1. Alianças
Da série Pílulas Democráticas 15
AS ALIANÇAS NÃO SÃO
UM EXPEDIENTE INSTRUMENTAL
Augusto de Franco
Excertos do original sem-revisão do livro Alfabetização Democrática (Curitiba: Rede de
Participação Política: 2007) republicados em 2010.
Eis como pensa a mente autocrática: o outro só serve se servir aos meus
propósitos
Na democracia, as alianças não são um expediente instrumental do qual
se pode lançar mão na luta política a partir de avaliações táticas e sim a
essência mesma do processo de entendimento que pode surgir entre
opiniões e projetos distintos por meio da conversação no espaço público.
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2. É por isso que se pode dizer que a política democrática tende a ser, cada
vez mais (ou seja, quanto mais se democratizar a política), sinônimo de
política de alianças.
O aumento da complexidade, quer dizer, da diversidade, da organização e
da conectividade social, na contemporaneidade, com a emersão da
sociedade-rede, produz, contínua e aceleradamente, novas minorias, as
quais não conseguem mais se expressar em regimes de maioria, que ainda
extraem sua legitimidade da relação entre uma minoria de fato
governante e a maioria massificada governada. Na medida em que as
massas vão deixando de ser totalidades indiferenciadas, vão
complexificando a sua estrutura interna e vão passando da condição de
objetos para a de sujeitos políticos, são as múltiplas minorias que passam
a formar as maiorias, em configurações temporárias de geometria
variável. Nessas circunstâncias, a democracia se afirma, cada vez mais,
como um regime de minorias, ou seja, como um modo de regulação de
conflitos que exige a constante composição e recomposição de maiorias a
partir da variedade de sujeitos coletivos que se posicionam
diferentemente face aos diversos temas submetidos à sua apreciação. Isso
exige a formação, simultânea e sucessiva, de múltiplos sistemas flexíveis
de alianças como condição de governabilidade (democrática), que não
poderá mais ser conquistada e mantida, autocraticamente, nem a partir
de normas impositivo-punitivas, nem em virtude do carisma e da “força
gravitacional” dos chefes.
Na democracia não deve haver um sujeito que possa conduzir sozinho a
sociedade – até porque isso seria, por definição, autocracia – e quanto
mais aumenta a complexidade social, mais difícil se torna privatizar o
comando político ou exercer o poder a partir da vontade de um ou de
poucos. Mas, usando-se aqui o conceito de ‘força política’ (o que não é
recomendável em termos democráticos), a alternativa da política de
alianças não surge como expediente instrumental, para aumentar a força
de um sujeito com base em sua posição maior de força dentro de um
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3. conjunto de forças menores, que, somadas à sua força, conferem-lhe
então a condição de força hegemônica no conjunto da sociedade.
Quanto mais se democratiza a sociedade, menor a chance de uma força
individual conseguir manter-se por muito tempo em uma condição de
prevalência, mesmo que faça todas as alianças possíveis – a menos que
suprima ou restrinja a democracia, o que também será cada vez mais
difícil de fazer em uma sociedade mais democratizada. Cada ator
individual ou coletivo terá, assim, de compartilhar com outros atores as
tarefas de coordenação política e terá de fazê-lo pelos mesmos motivos
que o fazem aceitar o jogo democrático, ou seja, isso tende a fazer parte
de um novo pacto democrático ampliado ou democratizado, para as
sociedades que caminharem nessa direção.
Fazer alianças para ficar mais forte e poder derrotar os inimigos,
descartando, ao final, os próprios aliados, quando não se precisar mais
deles, é o receituário da política autocrática em ambientes democráticos.
Como não pode realizar-se plenamente como tal nesses ambientes, um
sujeito autocrático é forçado a fazer alianças (na verdade, a contragosto,
visto que gostaria de mandar sozinho, só não o fazendo porque não pode,
não porque não queira). Sob o influxo de uma mentalidade hegemonista,
os autocratas são, assim, forçados a captar aliados (pouco importando o
que pensam tais aliados diante do que, para eles, é o fundamental, ou
seja, o incremento de força que podem aportar). Trata-se de um uso (ou
de um ab uso) que desqualifica o outro ao não levar em conta sua
contribuição para o enriquecimento do processo político.
Eis como pensa a mente autocrática: o outro só serve se servir aos meus
propósitos, dele nada posso (e nada devo) aprender em termos
substantivos (a não ser, eventualmente, a sua sabedoria, derivada da
política como “arte da guerra”, de como conquistar e reter o poder). Ele é
fundamental na medida em que sozinho não posso obter o que desejo.
