SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 5
Downloaden Sie, um offline zu lesen
Em pílulas
Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio




                            28
              (Corresponde ao terceiro tópico do Capítulo 4,
           intitulado Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos)




                   Destruidores de mundos

Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para
conversar com a rede-mãe

Darayavahush é um destruidor de mundos. Joseph Campbell diria que ele
representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se baseia na
intenção de conquistar e comandar” (13). Como aquele Darth Vader do
primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança (1977) –,
na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa. É um
programa malicioso que se instalou na rede. Um programa verticalizador.
Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o
homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio
Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão emaranhados
em configurações deformadas da rede-mãe, com deformações semelhantes.
Qualquer um, inserido em sistemas com tais configurações, manifestará –
em alguma medida – características de Darayavahush. E será em alguma
medida destruidor de mundos. Na verdade, aniquilará interfaces
(interworlds) estreitando o fluxo das interações, impedindo que pessoas se
conectem livremente com pessoas. É por isso que organizações hierárquicas
têm tanta dificuldade de gerar pessoas.

Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e
nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a
com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a
convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais
chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a
morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da
criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o fluxo
transformador da vida.

Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a energia
da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida, compartilhar o
alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade, Darth Vader não
tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículo-substituto para
escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia da violência,
obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos recursos
vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela imposição
da ordem).

Nas     organizações    hierárquicas,   um    processo  intermitente    de
despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos,
separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo poderia
ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma perda de
contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de todos os
setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária das)
pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não
participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a visão,
a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então como
incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está na
deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não conseguem
explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe entrar em um
espaço já configurado de uma determinada maneira. Não querem
‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos termos



                                     2
estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios termos.
Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são interfaces
adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque continuamos criando
obstáculos à livre conversação entre pessoas.

Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam                  com    redes.
Organizações hierárquicas não podem conversar com redes.

Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm imensas
dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde estão imersas.
A rede social que existe independentemente de nossos esforços conectivos
– ou que existiria se tais esforços não fossem verticalizadores; quer dizer, o
que chamamos aqui de rede-mãe – não recebe bem a influência dessas
organizações e continua funcionando mais ou menos como se nada tivesse
acontecido.

É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais
profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes
reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma
determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus esforços
não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as relações não
mudam, parece que tudo continua como d’antes...

Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de
base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau de
enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede social
que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as mensagens
emitidas pela organização. É muito provável que essa organização esteja
estruturada e funcione como uma pequena fortaleza, um castelinho, uma
igrejinha... É muito provável que ela faça parte da ‘nova burocracia das
ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às vezes até familiar –
com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do que o dos partidos e
organizações corporativas). É muito provável que seus chefes queiram se
eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é verdade, mas todo poder
hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se comporta mais ou menos
da mesma maneira, sempre a partir do poder de excluir o outro...) porque
precisem (ou imaginem que precisem) auferir o crédito ou obter o
reconhecimento social pela sua atuação.

Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe
for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a
partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico,
seja com base no interesse político de um grupo particular que quer



                                      3
manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social
não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que
construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são sempre
privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar a
privatização, como aquela velha crença de que existem interesses privados
que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de se
universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando
satisfeitos.

Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com “a matriz”.
Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo
interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for
possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para
copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela.

Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará cada
vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas em
organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na
normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa possibilidade,
as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente seus próprios
caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca – peregrinarão para
aprender naquelas “muitas cidades do Egito...”




                                    4
Nota

(13) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a Bill
Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990.




                                     5

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt?

Redes Sociais novos comportamentos
Redes Sociais novos comportamentosRedes Sociais novos comportamentos
Redes Sociais novos comportamentos
Fabrício Santorini
 
Capra entrevista a francis pisani
Capra entrevista a francis pisaniCapra entrevista a francis pisani
Capra entrevista a francis pisani
augustodefranco .
 

Was ist angesagt? (17)

ROTEIRO PARA ENTRAR NA E=R
ROTEIRO PARA ENTRAR NA E=RROTEIRO PARA ENTRAR NA E=R
ROTEIRO PARA ENTRAR NA E=R
 
Redes sociais: você pode fazer
Redes sociais: você pode fazerRedes sociais: você pode fazer
Redes sociais: você pode fazer
 
Fluzz Book + e-Book
Fluzz Book + e-BookFluzz Book + e-Book
Fluzz Book + e-Book
 
É o social, estúpido!
É o social, estúpido!É o social, estúpido!
É o social, estúpido!
 
