir não dependa de privilégios múltiplos e contraditórios da soberania. Punia-se com uma severidade atenuada para punir com mais universalidade. Assim, na brecha continuamente alargada pela ilegalidade popular, que não possuía convergência, nem oposição fundamental, ocorreram várias transformações e com estas a burguesia fundamentou uma parte do crescimento econômico. “A tolerância torna-se um estímulo” (p. 81). Porém, na segunda metade do século XVIII, o processo tende a se inverter. Isso porque o alvo da ilegalidade deixa de ser os direitos e passa a ser os bens, a propriedade. Disso inicia-se progressivamente uma crise da ilegalidade popular. “A ilegalidade dos direitos, que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados, tende, com o novo estatuto da propriedade, a tornar-se uma ilegalidade de bens. Será então necessário puni-la.” (p.82). Passou, assim, a ser mais necessário controlar e codificar as práticas ilícitas. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista, ocorreu uma divisão que corresponde a uma oposição de classes. A ilegalidade dos direitos foi separada da ilegalidade dos bens. Esta mais acessível às classes populares e aquela à burguesia. Devido a essa pressão sobre as ilegalidades populares, a reforma do sistema penal pôde ir da condição de projeto à de instituição e conjunto prático. Um sistema penal era necessário para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para todas suprimi-las. Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue, mas também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às quais ajustas as punições e cujos efeitos adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos. Em resumo, constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir: tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII. (p. 86). O ato de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade e o infrator passou a ser considerado o inimigo comum. Agora são os efeitos de retorno do castigo sobre a instância que pune e o poder que ela pretende exercer que precisam ser modelados e calculados. “Punir será então uma arte dos efeitos” (p.89). É preciso punir exatamente o suficiente para impedir que o delito se repita. O autor nos apresenta então as seis regras mais importantes que definem o poder de punir:
  • 4. a) Regra da quantidade mínima: determina que para o castigo produzir os efeitos esperados, basta que o mal que ele cause ultrapasse o bem que o culpado ganhou com o crime. b) Regra da idealidade suficiente: determina que a essência da punição não é a sensação de sofrimento, mas sim a idéia de um desprazer, de um inconveniente. A representação da pena deve ser maximizada e não sua realidade corpórea. c) Regra dos efeitos laterais: determina que a pena deve surtir mais efeitos naqueles que não cometeram a falta. d) Regra da certeza perfeita: determina que a idéia de cada crime esteja precisamente associada à idéia de um determinado castigo. Que essas leis sejam publicadas e perfeitamente claras. E que nenhum crime escape ao olhar da justiça, pois nada a torna mais frágil do que a esperança de impunidade. e) Regra da verdade comum: determina que a verificação do crime deve obedecer aos critérios gerais de qualquer verdade. O senhor da justiça deixa de ser o dono da verdade. f) Regra da especificação ideal: determina que todas as infrações têm que ser qualificadas, pois o mesmo castigo não tem a mesma força para todo mundo. O rico não teme a multa e nem o já exposto teme a infâmia. Vê-se aí a necessidade de uma classificação dos crimes e castigos e a necessidade de uma individualização das penas, levando-se em conta as características singulares de cada criminoso. A individualização passa a ser o objetivo de um código bem adaptado. Porém, essa individualização é muito diferente da praticada na jurisprudência antiga. Antigamente, usavam-se duas variáveis para ajustar o castigo: a “circunstância” e a “intenção”. Já nessa, baseia-se mais ao que “se refere ao próprio infrator, à sua natureza, a seu modo de vida e pensar, a seu passado, à ‘qualidade’ e não mais à intenção de sua vontade” (p. 95). Pode-se também definir duas linhas de objetivação do crime e do criminoso: o criminoso tratado como inimigo de todos e a necessidade de medir os efeitos do poder punitivo que intervém sobre os criminosos atuais ou eventuais. Entretanto, a primeira objetivação do criminoso fora da lei não passa ainda de uma virtualidade, onde se cruzam as críticas políticas e as figuras do imaginário. Enquanto a segunda teve efeitos rápidos e decisivos, pois estava mais diretamente ligada à reorganização do poder de punir. Assim, o autor termina o capítulo destacando uma nova anatomia política em que o corpo novamente será o personagem principal, mas numa forma inédita. E conseguirá permitir o recruzamento dessas duas linhas diferentes de objetivação formadas no século XVIII: “a que rejeita o criminoso para ‘o outro lado’ – o lado de uma natureza contra a natureza; e a que procura controlar a delinqüência por uma anatomia calculada das punições” (p. 99). A arte de punir deve concentrar-se na tecnologia da representação. É preciso que se encontre um castigo com uma desvantagem que definitivamente sem atração a idéia de um delito. É apoiando a criação de sinais- obstáculos para a não realização de um crime que o autor inicia o segundo capítulo, “A mitigação das penas”.
