[1] A igualdade é uma condição para a democracia, mas a liberdade é o seu sentido e finalidade.
[2] A democracia serve para que todos tenham igualdade de condições para opinar e participar da política, mas não para alcançar igualdade social ou econômica.
[3] Ao longo da história, a democracia não conseguiu evitar guerras porque não foi exercida amplamente o suficiente na sociedade e no cotidiano das pessoas.
1. Liberdade
Da série Pílulas Democráticas 8
O SENTIDO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA
É A LIBERDADE, NÃO A IGUALDADE
Augusto de Franco
Excertos do original sem-revisão do livro Alfabetização Democrática (Curitiba: Rede de
Participação Política: 2007) republicados em 2010.
A igualdade é a condição para a política democrática, não o seu sentido
ou a sua finalidade
Eis a confusão que causou a tragédia da falta de conforto das esquerdas
com a democracia. Como as esquerdas querem voltar a uma mítica
igualdade – na verdade, um suposto igualitarismo – primordial ou original,
imaginam que se a democracia não servir para isso, para nada mais
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2. servirá. Trata-se, evidentemente, de uma confusão entre democracia e
cidadania. Se houver cidadania, é a democracia que leva à inclusão na
comunidade política. Se não houver cidadania, a democracia não pode
sequer se exercer.
A igualdade é a condição para a política democrática, não seu sentido ou
sua finalidade. Mas a igualdade a que se refere a democracia é uma
igualdade de condições de proferimento de opiniões (a matéria-prima da
política). A democracia não serve para levar um conjunto humano para a
igualdade social e econômica. Não pode ser o instrumento para
transformar fracos em fortes, pobres em ricos ou ignorantes em sábios
(para considerar aquelas três separações básicas que, segundo Bobbio,
estariam na raiz do fenômeno do poder co-implicado na transformação de
diferenças em separações). É um modo (político) de convivência em que
os fracos, os pobres e os ignorantes têm as mesmas condições de opinar –
e, em um sentido mais amplo, de participar da definição dos destinos
coletivos – que os fortes, os ricos e os sábios. Isso não é pouca coisa na
medida em que tal exercício continuado acabará incidindo não sobre essas
diferenças em si, mas sobre as separações que se instalam a partir delas.
Ao não ver que o sentido da política é a liberdade, deixa-se de perceber o
que é próprio da política, o que pertence propriamente à sua esfera, e
tende-se a incluir na esfera da política (e na esfera da democracia) entes
que nela não podem habitar, como, por exemplo, relações sociais e
econômicas de igualdade e eqüidade. Mas a democracia, como percebeu
Hannah Arendt e não perceberam os defensores de uma suposta
“democracia socialista”, só vale para iguais. Por isso, os escravos não
poderiam mesmo participar da democracia grega e o fato desses não-
cidadãos não poderem participar da ágora não descredencia o conceito
grego de democracia, antes o afirma.
O fato de ser justa a preocupação com a igualdade e de julgarmos,
corretamente, como indesejável uma sociedade escravagista nada tem a
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3. ver com a democracia em si mesma, e sim com um outro imperativo ético:
o da universalização da cidadania.
Outra coisa são as conseqüências da democracia – ou do exercício da
política como “pazeamento” – para o que se convencionou chamar de
democratização da sociedade, aí incluído o sentido de inclusão universal
de seus componentes nas decisões coletivas, ou seja, a chamada cidadania
política. Mas relações sociais democráticas, assim como democracia social
e democracia econômica, são conceitos deslizados. Democracia é,
definitivamente, política. A questão aqui é saber como a democracia
(política) pode repercutir sobre a igualdade (social) ou sobre a repartição
mais igualitária dos recursos (econômicos), o que não é a mesma coisa
que dizer que só poderá existir “verdadeira” democracia à medida que
existir igualdade social e eqüidade econômica, como faz, por exemplo,
uma parte dos autocratas, quer dizer, dos que praticam a política como
uma questão de ‘lado’ (aquela parte que se caracteriza como “esquerda”).