Plataformas de rede
Plataformas de redePlataformas de rede
Plataformas de rede
 
Redes Sociais novos comportamentos
Redes Sociais novos comportamentosRedes Sociais novos comportamentos
Redes Sociais novos comportamentos
 
CADA UM NO SEU QUADRADO
CADA UM NO SEU QUADRADOCADA UM NO SEU QUADRADO
CADA UM NO SEU QUADRADO
 
Como se tornar um netweaver
Como se tornar um netweaverComo se tornar um netweaver
Como se tornar um netweaver
 
O futuro e a rede miemis
O futuro e a rede miemisO futuro e a rede miemis
O futuro e a rede miemis
 
Capra entrevista a francis pisani
Capra entrevista a francis pisaniCapra entrevista a francis pisani
Capra entrevista a francis pisani
 
VOCÊ É O INIMIGO
VOCÊ É O INIMIGOVOCÊ É O INIMIGO
VOCÊ É O INIMIGO
 
Netweaving 17set08
Netweaving 17set08Netweaving 17set08
Netweaving 17set08
 
Para configurar ambientes de cocriação interativa
Para configurar ambientes de cocriação interativaPara configurar ambientes de cocriação interativa
Para configurar ambientes de cocriação interativa
 
Resista à tentação de pertencer a um grupo
Resista à tentação de pertencer a um grupoResista à tentação de pertencer a um grupo
Resista à tentação de pertencer a um grupo
 
Uma nova proposta para a Escola de-Redes
Uma nova proposta para a Escola de-RedesUma nova proposta para a Escola de-Redes
Uma nova proposta para a Escola de-Redes
 
Fluzz pilulas 17
Fluzz pilulas 17Fluzz pilulas 17
Fluzz pilulas 17
 
Escritos Espirituais de Augusto de Franco
Escritos Espirituais de Augusto de FrancoEscritos Espirituais de Augusto de Franco
Escritos Espirituais de Augusto de Franco
 

Andere mochten auch

Personal learning and reflection
Personal learning and reflectionPersonal learning and reflection
Personal learning and reflection
bronnie93
 
Elektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versle
Elektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versleElektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versle
Elektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versle
zxc123zxc123
 
Riti training presentation
Riti training presentationRiti training presentation
Riti training presentation
hbofa
 
Cómo hacer tartas de queso
Cómo hacer tartas de quesoCómo hacer tartas de queso
Cómo hacer tartas de queso
Rocio Gil
 
Diapositivas tecnologia once
Diapositivas tecnologia onceDiapositivas tecnologia once
Diapositivas tecnologia once
YEYERINCON
 
E xame hist a 623 - informações
E xame hist a 623 - informaçõesE xame hist a 623 - informações
E xame hist a 623 - informações
Ana Cristina F
 
Projetodeaprendizagemeproinfo
ProjetodeaprendizagemeproinfoProjetodeaprendizagemeproinfo
Projetodeaprendizagemeproinfo
Jovina
 
Nadie se quede atras
Nadie se quede atrasNadie se quede atras
Nadie se quede atras
cindyld
 

Andere mochten auch (20)

Personal learning and reflection
Personal learning and reflectionPersonal learning and reflection
Personal learning and reflection
 
Elektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versle
Elektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versleElektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versle
Elektroninės paslaugos valstybės valdyme ir versle
 
Riti training presentation
Riti training presentationRiti training presentation
Riti training presentation
 
62eboluzioa
62eboluzioa62eboluzioa
62eboluzioa
 
Irfan mangi
Irfan mangiIrfan mangi
Irfan mangi
 
Gêneros textuais
Gêneros textuaisGêneros textuais
Gêneros textuais
 
Un político a un tweet de distancia
Un político a un tweet de distanciaUn político a un tweet de distancia
Un político a un tweet de distancia
 
Slideshare uso educativo
Slideshare uso educativoSlideshare uso educativo
Slideshare uso educativo
 
Cómo hacer tartas de queso
Cómo hacer tartas de quesoCómo hacer tartas de queso
Cómo hacer tartas de queso
 
Diapositivas tecnologia once
Diapositivas tecnologia onceDiapositivas tecnologia once
Diapositivas tecnologia once
 
Photochop 2
Photochop 2Photochop 2
Photochop 2
 
Presentación1
Presentación1Presentación1
Presentación1
 
E xame hist a 623 - informações
E xame hist a 623 - informaçõesE xame hist a 623 - informações
E xame hist a 623 - informações
 
Interv.. ultimo en pdf..
Interv.. ultimo en pdf..Interv.. ultimo en pdf..
Interv.. ultimo en pdf..
 