  • 5. Entretanto, para de fato funcionarem esses sinais-obstáculos devem obedecer a várias condições. Sendo que entre estas seis são apresentadas pelo autor. 1) Devem ser o mínimo arbitrárias quanto possível. A punição ideal será transparente ao crime que pune e o poder responsável por ela se esconderá. “Que o castigo decorra do crime; que a lei pareça ser uma necessidade das coisas, e que o poder aja mascarando-se sob a força suave da natureza.” (p. 102). 2) Esses sinais devem diminuir o desejo que torna o crime atraente e aumentar o interesse que torna o crime temível. E, assim, fazer funcionar contra ela a força que levou ao delito. 3) A pena deve ser responsável por transformar, modificar, estabelecer sinais e organizar obstáculos. E o tempo deve ser o seu operador. 4) Pelo lado do condenado, a pena deve ser uma mecânica dos sinais, dos interesses e da duração. É preciso que o castigo seja natural e interessante e que não haja mais aquelas penas ostensivas e inúteis. “O ideal seria que o condenado fosse considerado como uma espécie de propriedade rentável: um escravo posto a serviço de todos” (p. 105). Enquanto no sistema antigo o corpo dos condenados se tornava propriedade do rei, agora ele será um bem social. Daí têm-se, na visão dos reformadores, as obras públicas como uma das melhores penas possíveis. “Obra pública quer dizer duas coisas: interesse coletivo na pena do condenado e caráter visível, controlável do castigo. O culpado assim paga duas vezes: pelo trabalho que ele fornece e pelos sinais que produz.” (p. 105). 5) Enquanto no suplício corporal o terror, o medo físico, o pavor coletivo eram o suporte do exemplo, agora é a lição, o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da moralidade pública que devem dar o exemplo. Cada elemento do ritual de punição deve falar, dizer o crime, lembrar a lei, mostrar a necessidade da punição e justificar sua medida. 6) O crime deve aparecer como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem se re-ensina a vida social, apagando assim a glória duvidosa dos criminosos. E que cada castigo seja um apólogo. Neste ponto do livro, o autor destaca como a idéia de prisão como forma geral de castigo nunca foi apresentada nos projetos de penas específicas, visíveis e eloqüentes. Ele pontua que, em seu todo, a prisão é incompatível com a técnica da pena-efeito, da pena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal e discurso. “O cadafalso onde o corpo do supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano, o teatro punitivo onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social, são substituídos por uma grande arquitetura fechada, complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado.” (p. 111). O princípio formulado da Constituinte de penas específicas, ajustadas e eficazes, em menos de vinte anos, tornou-se a lei da detenção para toda infração que não merecer a morte, modulada apenas em certos casos e agravada por ferretes ou algemas. Porém, os juristas defendem que, no sistema civil, a prisão não é vista como uma pena. “A prisão assegura que temos alguém, não o pune. É este o princípio geral.” (p. 114). De outro lado, inúmeros reformadores dizem que a detenção figura um instrumento privilegiado do despotismo. Isso porque a prisão era também utilizada de uma forma arbitrária e indeterminada marcada pelos abusos de poder.
  • 6. Muitos também rejeitam a prisão alegando que ela seria incompatível com a boa justiça. Quer em nome dos princípios jurídicos clássicos, quer em nome dos efeitos da prisão que pune aqueles que ainda não foram condenados, indo contra o princípio da individualização da pena. Foucault então põe em debate: “Como pôde a detenção, tão visivelmente ligada a esse ilegalismo que é denunciado até no poder do príncipe, em tão pouco tempo tornar-se uma das formas mais gerais dos castigos legais?” (p. 116). A formação de grandes modelos de encarceramento punitivo durante a época clássica é a mais freqüente explicação. Esses modelos teriam afastado as idéias punitivas imaginadas pelos reformadores e imposto a realidade da detenção. O mais antigo desses modelos e que provavelmente inspirou os demais foi o Rasphuis de Amsterdam, aberto em 1596. Este modelo possuía “um horário estrito, um sistema de proibições e de obrigações, uma vigilância contínua, exortações, leituras espirituais, todo um jogo de meios para ‘atrair para o bem’ e ‘desviar do mal’ enquadrava os detentos no dia-a-dia.” (p. 117). Já a cadeia de Gand se organizou em torno de imperativos econômicos, dado que foi constatado que a ociosidade era a causa geral da maior parte dos crimes. Assim, as casas de detenção passaram a realizar uma pedagogia universal do trabalho para os mais refratários. E com isso, quatro vantagens: diminuição do número de processos criminais, formação de uma quantidade de novos operários, não ser necessário adiar os impostos dos proprietários dos bosques arruinados pelos vagabundos e acesso aos benefícios pelos verdadeiros pobres. O trabalho era obrigado e a retribuição permitia ao detento melhorar seu destino durante e depois da detenção. A pena só teria sentido se objetivasse uma correção e uma utilização econômica dos criminosos corrigidos. Só depois, o modelo inglês acrescentou o isolamento como condição essencial para a correção. “Entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão constituirá um ‘espaço entre dois mundos’, um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera.” (p. 119). O encarceramento entra no sistema das leis civis para transformar a alma e o comportamento, constituindo um exemplo temível, um instrumento de conversão e de condição para um aprendizado. A prisão de Walnut Street aberta em 1790 desenvolveu o princípio da não-publicidade da pena, que determinava que, ao contrário da condenação e do que motivou o crime, a execução da pena deveria ser feita em segredo. O público não deveria intervir. Dever-se-ia ter a certeza de que atrás dos muros o detento cumpre sua pena, evitando assim a necessidade daqueles espetáculos de rua criados pela lei de 1796 que impunha a certos condenados a execução de obras públicas. Destaca-se, também a função de aparelho do saber exercida pelas prisões, que deixam de tomar como referência o crime cometido e se organizam de acordo com a virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente. Já finalizando o capítulo, o autor estabelece uma comparação entre os modelos flamengo, inglês, americano e os “reformatórios” e os castigos imaginados pelos reformadores. Apresentam-se como pontos de convergência: a preocupação com o retorno temporal da punição. Não se pretende apagar o crime, mas sim evitar que ele recomece. Pune-se para transformar o culpado. O sistema das penas deve se adequar às variáveis individuais do crime e do criminoso. Utilizar processos para singularizar a pena: “em sua duração,