Mas na medida em que não preciso mais dele, torna-se um incômodo e
mesmo um perigo: seja porque, tendo estado temporariamente do meu
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4. lado, conhece minhas fraquezas e pode me atacar pelos flancos, seja
porque, na convivência com ele, acabo descuidando de proteger-me de
suas investidas (é a máxima autocrática: “os inimigos lhe fortalecem, os
aliados lhe enfraquecem”), seja, enfim, porque sua própria existência já é
uma alternativa ao meu domínio (e as pessoas podem preferir ficar sob a
sua influência em vez de permanecer sob a minha).
Para a concepção e a prática autocráticas, o aliado, como um outro não
plenamente aceito, mas apenas instrumentalmente admitido, deve me
ajudar a vencer, mas não deve vencer comigo. Devo seduzi-lo, namorá-lo,
mas não me casar com ele. Pois a vitória – ah! A vitória! – só existirá (e só
será doce) se eu, o vencedor, puder levar tudo (“the winner takes all”).
Indicações de leitura
Uma sugestão difícil de ser levada à prática, conquanto muito proveitosa, seria ler ao
contrário (ou pelo avesso) os livros que contêm a sabedoria tradicional da “arte da
guerra”, especialmente no que abordam sobre as alianças: “A Arte da Guerra”, de Sun
Tzu (c. 500 a. C); “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel (1513); “A Arte da Prudência”, de
Baltazar Gracián (1647); “O Livro dos 5 Anéis” (“Gorin No Sho”), de Miyamoto Musashi
(c. 1683); “Breviário dos Políticos”, de Jules (Cardeal) Mazarin (1683); “Como negociar
com Príncipes”, de François de Callières (1716); e “Da Guerra”, de Carl von Clausewitz
(1832) (1).
Nota
(1) Se a política de alianças puder, de algum modo, resumir o que se quer entender
aqui por política democrática em termos práticos, então temos um problema. Pois o
que vulgarmente se entende por política é o que Agnes Heller chama de “política
pragmática de nossos dias”, que – segundo ela – “permanece intocada por teorias e
idéias, e cujos objetivos exclusivos são circunscritos pelas exigências de obter o poder
e nele manter-se” (Heller, 1985). Também se toma por política, como assinala ainda
Heller, “os modernos tipos de teoria maquiavélica que propõem entender a política
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5. como uma técnica” (Idem). Mas Maquiavel estava preocupado, principalmente, em
estabelecer princípios para a manutenção de um poder recém-conquistado, o que
geralmente tem feito a leitura de suas idéias se aproximar daquilo que Heller chamou
de “política pragmática”, embora ela não afirme isso. Os conhecimentos tácitos de
articulação política se referem, em grande parte, a recomendações de natureza
“técnica” para obtenção e manutenção do poder “deslizadas” da arte da guerra.
Basicamente esses conhecimentos derivam da experiência de pessoas envolvidas em
ambientes competitivos em que o objetivo principal dos atores parece ser sempre
conquistar posições de domínio ou manter-se nessas posições. Tais conhecimentos –
de uma espécie de realismo político prático cotidiano – pressupõem também uma
visão do ser humano como um ser inerentemente competitivo. Mas o curioso é que a
política é, de certo modo, como nos mostrou Hannah Arendt, exatamente o contrário
disso. Não se trata de estabelecer relações de domínio mas de desencadear processos
pelos quais as pessoas possam se subtrair às relações de domínio. Como escreveu ela:
“sou da opinião que... a redução de todas as relações políticas à relação de domínio
não apenas não pode ser justificada historicamente, como também deformou e
perverteu, de maneira funesta, o espaço da coisa pública e as possibilidades do
homem enquanto ser dotado para a política” (Arendt, c. 1950). Para Arendt, o sentido
da política é a liberdade e não o domínio. Nesse sentido, exercitar a “arte da política”
nada tem a ver com exercitar a “arte da guerra”, a não ser pelo avesso. Trata-se de
transformar a “arte da guerra” – atividade inerente a uma sociedade de dominação –
em “arte da política”, estabelecendo espaços de conversação entre seres livres e iguais
ou tornando os espaços (públicos) de interação humana ambientes propícios para a
afirmação da liberdade. Tudo que é dominação se baseia na repetição. A invenção do
novo e do inusitado requer exercício de liberdade. A política – em virtude de tomar
como sentido a liberdade – torna os homens “aptos a realizar o improvável e o
imprevisível” (Arendt, c. 1950). Cf. Heller, Agnes (1985). “Princípios Políticos” in Heller,
Agnes & Fehér, Ferenc (1987). A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998; cf. também Arendt, Hannah (c. 1950). O que é política?
(Frags. das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1998.
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