Projetodeaprendizagemeproinfo
ProjetodeaprendizagemeproinfoProjetodeaprendizagemeproinfo
Projetodeaprendizagemeproinfo
 
O catálogo 2.0 e os catálogos das bibliotecas públicas em Portugal
O catálogo 2.0 e os catálogos das bibliotecas públicas em PortugalO catálogo 2.0 e os catálogos das bibliotecas públicas em Portugal
O catálogo 2.0 e os catálogos das bibliotecas públicas em Portugal
 
Presentacióncomputador
PresentacióncomputadorPresentacióncomputador
Presentacióncomputador
 
15ª Etapa CSPC, 29 De Novembro De 2009, Taiuva-SP
15ª Etapa CSPC, 29 De Novembro De 2009, Taiuva-SP15ª Etapa CSPC, 29 De Novembro De 2009, Taiuva-SP
15ª Etapa CSPC, 29 De Novembro De 2009, Taiuva-SP
 
Quadradosoma
QuadradosomaQuadradosoma
Quadradosoma
 
Nadie se quede atras
Nadie se quede atrasNadie se quede atras
Nadie se quede atras
 

Ähnlich wie Fluzz pilulas 28

FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!
FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!
FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!
Fabio Pedrazzi
 
FRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um Grupo
FRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um GrupoFRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um Grupo
FRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um Grupo
Fabio Pedrazzi
 
Texto 1 Gfal%5 B48727%5 D
Texto 1 Gfal%5 B48727%5 DTexto 1 Gfal%5 B48727%5 D
Texto 1 Gfal%5 B48727%5 D
Erick Caniso
 
2009 10 Escritos Sobre Redes S
2009 10 Escritos Sobre Redes S2009 10 Escritos Sobre Redes S
2009 10 Escritos Sobre Redes S
Israel Degasperi
 

Ähnlich wie Fluzz pilulas 28 (20)

É o social, estúpido!
É o social, estúpido!É o social, estúpido!
É o social, estúpido!
 
FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!
FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!
FRANCO, Augusto - É o Social, Estúpido!
 
Fluzz pilulas 8
Fluzz pilulas 8Fluzz pilulas 8
Fluzz pilulas 8
 
FRANCO, Augusto - Resista à tentação de pertencer a um grupo
FRANCO, Augusto - Resista à tentação de pertencer a um grupoFRANCO, Augusto - Resista à tentação de pertencer a um grupo
FRANCO, Augusto - Resista à tentação de pertencer a um grupo
 
FRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um Grupo
FRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um GrupoFRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um Grupo
FRANCO, Augusto - Resista à Tentação de Pertencer a um Grupo
 
Fluzz pilulas 27
Fluzz pilulas 27Fluzz pilulas 27
Fluzz pilulas 27
 
Fluzz | Versão Preliminar Integral
Fluzz | Versão Preliminar IntegralFluzz | Versão Preliminar Integral
Fluzz | Versão Preliminar Integral
 
Fluzz pilulas 82
Fluzz pilulas 82Fluzz pilulas 82
Fluzz pilulas 82
 
Bem-vindos aos novos mundos-fluzz
Bem-vindos aos novos mundos-fluzzBem-vindos aos novos mundos-fluzz
Bem-vindos aos novos mundos-fluzz
 
A sociedade em rede e a economia criativa
A sociedade em rede e a economia criativaA sociedade em rede e a economia criativa
A sociedade em rede e a economia criativa
 
Fluzz pilulas 49
Fluzz pilulas 49Fluzz pilulas 49
Fluzz pilulas 49
 
Texto 1 Gfal%5 B48727%5 D
Texto 1 Gfal%5 B48727%5 DTexto 1 Gfal%5 B48727%5 D
Texto 1 Gfal%5 B48727%5 D
 