  • 7. sua natureza, sua intensidade, a maneira como se desenrola, o castigo deve ser ajustado ao caráter individual, e ao que este comporta de perigo para os outros.” (p. 123). Todavia, ao se tentar definir as técnicas dessa correção individualizante, as disparidades aparecem. Eles se diferem no procedimento de acesso ao indivíduo, na maneira como o poder punitivo se apossa dele, nos instrumentos que utiliza para realizar a transformação, na relação que estabelece no corpo e na alma. No método dos reformadores, “a coerção individual deve então realizar o processo de requalificação do indivíduo como sujeito de direito, pelo reforço do sistema de sinais e das representações que fazem circular” (p. 124). Já no aparelho da penalidade corretiva, o ponto não é a representação, é o corpo, o tempo, os gestos e as atividades de todos os dias e também a alma, quando esta é sede de hábitos. “Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se exerce na sombra de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle.” (p. 125). Os novos modelos comprometem toda a estratégia da reforma. De um lado tem-se o funcionamento do poder real repartido em todo o meio social. E de outro, um funcionamento compacto do poder de punir. No projeto dos juristas reformadores, a punição requalifica os criminosos como sujeitos de direito. No projeto da instituição carcerária, a punição é uma técnica de coerção destes. O autor, enfim, expõe que no fim do século XVIII encontram-se três maneiras de organizar o poder de punir. A primeira e ainda vigente se apoiava no direito monárquico. E as outras se referem a uma concepção preventiva, utilitária, corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade inteira, mas que ainda assim são muito diferentes entre si, ao nível dos dispositivos que esboçam. Fecha-se então o capítulo e a segunda parte retomando a indagação de como teria sido possível que a terceira maneira, a prisão, tenha se imposto sobre as outras duas. “Como o modelo coercitivo, corporal, solitário, secreto, do poder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público, coletivo?” (p. 127). Passa-se, assim, para a terceira parte intitulada “Disciplina”. O autor inicia o primeiro capítulo fazendo uma analogia com o modo que se vê a figura do soldado e o ponto a ser abordado. No início do século XVII, o soldado era reconhecido pelos seus sinais naturais de vigor, coragem, orgulho. Seu corpo era o brasão de sua valentia e força. Já na segunda metade do século XVIII, o soldado tornou-se algo que se fabrica, um corpo inapto, uma máquina feita com o que se precisa. Não é a primeira vez que o corpo é considerado objeto de investimentos imperiosos e urgentes. Porém, dessa vez há algumas novidades que diferenciam essas novas técnicas das da época clássica. A escala do controle – não se trata de cuidar simplesmente do corpo em massa, mas de trabalhá-lo detalhadamente com uma coerção sem folga. A modalidade – trata-se de uma coerção ininterrupta, constante que se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. “Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’”. (p. 133). As disciplinas se tornaram ao longo dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se apropria dos corpos. Diferentes da domesticidade, pois esta, diferentemente das disciplinas, não são analíticas e ilimitadas. Diferentes da vassalidade, pois não é uma relação submissa e codificada. Diferentes do ascetismo e das “disciplinas” de tipo monástico. Forma-se uma política de coerção, uma manipulação calculada do corpo, de seus elementos, de seus gestos e de seus comportamentos. “O
  • 8. corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (p. 133). A disciplina fabrica corpos submissos e exercitados,”corpos dóceis” – termo que nomeia o primeiro capítulo. A disciplina é uma análise política do detalhe. Este que já era uma categoria da teologia e do ascetismo. Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, todo detalhe é importante, pois aí se encontra o poder que se quer apanhar. Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da Era Clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processo e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno. (p. 136) O capítulo se subdivide em subcapítulos que descrevem melhor as técnicas da disciplina. A arte das distribuições: A disciplina surge com a distribuição dos indivíduos no espaço. E para isso utiliza algumas técnicas: 1) A disciplina às vezes exige uma cerca para especificar um local heterogêneo. Como acontece nos colégios e quartéis. 2) De acordo com o princípio da localização imediata ou do quadriculamento, deve-se evitar a distribuição por grupos, decompor as implantações coletivas, analisar as pluralidades confusas e esquivas e saber onde encontrar os indivíduos, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um. 3) A regra das localizações funcionais codifica os espaços que a arquitetura deixa geralmente livre. Esses lugares satisfazem não só a necessidade de vigiar e romper comunicações perigosas, mas também a de criar um espaço útil. 4) Na disciplina, cada um se define pelo lugar que ocupa na série. A unidade não é o território, nem o local, mas a posição na fila, na classificação. A disciplina é a arte de dispor em filas, individualizando os corpos por uma localização que os faz circular numa rede de relações. “As disciplinas, organizando as ‘celas’, os ‘lugares’ e as ‘fileiras’ criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos” (p. 142). O controle da atividade: 1) O horário: Herança das comunidades monásticas. O aumento do número de assalariados acarreta num quadriculamento cerrado do tempo. A exatidão e a aplicação são as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. 2) A elaboração temporal do ato: O ato é decomposto em seus elementos: a posição do corpo, dos membros, das articulações para cada movimento é determinada, assim como sua direção, amplitude e duração. “O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (p. 146).
