1. Em pílulas
Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio
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(Corresponde à introdução do Capítulo 10,
intitulado Mundos-bebês em gestação)
– E o que vocês esperam que eu faça?
– Você já sabe.
– Não, não sei. Por favor, ensine-me!
– Você fez muitas coisas sem precisar que o ensinassem a fazê-las.
Será que lhe ensinamos a desobediência?
Diálogo entre um ghola Duncan Idaho e o bashar Miles Teg
por Frank Herbert em Os hereges de Duna (1984)
O homem vive num filme, o homem vive num filme.
Mark Slade em The New Metamorphosis (1975),
realçando comentário de Joseph Conrad em O coração das trevas (1902)
2. O terrível segredo, que ninguém parece ter a coragem de encarar,
é que o mundo não pode ser salvo de uma só vez.
Não há como se varrer a miséria da existência
em grandes e eficientes vassouradas...
Salvar o mundo é um serviço sujo que só você pode fazer,
ao ritmo de um ínfimo passo de cada vez...
redimindo-se um momento de cada vez.
Um remédio de cada vez. Uma refeição de cada vez.
Uma conversa de cada vez. Um abraço de cada vez.
Uma caminhada de cada vez.
Paulo Brabo em Microsalvamentos:
como salvar o mundo um instante de cada vez (2007)
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3. A despeito do fato, incontestável, de a dinâmica global da interação
entre as velhas instâncias organizativas ter mudado, anunciando a
emersão de uma verdadeira sociedade-rede, um novo padrão de
organização distribuído não logrou se materializar no interior e no
entorno das organizações empresariais, governamentais e sociais,
que continuaram ainda se estruturando de modo centralizado ou
hierárquico. Ou seja, o muro que caiu em 1989, caiu para o mundo
construído pelo broadcasting como um único mundo, sob o efeito das
poderosas forças da globalização (sobretudo da globalização das
telecomunicações e da globalização dos mercados), mas não chegou
a se localizar nas organizações realmente existentes em todos os
setores. A mudança continuou acontecendo, mas os novos (e
múltiplos) Highly Connected Worlds como que "cresceram
escondidos" nesta época de mudança e não apareceram ainda à luz
do dia, de sorte a consumar o que poderíamos chamar de uma
mudança de época. Esses mundos-bebês estão agora em gestação.
Os fenômenos acompanhantes do glocal swarming serão
surpreendentes. Alguns já começaram a se manifestar: uma
tendência acentuada à desobediência dentro das organizações
hierárquicas, a incapacidade dessas organizações de inovar no ritmo
exigido pelas mudanças contemporâneas (ou melhor, de se estruturar
para inovar permanentemente) e - o que é mais drástico - as perdas
irreversíveis de oportunidades e condições de sustentabilidade para
as organizações fechadas que não forem capazes iniciar a transição
do seu padrão piramidal para um padrão de rede.
Fluzz é a queda dos muros. Em 1989 houve uma queda: a do Muro de
Berlim. O episódio, pleno de significado simbólico, assinalou o início de uma
época de mudanças nos padrões de relação entre Estado e sociedade. Um
processo até então oculto de mudança social tornou-se visível de repente.
Embora fugaz, o momento abriu uma brecha pela qual se pode ver um novo
tecido societário em gestação, uma nova topologia – mais distribuída – da
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4. rede social sendo tramada. Com efeito, nos anos seguintes, como se diz, "o
mundo mudou": a Internet (com a World Wide Web) nos anos 90 expressou
aspectos importantes dessa mudança profunda.
Os anos 2000, contrariando uma série de profecias futuristas, não raro
inspiradas por algum tipo de milenarismo, e frustrando as mais animadoras
expectativas da New Age, não consumaram o que foi prefigurado. A
primeira década do século 21 - marcada indelevelmente pela queda das
torres gêmeas do World Trade Center - conquanto tal evento também seja
riquíssimo de significado simbólico (místico, como revela a famosa Carta 16
do Tarot; e ideológico: o que ruiu foi um centro mundial de comércio, dando
a alguns a impressão, não raro regressiva, de que a dinâmica reguladora do
mercado estava com os dias contados e seria substituída pela normatização
estatal), não foi o vestíbulo de entrada para aquele terceiro milênio
imaginário desejado.
No entanto, subterraneamente, prosseguiu a gestação de novos padrões
societários. O mundo descobriu as redes. Entrou em franco
desenvolvimento uma nova ciência das redes. E surgiram por toda parte
novas plataformas tecnológicas interativas de articulação e animação de
redes sociais. As ferramentas começaram a ficar disponíveis. Faltaram ao
encontro apenas as pessoas, ainda arrebanhadas e cercadas, em grande
parte, nos tradicionais currais organizativos.
E tudo permanecerá assim nos mundos em que as pessoas não
desobedecerem, não saírem do seu quadrado (as fortalezas organizativas
que criaram para se proteger do “mundo exterior”), não inovarem e não
iniciarem a transição para uma padrão de rede. Por isso não haverá mesmo
uma (única) New Age. Enquanto as pessoas não desistirem da Old Age
permanecerão em mundos murados contra fluzz; ou melhor: vice-versa.
É claro que o vento continuará soprando, mas – dependendo da opacidade
de seus muros – você pode nem notar. Assim como não notou a formidável
orgia fúngica sob seus pés (uma espécie de sexo grupal que está
acontecendo agora em Zion, i. e., nos subterrâneos, com hifas surgindo por
toda parte). Assim como não notou o espalhamento dos esporos no ar que
você respira. Assim como não está vendo as miríades de interfaces
conectando miríades de mundos à sua volta e “explodindo como uma
ramada de neurônios”... (1)
Esse é o glocal swarming – que você só percebe se estiver nele. Para
invocá-lo em seu mundo você precisa, antes de qualquer coisa, conceber e
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5. dar à luz ao seu mundo. Sim, agora chegou a hora de você mesmo fazer o
seu mundo!
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