Fluzz pilulas 31
Fluzz pilulas 31Fluzz pilulas 31
Fluzz pilulas 31
 
2009: 10 escritos sobre redes sociais
2009: 10 escritos sobre redes sociais2009: 10 escritos sobre redes sociais
2009: 10 escritos sobre redes sociais
 
2009 10 Escritos Sobre Redes S
2009 10 Escritos Sobre Redes S2009 10 Escritos Sobre Redes S
2009 10 Escritos Sobre Redes S
 
SMALL BANGS eBOOK Apresentação
SMALL BANGS eBOOK ApresentaçãoSMALL BANGS eBOOK Apresentação
SMALL BANGS eBOOK Apresentação
 
REDES SOCIAIS
REDES SOCIAISREDES SOCIAIS
REDES SOCIAIS
 
Fluzz capítulo 11
Fluzz capítulo 11Fluzz capítulo 11
Fluzz capítulo 11
 
Fluzz pilulas 26
Fluzz pilulas 26Fluzz pilulas 26
Fluzz pilulas 26
 
Série FLUZZ Volume 1 A REDE
Série FLUZZ Volume 1 A REDESérie FLUZZ Volume 1 A REDE
Série FLUZZ Volume 1 A REDE
 

Mehr von augustodefranco .

Mehr von augustodefranco . (20)

Franco, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo econômico e democracia
Franco, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo econômico e democraciaFranco, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo econômico e democracia
Franco, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo econômico e democracia
 
Franco, Augusto (2018) Os diferentes adversários da democracia no brasil
Franco, Augusto (2018) Os diferentes adversários da democracia no brasilFranco, Augusto (2018) Os diferentes adversários da democracia no brasil
Franco, Augusto (2018) Os diferentes adversários da democracia no brasil
 
Hiérarchie
Hiérarchie Hiérarchie
Hiérarchie
 
A democracia sob ataque terá de ser reinventada
A democracia sob ataque terá de ser reinventadaA democracia sob ataque terá de ser reinventada
A democracia sob ataque terá de ser reinventada
 
JERARQUIA
JERARQUIAJERARQUIA
JERARQUIA
 
Algumas notas sobre os desafios de empreender em rede
Algumas notas sobre os desafios de empreender em redeAlgumas notas sobre os desafios de empreender em rede
Algumas notas sobre os desafios de empreender em rede
 
AS EMPRESAS DIANTE DA CRISE
AS EMPRESAS DIANTE DA CRISEAS EMPRESAS DIANTE DA CRISE
AS EMPRESAS DIANTE DA CRISE
 
APRENDIZAGEM OU DERIVA ONTOGENICA
APRENDIZAGEM OU DERIVA ONTOGENICA APRENDIZAGEM OU DERIVA ONTOGENICA
APRENDIZAGEM OU DERIVA ONTOGENICA
 
CONDORCET, Marquês de (1792). Relatório de projeto de decreto sobre a organiz...
CONDORCET, Marquês de (1792). Relatório de projeto de decreto sobre a organiz...CONDORCET, Marquês de (1792). Relatório de projeto de decreto sobre a organiz...
CONDORCET, Marquês de (1792). Relatório de projeto de decreto sobre a organiz...
 
NIETZSCHE, Friederich (1888). Os "melhoradores" da humanidade, Parte 2 e O qu...
NIETZSCHE, Friederich (1888). Os "melhoradores" da humanidade, Parte 2 e O qu...NIETZSCHE, Friederich (1888). Os "melhoradores" da humanidade, Parte 2 e O qu...
NIETZSCHE, Friederich (1888). Os "melhoradores" da humanidade, Parte 2 e O qu...
 
100 DIAS DE VERÃO BOOK DO PROGRAMA
100 DIAS DE VERÃO BOOK DO PROGRAMA100 DIAS DE VERÃO BOOK DO PROGRAMA
100 DIAS DE VERÃO BOOK DO PROGRAMA
 
Nunca a humanidade dependeu tanto da rede social
Nunca a humanidade dependeu tanto da rede socialNunca a humanidade dependeu tanto da rede social
Nunca a humanidade dependeu tanto da rede social
 
Um sistema estatal de participação social?
Um sistema estatal de participação social?Um sistema estatal de participação social?
Um sistema estatal de participação social?
 