  • 9. 3) Donde o corpo e o gesto postos em correlação: O controle disciplinar impõe a melhor relação entre um gesto e uma atitude global do corpo, sua condição de eficácia e rapidez. Um corpo bem treinado, então, é a base de um gesto eficiente. 4) A articulação corpo-objeto: A disciplina estabelece cada uma das relações entre o corpo e o objeto que ele manipula. 5) A utilização exaustiva: A disciplina coloca o princípio de uma utilização sempre crescente no tempo. Preocupa-se em extrair do tempo mais instantes disponíveis e de cada instante, mais forças úteis. Um novo objeto vai se compondo e substituindo o corpo mecânico: o corpo natural, portador de forças e sede de ago durável. E, assim, os controles disciplinares vão encontrando lugar em todas as pesquisas teóricas ou práticas sobre a máquina natural do corpo. “O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e ‘celular’, mas também natural e ‘orgânica’”. (p. 150). A organização das gêneses: “Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, em seus corpos, em suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle?” (p.151-152). As disciplinas devem ser entendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo. Isto por quatro processos facilmente identificados na organização militar: 1°) Dividir a duração em segmentos sucessivos ou paralelos dos quais cada um deve possuir um termo a ser objetivado. Decompor o tempo em sequências separadas e ajustadas. 2°) Organizar as sequências em um esquema analítico, combinando-os segundo uma complexidade crescente. 3°) Finalizar os segmentos temporais e aplicar uma prova que tem a função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatuário, de garantir que a sua aprendizagem está em conformidade com a dos demais e diferenciar as capacidades de cada um. 4°) Estabelecer séries de séries e prescrever a cada um os exercícios concernentes ao seu nível. “O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização” (p. 154). Os procedimentos disciplinares integram um momento ao outro, revelando um tempo linear que se orienta para um ponto terminal e estável. “O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo além; mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar” (p. 156). A composição das forças: Surge uma nova exigência a que a disciplina tem que atender. A disciplina deixa de ser somente uma arte de repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um aparelho eficiente. A disciplina deve, então, construir uma máquina cujo efeito será elevado ao máximo pela articulação combinada de suas peças elementares. Essa exigência se traduz de várias maneiras:
  • 10. 1) O corpo singular torna-se capaz de articular e mover com outros. A coragem e força não o definem mais. Mas sim, o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a boa ordem segundo as quais opera seus deslocamentos. O corpo tem sua funcionalidade reduzida e passa a constituir uma peça de uma máquina multissegmentar. 2) Essa máquina também tem como peça as séries cronológicas que a disciplina combina para formar um tempo composto. O tempo de uns deve se ajustar ao tempo dos outros para se extrair o máximo de força e combiná-la em um melhor resultado. 3) “Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza” (p. 159). Pode-se dizer que a disciplina produz quatro tipos de individualidade dotadas de quatro características: uma celular, devido ao jogo da repartição social, uma orgânica, devido à codificação das atividades, uma genética, devido à acumulação do tempo e outra combinatória, devido à composição das forças. E para isso, utiliza quatro técnicas: constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios e organiza “táticas”. Sendo a tática uma arte de construir que é sem dúvida a forma mais elevada da prática de disciplinar. Enfim, processos para a coerção individual e coletiva dos corpos já eram elaborados por militares e por técnicos da disciplina, enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para construir ou reconstruir o corpo social. O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII; mas há também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral, mas à docilidade automática. (p. 162). Capitulo II O poder disciplinar é um poder que em vez de somente apropriar e retirar, “adestra”. Adestra as multidões confusas, móveis e inúteis de corpos e forças para retirar e apropriar mais e melhor. No segundo capítulo, o autor discorre sobre “Os recursos para o bom adestramento”. “O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.” (p. 164). A vigilância hierárquica: O exercício da disciplina requer um dispositivo que obrigue pelo jogo de olhar, que os meios de coerção sejam visíveis e as técnicas que permitem ver induzam os efeitos de poder. Um exemplo quase ideal desses “observatórios” é o acampamento militar que age pelo efeito de uma visibilidade geral. A arquitetura então passa a permitir o controle interior e articulado e não apenas vigiar o espaço exterior ou ser admirada. Tem-se uma arquitetura que opera na transformação dos indivíduos. “Nessas máquinas de observar, como subdividir os olhares, como estabelecer entre eles escalas, comunicações? Como fazer para que, de sua multiplicidade calculada, resulte um poder homogêneo e contínuo?” (p. 167). Foucault se põe então diante dessa pergunta e propõe a ideia de um aparelho disciplinar perfeito que capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente.