Por outro lado, no que tange à inclusão na cidadania política, mesmo
nesse caso tal inclusão, depois dos gregos e até hoje, sempre foi relativa e
limitada, por exemplo, ao direito de delegar e de se fazer representar, ao
direito de voto de tempos em tempos, pelo qual se abre mão do direito de
participar a qualquer tempo (e em tempo real) das decisões – coisa que,
diga-se de passagem, não foi inventada pelos gregos e que não pode ser
julgada como mais democrática do que os procedimentos que eles
inventaram, só podendo ser justificada em virtude de impossibilidades
técnicas (portanto, extrapolíticas) quando se alega que sociedades
populosas não teriam condições de adotar mecanismos de democracia
direta. Mas essa não parece ser a “verdadeira razão”, já que sempre
existiram meios de tornar cada vez mais freqüentes, diretos e
participativos os processos de decisão (até com tambores e sinais de
fumaça, para não falar, nos últimos dez anos, da possibilidade de fazer
isso em tempo real usando recursos telemáticos). Ademais, parece haver
aqui uma imprecisão factual: as comunidades gregas nas quais se
praticava a política stricto sensu, quer dizer, a democracia não
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4. predominantemente delegativa – as poleis, incorretamente caracterizadas
como Cidades-Estado – não eram tão pequenas assim. Segundo Finley
(1981), “ao eclodir a Guerra do Peloponeso, em 431, a população
ateniense, então no seu auge, era da ordem de 250 mil a 275 mil
habitantes, incluindo-se livres e escravos, homens, mulheres e crianças...
Corinto talvez tenha atingido 90 mil; Tebas, Argos, Corcira (Corfu) e
Acraga, na Sicília, 40 mil a 60 mil cada uma, seguindo-se de perto o resto,
em escala decrescente...” – ou seja, o tamanho dos nossos atuais
municípios (1).
A “verdadeira razão”, aludida aqui, pela qual não se amplia a chamada
cidadania política é a mesma razão pela qual não se exerce a política como
“pazeamento” das relações, ou seja, porque algo está impedindo que isso
ocorra. A democracia, desde que foi inventada, é disputada por
tendências que querem autocratizá-la e tendências que querem
democratizá-la. A efetivação dessas últimas tenderia a instalar o ‘estado
de paz’ pelo exercício da política, o que não pode ocorrer enquanto
houver incidência e reincidência predominantes das primeiras.
Restaria uma última questão: por que o exercício da política como
liberdade – ou seja, a prática da democracia – não tem conseguido evitar
as guerras ao longo da história? A resposta é bem mais simples do que
pode parecer: porque ao longo da história não existiram, em volume
suficiente, as tais práticas democráticas. Basta ver que as democracias (no
sentido “fraco” do conceito) – pelo menos as que existem como regimes
de governo na contemporaneidade – não têm guerreado entre si. Esse é
um bom indício (e um bom começo). Sobre a democracia (no sentido
“forte” do conceito) como modo de praticar a política na vida social,
podemos dizer que ela não consegue evitar as guerras na exata medida
em que também não consegue se exercer na base da sociedade e no
cotidiano do cidadão. Ou seja, a guerra acontece na medida em que não
se consegue praticar a política como “pazeamento” das relações, porque
algo está impedindo que isso ocorra.
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5. Indicações de leitura
Seria bom ler os textos de Hannah Arendt, sobretudo os fragmentos das “Obras
Póstumas” compilados por Ursula Ludz e também o texto: “Será que a política de
algum modo ainda tem um sentido”, publicado na coletânea A dignidade da política
(Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993). E ainda o texto “Que é liberdade”, que faz
parte do volume Entre o passado e o futuro (1968).
Para entrar na “polêmica” fundante da reinvenção democrática dos modernos, seria
importante confrontar dois clássicos: o Tratado Teológico-Político (pelo menos o
último capítulo) de Spinoza (1670) com o Leviatã de Hobbes (1651).
Nota
(1) Cf. Finley, M. I (org.) (1998). O Legado da Grécia. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1998.
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