Quando as eleições conspiram contra a democracia
Quando as eleições conspiram contra a democraciaQuando as eleições conspiram contra a democracia
Quando as eleições conspiram contra a democracia
 
100 DIAS DE VERÃO
100 DIAS DE VERÃO100 DIAS DE VERÃO
100 DIAS DE VERÃO
 
Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey
Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John DeweyDemocracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey
Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey
 
MULTIVERSIDADE NA ESCOLA
MULTIVERSIDADE NA ESCOLAMULTIVERSIDADE NA ESCOLA
MULTIVERSIDADE NA ESCOLA
 
DEMOCRACIA E REDES SOCIAIS
DEMOCRACIA E REDES SOCIAISDEMOCRACIA E REDES SOCIAIS
DEMOCRACIA E REDES SOCIAIS
 
RELATÓRIO DO HUMAN RIGHTS WATCH SOBRE A VENEZUELA
RELATÓRIO DO HUMAN RIGHTS WATCH SOBRE A VENEZUELARELATÓRIO DO HUMAN RIGHTS WATCH SOBRE A VENEZUELA
RELATÓRIO DO HUMAN RIGHTS WATCH SOBRE A VENEZUELA
 
Diálogo democrático: um manual para practicantes
Diálogo democrático: um manual para practicantesDiálogo democrático: um manual para practicantes
Diálogo democrático: um manual para practicantes
 

Fluzz pilulas 28

  • 1. Em pílulas Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio 28 (Corresponde ao terceiro tópico do Capítulo 4, intitulado Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos) Destruidores de mundos Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe Darayavahush é um destruidor de mundos. Joseph Campbell diria que ele representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se baseia na intenção de conquistar e comandar” (13). Como aquele Darth Vader do primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança (1977) –, na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa. É um programa malicioso que se instalou na rede. Um programa verticalizador.
  • 2. Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão emaranhados em configurações deformadas da rede-mãe, com deformações semelhantes. Qualquer um, inserido em sistemas com tais configurações, manifestará – em alguma medida – características de Darayavahush. E será em alguma medida destruidor de mundos. Na verdade, aniquilará interfaces (interworlds) estreitando o fluxo das interações, impedindo que pessoas se conectem livremente com pessoas. É por isso que organizações hierárquicas têm tanta dificuldade de gerar pessoas. Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o fluxo transformador da vida. Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a energia da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida, compartilhar o alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade, Darth Vader não tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículo-substituto para escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia da violência, obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos recursos vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela imposição da ordem). Nas organizações hierárquicas, um processo intermitente de despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos, separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo poderia ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma perda de contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de todos os setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária das) pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a visão, a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então como incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está na deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não conseguem explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe entrar em um espaço já configurado de uma determinada maneira. Não querem ‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos termos 2
  • 3. estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios termos. Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque continuamos criando obstáculos à livre conversação entre pessoas. Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam com redes. Organizações hierárquicas não podem conversar com redes. Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm imensas dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde estão imersas. A rede social que existe independentemente de nossos esforços conectivos – ou que existiria se tais esforços não fossem verticalizadores; quer dizer, o que chamamos aqui de rede-mãe – não recebe bem a influência dessas organizações e continua funcionando mais ou menos como se nada tivesse acontecido. É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus esforços não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as relações não mudam, parece que tudo continua como d’antes... Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau de enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede social que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as mensagens emitidas pela organização. É muito provável que essa organização esteja estruturada e funcione como uma pequena fortaleza, um castelinho, uma igrejinha... É muito provável que ela faça parte da ‘nova burocracia das ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às vezes até familiar – com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do que o dos partidos e organizações corporativas). É muito provável que seus chefes queiram se eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é verdade, mas todo poder hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se comporta mais ou menos da mesma maneira, sempre a partir do poder de excluir o outro...) porque precisem (ou imaginem que precisem) auferir o crédito ou obter o reconhecimento social pela sua atuação. Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico, seja com base no interesse político de um grupo particular que quer 3
  • 4. manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são sempre privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar a privatização, como aquela velha crença de que existem interesses privados que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de se universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando satisfeitos. Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com “a matriz”. Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela. Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará cada vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas em organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa possibilidade, as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente seus próprios caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca – peregrinarão para aprender naquelas “muitas cidades do Egito...” 4
  • 5. Nota (13) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a Bill Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990. 5