  • 11. “A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder de disciplinar.” (p. 169). Com a vigilância hierarquizada, o poder de disciplinar torna-se um sistema integrado, ligado à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido. A sanção normalizadora: 1) Em cada sistema disciplinar funciona um mecanismo penal. As disciplinas estabelecem suas leis próprias e suas formas particulares de sanção, preenchendo assim o espaço deixado vago pelas leis. 2) A disciplina traz um jeito próprio de punir que é quase um modelo reduzido do tribunal. Pune-se tudo aquilo que está inadequado à regra e que se afasta dela. 3) O castigo disciplinar tem a função de reduzir e evitar esses desvios, sendo essencialmente corretivo. 4) A punição na disciplina se baseia no sistema gratificação-sanção. O que permite a qualificação dos comportamentos entre o bem e o mal. E sancionando os atos com exatidão, a disciplina avalia os indivíduos com mais verdade do que a justiça penal. 5) Essa divisão bem-mal tem o papel de marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões e também castigar e recompensar. Em suma, a arte de punir não visa exatamente à repressão. Ela normaliza. Pratica cinco operações distintas: relaciona desempenhos, diferencia os indivíduos, mede e hierarquiza as capacidades, faz funcionar a coação de uma conformidade a realizar e traça o limite que define a diferença entre todas as diferenças. Aparece, assim, o poder da Norma. “Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade, que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais.” (p. 177). O exame: Combinam-se as técnicas da hierarquia que vigia e da sanção que normaliza. Estabelece-se sobre os indivíduos uma visibilidade com que eles são diferenciados e sancionados. O exame é um mecanismo que liga a formação do saber com o exercício do poder. 1) O exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder: o poder geralmente é o que se vê e se manifesta. O poder disciplinar, entretanto, torna-se invisível. E em compensação impõe aos que submete uma visibilidade obrigatória. Essa inversão da visibilidade no funcionamento das disciplinas é o que realizará o exercício do poder. “Entramos na era do exame interminável e da objetivação limitadora” (p. 181). 2) O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário: Além de colocar os indivíduos sob vigilância constante, os procedimentos do exame são acompanhados imediatamente por um sistema de registros e acumulação documentária. E graças a isso, abrem-se duas possibilidades: constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável e a constituição de um sistema comparativo. 3) O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz de cada indivíduo um “caso”: um caso constitui ao mesmo tempo um objeto para se conhecer e um poder para ser tomado. O caso, diferentemente
  • 12. do que é na casuística ou na jurisprudência, é mais do que um conjunto de circunstâncias, é o próprio indivíduo tal como pode ser descrito. “Finamente, o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber” (p. 183). Pode-se dizer que as disciplinas marcam a troca do eixo político da individualização. À medida que o poder se torna mais anônimo, aqueles sobre os quais se exercem se tornam mais individualizados. “O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ‘ideológica’ da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a ‘disciplina’”. (p. 185). Capítulo III O autor inicia o terceiro capítulo descrevendo minuciosamente a rotina de uma cidade invadida pela peste no século XVII onde várias medidas foram tomadas. Um policiamento espacial estrito foi feito, inspeções eram constantemente feitas e todos os acontecimentos eram registrados. Essa situação constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste. “Contra a peste, que é mistura, a disciplina faz valer seu poder que é de análise.” (p.188). Foucault aborda então o Panóptico de Benthan que dá origem a “O Panoptismo” do título do capítulo. Descreve sucintamente o princípio já conhecido da construção em anel com uma torre no meio. No panóptico, o princípio da masmorra é invertido, das funções trancar, privar da luz e esconder, só resta a primeira. A visibilidade torna-se uma armadilha. Os detentos são uma fonte de informação e não de comunicação. A multidão, individualidades fundidas, dão lugar a uma coleção de individualidades separadas. “Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (p. 191). Benthan inicia o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. O detento não sabe se está sendo vigiado, mas isso não importa, o que importa é que ele saiba que pode estar sendo vigiado. O Panóptico dissocia o par ver-ser visto, automatizando e desinvidualizando o poder. “Vê-se tudo, sem nunca ser visto.” (p. 191). Além desses efeitos, o Panóptico pode ser utilizado como máquina de experiências, modificando, treinando e retreinando os indivíduos e analisando as transformações obtidas nesse processo. Benthan o apresentou como uma utopia do encarceramento perfeito, embora muitas vezes o Panóptico aparecesse descrito como uma jaula cruel e sábia. Entretanto é indubitável que ele tenha polivalentes aplicações: emendar os prisioneiros, cuidar dos doentes, instruir escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos. Enfim, é um tipo de implantação do corpo no espaço. O esquema panóptico assegura a economia e assegura a eficácia e funcionamento de qualquer aparelho de poder em que for implantado. E é válido frisar que não existe o risco de que a máquina panóptica se degenere em tirania, pois seu dispositivo é democraticamente controlado. A disciplina se apresenta em duas imagens: a disciplina-bloco (instituição fechada e voltada para funções negativas) e a disciplina-mecanismo (dispositivo funcional que melhora o exercício do poder. Têm-se um esquema de exceção e outro de vigilância generalizada que acabam culminando numa extensão dessas instituições disciplinares sobre todo corpo social. Essa extensão, entretanto, é somente o aspecto mais visível entre os diversos processos mais profundos que também ocorreram. 1) A inversão funcional das disciplinas: antes as disciplinas tinham a função de neutralizar os perigos, fixar as populações agitadas e evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas. Agora, cabe-lhes o papel de
  • 13. aumentar a utilidade dos indivíduos, modelando os comportamentos e fazendo os corpos entrarem numa máquina e as forças numa economia. “As disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis.” (p. 199). 2) A ramificação dos mecanismos disciplinares: os estabelecimentos de disciplina se multiplicam, enquanto seus mecanismos tendem a se desinstitucionalizar, sair das fortalezas fechadas e circular em estado livre. Processos flexíveis, transferíveis e adaptáveis de controle dão lugar às disciplinas maciças e compactas. 3) A estatização dos mecanismos de disciplina: parte do papel das disciplinas na França foi desencadeada pelo sistema policial. Os chefes de polícia transpunham a disciplina para uma máquina administrativa, unitária e rigorosa. É a polícia também que no século XVIII acrescenta funções disciplinares ao modelo: auxiliar a justiça na busca de criminosos e controlar politicamente os complôs, movimentos de oposição e revoltas. “Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie de ‘quarentena’ social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do ‘panoptismo’”. (p. 204). A formação dessa sociedade disciplinar está ligada a amplos processos históricos, econômicos, jurídico- políticos etc. 1) As disciplinas asseguram a ordenação das multiplicidades humanas e tentam definir em relação a elas uma tática de poder que responde a três critérios: tornar o exercício do poder menos custoso, fazer com que os efeitos desse poder seja levado ao seu máximo e ligar esse crescimento econômico do poder com esse maior rendimento. Enfim, fazer crescer a docilidade e utilidade de todos os elementos do sistema das disciplinas. Esse triplo objetivo apenas responde à grande explosão demográfica do século XVIII e ao crescimento do aparelho de produção. “As disciplinas substituem o velho princípio “retirada-violência” que regia a economia do poder pelo princípio “suavidade-produção-lucro”’. (p. 207). E com o crescimento do capitalismo, surgiu um apelo à modalidade do poder disciplinar que pode ser posto em funcionamento em instituições muito diversas. 2) A modalidade panóptica do poder não depende de nenhuma estrutura jurídico-política da sociedade, porém ela não é absolutamente independente. A disciplina cria laços privados diferentemente da obrigação contratual. Os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais, já as disciplinas caracterizam, classificam, especializam. A prisão se faz necessária no ponto em que se troca o poder codificado de punir por um poder disciplinar de vigiar. “O que generaliza então o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de direito, é a extensão regular, é a trama infinitamente cerrada nos processos panópticos” (p. 211). 3) Atravessando o limiar tecnológico, as disciplinas puderam dar origem a elementos como a medicina clínica, a psiquiatria, a psicologia da criança, a psicopedagogia, a racionalização do trabalho. Inscrevendo-se, assim, os métodos disciplinares no processo histórico de desenvolvimento de várias outras tecnologias. Constitui-se então um processo disciplinar que multiplica os efeitos do poder graças à formação e à acumulação de novos conhecimentos. O autor reconhece que o panoptismo foi pouco celebrado, reconhecido como uma utopia estranha, um sonho de maldade. Ele diz que se fosse preciso achar um equivalente histórico ao que aconteceu com o panóptico seria a técnica “inquisitorial”. O inquérito foi a peça fundamental para as ciências empíricas da natureza, assim
  • 14. como a análise disciplinar foi para a ciência do homem. Porém, o inquérito deu lugar às ciências da natureza e destacou-se do seu modelo político-jurídico, enquanto o exame continua preso à tecnologia disciplinar. Foucault encerra a terceira parte ressaltando a mudança no ponto de aplicação imposto à justiça penal. O objeto útil não é mais o corpo do culpado, mas o indivíduo disciplinar. O ponto extremo da justiça penal antiga, o retalhamento do corpo do regicida, dá lugar ao ideal de penalidade atual, a disciplina infinita. Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e notação, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? (p. 214). Quarta Parte Capítulo I Foucault chega à quarta parte onde começa no primeiro capítulo a tratar enfim da formalização da pena de detenção nas “Instituições completas e austeras”. A forma-prisão, entretanto preexiste à sua utilização na lei, foi criada muito antes que a lei a definisse como pena por excelência. “A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à ‘humanidade’”. (p. 217). A prisão é uma detestável solução para o sistema penal de que não se pode abrir mão: conhecem-se todos os seus inconvenientes, mas não se vê o que pôr no lugar. “Como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento ‘universal e constante’?”. (p. 218). A prisão é um castigo igualitário. O tempo retirado do condenado traduz a ideia que a infração lesou, além da vítima, a sociedade inteira. “A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente diferente” (p. 219). A prisão aparece então como a forma mais imediata e civilizada de todas as penas. Engana-se quem a vê como uma instituição sacudida por freqüentes movimentos de reforma. A “reforma” da prisão não adveio de um atestado fracasso. Esta foi contemporânea da própria prisão. A prisão deve ser um aparelho “onidisciplinar” exaustivo: cuidar de todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições. Diferindo-se da pura privação jurídica da liberdade e das mecânicas representações com que sonhavam os reformadores. 1) Isolamento. Em relação ao mundo exterior, ao que motivou a infração, às cumplicidades que a facilitaram. Têm-se dois sistemas de encarceramento que propõem duas idéias quanto ao isolamento. O primeiro é o modelo de Auburn que prescreve uma cela individual durante a noite e o trabalho e refeições em comum, sob a regra do silêncio absoluto. O segundo é o da Filadélfia que opta por um isolamento absoluto, prezando a relação do indivíduo com sua própria consciência e com a muda arquitetura. E dessa oposição nascem conflitos religiosos, médicos, econômicos, arquiteturais e administrativos em volta da prática individualizante coercitiva das prisões. 2) Trabalho. Agente de transformação carcerária, gerando efeitos na mecânica humana: transforma um prisioneiro violento, agitado em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade. “A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma
  • 15. relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção.” (p. 230). 3) Modulação da pena. A justa duração da pena deve decorrer não só do ato e das circunstâncias, mas também de como a própria pena se desenrola. É o julgamento, a sua constatação, diagnóstico, caracterização, precisão, classificação diferencial que passa a modular a pena, sua atenuação ou mesmo sua interrupção. Conclui-se que a prisão sempre foi útil com sua privação de liberdade, realizando transformações nos indivíduos. Para isso, usou três esquemas: político-moral, isolamento individual e hierarquia, econômico, força aplicada a um trabalho obrigatório e o técnico-médico, cura e normalização. Chama-se de penitenciário, pois, o conjunto de todos esses suplementos disciplinares. O Panóptico de Bentham pôde tomar forma material na prisão. Vigilância, observação, segurança, saber, individualização, totalização, isolamento, transparência. A prisão também deve ser um local que sirva de observação dos indivíduos punidos e assim formar um saber clínico sobre eles. Trata-se de um sistema de documentação individualizante e permanente que serve de princípio regulador da prática penitenciária. Outro papel importante que o aparelho penitenciário desempenha é a substituição do infrator pelo delinqüente. Eles se distinguem pelo fato do delinqüente ser caracterizado mais pela sua vida, não sendo somente autor do ato: está ligado ao seu delito por instintos, tendências, impulsos. Surge a necessidade de caracterizar o ato como delito e o indivíduo enquanto delinqüente. E daí a possibilidade de uma criminologia. “Onde desapareceu o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do spuliciado, apareceu o corpo do prisioneiro, acompanhado pela individualidade do ‘delinquente’”. (p. 241). O delinquente consegue unir as duas linhas divergentes da justiça penal promovida pelos reformadores no século XVIII: monstros morais e políticos e sujeitos jurídicos requalificados pela punição. Ao se fabricar a delinqüência, a prisão deu à justiça criminal um campo de objetos, autentificado por “ciências”, que lhe permitiu trabalhar num horizonte geral de “verdade”. Inicia-se o capítulo II: A passagem dos suplícios, com seus rituais de ostentação, com sua arte misturada à cerimônia do sofrimento, a penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das repartições, não é passagem a uma penalidade indiferenciada, abstrata e confusa; é a passagem de uma arte de punir a outra, não menos científica que ela. (p. 243). A importância que a cadeia adquiriu como espetáculo talvez se deva ao fato dela juntar dois modos de castigo: a ida para a detenção também se desenrolava como um cerimonial de suplício. Porém, com seus efeitos visíveis, a prisão foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal. As prisões não diminuiam a taxa de criminalidade, a taxa de criminosos permanece estável ou, ainda pior, aumenta. A detenção provoca a reincidência e fabrica delinqüentes. Favorece também a formação de grupos de delinqüentes solidários entre si prontos para cumplicidades futuras. As críticas eram constantemente feitas em duas direções: contra o fato da prisão não ser efetivamente corretora e contra o fato de que, ao querer ser corretiva, ela perde sua força de punição. E é assim que há um século e meio a prisão vem sendo dada como
  • 16. a única maneira de reparar seu próprio fracasso. Constituindo as sete máximas universais da “boa penitenciária”: 1) Princípio da correção: A detenção penal tem como objetivo principal a recuperação e reclassificação social do condenado. 2) Princípio da classificação: Os detentos devem ser isolados e repartidos de acordo com a gravidade da sua pena, sua idade, técnicas de correção aplicadas etc. 3) Princípio da modulação das penas: As penas podem ser modificadas segundo a individualidade dos detentos, os resultados obtidos, os progressos ou recaídas. 4) Princípio do trabalho como obrigação e como direito: O trabalho é uma das peças essenciais na transformação progressiva dos detentos. 5) Princípio da educação penitenciária: A educação do detento é uma precaução no interesse da sociedade e obrigação para com o detento. 6) Princípio do controle técnico da detenção: O regime da prisão deve ser controlado por pessoas moralmente especializadas em zelar pela boa formação dos detentos. 7) Princípio das instituições anexas: O encarceramento deve ser acompanhado de medidas de controle e assistência até a total readaptação do antigo detento. “O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquencia e mecanismos que solidificam a delinqüência” (p. 257). A penalidade é um meio de gerir as ilegalidades, riscar limites de tolerância, dar espaço a alguns e pressionar outros. É ingenuidade pensar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo. A penalidade exclui uns e torna útil outros. A lei é feita para alguns e se aplica a outros, dirigindo-se principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas. O autor então afirma que se deve substituir o atestado de fracasso da prisão pela hipótese de que ela produziu a delinquência, “tipo especificado, forma política ou economicamente menos perigosa – talvez até utilizável – da ilegalidade” (p. 262). O sucesso da prisão é tamanho que ela continua a existir produzindo os mesmos efeitos. No fundo, a existência do crime manifesta felizmente uma incompreensibilidade da natureza humana; deve-se ver nele, mais que uma fraqueza ou uma doença, uma energia que se ergue, um ‘brilhante protesto da individualidade humana’ que sem dúvida lhe dá aos olhos de todos seu estranho poder de fascínio. (p. 274). Capítulo III: Viu-se que, na justiça penal, o processo punitivo era transformado em técnica penitenciária pela prisão. O instituto carcerário vai além e transporta essa técnica para o corpo social inteiro. Com vários efeitos:
  • 17. 1) O encarceramento funciona de acordo com um princípio de relativa continuidade. Continuidade das próprias instituições, dos critérios e mecanismos punitivos. 2) O carcerário permite o recrutamento dos delinqüentes. Numa sociedade panóptica em que o delinqüente não está fora da lei, mas sim na própria essência da lei, no meio dos mecanismos que fazem passar da disciplina à lei, do desvio à infração. 3) O sistema carcerário consegue tornar natural e legítimo a punição. Acha-se no contrato a teoria que fundamenta a aceitação do poder de punir, pois ele cria um sujeito jurídico que dá aos outros o poder de exercer sobre ele o poder que ele próprio detém sobre eles. 4) Tem-se uma nova forma de lei, a norma: misto de legalidade e natureza, de prescrição e constituição. Uma nova série de efeitos: deslocamento interno do poder judiciário, dificuldade em julgar, vergonha em condenar. “A rede carcerária, em suas formas concentradas ou disseminadas, com seus sistemas de inserção, distribuição, vigilância, observação, foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador.” (p. 288). 5) O carcerário realiza as captações reais do corpo e a perpétua observação. Assim, sua rede e armaduras de um poder-saber tornaram historicamente possíveis as ciências humanas. 6) A prisão apresenta um extrema solidez. Portanto, se há algum desafio em torno dela, não é saber se ela será não corretiva. “O problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de normalização e em toda a extensão dos efeitos de poder que eles trazem, através da colocação de novas objetividades” (p. 290). O autor encerra o livro com a afirmação de que na genealogia do sistema prisional contemporâneo, baseado no binômio “vigiar e punir”, há um ronco surdo de uma batalha a ser ouvido. Nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de complexas relações de poder, corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de ‘encarceramento’, objetos para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia, temos que ouvir o ronco surdo da batalha (p. 291). E assim, Foucault interrompe o livro, que, segundo ele mesmo, serve como pano de fundo histórico para diversos estudos sobre o poder de normalização e sobre a formação do saber na sociedade moderna.